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1 História da Música A Música da Antiguidade O que distingue a música primitiva da música antiga é a consciência da música. Se é verdade que alguns cantos africanos ou ameríndios atingem, às vezes, um grau legítimo de musicalidade, esses povos não chegaram ao conceito de arte musical, não foi consciente, na observação de Mário de Andrade: "Pode-se afirmar isso porque a música é a única das manifestações artísticas a que nãoé possível encontrar, entre os primitivos, normalizada por uma técnica propriamente dita." Não há uma consciência sonora, e se é certo que os primitivos realizam o som, não se pode Afirmar que haja uma organização voluntária: a música é uma conseqüência dos instrumentos de sopro e do aparelho vocal. E mesmo esse som raramente é puro: "vive anasalado, vive no falsete, pouco definido em suas entonações incertas e portamentos arrastados", observa Mário. As civilizações da Antiguidade já organizam os sons conscientemente e os agrupam em escalas determinadas teoricamente. Com isso, possuem o que já se pode chamar de Arte Musical e fazem uma criação social, com função estética, com elementos fixos, formas e regras, quer dizer, com uma técnica. Apesar dos povos antigos terem sistematizado a música como arte, ainda não a concebiam com liberdade. A música viveu ligada à palavra, socializada, até porque o homem da Antigüidade é um ser mais coletivo que individual. O canto coral teve uma enorme importância, enquanto a música instrumental isolada quase não existiu. Todos os povos da Antiguidade tiveram os sons organizados em escalas, formas e fórmulas sonoras de realizar música, mas tinham pouca noção de equilíbrio sonoro e combinação de timbres. Só os gregos é que vieram a conter os coros populosos e as orquestras barulhentas, impondo um ideal mais interior e sem efeitos fáceis. Na verdade, dos povos antigos, só a Grécia nos interessa porque influi na música da Civilização Cristã. A Música na China O Império chinês começou com Fo-Ri que teria inventado todas as artes, inclusive a música, a escrita ideográfica, o calendário e o casamento. A música era orientada pelo elemento cósmico e o primeiro instrumento foi o gongo, usado para expulsar os maus espíritos e para acordar os deuses ou para salvar a Lua do Dragão, durante os eclipses. "Os chineses conseguiram distinguir rapidamente um intervalo de terça e logo passaram para o de quinta", explica Edson Frederico. "Depois conseguiram formar uma escala com cinco notas diferentes, superpondo uma quinta à outra." Estava formada a escala Pentatônica: fá, dó, sol, ré, lá. O primeiro teórico da música chinesa foi o sábio Ling Lun. Por volta de 2.500 antes de Cristo ele ordenou, sistematizou e deu nome às notas da escala

História da Música

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História da Música

A Música da Antiguidade

O que distingue a música primitiva da música antiga é a consciência da música. Se é verdade que alguns cantos africanos ou ameríndios atingem, às vezes, um grau legítimo de musicalidade, esses povos não chegaram ao conceito de arte musical, não foi consciente, na observação de Mário de Andrade: "Pode-se afirmar isso porque a música é a única das manifestações artísticas a que nãoé possível encontrar, entre os primitivos, normalizada por uma técnica propriamente dita."

Não há uma consciência sonora, e se é certo que os primitivos realizam o som, não se pode Afirmar que haja uma organização voluntária: a música é uma conseqüência dos instrumentos de sopro e do aparelho vocal. E mesmo esse som raramente é puro: "vive anasalado, vive no falsete, pouco definido em suas entonações incertas e portamentos arrastados", observa Mário.

As civilizações da Antiguidade já organizam os sons conscientemente e os agrupam em escalas determinadas teoricamente. Com isso, possuem o que já se pode chamar de Arte Musical e fazem uma criação social, com função estética, com elementos fixos, formas e regras, quer dizer, com uma técnica.

Apesar dos povos antigos terem sistematizado a música como arte, ainda não a concebiam com liberdade. A música viveu ligada à palavra, socializada, até porque o homem da Antigüidade é um ser mais coletivo que individual. O canto coral teve uma enorme importância, enquanto a música instrumental isolada quase não existiu.

Todos os povos da Antiguidade tiveram os sons organizados em escalas, formas e fórmulas sonoras de realizar música, mas tinham pouca noção de equilíbrio sonoro e combinação de timbres.

Só os gregos é que vieram a conter os coros populosos e as orquestras barulhentas, impondo um ideal mais interior e sem efeitos fáceis. Na verdade, dos povos antigos, só a Grécia nos interessa porque influi na música da Civilização Cristã.

A Música na China

O Império chinês começou com Fo-Ri que teria inventado todas as artes, inclusive a música, a escrita ideográfica, o calendário e o casamento.

A música era orientada pelo elemento cósmico e o primeiro instrumento foi o gongo, usado para expulsar os maus espíritos e para acordar os deuses ou para salvar a Lua do Dragão, durante os eclipses.

"Os chineses conseguiram distinguir rapidamente um intervalo de terça e logo passaram para o de quinta", explica Edson Frederico. "Depois conseguiram formar uma escala com cinco notas diferentes, superpondo uma quinta à outra." Estava formada a escala Pentatônica: fá, dó, sol, ré, lá.

O primeiro teórico da música chinesa foi o sábio Ling Lun. Por volta de 2.500 antes de Cristo ele ordenou, sistematizou e deu nome às notas da escala

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pentatônica: Kong (fá) representava o Imperador; Che (dó) o Funcionário; Chang (sol o Ministro; Yo (ré) o Camponês e Kio (lá) o Burguês.

Foi o imperador Hoang-Ti quem ordenou a seu Mestre de Música que visitasse as terras distantes do Império, de onde ele voltou com um pedaço de bambu que, ao ser soprado, emitia uma nota musical. E contou que no vale distante onde encontrou o bambu, depois de sopra-lo viu um fênix macho que cantou seis notas, a partir da nota tocada. Uma fêmea cantou então outras seis notas totalmente diferentes.

A esse Mestre, que não deixou o nome para a História, foi encarregado de construir flautas de bambu que reproduzissem todas as notas e fez-se uma escala de doze notas.

Além das flautas, havia sinos, afinados com as seis notas masculinas (liú) e com as seis notas femininas (líu).

Mesmo com a escala de doze notas os chineses continuaram compondo na escala de cinco, o das quintas, porque o número cinco "gera saúde e felicidade" e, segundo os sábios, os elementos primitivos eram cinco, antes de serem reduzidos a quatro (terra, ar, água e fogo).

Kung-Fu-Tsi (Grande Mestre Tsi, que os portugueses imaginaram chamar-se Confúcio e que viveu entre 571 e 478 a.C) tocava um instrumento, o kin, uma espécie de alaúde de cinco cordas de seda, cada uma representando um elemento.

Os instrumentos principais da música chinesa eram o kin, o cheng, o yang-kin, o pi-pa, o hou-kin, o heut-hien, o pai-siao, o siau e o chen.

O cheng era uma espécie de cítara, com uma única corda de seda e sem cravelha para afinação. Com o tempo foi ganhando mais cordas de tamanhos e sons diferentes. Chegou a ter 50, até que o Imperador determinou que o máximo deveria ser de 25, "para evitar a emoção excessiva" que o instrumento provocava.

O yang-ki também era uma espécie de cítara, mas com cordas de metal.

Pi-pa era um alaúde com quatro cordas de fio de seda.

Hou-kin uma espécie de violino primitivo, com quatro cordas de seda.

O eut-hien só tinha duas, afinadas com um intervalo de quinta.

Pai-siao era uma flauta, feita com vários pedaços de bambu amarrados, formando uma gaita. E siau era a flauta reta, de um só bambu mas com vários orifícios.

Cheu era a flauta transversa.

Os chineses tinham a fala como um presente dos deuses e quando o falar não era suficiente para transmitir todas as emoções, cantavam. E se, ainda assim, não fosse suficiente, era preciso agitar as mãos e dançar.

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Em 221 a.C o imperador Ts'In criticou seu povo porque usava mais tempo com a música do que com o trabalho produtivo. Por sua ordem foram queimados todos os livros que não fossem de agricultura, medicina e de presságios. Poucos livros de teoria musical escaparam, sendo enterrados pelos músicos. Só foram achados no ano 200 d.C. pelo sábio e teórico musical Se-Ma Ts'Ien, a quem se atribui o renascimento da música no país.

A Música no Japão

Chineses, por sua cultura muito mais antiga, têm preconceito em relação aos japoneses. E chegam a dizer que o Japão foi colonizado por macacos inteligentes imigrados da China...

Todo o conhecimento musical chinês passou para a Coréia, antes de chegar ao Japão. Os indígenas japoneses tocavam instrumentos de corda, o yamato-goto e o yamato-bué. Dos coreanos eles herdaram o hyen-keum, um instrumento parecido com o alaúde chinês kin. E toda a teoria musical chinesa, que assimilaram muito bem, aprendendo a tocar todos os seus instrumentos musicais.

Bons músicos, criaram o koto, uma espécie de cítara que era tocada deitada, com as cordas paralelas ao chão. Podia ter de seis a treze cordas, tamanhos diferentes, não tinha trastes.

"Os antigos achavam que o abrir e o fechar da boca eram atitudes relacionadas com a virilidade e a feminilidade", informa Edson Frederico. O canto era submetido a regras curiosas e a voz humana não soava simultaneamente com o instrumento musical, porque eles achavam que era muito monótono a voz em uníssono com o instrumento. O instrumento precedia a voz, para evitar coincidência de acentos da parte instrumental com a vocal.

Entre 1603 e 1868 o Japão foi governado por 15 gerações de ditadores militares (os shoguns, Senhores da Guerra), da família Tokugawa. É o chamado Período Edo. É o auge do teatro kabuki (surgido do teatro de bonecos bunraku) e da música que se fazia no palco. Os músicos ficavam em cena, do lado esquerdo, na gesa e sua profissão era um direito hereditário. No kabuki só os homens podiam atuar, como artistas ou músicos, mesmo nos papéis femininos.

As famílias dos músicos tinham também o monopólio do ensino e da organização de concursos de música que reuniam tocadores de biwa (o alude chinês pi-pa) ou de koto. Os concursos nacionais, de três em três anos, eram muito populares e atraíam grande público, sendo privilégio de três famílias, os Husimi, os Yotsuzi e os Zimyo-In. Uma quarta família, os Yosida, trabalhava apenas com músicos cegos, muito populares no Japão antigo.

A Música na Índia

Durante milênios a língua falada na Índia foi o sânscrito, que veio a ser a mãe do grego, do latim, do germânico e do eslavo. Os indianos dividiam a voz em três registros e, curiosamente, aconselhavam que deviam ser usadas no tempo certo: pela manhã a voz grave ou voz de peito; à tarde a voz média ou voz de garganta; à noite a voz aguda ou voz de cabeça.

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O canto era muito prestigiado e seu ensino era exclusivo dos gurus, mestres de canto que se faziam acompanhar de sinos e pandeiros. As notas musicais eram identificadas com o som que os animais produziam e a escala musical chegou a ter 22 sons. Cada som era um sruti, tido como uma revelação divina para os ouvidos do ser humano.

Os instrumentos de corda já existiam por volta de 5 mil anos. O primeiro foi o ravanastron, trazido do Ceilão. O primeiro instrumento indiano derivou dele e foi o amrita, que também tinha duas cordas e era tocado com um arco.

Outros instrumentos importantes na história da música das Índia: o bin ou vina (muito semelhante ao chinês kin), de onde se originaram mais tarde o sitár (não confundir com a cítara, que era uma harpa de colo) e o samburá. A Índia foi muito rica em flautas, trombetas e tambores de todos os tipos e tamanhos.

A teoria musical indiana tinha como base um modo melódico, uma forma chamada raga. Segundo a lenda, os primeiros ragas foram 36, saídos das cinco bocas do deus Shiva. Outros 101 saíram da boca de Parvati, sua esposa. Chegaram a existir 264 ragas. As melodias feitas com esses modos eram chamadas jatis.

A primeira religião indiana foi o bramanismo: Brahma era o deus criador, Visnú o deus conservador e Shiva o deus aniquilador. Saraswati era a deusa da música, Narendra inventou o bin e Ganesha, deus da sabedoria, tocava samburá e inventou o canto, para louvar os deuses.

No Sama-Veda, livro sagrado, é possível perceber a importância que os indianos davam ao canto e à música.

A Música Fenícia

A Fenícia ficava entre o Mar Mediterrâneo e o Monte Líbano e foi povoada por fenícios e hebreus. Os fenícios conheciam a escrita alfabética, construíam embarcações capazes de enfrentar o mar aberto e longas distâncias, fundiam metais, produziam vinho e azeite, comerciavam com vários povos da Ásia, África e Europa e tinham uma elevada cultura musical.

A música fenícia era voltada para o prazer estético e para o acompanhamento do sexo: era sensual e libertina, chegando a ser orgástica. No período da decadência (de 1000 a 750 a.C.) os judeus diziam que a cidade de Tiro era "a grande meretriz com uma lira”.

Segundo os gregos, a melodia foi inventada em Sidon.

Os instrumentos musicais eram os mesmos dos seus vizinhos: liras com 5 ou 7 cordas, alaúdes com muitos trastes, um instrumento de sopro com duas palhetas, tambores duplos. Além da harpa egípcia triangular, com 4 cordas e sonoridade aguda, chamada sambuca e que ficou muito popular, inclusive no Império Romano.

Por volta do ano 1000 a.C. os fenícios conquistaram Chipre e daí vem a maior parte da informação musical dessa civilização com seus inúmeros instrumentos de percussão (tambores de todos os tamanhos) e pequenas flautas (gingras ou gingloros) e uma espécie de clarinete de dois tubos (a tíbia sarana, herdada de

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um povo muito antigo que viveu perto do Mar Cáspio). Todas as cidades fenícias eram independentes e eles tiveram colônias na África e na Península Ibérica (Cádiz, Sevilha, Córdoba e Málaga.

Quase nada restou da música fenícia, depois que Sidon foi conquistada e destruída pelos filisteus e que Tiro foi arrasada por Nabucodonosor e que o que se construiu sobre as ruínas foi impiedosamente destruído por Alexandre Magno, da Macedônia.

A Música Síria

O instrumento musical mais importante da Antiguidade foi inventado pelos sírios: a lira, levada ao Egito em 2000 a.C. e depois usada no Império Grego e no Império Romano.

A cítara também foi inventada na Síria e era fabricada na Lídia e vendida para o mundo em três versões: a primitiva magadis, a mais aguda pectis e a mais grave barbitos, todas assimiladas pelos gregos.

Também foi na Síria que surgiu o protótipo do oboé, um instrumento de sopro com duas palhetas. E muitas flautas.

O melhor período da arte musical na Síria foi de 2000 a 500 a.C. e o sistema de escala musical tinha quatro notas (tetracorde) também assimilado pelos gregos.

É aqui que começa o que, depois, na Grécia, vai ser incorporado pela Igreja Católica e resultar nos Cantos Gregorianos.

A Música Palestina

A Palestina era habitada por várias tribos do povo hebreu. Numa época de idólatras, os hebreus eram monoteístas, não tinham regime de castas nem exploravam a escravidão.

O povo hebreu produziu o Velho Testamento e os textos bíblicos estão cheios de alusões que mostram o poder mágico que a música exercia sobre o homem. A música era indispensável ao culto.

O personagem bíblico mais exaltado como músico foi o Rei Davi, que tocava harpa. Mas o Rei Salomão, seu sucessor, ficou famoso como músico em todo o Oriente, atraindo para ouvi-lo até a Rainha de Sabá.

O instrumento de percussão mais popular era o tof, um pandeiro. Popular também foi a lira kinnor, de 10 cordas e caixa de ressonância. Os instrumentos de corda eram chamados neiginoth e os de sopro nehiloth. Os hebreus fizeram muitas flautas de cana e de madeira, de tamanhos diferentes. A de chifre era chamada halil. Nos momentos solenes soava uma trombeta reta, de metal, a hazozera. As curvas, de chifre de carneiro, eram conhecidas por keren e chofar e, segundo o Velho Testamento, o muro de Jericó veio abaixo ao som delas.

Todos os textos melódicos judeus perderam-se, no ano 70, quando o Grande Templo de Jerusalém foi destruído e houve a Dispersão dos judeus. Mas a

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tradição oral dessa música foi conservada, chegou a Roma e até à Rússia, através de Bizâncio.

Como os hebreus sempre cantaram, trabalhando, por lazer ou nas horas de aflição, sua música manteve-se inalterada por séculos. Tanto que em 1914 o cantor A.Z. Jdelsohn, nascido em Jerusalém, publicou uma obra em 10 volumes: Tesouro da melodias hebraico-orientais, uma coleção de 5 mil melodias do Yemen, Babilônia, Síria, Pérsia, Marrocos, Alemanha e Europa Oriental.

Suas melodias têm influências pentatônicas (escalas com 5 notas), e muita afinidade com os modos gregos. A maior parte das danças populares mantém tradições de mais de 2 mil anos. E a música cantada em coro também é uma das raízes do Canto Gregoriano.

A Música Árabe ► Parei Aqui

A cultura árabe é de origem persa e o povo resultou, etnicamente, de dois grupos diferentes que habitaram a Arábia: os sabeus, sedentários e os beduínos, nômades do deserto.

O canto árabe pré-islâmico foi transmitido oralmente, porque não havia notação musical, mas sabe-se que pelo menos o beduíno era monótono e repetitivo. Os sabeus gostavam de cantar em roda, dançando e batendo palmas.

O calendário maometano é chamado hégira e o ano 1 marca a fuga de Maomé de Meca para Medina, no ano 622 do nosso calendário. Maomé morreu em 632 e com sua morte a nova religião fortaleceu-se e seus seguidores começaram a perseguir a música e os músicos, porque "distraía da fé". Ainda por cima, segundo os ortodoxos, a música não era coisa de homem nem de gente séria

Em menos de 50 anos os árabes já dominavam o norte da África, a Península Ibérica, várias regiões da Europa e embora os ritos ortodoxos reprovassem o canto, a dança e qualquer tipo de música, ela era muito praticada e chegou à Espanha, de onde correu mundo.

O primeiro estudioso e teórico da música árabe foi Chalil, no século VIII. Sua preocupação maior era o ritmo.

Mas o maior teórico foi Al-Farabi (Abu Nasr Mohamed Bem Tarchan, 872 - 950). Ele conhecia e dominava o sistema musical grego que tentou, sem êxito, introduzir na música árabe. Foi ele o primeiro homem a afirmar, por escrito, que o som era obtido pelas vibrações do ar, contestando a teoria de Pitágoras, para quem o som era o resultado harmônico das esferas e dos planetas.

A escala árabe, com 17 sons, foi criada em Bagdá, um século depois, por Safi-Ab-Din, outro teórico.

Os primeiros Califas, depois de Maomé, eram expressamente contrários à música. Quando Maomé morreu, viviam em Medina três cantores famosos, Tueis, Adatal e Hit, e o Califa mandou castrar os três porque "ninguém deveria mais cantar, de tristeza pela morte do Profeta"

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Mesmo com toda a proibição e perseguição havia escolas clandestinas de canto em Meca e mesmo em Medina, onde era possível beber vinho, cantar e tocar instrumentos de música.

Na corte dos omeyas nunca faltou vinho e música, na Mesopotâmia, os abasias protegiam e até pagavam bem os músicos. Logo todas as famílias ricas tinham sua escrava-cantora.

O rei Yecid II pagou 4 mil dinares iraquianos pela escrava-cantora Habeba, que morreu aos 18 anos, deixando o Rei inconsolável. Ele chorou 15 dias, até que também morreu.

Alguns cantores ficaram famosos. Como Honain, Por um decreto do governador do Iraque ele tinha liberdade para cantar na sua casa. Como era o único cantor da província, atraía multidões à sua casa, a cada espetáculo. Um dia, a casa não suportou e ruiu, matando a todos, inclusive ao grande Honain.

Chamila também ficou muito famosa. Foi uma escrava-cantora que ganhou a liberdade e um decreto que lhe permitia cantar onde e quando quisesse.

Aben Mosáschech viajou por toda a Pérsia e Ásia Central cantando com sucesso. Aben Soraich ficou conhecido como O Anjo que Canta. Mojárec nunca repetiu uma canção da mesma forma. Oraib sabia, de cor, mais de mil músicas. Ibrahin El Mosuli era nobre e chegou a compor mais de mil melodias.

O famoso rei Harun Al Rachid deu uma festa na qual apresentou um coro formado por 2 mil escravas-cantoras.

O principal instrumento musical árabe foi o Ud, de origem egípcia, depois levado para a Espanha. Lá. O al-Ud foi chamado de alaúde. Assim como o rebad foi chamado de rebeca, o viela de viola e o guiterna de guitarra.

A Música na Grécia

A civilização grega começou em Creta, a maior ilha do Mar Egeu. Por volta de 3000 a.C. já encontramos manifestações artísticas entre os dois grupos que a habitavam, os dórios, que viviam na Lacedemônia e tinham Esparta como capital e os jônios, que viviam na Ática e cuja capital era Atenas.

Os gregos não conheceram o canto mágico. Eles acreditavam em deuses e não em espíritos, como nas outras culturas primitivas. Os deuses helênicos viviam nas montanhas, chamadas Olimpo. O mais importante foi o Parnaso, que tinha 2.500 metros de altura e era consagrado a Apolo. Ele era o deus das Artes, da Poesia e da Medicina.

No Parnaso ele regia o coro das Musas. No começo eram três: Melete, a musa da invenção, Mneme, da memória, Aoidé, do canto. Depois passaram a ser nove, divididas em três grupos: As Artes do Raciocínio tinham co mo musas a Clio, da história, Polimnia, da retórica e Urânia, da astronomia; as Artes do Ritmo Falado tinham Tália, musa da comédia, Calíope, da poesia épica, Erato, da poesia ligeira; e as Artes do Ritmo tinham como musas Melponome, da tragédia, Terpsícore, da dança e Euterpe, da música.

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Os gregos são apontados como os criadores da estética e da filosofia. São gregas as palavras teologia, filosofia, metafísica, lógica, matemática, geometria, astronomia, física, mecânica e geografia, assim como música, teatro, poesia, retórica, escultura e arquitetura.

Na verdade, a música e os fenômenos artísticos gregos (assim como a sua mitologia): Orfeu era da Trácia (no Norte da Macedônia) e Olimpo era da Frigia, uma cidade Síria. Os modos gregos vieram da Ásia Menor.

A música grega sempre foi associada à palavra. Tudo o que se relacionava com a voz e com o canto recebia o sufixo oda. O canto era função de um só cantor, ou de um coro cantando em uníssono, era uma monodia. A antiga música grega não conheceu a harmonia, só a melodia.

Os timbres de voz eram três: netóide, mesóide e hipatóide, correspondendo ao tenor, ao barítono e ao baixo. E ram vozes masculinas, porque as mulheres eram excluídas do canto. Só bem mais tarde figuravam no coro das Tragédias.

Esculápio receitava músicas leves para curar. Platão afirmava que uma receita medicinal estava incompleta se não incluísse músicas. Aristóteles criou as katharsis, para "consolo e cura dos enfermos" através da música. E há testemunhos da ação terapêutica da música deixados por Homero, Eurípedes, Aristófanes, Teifrasto, Macróbio, Catão, Tíbulo, Propércio, Horácio, Varron, Virgílio, Ovídio e Lucano, entre outros.

Na mitologia grega os deuses eram orgulhosos e vaidosos de seus inventos musicais e havia muita música na relação entre os deuses e na relação dos deuses com os mortais. Minerva inventou a flauta, mas cedeu-a a Marsias para não ficar bochechuda de tanto soprar. Apolo inventou a cítara. Hermes criou a lira. O Rei Midas ganhou um par de orelhas de burro , castigo de Apolo, por ter dito que a flauta era de sua invenção.

Pan, em grego, significa todo. Ele era o deus dos bosques e da natureza. Era filho de Hermes e morria de amor por uma ninfa da Arcádia, chamada Sirinx. O pai dela, para evitar o assédio do deus, transformou em uma cana. Pan, que se considerava o melhor tocador de cítara da Grécia, encontrou a cana, cortou-a em pedaços de tamanhos diversos, amarrou-as e fez um instrumento, a flauta de pan, que ele chamou de Siringa, em homenagem a Sirinx (e que é a mesma pai-siao chinesa).

Em homenagem às musas, a "instrução enciclopédica e a educação moral" eram chamadas de musike. A música propriamente dita era chamada de harmonia. Uma canção era uma melos (e daí vem o termo melodia). O canto de uma procissão em direção ao Templo era a prosódia. O canto fúnebre era o trento Os cantos militares eras as embaterias. Os cantos de vitória eram chamados partenias e o canto feminino, usado somente nos casamentos, era a erótica.

O local apropriado para cantar e ouvir cantar era o Odeon e, segundo Aristógenes, havia três estilos melódicos: o dialstático (música excitante), o sistáltico (música enervante) e o hesicástico (música calmante).

Só os filósofos estudavam a teoria e a estética da música grega. E a estética da forma musical era chamada ethos. Os poetas que cantavam suas músicas eram chamados aedos e a associação do canto de um coro com uma pantomima era

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chamada de orquéstica, assim como a associação de canto com a dança era chamada de hiporquema. As grandes apresentações públicas eram as agones.

A partir de 776 a.C. foram introduzidos os jogos, que eram agones seguidas de lutas entre adversários que vinham de toda parte e foram as únicas manifestações de pan-helenismo. Havia os Jogos Ístmicos, em Corinto, de 2 em 2 anos, em honra a Netuno; os Jogos Nemeus, em Nemea, de 3 em 3 anos, em honra a Hércules; os Jogos Píticos, em Delfos, de 4 em 4 anos, em honra a Apolo; e os Jogos Olímpicos, em Olímpia, também de 4 em 4 anos, em honra a Zeus.

Na antiga Grécia eram suas as escolas de música: a Pitagórica e a Harmônica. Os músicos pitagóricos eram matemáticos e seguiam a filosofia numérica de Pitágoras, onde o som gerador era o 1, o 2 era a oitava do som gerador, o 3 era a quinta e o 4 era a quarta. Os harmonicistas negavam o valor dos números mas procuravam também a harmonia e a coerência das esferas celestes ressoando.

O sistema musical grego era o tetracorde descendente, chamado sílaba. Alguns compositores chegaram a usar o pentacorde, doxiam, mas a forma que sobreviveu, por ser a mais constante, foi a soma de duas sílabas que formava uma escala descendente de 8 notas (uma oitava) que os gregos chamavam de diapason (mi, ré, dó, si, lá sol, fá, mi

Eram três os modos gregos: dório (nobre e viril, usado no Coro da Tragédia); o frígio, de origem asiática (energia e movimento) da música de flauta, das Tragédias e Comédias; e o lídio, também asiático, reservado aos lamentos fúnebres mas depois usado também na Tragédia.

Por volta do século V a.C. o modo dórico foi modificado "para colorir a música vocal e instrumental", dando origem à khroma (cor) e à escala cromática.

Os instrumentos musicais mais populares na Grécia eram a flauta de pan, (policálamos), o antigo oboé sírio de duas palhetas, as trombetas de bronze (que podiam ser ouvidas a nove quilômetros), o hidraulos (um órgão hidráulico), o pneumático (uma enorme flauta de pan com um sistema de fole acionado por várias pessoas), o trígono (uma pequena harpa), a lira (instrumento predileto dos poetas, feito com um casco de tartaruga coberto com pele de carneiro e três cordas chamadas verão, primavera e inverno; a forminx (lira de quatro cor das; a lira de Hermes (com sete ou oito cordas), as cítaras ( pectis, aguda, barbitos e magadis, grave).

Os nacionalistas, como Platão, queriam erradicar as cítaras "símbolo de esplendor e luxo asiático que invadiu a Grécia". Não conseguiu.

Do ponto de vista musical a festa mais importante era o culto a Dionísio, chamado ditirambo. Festejava a chega da Primavera e simbolizava a fecundidade. Em um altar um poeta cantava e dançava representando as aventuras dionisíacas e se revezava com outros 11, todos usando roupas feitas com pele de cabra. A manifestação orquéstica terminava com o sacrifício de uma cabra.

Em 534 a.C. o tirano Tespis inventou o carro cênico, um placo sobre rodas onde um recitante representava vários papéis com o recurso de máscaras, modificando o ditirambo que, com o tempo, foi perdendo o aspecto religioso,

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ganhou dois coros de vozes masculinas e femininas e acompanhamento instrumental.

Em Atenas, por volta do ano 430 a.C. as Grandes Dionisíacas duravam 10 dias e atraía uma multidão para os espetáculos de música, canto, dança e poesia. Os teatros passaram a ser construídos com pedra e a orchestra era uma circunferência de 10 metros, no meio do teatro, onde ficava o coro e o altar onde era sacrificada a cabra.

Platão, citando o chinês Liu Bo We afirmava que "a música de uma época bem ordenada é calma e alegre, e o Governo é uniforme; a música de uma época inquieta é excitada e sombria e o Governo é errado; a música de um Estado decadente é sentimental e triste e o Governo está perigando"

Quando a Grécia foi subjugada pelos romanos e entrou em decadência, sua música ficou sentimental e triste.

A Música em Roma

A Etrúria era uma região do que depois veio a ser a Itália. E os etruscos conheciam a música Lídia, Frigia e da Grécia. Os etruscos eram considerados um povo muito musical.

Roma foi fundada em 753 a.C. e os romanos da Idade Antiga admiravam a música: do Egito importaram as canções e os instrumentos musicais; da Síria, as flautas, e incorporaram ainda as danças árabes, as gatidanas que mais tarde levaram para a Espanha.

Os romanos só conseguiram conquistar a Grécia, totalmente, no século II a.C. A chamada Magna Grécia, as colônias gregas na Itália Meridional e na Sicília, acabaram sendo a grande influência sobre tudo o que foi conquistado e sobre os próprios conquistadores, dando origem ao período neogrego.

Dedicados à política e às guerras, os romanos não tinham tempo para a música, da qual gostavam muito mas era ofício de escravos gregos. Na verdade, Roma custou muito a ter uma arte que pudesse ser chamada romano, porque todos os seus artistas eram estrangeiros.

Mas Roma ia buscar o que queria onde quisesse. Todos os instrumentos musicais da Antiguidade foram usados pelos romanos. Ou por seus escravos.

O instrumento mais popular da Roma Antiga foi a flauta de dois tubos, chamada fístula. A corporação de flautistas de fístula ficou famosa: o Colegium Tibicinum Romanorum era chamado para espantar os maus espíritos e atrair os deuses durante os sacrifícios litúrgicos. O som triste da fístula era também muito apropriado para acompanhar funerais e não só os músicos abusaram no preço como tornou-se moda afrontar, nos sepultamentos, com um número cada vez maior de músicos tocando seus lamentos. Foi preciso uma lei que limitasase o número de fístulas em 10, por funeral. A não ser no enterro de senadores e generais.

Os órgãos, tanto o hidráulico quando o pneumático, foram muito usados em Roma e nos seus domínios.

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As várias cítaras também eram populares e os citaristas tinham até um traje típico:um túnica bordada a ouro com um manto púrpura com a frente incrustada de pedras preciosas. A palavra Cithara, em latim designava o gênio da música e da poesia.

A lira era chamada testudo, porque era feita do casco desse animal, a tartaruga.

O instrumento de sopro sírio com duas palhetas, o oboé, era chamado tíbia. Um instrumento difícil de tocar e, principalmente, de tocar bem, os grandes instrumentistas tinham foro de nobre e eram pessoas ilustres.

As trombetas eram consideradas sagradas e só podiam ser usadas nas cerimônias dos templos ou nas guerras. Eram chamadas tibulustrium e deviam, ser purificadas duas vezes ao ano. Eram de vários tamanhos, retas ou curvas. A mais comprida, reta, era a lituus. E quem a tocava pertencia à corporação dos liticinos. A curva era a cornu, atual trompa (ou corno inglês). A trombeta com o som mais grave era a tuba.

Em 336 a.C. surgiu em Roma a pantomima etyrusca: era a sucessora do teatro grego e tinha música. O primeiro teatro romano era satírico, muito popular e os versos eram cantados. Em 200 a.C. o letrista e o compositor já eram pessoas diferentes.

Na Tragédia eliminou-se o coro grego, que apenas canrtava e dançava nos entreatos, com acompanhamento de fístula.

Cipião, o Africano (cerca de 184 a.C.) achava intolerável que os jovens romanos perdessem tempo freqüentando eventos "com dançarinas, sambucas a saltérios".

Catão, por volta de 150 a.C firmava que todo homem sério devia abster-se de cantar.

Em 140 a.C. Marco Terencio começou a divulgar as teorias musicais gregas em Roma e fez com que os romanos estudassem música. Foi uma febre, uma moda que pegou, e logo era formadas companhias com músicos e atores que viajavam e provocaram a construção de teatros em Mérida, Sagunto, Nimes, Arles, Magúncia, Colônia e Cartago.

Nero, por exemplo, favorecia as artes da música, canto e dança e dava festas excepcionais. Segundo Luciano, ao receber um príncipe bárbaro do Norte, e ao afirmar que daria a ele o que fosse pedido, o Príncipe pediu o bailarino que se exibira.

Até as aulas e os discursos no Senado tinham acompanhamento musical e geralmente um flautista indicava, com as notas musicais, o tom de determinadas partes da oratória.

Primeiro teatro de pedra com regras de acústica foi construído em Pompéia,M 55 a.C.. Cabiam 40 mil pessoas. Scauro construiu um com três andares, ornado com 3 mil estátuas de bronze, para 80 mil espectadores. Não era incomum que os autores cantassem seus versos, acompanhados por flautistas mas, na verdade, quase sempre eles estavam apenas fazendo a mímica e um escravo é que cantava.

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A figura mais importante do teatro era o phonascus, o professor de canto, uma figura de destaque na sociedade romana e que exigia exercícios físicos severos e dietas rigorosas dos cantores.

Cícero, em 43 a.C. falava constantemente contra a música, tanto vocal quanto instrumental e afirmava que a doçura da música havia feito dos gregos homens fracos e depravados.

O filósofo Epicuro afirmava que a música "atende ao vinho, incita à perenidade e excita a libertinagem".

Em 22 a.C. Pílades levou a Pantomima coreografada e cantada para Roma, com acompanhamento de flauta, cítara, lira, tíbia e percussão. E os dançarinos usavam pequenas placas de metal (scabillum) nos pés, para marcar o compasso.

Pó volta do ano 100 os romanos eram definitivamente, um povo musical e surgiram as atellanes, cantigas populares, debochadas e de mal dizer, quase sempre improvisadas e falando mal dos poderosos.

Tigellio, o flautista, e Demetrius, o cantor, ficaram íntimos de César e foram nomeados professores de música das damas romanas. Mas havia um certo preconceito, com se percebe na frase "Sempronia cantava muito bem para ser uma mulher decente..."

Caius Cilnius Maecenas, conselheiro de Otávio, conquistador do Egito e somou Augusto (sagrado) ao seu nome, aproximava os músicos e cantores do poder e conseguia financiamento para eles. Passou a ter o título de Protetor das Artes, dos Artistas e dos Sábios e seu nome (Mecenas) passou a ter esse significado.

Nero estudou música com Terpo, o melhor músico da época. Anônimo (ou se imaginando anônimo) ganhou concursos competindo com os melhores músicos em Nápoles, Atenas, Lacedemônia, Corinto. Ficou verdadeiramente famoso como cantor de músicas gregas e tocador de lira, cítara e harpa. No Teatro de Pompéia competiu com o rei armênio Tirídates que, vencido, depositou cetro e coroa aos pés de Nero. Dizem que o Imperador foi o inventor da claque.

A partir dele todos os reis e imperadores foram músicos, cantores, e alguns até dançarinos.

O único instrumento inventado na Roma antiga foi a cornamusa, uma gaita rústica que veio a ser o hornpipe na Escócia e a musette na França.

A Música no Cristianismo

Os primeiros cristãos acreditavam no poder mágico do canto, embora muitos autores neguem que os cristão primitivos cantassem. Pouco se sabe sobre as origens do canto cristão mas há documentos, manuscritos gregos encontrados no Monte Athos revelando uma fórmula musical de bênção com água e azeite para curar febre e afugentar os maus espíritos. E proibindo o canto no culto, por conta das perseguições.

Aproveitando o fato das leis romanas determinarem o respeito absoluto aos túmulos e a proibição de enterrar na superfície, os cristão abriram enormes

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túneis, suas próprias catacumbas, onde enterravam os mortos e tinham lugar seguro para as suas reuniões.

Todas as cidades do Império Romano tinham catacumbas e as tumbas dos cristãos são fáceis de reconhecer porque eram encimadas pela inscrição XP ou XPTO anagrama de Cristo.

As primeiras músicas, do século IV, são orações cantadas, com forte influência da música hebraica.

No Oriente, sem perseguição, os cristãos cantavam. Plínio escreveu a Trajano contando que em Bitinia os cristãos se reuniam para entoar um Carmem (canto). O apóstolo Pedro chegou a Roma no ano 54 trazendo melodias da Antióquia, no Oriente, onde viveu muito tempo. Melodias que se misturaram aos cânticos sagrados judeus.

A melodia de uma só voz, em uníssono, sem harmonização (monofonia) tinha duas fontes: a hebraica e a grega. No início da era cristã houve a dispersão dos judeus e o antigo canto judaico não foi popularizado. Os primeiros cristãos, todos judeus conversos, é que o mantiveram vivo nas sinagogas.

Com a propagação do cristianismo na Grécia e a adoção do grego como primeiro idioma eclesiástico, a música cristã também recebeu enorme influência grega.

As perseguições aos cristãos fizeram muitos mártires, entre eles alguns músicos como Santa Cecília. Ela era organista e cantava, pedindo proteção para os que a ouviam. Padeceu por sua fé, foi morta no ano 230 e, mais tarde, foi canonizada. No local da casa em que nasceu, no Trastevere, ergueu-se a Igreja de Santa Cecília. Ela é a padroeira dos músicos (e seu dia é comemorado em 22 de novembro). Ela dá seu nome à Academia de Música do Vaticano, criada pelo Papa Pio IX em 1847 e inspirou Purcell e Händel em seus oratórios.

O Cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano em 323. Mas a música da comunidade cristã não saiu das catacumbas para as igrejas., O clero reservou-se o privilégio de estudar, organizar e compor "a melhor música para servir ao Senhor". Só no Oriente os cristão continuaram cantando suas músicas tradicionais.

A Igreja Grega dominou o Oriente e depois influenciou muito fortemente a Igreja Latina., especialmente sua música. A Antífona (um repertório a ser cantado dentro da igreja) foi criada por Flávio e Diodoro. O canto antifonal teve origem nos cantos dos hebreus e foi implantado primeiro na Igreja Grega, por Crisóstomo, de Constantinopla, depois na Igreja Síria (da Abissínia e do Egito).

Foi em Alexandria que surgiu a mais antiga escola de canto litúrgico, feito com vocalizações, variações da melodia, as melismas Esse canto melismático espalhou-se rapidamente pela Igreja do Ocidente através da Himnodia (a Arte de Criar Hinos).

A Igreja Latina foi a última a implantar o canto antifonal. Dos antigos cantos hebreus fez surgir a Salmodia (da recitação dos Salmos), um canto monótono e silábico, sobre uma mesma nota, lembrando o canto das catacumbas. Tinha três

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partes: o solo do celebrante, a resposta em coro dos fiéis e o canto antgifonal com os homens de um lado do coro e mulheres e crianças do outro.

Logo, as danças foram proibidas. E o acompanhamento com instrumentos musicais. E tudo o que lembrasse os cantos gregos.

A música ainda encontrava resistência do clero, mas Santo Agostinho (354 - 430) escreveu favorecendo o canto nas igrejas durante o culto. E teorizou sobre o ritmo e as vocalizações.

Em 370 o Papa Ambrósio escolheu quatro modos gregos, sol, fá, mi, ré, inverteu-os (ré, mi, fá, sol) e chamou esse modo de Authentus, tornando-o obrigatório para a composição do canto litúrgico e dando origem aos cantos ambrosianos

Com o fim do Império Romano, em 476, começa a Idade Média. O canto cristão é totalmente submetido à disciplina eclesiástica. O órgão passa a ser considerado o instrumento dos instrumentos e o mais capaz de tocar música religiosa.

Boecio (470 - 525) escreve um Tratado de Música em cinco volumes e a ele se deve todo o conhecimento da teoria musical grega. Morreu decapitado.

O Papa Gregório Magno (540 - 604) dedica especial atenção ao canto eclesiástico. Funda, em Roma, a Schola Cantorum e reforma a música sacra. Junta o Antifonário aos Cantos Ambrosianos e daí surgem os Cantos Gregorianos ou cantochão que passa a ser o único canto litúrgico da Igreja Romana.

"Sem dúvida, escondem-se nas melodias do cantochão fragmentos dos hinos cantados nos templos gregos e dos salmos que acompanhavam o culto no Templo de Jerusalém", escreve Carpeaux. "Não podemos, porém, apreciar a proporção em que esses elementos entraram no cantochão. Tampouco nos ajuda, para tanto, o estudo das liturgias que precederam a reforma do canto eclesiástico pelo papa Gregório I das liturgias da Igreja oriental, da liturgia galicana, já desaparecida, da liturgia ambrosiana, que se canta até hoje na arquidiocese de Milão; e da liturgia visigótica ou mozárabe que, por privilégio especial, sobrevive em algumas igrejas da cidade de Toledo. A única música litúrgica católica que conta para o Ocidente é o coral gregoriano, a liturgia à qual Gregório I, o Grande, concedeu espécie de monopólio na igreja romana.'

No entanto, o coral gregoriano não é obra do grande Papa, já existia antes. E depois, durante os séculos, sofreu inúmeras modificações, "quase sempre para pior", segundo Carpeaux. A Ordem de São Bento é que cuidou de restabelecer os textos e o modo de cantar original e são essas melodias litúrgicas que se cantam em todos os conventos beneditinos, até hoje. É a mais antiga música ainda em uso.

Os gregos conheciam uma variedade de ritmos e o Canto Ambrosiano ainda os conservou, mas o Canto Gregoriano abandonou os últimos vestígios. O ritmo acabou se diluindo, fundindo-se com a palavra e as notas passaram a ter uma duração absolutamente igual Dessa monotonia rítmica foi que surgiu o Planus Cantus, o Canto Chão.

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Em 650 o Concílio de Châlons proíbe que as mulheres cantem dentro das igrejas. Começam a ser usados dois tipos de escalas, com seis notas (hexacórdios): o duro ou natural e o doce ou brando. A igreja proíbe o intervalo que vai do F (fá) ao B (si) natural. Ele é considerado como diabolos in musica (o diabo na música). Por isso surge o B mollis (Bemol), na operação que ganha o nome de chorda mutabilis O B (si) natural acaba virando B (si) Quadratum, B Quadrado, Bequadro.

No século VIII a cristã Espanha é invadida pelos mouros, impulsionados pelos califas de Damasco. Primeiro é um emirato, depois um califato, a seguir um reino. A cidade de Córdoba fica conhecida como a Medina andaluza. Abulhasan Ali-bem-Nafi introduz a música árabe na Espanha.

A Igreja convive com os muçulmanos mas tenta resistir à música, à dança. Usa o teatro, popular e ateu, dramatizando a vida de Cristo e dos Santos para mostrar a beleza da vida dedicada ao amor a Deus, a morte, o diabo e o Inferno. Daí surgem os Mistérios. São dramas religiosos, principalmente sobre o Nascimento, Vida, Paixão, Morte e Ressurreição, representados nas igrejas, depois nos pátios, nas praças e para divertimento e ensinamento do povo.

A Igreja proíbe aos seus fiéis que aprendam a ler e escrever, "coisas do diabo", "frutos proibidos como o que Adão e Eva comeram". Mas nos mosteiros os frades cuidam de ler, estudar, escrever e a Igreja, com o Conhecimento, ganha o Poder.

Em 865 Focio começa a luta pela separação da Igreja de Constantinopla da Igreja Romana. Nas Cruzadas surgem as gestas, cantos guerreiros que contam os feitos dos heróis cristãos.

O teatro com música deixa de ser uma exclusividade da Igreja na França e depois na Holanda, mas a música que acompanha as peripécias ainda é a da igreja, especialmente os cantos gregorianos.

No século IX já existem cinco escolas de canto litúrgico: � a bizantina domina o Oriente; � a ambrosiana domina Milão e parte da Itália; � a galicana é a francesa; � a visigótica é a espanhola e a mozárabe do rito praticado pelos cristão sob dominação árabe; � a gregoriana ou romana, que domina o Ocidente.

Os órgãos hidraulos, de origem egípcia de toda a Itália são destruídos durante as invasões bárbaras. A Igreja Bizantina manda órgãos pneumáticos, de origem grega, como um presente à Igreja Romana. O sucesso é imediato.

O grande teórico da música desse século é Baubulus, autor de Media Vita, um monge.

No século X são construídos órgãos com até 400 tubos, dois teclados (com 20 teclas cada um), executados por dois músicos a quatro mãos. Instrumentos que exigem 26 foles e 70 homens fazendo força para prover o ar.

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Como a notação musical é feita com neumas (antigos símbolos egípocios, gregos e armênios e a notação não era exata em relação à altura e duração das notas, os teóricos começam a usar uma linha para distinguir a altura das notas (ainda desenhadas com neumas). As neumas acima da linha eram as notas mais altas e abaixo as mais baixas. Logo surge a pauta com duas linhas (uma roxa e a outra amarela).

Guido d'Arezzo coloca no início das linhas a letra F e C, o que significa que as neumas desenhadas ali são fá e dó. Ele introduz uma terceira linha, preta e depois trabalha com uma pauta de quatro linhas, o tetragrama. (O canto gregoriano ainda é anotado em neumas e em pautas de três ou quatro linhas.

D'Arezzo , um monge, é considerado o pai da música da Idade Média. Teórico, foi por volta do ano 1035 que deu nome às notas musicais, a partir do Hino a São João, de Pablo Diácono: Ut queant laxis Ressonare fibris Mira gestorum Famili tuorum Solvi polluti Labii reatum Sancte Ioanes.

A sétima nota ficou sem nome até o século XVI e o Ut tornou-se Dó no século XVII.

Ars Antiqua, Nova e Mensurabilis

O que distingue os antigos dos primitivos, em matéria de música, é exatamente o descobrimento da música, segundo Mário de Andrade. Se é verdade que certos cantos africanos e ameríndios chegaram a atingir um grau legítimo de musicalidade, a consciência da arte musical não atingiu esses povos. E a prova disso é que a música é a única manifestação artística que não deixou vestígios por não ter sido normalizada por uma técnica.

Por sua vez, os antigos tinham noção nítida de socialização, mas nem imaginavam a humanização e a liberdade humana. Quem trouxe a idéia do homem só (destruindo as bases em que se organizaram as civilizações da Antiguidade européia) foi Jesus.

"Foi o Cristianismo que firmou no indivíduo a noção da culpa em relação ao indivíduo mesmo e substituiu, por assim dizer, a consciência estatal anterior, por uma consciência individuaL nova", escreveu Mário, acrescentando que com isso, nasceu um ideal novo de civilização, "provindo não mais da Sociedade, mas da Humanidade".

Segundo ele, o ritmo é socializador e a melodia deixa espaço maior "para que se desenvolvam com independência os afetos individuais do ser". Á fase rítmica da Antiguidade vai suceder a fase melódica, a música ficará mais sutil, deixar de ser sensação para ser sentimento, passar de associativa a divagativa, até chegar a ser a arte de expressar os sentimentos através dos sons.

No século XI começa a chamada Ars Antiqua

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Em 1053 Cerulário separa a Igreja de Constantinopla da Igreja de Roma. Uma fica sendo a Igreja Ortodoxa e outra a Igreja Católica. O órgão é o único instrumento musical admitido dentro das igrejas. São desse século os Mistérios e os Cantos Litúrgicos, quando começa a ser praticada a diafonia, melodia em duas vozes. O organum é um canto sacro diafônico em que o cantor fica com a melodia principal e o coro faz acompanhamento com intervalos de terças e quintas; com pausas, voltam a se encontrar no uníssono ou em oitavas.

No século XII surge o discantus, coro sacro com várias vozes: cantus firmus (tenor), melismas (ornamentos do tenor), contratenor (uma voz acima ou abaixo do tenor), bassus e altus. É o começo da polifonia.

O discantus faz muito sucesso e é chamado Discantus Supremos (vindo daí o Soprano italiano).

Fora da Igreja surgem vários estilos: � gimel ou cantus gemellus, para duas vozes em intervalos de terças, superiores ou inferiores (que conhecemos hoje como dupla caipira); � falso bordone, para três vozes, na Itália. O falso bordão (ou falso baixo) é cantado numa oitava superior (nota do baixo acima da primeira voz), na França chamado de fabordon (faux bourdon) e na Inglaterra de faburden.

"A frieza bárbara começa a ser substituída por um sentimento amoroso com o culto à mulher", escreve o maestro Edson Frederico. Do francês trouver (encontrar, no caso a mulher amada) vem a denominação dos poetas-músicos que surgem em várias regiões transformando a mulher e tornando-a o centro das preocupações de amor. Na França esse cantor é chamado de trouvère, no Norte, e de troubadour no Sul. Na Espanha e o trovador. Na Inglaterra é o minstrel (que deu origem ao menestrel em Portugal). Na Alemanha é o minnesinger (cantor do amor).

O tabulatur fixa as regras que devem ser respeitadas pelos trovadores do texto, melodia e forma de declamação.

Surge a notação quadrada, derivada da notação neumática. As notas musicais são escritas com quadrados e pontos.

Alguns trovadores alcançam grande fama: Perceval, o Rei Arthur (aquele da Távola Redonda), o Duque de Aquitânia, Ricardo Coração de Leão e Cazzela, criador do madrigal monódico.

O século XIII é de grande progresso intelectual, tempo de Tomás de Aquino escrever a Escolástica: � Trívio - Gramática, Retórica e Dialética, � Quadrívio - Aritmética, Geometria, Música e Astronomia.

Em Viena, em 1288, é formada a Irmandade de São Nicolau, eu vai ficar conhecida como a Organização dos Condes Músicos e durar mais de 500 anos.

É quando surgem o cravo (ou clavecin), a espineta (um tipo de cravo que antecedeu o piano), o clavicémbalo e o virginal um pequeno cravo especialmente criado para monjas inglesas.

Surgem as partituras cifradas

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Na Espanha os Mistérios, Milagres e Autos saem das igrejas e ganham grande público. Como o Drama da Paixão na Suíça e o Cristmas Carol's (auto do nascimento de Cristo) na Inglaterra. O Mistério vira Oratório com a introdução da figura do narrador.

O Drama Profano (ou drama leigo) passa a alternar também partes recitadas com partes de canto. A Festa dos Loucos (uma paródia da missa) é sucesso nas feiras de toda a Europa e chega a ser representada em algumas igrejas.

As letras F e C, do alfabeto latino, colocadas no início da pauta para indicar que as notas ali escritas são fá e dó, são substituídas por uma chave: a primeira é a Clave de Sol, depois a Clave de Fá e por último a Clave de Dó.

O órgão ganha um teclado para os pés e os grandes nomes da música continuam sendo de trovadores: Henrique VI, Wenceslau da Bohemia, Tannhauser, Frederico II. Aos quais se juntam compositores como, Afonso, o Sábio (autor das Cantigas de Santa Maria), Adam de la Halle (autor de Jogos, canções populares, e de dramas profanos como Robin et Marion, precursor da ópera). Perotin foi o grande nome entre os compositores para órgão.

No início do século XIV a arte dos cantores ainda é monódica e individual, mas em oposição à Ars Antiqua surge a Ars Nova, que anuncia o emprego da polifonia.

Os cavalheiros, condes e reis deixam de cantar e os plebeus passam a ser cantores. Na França surgem os ministrilles que acabam fazendo uma confraria que vai durar até 1789, quando a Revolução Francesa acaba com os seus privilégios. A confraria cria as patentes: ninguém canta sem ter uma patente ou sem pagar para cantar as músicas registradas na Confraria.

Na Alemanha os cantores do amor são substituídos pelos meistersingers, os mestres cantores e eles também se organizam em um sindicato e adotam o sistema de patentes.

Na Suíça, em Zurique, os músicos são proibidos de usar armas e escudos, formam um sindicato e exigem que qualquer pessoa, para exercer a profissão de músico, compositor ou cantor, preste exame e seja sindicalizado.

Henrique de Meissen, pobre e trovador, fica famoso em toda a Alemanha como Fraenlob (Elogio das Damas) e quando morre seu funeral é acompanhado por uma multidão que incluía as nobres damas.

A variedade rítmica, a fusão dos ´rocessos de cantar paralelísticos e em movimento contrário, a elevação do número de vozes na polifonia criando o quarteto coral, fixam os princípios estéticos mais importantes da simultaneidade melódica com a chamada Escola de Paris, o início da escola franco-flamenga e a Ars Nova.

O século XIV representa na música a primeira fusão da polifonia erudita com a música profana. Profundamente influenciada pelos trovadores e pela arte popular, a polifonia católica sofre um período de obscuridade mas é quando surge a forma mais completa de missa.

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No século XV surge a Ars Mensurabilis porque a polifonia está no auge. Ao contrário do Canto Gregoriano, em uníssono, com as notas todas tendo a mesma duração, a melodia e o renascimento do ritmo geraram a necessidade de medir, de mensurar a duração das notas na partitura. Daí a arte mensurável, Ars Mensurabilis.

O Papa é um Bórgia, e o mais mundano de todos os papas é amigo dos artistas, protetor e promotor das artes, inventor do primeiro festival que juntou os maiores músicos da Europa em busca de um prêmio em dinheiro.

Em Zurique, no ano de 1410, os músicos são proibidos de usar calças (indumentária que estava na moda), para não serem confundidos com os "verdadeiros burgueses suíços". Mas a música é a maior diversão da burguesia. Os ouvidos, acostumados agora à polifonia, não aceitam mais a música sacra. Surge o contraponto, a fuga, o cânon.

Uma música popular faz sucesso e é cantada por toda a Europa: Frère Jacque, na verdade cantada até hoje, quase 600 anos depois.

Do Brevis Motus Cantilenae, da Igreja surgem os motus (modos) e o motete, escrito para coro a cappella (sem acompanhamento instrumental) e em contraponto. É o mesmo que a imitação, só que sem acompanhamento instrumental. Daí vai nascer o madrigal da Renascença.

Na França criam o Baile Cômico do Reinado, que antecede o balé e também é um antecessor da ópera. "A Escola de Paris já sistematiza as primeiras formas de composição polifônica", escreve Mário de Andrade. Entre estas importaram tecnicamente o motete, o conducto e o rondó. O motete era a três vozes, cada uma com um ritmo e um texto diferentes. No conducto o canto-firme não era mais tirado do gregoriano, e sim um canto popular ou de invenção do compositor. No rondó a mesma melodia é repetida por todas as vozes, cada voz atacando a melodia por sua vez. Muito breve este último processo de compor foi chamado de cânone, e se tornou a norma principal da composição polifônica."

Surge o trombone de vara com o nome de sacabuche. E por volta de 1425 começam a ser formadas as orquestras. A Orquestra Municipal de Berna é de 26 e é formada por um órgão, três flautas, dois clarinetes e um cantor.

Os grandes nomes do século XV são os franceses Dufay (missas, motetes e canções profanas) e Desprès (música sacra), o espanhol Ensina (mistérios e farsas) e o alemão Hans Sachs (poeta e sapateiro, criador das popularíssimas músicas carnavalescas).

Com o fim do século termina a Idade Média.

Renascença e Reforma

Renascença e Reforma são movimentos antagônicos, na música assim como nos outros setores da vida, como bem observou Otto Maria Carpeaux. Mas não é possível defini-los em termos musicais, porque o novo século (o XVI) não significa, por enquanto, mudança de estilo: continua-se a escrever como os flamengos, mas o centro é deslocado para a França, a Alemanha, a Itália, a Inglaterra.

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Também há uma diferença de natureza social: nos países que continuam fiéis à fé católica, a música sai, mais que antes, das igrejas para a vida aristocrática; nos países que aderem à Reforma a música retira-se para a igreja, adaptando-se às formas mais simples de devoção do povo.

"A região franco-flamenga foi o foco de irradiação da música renascentista para onde havia sociedades aristocráticas como no sul da Alemanha e na Itália, ou então sociedade que escolheu uma via media entre a velha fé e os rigores do calvinismo, como na Inglaterra elizabetiana", escreveu Carpeaux.

Mas os primeiros portadores dessa ova mensagem musical ainda são flamengos, como Philippe de Monte (1521 - 1603) e Roland de Lattre (1530 - 1594), ambos flamengos, franceses, italianos, alemães, cosmopolitas.

Ambos escreveram música religiosa, como a missa Inclina cor meum (Monte) e o motete Gustate et videte (Lattre) que, segundo a lenda, foi escrito para uma procissão em Munique, depois de um longo período de seca e pedindo chuva, que logo começou a cair. São obras góticas.

Mas Roland de Lettre (que se assinava Orlandus Lassus) foi muito mais popular e conhecido por suas chansons eróticas e às vezes humorísticas, com letra em francês (Quand mon mari, Margot, J'ai cherché) ou italiano (Amor mi strugge, Madona mia cara), embora houvesse escrito 516 motetes para todas as festas e comemorações do ano litúrgico (Magnum opus musicum) e os Psalmi poenitentiales, a música mais emocionada, mais dramática de todo canto a capelas.

Orlandus Lassus é o mais moderno entre os mestres antigos e o seu lirismo reflete o estado de espírito de uma sociedade aristocrática, da Renascença, do Cinquecento, de uma época já sacudida pelas tempestades da Reforma.

A música dessa sociedade, na França, é a chanson, cujo grande mestre é Clement Jannequin (1485 - 1560) e na Itália é o madrigal (espécie de motete profano, de um lirismo erótico) de Donato Donati (? - 1603), Giacomo Gastoldi (1556 - 1622) e Luca Marenzio. Na Inglaterra, o gênio é William Byrd (1543 - 1623) que, embora maestro da rainha protestante Elizabeth, manteve-se fiel à fé romana e deixou uma obra quase clandestina como a Missa para cinco vozes. Ele dominou todos os gêneros, fazendo inclusive música alegre e erótica que acompanhavam as comédias da primeira fase de Shakespeare e faziam parte do que se chamou a merry old England.

Thomas Morley (1557 - 1603) é o cantor da vida nos campos e do bucolismo, autor de grande parte das peças cantadas até hoje pelos madrigais, como Since my tear, New in the month of maying, Sing we anda chant.

John Dowland (1563 - 1626) foi o mais famoso compositor para alaúde, por suas pavanas majestosas e sombrias, popular pelas canções melancólicas como Go, cristal tears, Shall I sue, Weep you no more.

O último grande foi Orland Gibbons (1583 - 1625), autor dos doces e masis belos madrigais como Silver swan e What is our life. Gibbons já pertence a um época em que as preocupações religiosas voltam a dominar e é dele a maior missa anglicana, Service (em fá maior) e o coro Hosanna to the son of David, que ainda é cantado no dia de Natal.

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Depois dele o puritanismo religioso, vitorioso nas guerras civis, acabou com a música, dentro e fora da Igreja.

O calvinismo francês não foi tão radicalmente contra a música, pelo menos no início. Mas o regime democrático das comunidades calvinistas não admitia um coro de músicos profissionais executando músicas que os fiéis não entendiam e só podiam assistir passivamente. O culto devia ser de todos.

Claude Goudimel (1505 - 1572), uma das vítimas do massacre de huguenotes na província (depois da Noite de São Bartolomeu) foi obrigado a limitar sua arte as salmos dignos e severos que a comunidade toda podia cantar. Toda música instrumental acabou sendo excluída dos templos, admitindo-se apenas o órgão...

No mundo protestante a música foi salva por acaso: Lutero tocava flauta. E foi o porta-voz da nação germânica e da sua profunda musicalidade, o mais importante elemento de toda a história da música moderna, segundo Carpeaux.

Mas só da moderna, lembra ele, porque na Idade Média e nos séculos XV e XVI a contribuição dos alemães não é de primeira ordem, sendo o único nome indispensável o de Jacobus Gallus (Handl, 1550 - 1591), a quem os historiadores alemães chamam de "Palestrina alemão". (Cada nação pretende ter tido seu Palestrina no século XVI.) No caso, uma apelido inadmissível, por ter sido ele um gótico-flamengo, embora um grande mestre polifonista católico, autor do comovente Ecce quomodo moritur, ainda cantado nas igrejas da Baviera, da Renânia e da Áustria na Semana Santa.

Para essa arte polifônica o culto luterano não tinha uso, mas Lutera nunca pensou em excluir a música das igrejas, porque ele mesmo disse que "a música é a maneira mais digna de adorar a Deus".

Mário de Andrade escreveu: "Lutero chegando (1517) melómano apaixonado, instrumentista e até compositor, trata logo de introduzir a música na Igreja dele. Se auxilia do amigo João Walter, dos conselhos de Senfl e, compondo ele mesmo alguns cantos religiosos, como talvez o celebérrimo Ein fest Burg, cria o Coral Protestante." Desde então os melhores músicos alemães vão ter o lugar de Kantor (Mestre de Capela) nas igrejas do culto protestante. "E o Coral vai-se desenvolvendo nas mãos de Calvísius, João Eccard, Jacó Gallus, Miguel Praetorius e Hans Leo Hasler, este já muito tocado de madrigal veneziano", informa o mesmo Mário.

Escreve Carpeaux: "O coral luterano é coisa completamente diferente: é uma melodia sacra popular ou de origem popular e depois harmonizada, cantada não por um coro de cantores profissionais mas pela comunidade inteira, acompanhada pelo órgão, ao qual também se concede o direito de preludiar o canto ou de orná-lo com variações livres. Pelo coral entreou na Igreja luterana um importante e infinitamente rico elemento folclórico; ao mesmo tempo, salvou-se a relativa independência musical do órgão; e pouco mais tarde já não haverá objeções, da parte das autoridades eclesiásticas, contra a participação de outros instrumentos e contra a elaboração mais sutil de certos temas corais em obras que só um coro de cantores profissionais poderia executar: as cantatas."

Já estão reunidos os elementos de que se constituirá a obra de Bach.

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A Contra-Reforma

O Concílio de Trento a a fundação da Companhia de Jesus marca, para os protestantes, a chamada Contra-Reforma. Para os historiadores protestantes era "a resistência da velha Igreja Católica agonizante contra a Reforma vitoriosa". Mas os fatos não confirmaram essa perspectiva e a Igreja de Roma não morreu.

Ao contrário, no fim do século XVI já havia reconquistado metade dos países ao norte dos Alpes, além de extinguir os "focos de heresia" na Itália e na Espanha.

Na verdade, a Contra-Reforma foi uma Reforma, dogmática, dentro do possível, administrativa. Moral, do culto e da sua música.

A liturgia romana foi um dos instrumentos mais poderosos da propaganda dos "soldados de Jesus" e a ela os protestantes só tinham a opor a interpretação da leitura da Bíblia. Na Igreja de Roma as imagens e pinturas e a música servia para assombrar os espíritos simples e elevar o espírito da elite, segundo Carpeaux.

Na música, a reforma não é apenas litúrgica: para a verdade religiosa ficar bem representada, os fiéis devem entender bem as palavras sagradas que o coro canta. São reduzidas a abundância e a suntuosidade das artes do contraponto e não se canta mais, simultaneamente, textos diferentes. A simplificação da polifonia torna dispensável o acompanhamento instrumental para o apoio do coro. Até o órgão pode ser calado ou serve apenas para uns pouicos acordes iniciais que criam um clima.

A música da Contra-Reforma é a capela e só a voz humana da criatura é digna de louvar o Criador. Aí está a base do estilo chamado "de Palestrina". Segue-se a palvra de São Jerônimo, para quem os servos de Cristo cantariam com a intenção de agradar pelas palavras e não pela voz.

Suas origens estão na Espanha (assim como a reforma da Igreja espanhola, pela rainha Isabel e pelo cardeal Ximénez, precede a reforma da igreja universal e romana pelo Concílio de Trento).

O primeiro mestre desse estilo é Cristóbal Morales (15123 - 1553)., membro do coro da Capela Sistina (onde, ainda hoje, se canta o seu motete Lamentabatur Jacob. Ele foi o precursor de Palestrina.

Giovanni Pierluigi de Palestrina (c. 1525 - 1594) tinha um sentido de equilíbrio perfeito, latino, e ocupa dentro da música da igreja romana a mesma posição de destaque que Bach ocupa dentro da música da igreja luterana.

Como diz Carpeaux, "para nós, numa época em que nem esta nem aquela Igreja dispõe de música viva, aquelas posições históricas não têm nenhuma importância ou significação". A diferença fundamental é que Bach é capaz de exercer a mais profunda influência sobre a música moderna, enquanto Palestrina trabalha dentro de um estilo extinto há séculos e cultivado por ninguém: é apenas um fenômeno histórico. A arte de Palestrina só existe para servir à liturgia. Segundo Carpeaux, ele não é um grande compositor que escreve música sacra: é um liturgista que sabe fazer grande música.

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Segundo Mário de Andrade, Palestrina deu ao coro-a-capela a solução histórica mais perfeita, dispensando os instrumentos musicais que viviam na companhia do povo pela própria ausência de virtuosidade vocal, o que obrigava que fossem acompanhados para marcar o ritmo e sustentar o som cantado.

Palestrina, chamado no seu tempo de Príncipe da Música, tinha paixão pelo cultivo de rosas, a quem dedica sua música mais célebre, a Missa Pape Marcelli que, segundo a lenda, impediu que os cardeais, bispos e doutores reunidos no Concílio de Trento proibissem toda a música polifônica. (É esse o enredo para a ópera Palestrina, de Pfitzner, cuja música não tem o menor ponto de contato com a palestrina.)

Nas grandes igrejas da cidade de Roma ainda é possível ouvir as missas de Palestrina, porque elas fazem parte do repertório permanente: Alma Redemptoris, Beatus Laurencius, Ecce Johannes, Super Voces. O admirabile commercium, O Magnum mysterium, Quem dicut homines, Tu es pastor, Tu es Petrus, Vire Galilaei, assim como a missa de Natal Hodie Christus natus est e a belíssima Missa pro defuntis. Durante a Semana Santa, na Capela Sistina, cantam-se os motetes Pueri hebreorum, Fratres ego enim, Lamentationes, Improperia e depois das cerimônias de abertura da Páscoa a Missa Pape Marcelli, que não é a sua melhor mas é a mais famosa, com "puríssima eufonia e de solenidade sóbria", no dizer de Carpeaux.

Sua obra-prima é, provavelmente, a missa Assumpta (de 1583). Mas muitos dos seus motetes são apreciados e cantados em todo o mundo católico, como o Salve Regina, Surge Iluminare, os Magnificats, Stabat Mater.

A tradição palestrina ficou viva em Roma por mais de um século e influenciou músicos em todo o mundo católico.

Música Barroca

A música dos séculos XVII e XVIII é chamada barroca e vai até o ano de 1750, com a morte de Bach. Os teóricos da música no barroquismo citam um famoso soneto de Marino (ele também um barroco):

E del poeta il fin la meraviglia:

Chi non sa far stupir, vada alla striglia

A música tem que ser maravilhosa, grandiosa, produzir espanto no ouvinte, atacar nossos sentidos e ter muitos bordados e volutas.

O gênero musical dominante é a ópera mas, em vez das esperadas complicações polifônicas sugeridas pelas artes plásticas e pela literatura barrocas, o que se ouve é o canto do solista, a homofonia, a ária. O gênio que abre o século é Monteverde.

Se nas artes plásticas o século XVII tem Rembrandt, El Greco, Vermeer, Velazquez e Cravaggio, se a literatura nos dá Cervantes, Shakespeare, Moliére, Racine, Calderón de la Barca, a música deu poucas obras-primas de experimentadores como Monteverde, Schuetz e Purcell. A música dos Scarlatti, de Vivaldi, de Bach e Handel são do século XVIII e nada tem a ver com a do século anterior.

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Numa crítica à música da Renascença, que só admitia, na música sacra e no madrigal, o canto a capela, polifônico, de várias vozes combinadas em contraponto, Orazio Vecchi (1550 - 1605), polifonista erudito, destruiu (pelo ridículo) o ideal da polifonia vocal: escreveu a peça Anfiparnasso, commedia harmonica. Na encenação da peça (de 1594) os atores, no palco, fazem apenas os gestos e ficam mudos. Seus papéis são cantados, nos bastidores, por coros de quatro e cinco vozes. O efeito é cômico e abriu o caminho para o canto homófono, individual. No mesmo ano em que foi a cena (1597) lançou-se a primeira ópera, em Florença.

A origem da ópera florentina é literária. Em torno do mecenas Bardi reuniram-se eruditos e literatos para estudar por que os poetas trágicos italianos haviam fracassado em recuperar a tragédia grega. Do debate concluiu-se que os papéis da tragédia grega eram declamados de um modo que se assemelhava ao canto. Para conseguir o verdadeiro efeito trágico a solução florentina foi juntar os versos à música. (E, no entanto, nada se parece menos com uma tragédia de Sófocles do que uma ópera de Monteverde.)

Os primeiros libretos foram escritos pelo poeta Ottavio Rinuccini: Dafne (1597) e Eurídice (1600). A música foi de Jacopo Peri. Outro músico, o cantor Giulio Caccini, escreveu nova música para Eurídice e a diferença fundamental é que uma cuidava de musicar palavras e a outra era uma música mais trabalhadas melodicamente, procurando o significado das letras. Mas Caccini ganhou fama como o autor da Nuova Musiche, canções com a novidade de serem escritas para uma só voz.

O barroco é a vitória do indivíduo sobre o coro e é o individualismo na música. Mas, habituados à polifonia e aos acordes vocais, os ouvidos precisavam que a voz dos solos tivesse um acompanhamento instrumental que tocasse acordes, que fornecesse as a harmonia completando continuamente os sons cantados, tocando acordes mais em baixo: estava inventado o basso continuo.

O novo gênero institui a soberania do cantor: ele é o centro e é em torno dele que se monta todo o espetáculo. O canto monódico e o baixo-contínuo são os elementos da música barroca.

Em 1681 uma grande novidade, a Ópera francesa permite a participação das mulheres no espetáculo, assumindo os papéis femininos. Até então, tanto na ópera florentina quanto veneziana ou francesa, os personagens femininos eram desempenhados por homens.

A abertura das óperas passa a ser um toque forte de clarim que anuncia o começo do espetáculo.

Flautas, oboés,violinos, trombetas e tambores não são admitidos nos salões. Na capela ficam apenas os cantores, muito raramente com o organista. Na chambre (câmara) dos palácios faz-se música com base em violinos (a "música de câmara", que só vai ser ouvida fora dos palácios no século XIX). Ao ar livre apresentam-se a Grande Escurie, um grupo de 25 músicos, todos capazes de tocar pelo menos dois instrumentos

O violinista Corelli trabalha com temas de danças e canções antigas e cria o Concerto Grosso (peça instrumental que oscila entre a fuga e a suíte) para um grosso de orquestra e três ou quatro músicos solistas (concertinos).

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A palavra concerto começa a ser usada, significando uma ação concertada entre os solistas e a orquestra.

Todos os grandes violinistas da época adotam a forma do Concerto para Violino e Orquestra. As peças são escritas para que o violinista possa exibir, ao máximo, seu virtuosismo e se exiba. Os tutti (todos) da orquestra são escritos apenas para dar descanso ao solista.

O primeiro compositor a escrever para um solista que não toque vilino é Bach: Concerto Para cravo e Orquestra.

Surge, em 1690. um novo instrumento, com sonoridade mais aguda, chamado na França de chamelu, aperfeiçoado por Denner que lhe dá o nome de clarinete.

A afinação dos cravos e teclados ganha um cromatismo temperado, igual. As sete notas da escala são somadas às cinco alterações cromáticas (sustenidos e bemóis) , formando uma escala com 12 graus iguais. A divisão matematicamente exata dessas notas mantém o valor constante de 1,0594 para o semitom diatônico natural (a distância de um si-dó, por exemplo). Uma diferença de 0,007 da antiga.

Bach, exigindo a nova afinação, escreve Das Wohltemperierte Klavier (O Cravo Bem Temperado).

O italiano Cristófori (em 1711) o Forte Piano (forte-suave, em italiano).. Ao contrário do cravo, o instrumentista controla a intensidade forte ou suave da interpretação, dependendo da força que usa nas teclas. O instrumento é Aperfeiçoado por Silbermann e fica conhecido como pianoforte, mas logo é conhecido apenas como piano, mas é rejeitado por quase todos os músicos até o final do século XVIII. Entre os maiores opositores está Bach, que se recusa a escrever para "essa monstruosidade".

No Barroco formam-se orquestras imensas mas o resultado é ruim. A orquestra barroca, em geral, tem cerca de 17 músicos. Bach usava uma formação com cinco violinos, duas vilas, dois violoncelos, dois oboés, dois fagotes, três trombones e um par de tímpanos.

Em 1749, Rameau e Gluck introduzem o clarinete na orquestra da Ópera..

No Brasil. O antigo chalumeau transforma-se na charamela, também chamada de churumela. No século XVIII, em Pernambuco, há notícia de conjuntos de músicos negro, os charameleiros. A música para instrumentos de sopro, no Nordeste brasileiro, é chamada de charanga.

As irmandades de Música são muito comuns na Bahia, em Pernambuco e em Minas Gerais. Há irmandades só de músicos pretos (São Benedito), só de mulatos (São José dos Homens Pardos) e só de brancos (Ordem do Carmo). São uma espécie de sindicato, onde somente os sócios podem fazer música e têm a proteção dos irmãos, em todo e por tudo. Os chefes de orquestra são chamados de regentes. Bem remunerado, mora bem, é livre e mesmo os pretos são donos de escravos. Importam de Portugal tratados de música e partituras que levam ano e meio para chegar.

Na Bahia e no Rio de Janeiro há bandas de negros escravos.

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No fim do século XVIII surge a abertura para as óperas. A overture francesa surge com Lully , a italiana com Scarlatti, mas a primeira forma (lento - alegro - lento) prevalece, quanto é adotada por alemães e ingleses.

A música barroca tem muitos nomes importantes como os luthiers mais célebres de todos os tempos, Guarnierius e Stradivárius (ambos de Cremona, na Itália), o teórico Giovanni Maria Bononcini (autor de Il Musico Práttico, o homem que mudou o nome da nota musical ut para dó), os compositores Carissimi (autor de 15 Oratórios que dão um caráter definitivo ao gênero), Lully (introdutor do balé na Ópera francesa), Corelli (autor de 48 Sonatas para dois Violinos e Contínuo e criador de uma escola para instrumentos de arco), Purcell ) o criador da ópera inglesa), Couperin (autor de L'art de toucher le clavecin e primeiro instrumentista de teclado a usar o polegar, uma inovação revolucionária), Albinone (o autor de Ópera Séria), Juan Bautista Bononcini (rival de Handel que trocou a viola de gambá na orquestra pelo violoncelo, dando importância a esse novo instrumento), Vivaldi (a grande admiração de Bach, 10 anos mais moço, que reescreve seus Concerti Grossi para órgão), Telemann (autor de 40 Óperas, 100 Suítes, 44 Paixões), Rameau (autor do Tratado de Harmonia Reduzida a seus Princípios Naturais), John Gay (autor da Ópera do Mendigo), Scarlatti (que, aos 24 anos, mesma idade de Händel, disputa com ele uma competição promovida pelo Cardeal Ottoboni. Handel vence no órgão e Scarlatti no cravo), Handel, alemão, naturalizado ingês, dono do Covent Garden, a mais importante sala de concertos da época, um dos autores mais férteis do barroco) e, naturalmente, Bach (descendente de uma família com 120 músicos, o último grande músico barroco).

No Brasil o maior autor barroco é Antonio José da Silva, o Judeu (que escreveu comédias de costumes e morreu degolado, tendo o corpo queimado pela Inquisição, acusado de divulgar o lundu, "música erótica trazida da África").

Handel (O Barroco Protestante)

Só uma região da Europa resistiu à vitória da homofonia: a zona do protestantismo luterano, a Saxônia, a Turíngia, Brandenburgo e Hanover. Em Dresden, o rei da Saxônia, convertido ao catolicismo para poder eleger-se rei da Polônia, não quis saber da música luterana e manteve uma cara casa de ópera com músicos italianos que também tocavam música sacra na sua igreja na corte.

A dinastia de Hanover deixou o país para ocupar o trono inglês. Príncipes,, duques e condes da região eram pobres, como as cidades que sofriam ainda os efeitos da Guerra dos Trinta Anos. Além dos motivos religiosos, motivos financeiros impediram a marcha da música barroco-católica para o Norte.

As tentativas de estabelecer casas de ópera em Berlim e Hamburgo fracassaram.

A vida musical ficou concentrada nas Kantoreien escolas de música sacra estabelecidas junto às principais igrejas. O Kantor, músico profissional, também era o encarregado de organizar os concertos profanos da municipalidade. E para que ele não fosse contra os princípios luteranos, dele exigia-se uma sólida formação teológica.

Era um mundinho, pequeno e fechado, bem de acordo com a tradição musical germânica que, até então, "tinha contribuído muito pouco para o

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desenvolvimento da arte", como lembrou Carpeaux. Foi a influência italiana que fez nascer a grande música alemã. A influência de um Frescobaldi, Girolamo Frescobaldi (1583 - 1643), o maior organista do seu tempo, improvisador genial, contrapontista erudito. A riqueza melódica das músicas do organista da basílica de São Pedro, no Vaticano, concentrou-se principalmente na forma da tocata. No dizer de Otto Maria Carpeaux, "o gosto da polifonia inspira-lhe a forma do ricercare, que é um achado de primeira ordem: será a fuga. Os Ricercari de 1615 e os Fiori musicale de 1635 contêm muita música maravilhosa. O Secondo Libro di Toccate (1637) é a maior obra organística antes de Bach.

Johann Pachelbel (1653 - 1706), organista em várias cidades, foi o introdutor da fantasia frescobaldiana nos prelúdios dos corais e escreveu 94 fugas sobre a melodia do Magnificat. Ainda segundo Carpeaux "está pronta, enfim, aquela forma polifônica que caracteriza a renascença da polifonia na última fase do Barroco, até então homofônico: a fuga." E que abre caminho para Handel.

Handel, dizem os ingleses. Haendel, dizem os alemães. George Friedrich Handel (1685 - 1759) nasceu e formou-se na Alemanha. Viveu e morreu na Inglaterra. Sua terra é a Saxônia, onde estudou Direito e teologia (para ser um organista e Kantor da principal igreja de Halle).

Ele começa por transplantar para o coro ass grandes artes polifônicas. Viaja à Itália em 1707, exibindo-se como virtuose do órgão. Vai para Londres e ali espera fazer o sucesso que não conquistou em Hanover. Funda e dirige uma casa de ópera e lua contra os credores, as resistência inglesas, os concorrentes italianos. Em 1728 estava falido.

Funda nova ópera, enfrenta novos credores, novas lutas, mas em 12736 está na mais completa ruína financeira e ainda sofre um derrame que o deixa paralisado.

Refaz-se. Sem dinheiro para encenar óperas no palco, executa óperas de enredo bíblico em salas de concerto e cria o oratório. É a vitória completa.

Em 1759, quando é sepultado no panteão dos ingleses, na Abadia de Westminster, sua estátua fica entre o túmulo dos reis da Inglaterra e o monumento a Shakespeare. Haydn, Mozart, Beethoven consideravam-no como o maior de todos os compositores.

Curiosamente, esse gigante da música é um plagiário. Tem recursos inesgotáveis de invenção mas não pode ouvir um tema mal aproveitado,m um trecho mal empregado por outros compositores e logo se apropria e usa, como se fossem seus, magistralmente.

Sem vergonha, inescrupuloso, plagia até a si mesmo, usando uma mesma melodia para fazer música sacra e profana, com apenas algumas modificações rítmicas. A tal ponto que uma canção, popular e intensamente erótica, lhe serve para um De Profundis .

Handel é "a suprema realização do ideal barroco". E sua polifonia é alemã, a melodia é italiana, e ele é o mais legítimo representante do barroco inglês, o que é evidente na sua música litúrgica da Igreja anglicana, onde realiza o que Purcell iniciou. (Os 12 Chandos-Anthems para serviços na capela particular de Lord Chandos são obras-primas.) Até hoje, na cerimônia de coroação de um rei

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da Inglaterra, executam-se os quatro Coronation Anthems (1727), música principesca de gosto popular que excita o patriotismo das multidões, segundo Carpeaux.

Uma das obras musicais mais conhecidas no mundo é o Concerto para Órgãos e Orquestra em Fá Maior, opus 4, nº 4 (de 1738), popular no melhor sentido da palavra. Mas se Handel é capaz de fazer uma belíssima música, magistralmente trabalhada, ela não pode ser comparada à de Bach, que é um compositor que dá seu melhor em música instrumental (como Haydn e Beethoven). Handel se exprime melhor em música vocal (como Mozart e Schubert), embora sua maneira de tratar as vozes provenha do órgão.

Bastam alguns acordes de uma introdução orquestral e alguns compassos cantados pelo coro para dar a medida da grandeza incomparável do mestre. O enredo dramático meio indiferente das óperas só serve como preparação para a grande ária. Por isso mesmo, das óperas de Handel, só sobrevivem as árias usadas em concerto: V'Adoro, pupille; Ombra cara de mi sposa; Ombre, piante,

une funeste; Lascia ch'io pianga . Mas o trecho mais célebre é, sem dúvida, o "largo" Ombra mai fu, da ópera Serse, que para Carpeaux é "uma das mais nobres melodias jamais inventadas", peça indispensável no repertório dos grandes tenores e barítonos.

A música religiosa de Handel, principalmente suas Missas, escandalizam os protestantes. Mendelsssohn sai de uma de lãs (segundo Mário de Andrade) sarapantado e dirá que ela é "escandalosamente alegre". Para Mário, Handel "foi um golpe enorme na verdadeira religiosidade musical"

Do ponto de vista do estilo não há diferença importante entre as óperas e os oratórios de Handel (excluídos da execução na igreja por causa da forma dramática e excluídos da representação no palco por conta do assunto religioso). Com os oratórios Handel faz a sala de concertos começar a desempenhar sua função moderna.

O oratório é a melhor manifestação do barroco protestante, síntese da ópera italiana, da paixão alemã, do teatro clássico francês e do protestantismo anglicano.

Dos oratórios de Handel infelizmente poucos, sempre repetidos, constam do repertório moderno e só se cantam algumas árias que não dão noção correta do conjunto. Hoje, o Messias (1742) é o oratório mais popular de Handel, mas não deve ser incluído junto aos outros. É uma obra muito diferente, principalmente pelo lirismo. O Halleluja é o ponto culminante do barroquismo de Handel. Assim como a ária I Know that My Redeemer Liveth é a mais comovida oração da língua musical.

Foi o Messias que permitiu a Handel pagar todas as suas dívidas e deu-lhe o suficiente para ainda ajudar generosamente várias instituições de caridade e igrejas pobres. Por isso mesmo é que no seu túmulo-monumento, Handel tem os originais desse oratório em suas mãos.

Johann Sebastian Bach

Johann Sebastian Bach (1685 - 1750) não foi, em vida, o centro do mundo musical nem na Alemanha do Norte. Esta posição foi de Telemann. Bach era famoso como o maior organista do seu tempo, virtuose do cravo e no violino, e

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por sua notável pontualidade no cumprimento de suas obrigações de Kantor, escrevendo a tempo e a hora grande quantidade de música sacra que o culto luterano requeria. Também foi reconhecido por suas brigas constantes com as autoridades administrativas quanto aos recursos para executá-las. (A informação é de Otto Maria Carpeaux.)

A Alemanha protestante não conheceu a verdadeira Renascença, interrompida pela Reforma e pela Guerra dos Trinta Anos. O barroco protestante é uma tentativa de recuperar o terreno perdido e é caracterizado pela síntese da religiosidade luterana com a influência mediterrânea, latina.

O maior entre os precursores de Bach surgiu na Dinamarca, então um país de civilização predominantemente alemã: Diderik Buxtehude, organista da igreja St. Marien, em Luebeck. Suas cantatas Also hás Gott geliebt (Assim Amor Deus) e Gottes Stadt (A Cidade de Deus) são exemplos de uma arte evangélica que lembra as gravuras de Rembrandt pelo sombrio.

Desde 1673 ele regia os famosos concertos das noites de domingo (Abendmusiken) na sua igreja e não houve músico alemão que não viajasse para ouvi-lo, inclusive Bach.

Homem de Deus, testemunha do Verbo, Martinho Lutero reformou a Igreja com severidade, o que não o impediu de ter como lema "vinho, mulher e música". Bach foi seu filho espiritual, sincronizando perfeitamente os dois mundos, o de Deus e o dos homens. Bebia bem, teve mulher, muitos filhos e louvou a Deus segundo as regras do contraponto e da polifonia.

A historiografia liberal do século XIX considerava Lutero como o primeiro homem moderno, pelo rompimento com as cadeias da Igreja medieval. Mas a historiografia moderna mostra em Lutero os elementos medievais, góticos, que sobreviveram na Igreja luterana.

São esses, segundo Carpeaux, os elementos que determinam o primeiro e mais arcaico aspecto da obra de Bach:o gótico, pelo qual ele se liga à polifonia dos mestres flamengos do século XV (embora sem conhecê-los). Bach, dono de órgão e orquestra, não deve ter sentido grande atração para a música vocal sem acompanhamento (e é bom lembrar que o coro a capela não tinha lugar no culto luterano) tanto que escreveu apenas cinco motetes a capela. Mas não se pode negar que principalmente Jesus meine Freude (Jesus Minhas Alegria, de 1723) seja a mais profunda expressão do misticismo gótico.

O recurso habitual da polifonia bachiana é o órgão. E Bach foi tão soberano nesse instrumento que suas obras são mais do que suficientes para formar um repertório completo, sendo dele a obra mais tocada em todos os tempos e em todo o mundo: Tocata e Fuga em ré menor (1709).

Na obra para órgão de Bach está realizadas a suprema ambição da época barroca, a conquista do espaço pela música. O espaço da fé gótica.

Pó obrigação de serviço, Bach escreveu durante anos, uma cantata por semana. Sabe-se de 295, das quais grande parte se perdeu por conta da devassidão de seu filho mais velho (e herdeiro dos seus papéis) Wilhelm Friedemann. Só subsistem 198. Quem ouve uma reconhece qualquer cantata como sendo de Bach, embora nenhuma se pareça com a outra.

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A cantata de Bach sempre se baseia em determinado coral luterano (que fornece a base do libreto) e, quase sempre, os temas musicais a que se refere o Evangelho no domingo, no dia de festa ou na cerimônia (casamento, funeral) para o qual a cantata é destinada.

Com a cantata Bach consegue satisfazer os ortodoxos que exigem obediência cega à letra da Bíblia, e os pietistas que cultivavam um devoção entre o místico e o sentimental. A razão de Bach é ortodoxa, mas seu sentimento é piedoso.

Há cantatas para tudo e para todos os gostos: trágicas ("sombrias como as igrejas medievais iluminadas através de vitrais", escreveu Carpeaux), lamentosas, alegres, pomposas, bucólicas, angustiadas, místicas, confissionais, luminosas, até o maior de todos os seus hinos, o Magnificat (1723), possível porque a igreja luterana do século XVII ainda não havia banido de todo a adoração a Maria.

Membro da Sociedade das Ciências, em Leipzig, Bach deve ter conhecido e apreciado a filosofia de Leibniz e deve até ter aprovado as fracassadas tentativas do filósofo de promover a reunião das Igrejas separadas.

É preciso não esquecer que, para obter o título de Hofkapellmeister (Maestro da Corte Real), o maior músico do protestantismo escreveu uma missa católica, dedicada ao rei da Saxônia, convertido ao catolicismo para ser rei da Polônia. A Missa em si menor (também chamada Missa Solene) é uma obra de inspiração protestante, luterana. Parece manifestar a esperança de reunião da Cristandade e é a maior obra de Bach, "talvez a maior de toda a música ocidental", segundo Carpeaux, que chamou-a "uma catedral invisível, a mais alta que jamais foi construída".

Segundo Mário de Andrade, "a polifonia não tem senão essa razão de ser: produzir a obra de Bach". E, para ele, Bach é um anacrônico: "Toda a obra dele se coloca no século XVIII, fase do Classicismo musical". Mas de clássico, Bach tem coisa alguma, porque ele é. Intimamente, popularesco. "Porém, se não foi um clássico no sentido histórico nem estético da palavra, tendo fundido como ninguém a musicalidade genial com uma ciência técnica incomensurável, Bach se tornou o Clássico por excelência. O homem que a gente estuda nas classes..."

Para Mário, Bach "é a síntese de seis séculos musicais". Mas, por ser anacrônico, seu valor musical passou despercebido dos seus contemporâneos, que apreciaram o instrumentista mas consideravam suas composições maçantes. Foi preciso que Mendelssohn executasse, pessoalmente (em 1829), na mesma igreja de Leipzig onde Bach era Kantor, a Paixão Segundo São Mateus, para o compositor ser reconhecido e crescer sempre como o maior polifonista de todos os tempos.

Com Bach e a nova afinação do cravo, agora "bem temperado", deu-se um verdadeiro golpe de Estado na música, estabelecendo o império da lei de separação rigorosa de toma maior e tom menor, a pureza de cada uma das tonalidades e a possibilidade de usar na composição todas as 24 tonalidades possíveis.

O próprio Bach esgotou todas as possibilidades nos 24 prelúdios e fugas do primeiro volume do Cravo Bem Temperado e, depois, nos 24 prelúdios e fugas do segundo volume. É a maior obra pianística de todos os tempos, que Hans Von Buelow chamou de Velho Testamento do Piano (sendo o Novo Testamento as

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sonatas de Beethoven). Para Carpeaux "é o manual da técnica do instrumento, seu breviário didático, e é obra fundamental da harmonia moderna".

Os Concertos de Brandenburgo revelam claramente mais um aspecto característico do gênio de Bach: a tendência de esgotar todas as possibilidades de um gênero, todas as soluções possíveis de um problema musical, produzindo as realizações mais monumentais, definitivas e, ao mesmo tempo, manuais práticos para o ensino do gênero ou problema.

A última obra de Bach é a Kunst der Fuge (Arte da Fuga, 1748 - 1750). Um verdadeiro monumento da sua arte polifônica, quando um único tema é explorado para fornecer todas as formas possíveis do gênero. O grande Ricercare é a maior fuga de toda a história da música e todas elas formam um esquema arquitetônico, uma construção onde ficou faltando a torre, a harmonização do coral Vor deinem Thron treet'ich hiermit (Apareço Perante Teu Trono), interrompida porque Bach foi chamado a compareceu perante o trono de Deus.

Descendente de uma família cujos membros todos eram conhecidos como músicos desde o século XV, Bach teve educação religiosa severa, formação erudita, foi violinista na corte de Weimar, organista na igreja de Arnstadt, não se tornou sucessor de Buxtehude porque não quis casar com sua filha (como era costume na época). Suas "inovações audaciosas" nos prelúdios de órgão fizeram-no perder o emprego em Arnstadt. Organista da igreja de Muehlhausen (na Turígia) também ficou desempregado porque deu razão aos pietistas contra os ortodoxos. Maestro na corte de Koethen (onde o calvinismo do príncipe não aturava música litúrgica) dedicou-se inteiramente à música instrumental.

Seu casamento com uma prima, Bárbara, é motivo de escândalo. Quando ela morre, casa com Ana Magdalena. Tem muito prestígio social como Kantor da igreja de São Tomás, em Leipzig, mas não é reconhecido pelos músicos do seu tempo que não compreendem a "antiquada música polifônica". Seus próprios filhos, todos músicos, abandonam a memória do pai.

Místico extático mas homem dos prazeres substanciais da vida, homem de Deus e burguês de vida confortável, profeta e pai de 15 filhos, poeta abstrato e homem irascível e permanentemente envolvido em brigas e contendas judiciais, autor da maior obra musical de todas as obras mas pouco preocupado em preservá-la (os originais dos Concertos de Brandenburgo foram escritos em papel de embrulho de uma loja comercial), Bach não se considerava um gênio musical e sim um artesão.

Bach nunca escreveu para exprimir-se e trabalhava sob encomenda da igreja, da corte ou para o ensino. Depois da morte foi rapidamente esquecido, até ser ressuscitado por Mendelssohn, quase 100 anos depois.

Ele julgava-se destinado a reformar fundamentalmente a música sacra da Igreja luterana. Não conseguiu realizar o seu objetivo. Rejeitado pelos contemporâneos, esquecido até pelos filhos, sobreviveu, ressuscitou, veio ocupar o primeiro lugar nas história da música.

Como escreve Carpeaux, consumou-se a profecia bíblica (Mateus, XXI, 42): "A pedra que os obreiros rejeitaram, tornou-se pedra fundamerntal".

A Música Clássica

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Nietzsche dizia que a música estava sempre em atraso em relação às outras artes. E explicava que é muito mais difícil que as pessoas se acostumem a um novo estilo musical do que a inovações no terreno da poesia, da prosa, da pintura ou da escultura. Em sua opinião, a música ficaria sempre para trás.

A presença da música barroca de Bach (morto em 1750) e de Handel (morto em 1759) em pleno século XVIII parece dar razão a ele. Para explicar essa presença anacrônica quando a literatura e as artes plásticas já haviam abandonado e até esquecido o barroco, só aceitando-se a tese de Nietzsche.

Em 1778, quando Voltaire morre, a Europa há decênios estava dominada pelo pré-romantismo, sentimental ou patético e as formas musicais do barroco não se prestavam para expressar esses sentimentos. A ópera napolitana de Scarlatti era essencialmente não-dramática. As óperas de Handel caíram logo no mais completo esquecimento. E a música instrumental barroca era tão abstrata, tão fora do seu tempo, que Bach foi abandonado pelos próprios filhos.

Os filhos de Bach

Johann Christian Bach (1735 - 1782) foi o filho caçula e predileto do mestre Bach. E seu maior traidor. Em 1754, em Milão, apenas quatro anos depois da morte do pai, o filho do maior músico protestante converteu-se ao catolicismo, para obter o cargo de organista do Domo.

Em 62 Bach estava em Londres, novamente como protestante e maestro da Rainha. Em 65 fez uma parceria com o violinista Karl Friedrich Abel para fundar uma "sociedade de concertos públicos", a primeira do gênero. Ganhou muito dinheiro e entregou-se aos prazeres materiais, bebidas e mulheres. Epicureu cínico, cortesão inescrupuloso, execrado pelos contemporâneos como apóstata, hoje dão-lhe importância que nunca teve, como compositor típico do rococó e um dos representantes do chamado "estilo galante".

Em 1768 tocou, pela primeira vez, em um concerto, substituindo o cravo pelo piano, em público que pagou para ser admitido ao concerto. Os historiadores da música tomam essa data como o fim da música escrita para a câmara de príncipes e aristocratas.

Quem o ouviu tocar foi o então menino prodígio Mozart que declarou-se muito impressionado. Tanto que, se hoje ouvirmos Johann Christian Bach, vamos imaginar que estamos ouvindo Mozart. Na verdade, o estilo mozartiano é bachiano, de Johann Christian.

Ele recebeu, na casa do pai, cuidadosa educação musical, assim como os outros filhos e nos nossos dias o "Bach de Londres" voltou a fazer parte do repertório de música de câmara, pelo menos com a chamada Sinfonia para Duas Orquestras, em ré maior (que Carpeaux chama de "espécie de concerto grosso degenerado), assim como os pianistas executam os Concertos (em dó maior, sol maior e bemol maior, que Carpeaux chama de "graciosas como peças de porcelana de Meissen ou Sévres").

Wilhelm Fiedmann Bach, o filho mais velho, tinha um talento notável para a música e foi o mais preparado. Virtuose do cravo e do violino, deixou-se vencer pela boêmia e, muito mais, pelo álcool. Alcoólatra de ficar sujeito a delírios, morreu internado.

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Só Carl Philipp Emanuel Bach não deveria envolver-se com música e seu pai foi destinou-o a ser um advogado. Mais ainda, a ser um jurisconsulto erudito. Mas atraiu-o o clavecin e depois de anos de serviço como músico na corte do rei Frederico II, o Grande, em Potsdam, aceitou (em 1767) suceder ao amigo de seu pai, Telemann, no cargo de diretor de música da cidade de Hamburgo. No fim do século XVIII o nome Bach significava apenas Carl Philipp Emanuel. O velho Johann Sebastian Bach estava esquecido, assim como o novo Johann Christian. Nos documentos da época o "Bach de Hamburgo" é saudado como o maior compositor do seu tempo.

Até hoje se sucedem reedições de sua obra teórica Versuch ueber die wahre Art das Klavier zu spielen (Ensaio sobre a Verdadeira Arte de Tocar Piano) e esse "verdadeira" não era, evidentemente, a arte do cravo bem temperado.

Suas primeiras sonatas foram escritas enquanto o pai ainda estava vivo e escrevendo a Missa em si bemol menor. E as últimas são contemporâneas de Haydn e Mozart.

Homem e compositor de uma fase de transição, suas Variações sobre as Folies d'Espagne parecem antecipar o grande estilo sinfônico de Brahms. Ele, muito certamente, foi o mestre de Mozart, desenvolvendo o novo concerto para piano e orquestra. Mas sua forma predileta foi a sonata para piano solo: Sonatas Dedicadas ao Rei da Prússia (1742), Sonatas Dedicadas ao Duque de Wuerttembergo (1744) e as notáveis Sonatas com Reprises Variadas que escreveu a partir de 1760 e que, sem dúvida, tiveram uma influência decisiva na arte de Hatdn. As Sonatas para Conhecedores e Amadores, até hoje são de repertório e muito usadas no ensino superior.

Com a palavra Otto Mareia Carpeaux: "Carl Philipp Emanuel Bach não é só importante personagem histórico. Começou manejando o novo recurso formal da sonata-forma com tanto gênio que lembra, às vezes, Beethoven."

Esse filho de Bach também foi, à sua maneira, um gênio.

Romantismo

A música artística profana pretendeu, de todos os modos, satisfazer as necessidades musicais do povo. Mas, originada do canto popular e bebendo sempre na fonte do povo, foi gradativamente sendo aristocratizada e sendo divorciada do espírito do povo. Chegou a se transformar em manifestação orgulhosamente aristocrática com a chamada "música pura", dos clássicos. Era a reprodução artística mais fiel do espírito político do século XVIII, quando as monarquias elevaram ao cúmulo da deformação o princípio aristocrático do Cristianismo, cujo fundamento é Deus-Rei. A observação é de Mário de Andrade, na Pequena História da Música.

Outro Mário, Cabral, crítico e historiador da música, concorda mas anuncia a reação, orientada na França pelo movimento filosófico dos Enciclopedistas, que levaram o povo à Revolução Francesa (1789), a revolução que mudou o mundo.

Em primeiro lugar porque transformou a sensibilidade social, trocando a insensibilidade social da aristocracia ("Se o povo não tem pão que coma bolo") pela sensibilidade popular. Foi exatamente isto que criou um estado de coisas chamada de romantismo, que já era anunciado na literatura, desde o século

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XVI, por Shakespeare (na Inglaterra), confirmada no século XVIII por Rousseau (na França) e Goethe (na Alemanha) e desenvolvida no século XIX por Dostoievsky e Tolstoi (na Rússia) e Balzac na França.

Edson Frederico dá o cenário político: a Áustria está em guerra, desde 1772, com a Prússia de Frederico, o Grande. A colônia britânica na América luta por 9 anos, ajudada por tropas francesas, contra a Inglaterra, com a aliança dos alemães, e acaba se tornando independente em 1783. Na França de Luís XVI acontece a Nova Era e a AssembléiA Nacional Constituinte proclama a Declaração dos Direitos do Homem. A Revolução Francesa acontece em 1789. Napoleão vence guerras contra a Áustria, Itália e Egito, expulsando D. Maria I de Portugal para o Brasil em 1808. Depois perde para a Rússia. a Espanha e a Santa Aliança. E, finalmente, perde para a Inglaterra e as potências coligadas em Waterloo, na Bélgica.

Para Mário de Andrade, a música estava em um beco sem saída quando acabou sendo uma deformação do espírito popular, o que aconteceu "quando os arsnovistas se aproveitaram do espírito popular para profanizar a música", transportando-a para dentro da música erudita, e o que era monódico no povo se tornou ´polifônico na arte" Cuidaram de polir o diamante bruto para torná-lo um pedra palatável para a aristocracia e deram ao gosto popular do cômico uma deformação curiosa, pela qual o próprio povo é que se tornava objeto do riso.

Para ele o romantismo queria , sinceramente, dignificar e elevar o povo. "E por isso se preocupou em mostrar o que era o povo, chamando atenção, reforçando, acentuando eloqüentizando as maneiras de sentir e de agir populares." Nesse reforço, um processo específico do Romantismo, é que Mário vê a deformação que acabou imprimindo ao espírito do povo.

Continuemos com Mário de Andrade: "O povo aceita mal a música pura porque a arte popular tem sempre uma função interessada social. Os românticos deformam isso por exagero. Não lhes basta unir a palavra à música, pra tornar esta compreensível intelectualmente e portanto útil." Nem lhes basta conceber a música como capaz de reforçar a expressão dos estados de alma, . Para os românticos a música se torna, sistematicamente, a "arte de exprimir os sentimentos por meio de sons".

Como escreve Mário, "a música para eles é uma confidente, a quem confiam todos os seus ideais (Beethoven: Sinfonia Heróica, Nona Sinfonia;Schumann: Davidsbündler, Carnaval; Gluck: A vida pelo Tzar; Wagner: Mestres Cantores, Parsifal; César Frank: As Beatitudes), os seus sentimentos e paixões (Chopin: Estudos, Baladas, Mazurcas, Polonesas; Schumann: os Lieder; Wagner: Tristão e Isolda; Ricardo Strauss no Intermezzo bota a própria vida dele em ópera), as suas impressões de leitura ou viagem (Mendelsshon, Weber, Berlioz, Liszt, Straus, Saint-Sens; Beethoven: Sinfonia Pastoral, Apassionata; Mussorgski: Quadros de uma exposição; Debussy: dois cadernos de Prelúdios, poemas sinfônicos, etc., etc.) .

"Sistematizou-se com isso os processos construtivos e interpretativos de intensão expressiva sentimental." Os termas de uma obra passam a mudar de aspecto e interpretação para caracterizar estados psicológicos e estados diferentes do mesmo assunto. Um tema varia e se desenvolve não mais para mostrar suas possibilidades musicais, mas significando mudanças de sentimento.

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Esse é o traço mais característico e constante na musicalidade romântica dar ao ouvinte a sensação de que está ouvindo uma história e percebendo o sentimento que envolve a situação e os personagens.

Para Mário, "o povo é no geral brutalhão nas manifestações: chora gritado, aplaude berrando, briga a pau. Os românticos deformam isso pela especialização do sublime, do grandioso, do violento". "O que preocupa os românticos é o cume da emoção. Catolicismo, paixão sexual e natureza andam misturados como nunca. Se confundem para atingir o pathos mais grandioso."

O protótipo dessa exasperação que Mário classifica como "patológica" é o poeta alemão Hoelderlin: "Fora do êxtase tudo era morto e sem alma".

Os compositores buscam as lendas medievais, a feitiçaria, a exaltação de coisas pouco sabidas de tempos passados, deuses nórdicos e entidades gaulesas, os selvagens, a natureza, o exótico, como assunto, abandonando os modelos greco-romanos que dominaram durante dois séculos os melodramas.

Outra característica romântica é o cultivo da dor e do sofrimento. Dignifica-se a doença, o defeito físico, a anormalidade, o desviado, as desgraças, as catástrofes. Os românticos são inadaptados ao dia-a-dia, à vida, ao que lhes parece o inferno. Idealizam.

Para Otto Maria Carpeaux, "não é possível definir cronologicamente o romantismo musical. Românticos são Weber e Schubert, Mendelssohn e Schumann, Berlioz e Chopin. Mas também românticos são Tchaikovsky e um Grieg, cujos contemporâneos na literatura são Tolstoi e Ibsen. Romântica, no sentido do romantismo francês, é a ópera de Verdi. Românticos são os começos de Brahms e, também, muita substância permanente da sua música. Romântico é sobretudo Wagner.".

O romantismo domina toda a música do século XIX. Como diz Carpeaux, "todos aqueles românticos, tão diferentes, revelam certos traços comuns. Primeiro, a maior liberdade de modulação, o cromatismo cada vez mais progressivo que leva os compositores até as fronteiras do sistema tonal de Bach e Rameau. O cromatismo romântico serve à maior expressividade dessa música subjetivista e individualista. Mas é pouco compatível com como rigor formal dos esquemas arquitetônicos de Haydn, Mozart e Beethoven. A verdade é que Beethoven esgotou certas formas e gênero: depois dele já não teria sido possível escrever uma autêntica e original sonata para piano; e cada vez mais difícil escrever uma sinfonia."

A música romântica vive de estímulos literários. As grandes diferenças entre o romantismo alemão, o romantismo inglês e o romantismo francês também se fazem sentir na música. E outras nações que pouco haviam contribuído para a música, desenvolveram o romantismo nacional polonês, o húngaro, o russo, o escandinavo, o brasileiro. Por isso mesmo não se pode falar de romantismo, mas de romantismos.

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Os Verdianos

Verdi teve muitos discípulos e seguidores, entre os quais Carlos Gomes, Arrigo Boito, Mascagni, Leoncavallo, Puccini, Giordano, Zandonai. Ninguém no seu nível nem com a capacidade de repercutir do mestre.

Carlos Gomes (1836 - 1896), brasileiro, nasceu em Campinas, fez sucesso no Rio, triunfou na Itália, ficou na miséria e no fim foi amparado pelo governo do Pará. Conquistou fama com Il Guarany (1870) com libreto tirado de um romance de José de Alencar, apresentado no Scala de Milão e nos maiores teatros de todo o mundo. A Protofonia ainda é ouvida na Europa, em concertos.

Para quem dizia que o sucesso da ópera devia-se ao exotismo dos índios, o reconhecimento da qualidade musical de Carlos Gomes veio com a Tosca (1873), que os críticos reconhecem como a obra-prima do autor.

Depois vieram Salvator Rosa (1874) e Lo Schjiavo (1889), óperas muito aplaudidas. Durante algum tempo o compositor foi idolatrado, na Itália como o Brasil. Mas o movimento modernista no Brasil acusou-o de escrever todos os libretos em italiano, inclusive os que tinham assunto nacional. E de fazer música italiana. Chegou a ser classificado como "operista imbecil".

Mário de Andrade, depois, baixou o tom da crítica, embora, continuasse dizendo que Carlos Gomes "se manifestava mais nacional pelo texto escolhido que pela invenção musical". E chamou a atenção para o fato do compositor haver escrito, pela primeira vez na história, uma ópera para ser cantada em português. Aliás, duas: Noite no Castelo e Joana de Flandres , apresentadas na Ópera Nacional.

Na Pequena História da Música Mário escreve: "Carlos Gomes está entre os grandes melodistas do século XIX. Gênio dramático de força, ele concentra a expressão na melodia, como era costume na escola oitocentista italiana em que se cultivou." Ele continua criticando o compositor, afirma que suas obras são inexeqüíveis, que suas óperas têm muitos enchimentos mas reconhece que "isso não embaça a grandeza do gênio dele" E acrescenta: "Muitos dos seus cantábiles são perfeitos de equilíbrio plástico de linha...", embora "cheios daquela doçura peguenta". Também recomenda as "árias magníficas, sem grande profundeza, mas dotadas dum movimento dramático exato e impregnante".

Mário saúda Carlos Gomes como "o verdadeiro iniciador da música brasileira" e afirma que os moços devem abolir da nossa música os traços de Carlos Gomes, embora, dentro da nossa realidade ele tenha "uma colocação alta e excepcional".

Arrigo Boito (1842 - 1918) foi o último libretista de Verdi, bom poeta e bom músico. Escreveu pouco e em intervalos enormes: Mefistofele é de 1868 e Nerone de 1916.. Segundo Otto Maria Carpeaux "são menos óperas do que grandes oratórios, embora representados com cenários". E conclui: "Obras para festivais."

Pietro Mascagni (1863 - 1948) ganhou, em 1890, o prêmio da casa editora Sonzogno para a melhor ópera em um ato com a sua Cavalleria Rusticana , com libreto tirado de um conto de Verga. O compositor viveu mais 58 anos, depois desse êxito, sem conseguir sucesso igual, embora na Itália ainda se represente Íris e L'ami Fritz. Mas a Cavalaria continua sendo uma das peças mais populares

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e queridas, segundo Otto "graças à brutalidade dos efeitos dramáticos e graças à vivacidade das melodias folclóricas".

Ruggiero Leoncavallo (1858 - 1919) teve um grande sucesso com I Pagliacci (1892) e foi só. É uma ópera sangrenta, de muito efeito teatral, mas a pantomima de Colombina é elaborada com arte musical mais fina do que qualquer coisa de Mascagni, segundo Otto. Os dois compositores sobrevivem juntos, porque I Pagliacci também é uma ópera curta, que faz bom programa com a dimensão reduzida da Cavalleria Rusticana.

Giacomo Puccini (1858 - 1924) tem uma biografia que é um romance: um começo modesto, triunfos fabulosos e lucros inacreditáveis, e um triste fim na solidão, muito doente. Foi um músico altamente dotado, genial inventor de melodias, com fina cultura musical e uma linguagem muito pessoal. Mas, diz Otto Maria Carpeaux, "traiu sua arte. Sacrificou tudo ao sucesso comercial. Teve castelos, mulheres, milhões, porque vendera a alma. Tratou a orquestra com finura e sensibilidade "mas tornou-se um fornecedor de melodias para a boate e para o bar do hotel de luxo. Mas Tosca (1900) é um sucesso permanente, pela brutalidade melodramática e pelo brilho de três grandes árias. Mais qualidades tem La Boheme (1897). As o seu sucesso popular vem de óperas menos importantes, como Manon Lescaut (1892) e Madame Butterfly (1904), com sentimentalismo e exotismo falsos.

Depois de La Fanciulla Del West (1910) escrita para público norte-americano e que não fez sucesso, Puccini revelou-se grande com a curta ópera cômica Gianni Schichi (1918), para muitos críticos a sua obra-prima. Turandot ficou incompleta e foi completada por Alfano, em 1924. No futuro, um dia, restará pouco de Puccini.

Umberto Giordano (1867 - 1948) sobrevive apenas pela memória de Caruso interpretando Andréa Chénier (1896).

E, finalmente, Ricardo Zandonai (1833 - 1944), um músico sério mas que, de tudo o que escreveu, só conseguiu sucesso (que permanece no repertório) com Francesca da Rimini (1914).. E assim termina o verdismo.

Wagner O filósofo Nietzche dizia que a filosofia e as artes nunca estavam sincronizadas e que a música, além de atrasada, estava sempre em último. E provou, com a própria história da música. Isto talvez explique o estranho anacronismo de Wagner, criador de um autêntico neo-romantismo em plena época do liberalismo, da grande imprensa, da industrialização, do romance naturalista, da pintura impressionista.

Mas foi assim também com a arte barroca de Bach, o luterano, em pleno século do racionalismo voltairiano. Só que Bach pagou um alto preço: conheceu o insucesso e o quase total esquecimento por muito tempo de sua obra criadora.

Wagner, não. Ele foi a figura principal da sua época na música. E a tese de Helmuth Plessner, como a de Hugo Ball é que a Reforma tirou a Alemanha da civilização ocidental, conquistando para o espírito uma ilimitada liberdade interior (ao preço da submissão das pessoas ao Estado paternalista e absolutista). Enquanto os países católicos e os calvinistas abraçaram o racionalismo, o liberalismo, o humanitarismo, os conservaram os ideais da

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Idade Média, a Alemanha retrocedia para um paternalismo apolítico e depois para um totalitarismo bárbaro.

Na segunda metade do século XIX a Alemanha só acompanhou material e economicamente, à distância, o progresso europeu. A forma de sua vida pública e social foi o Reich, aristocrático e reacionário de Bismark, ao qual corresponde o romantismo de Wagner.

Uma boa tese acadêmica, como diz Otto Maria Carpeaux, mas que "deixa sem explicação o sucesso enorme de Wagner na França", por exemplo.

Richard Wagner (1813 - 1883) é uma das expressões mais étnicas da música germânica, segundo Mário de Andrade (ao lado, naturalmente, de Bach e de Schubert). Desde o século 18 o recitativo, em vez de ser sustentado por um baixo de cravo (o chamado Recitativo Seco) era sustentado pela orquestra (Recitativo Acompanhado). Um costume que se desenvolveu muito no século 18, principalmente com Gluck, e que permitia juntar expressividade sinfônica ao significado do texto. Mas só mesmo com o romantismo, especialmente com Wagner, o processo ganhou toda a sua eficácia expressiva.

Wagner fez da música uma religião (e de Bayreuth um templo, um lugar de romaria). Ele busca as lendas medievais, os deuses nórdicos e a exaltação de coisas pouco sabidas dos tempos passados, especializa-se no cultivo da dor e em gostar das mulheres dos amigos íntimos, torna-se uma das cinco figuras dominantes do Romantimo na música, com Berlioz, Chopin, Schumann e Liszt, românticos na sua essência mais pura, "todos impregnados de literatura e literatice", segundo Mário.

O Drama Lírico foi criação de Wagner e, ainda segundo Mário de Andrade "é um dos fenômenos mais extraordinários da história musical". Reformando a ópera em sua totalidade, diz Mário, "esse grande esteta e músico inventava uma criação tão admiravelmente lógica pela fusão teatral de poesia, música, dança, pintura, ao mesmo tempo que exemplificava as suas teorias com obras sublimes que o problema do teatro musical parecia estar resolvido".

Com efeito, depois das repulsas iniciais e do reacionarismo que toda invenção provoca, o drama lírico despertou entusiasmo universal, tornou-se moda, até mania. A ponto de cria-se o que Mário chamou de "espécie de basílica do drama lírico", o teatro da cidadezinha de Bayreuth, onde em determinada época do ano "os intoxicados de wagnerismo iam escutar as obras do deus deles, religiosamente, ritualmente, sem bater palmas, com êxtases bem diferentes dos prazeres naturais da música"

Por essa época o mundo estava dividido entre os adoradores e Wagner e os antiwagnerianos que chegaram a inventar que o anti-semita Wagner era filho ilegítimo de seu padrasto, Geyer, que tinha origem judaica.

Wagner, em moço, ainda não estava decidido, entre a literatura e a música e tinha talento para ambos. Segundo o seu próprio testemunho, , uma representação de Egmont, de Goethe, do teatro de Leipzig, com música de cena de Beethoven, ensinou-lhe a possibilidade de juntar a obra literária e a interpretação musical dessa obra para amplificar seu significado. Foi quando desistiu da carreira de letras para dedicar-se à música.

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As aulas foram com o então Kantor de São Thomas, em Leipzig, o contrapontista Weinlich. Eram secas, desinteressantes, e afastaram-no da polifonia. Wagner tentou alguns instrumentos mas fracassou. Suas primeiras composições, aberturas de concerto e a Sinfonia em dó maior, valem pouco e esquecê-las é um serviço à memória do mestre, cuja vocação era o teatro.

Wagner atuou como regente de orquestra em teatros da província, ganhando experiência de palco. Casou-se com a cantora Mina Planer, um erro que resultou em casamento muito infeliz para os dois. Estava em Riga quando recebeu um convite e uma promessa de ajuda de Meyerbeer, viajando para Paris, então a capital musical do mundo.

Meyerbeer não o ajudou. Wagner conheceu a miséria material, passou fome. Foi salvo pelo surpreendente sucesso da grande ópera Rienzi, em Berlim. Nomeado Diretor da Ópera em Dresden, lançou mais duas óperas com sucesso: Navio Fantasma e Tannhaeuer

Liberal e com idéias socialistas, Wagner participa da chamada Revolução de Dresden, em 1840. Derrotada a revolução,m é obrigado a fugir e a exilar-se em Zurique. Fica novamente na miséria, acumula dívidas, escreve sobre a ópera e sua teoria, para ganhar algum dinheiro. Assina um panfleto anti-semita, contra o judfaísmoi na música, para vingar-se da indiferença e das falsas promessas de Meyerbeer.

Liszt, sempre generoso, monta em Weimar a ópera Lohengrin, enquanto Wagner está trabalhando no Anel de Nibelungen, trabalho que interrompe para escrever Tristão e Isolda, inspirado pelo amor a Matilde, mulher do seu mecenas e protetor, o rico suíço Otto Wesendonck.

O começo do escândalo faz com que se divorcie de Mina e rompa aquela relação impossível com Matilde, indecente em todos os sentidos. Vai para Paris.

Lá, no Jockey Club, em 1861, apresenta Tanhaeuser e é mal recebido: onde já se viu uma ópera sem balé no segundo ato? Insiste em ficar em Paris e conhece, outra vez, a miséria.

O rei Ludwig II da Baviera, meio louco (depois ficará completamente louco) dilapida fortunas financiando artistas. Chama Wagner a Munique e acerta com ele grandes atividades teatrais. Muito bem pago, Wagner monta Tristão e Isolda e Mestres-Cantores com enorme sucesso.

Mas, outra vez, Wagner está apaixonado pela mulher dos outros. Agora é Cosima, filha de Liszt e mulher do pianista e regente Hans von Buelow, amigo íntimo e um dos seus grandes propagandistas. Ela abandona o marido para casar com Wagner, depois de ser mãe de um filho dele, Isolde.

O escândalo e intrigas da corte expulsam Wagner de Munique, para novo exílio na Suíça, mas a fundação do Reich de Bismarck permite que volte à Alemanha onde é reverenciado como um ídolo dos nacionalistas alemães.

Furiosamente combatido pelos conservadores acadêmicos do círculo de Brahms, pela grande imprensa e pelos judeus, muda-se para a Villa Wahnfried, em Baireuth, cidade onde constrói o Festspielhaus (Casa de Festivais), especialmente para representações periódicas do Anel de Nibelungen e, mais

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tarde, para outras obras suas. Os nacionalistas alemães fazem de Bayreuth um centro de romarias e paradas, de manifestações que logo passam a ser internacionais e anti-semitas.

Na revista Bayreuther Blaetter (Folhas de Bayreuth), Wagner escreve regularmente como propagandista de idéias racistas, anti-semitas. Diz-se budista e vegetariano. Em torno dele reúnem-se a seita dos wagnerianos, precursores do nazismo.

Reconcilia-se com Liszt, de quem estava separado por causa de Cosima. Ela, no entanto, não ouve o pai e torna-se uma publicitária do marido e de suas idéias. A estréia de Parsifal é outro enorme sucesso, mas Wagner já está mal, doente, e viaja para Veneza. É lá, no Palazzo Vendramin-Calerghi, que ele morre.

Como diz Otto Maria Carpeaux, Wagner enfeitiçou o mundo e exerceu influência como nenhum outro músico, antes ou depois. Cosima e os wagnerianos construíram em torno dele uma lenda, que nem todas as retificações posteriores conseguiram destruir completamente. "Wagner foi homem terrível e mau caráter. Seu comportamento em relação a Mina, Otto Wesendonck, Hans Von Buelow é injustificável. A maneira pela qual explorou a loucura do rei da Baviera e a generosidade de Liszt foi escandalosa. Seu anti-semitismo teve os motivos mais baixos, de inveja e vingança;mas não o impediu de tolerar em seu círculo admiradores judeus e chamar outro judeu, o grande regente Hermann Levi para reger a estréia de Parsifal. Foi egoísta monstruoso. Sacrificou, sem escrúpulos, todos os outros. A força motriz atrás desse egoísmo foi uma imensa energia. Lutou contra desastres e desgraças incríveis, contra a aliança terrível dos antiwagnerianos, do conservatório de Leipzig e dos grandes jornais vienenses e do Jockey Club de Paris, cujos motivos tampouco não eram os mais puros. Mas não transigiu, nunca. Tudo a serviço de uma idéia, que parecia aos contemporâneos meio louca, meio inútil."

A linguagem melódica de Wagner nasce diretamente do ritmo da fala alemã mas os seus contemporâneos estranharam as fortes e estrondosas intervenções da orquestra sinfônica, assim como tamanho enorme das obras.

Depois das tentativas da mocidade (que Otto Maria Carpeaux classificou como "insignificantes") a primeira "obra considerável" de Wagner foi Rienzi, o Último dos Tribunos (no original, Rienzi, der letzte der Tribunen) de 1840. Conta a história de Cola di Rienzi, personagem do então famoso romance histórico de Bulwer. Pelo estilo, já foi chamada de "obra-prima de Meyerbeer". Não é representada em Bayreuth.

Em 1841 Wagner escreve o Navio Fantasma (Der fliegende Holaender, literalmente o Holandês Voador). A influência de Meyerbeer é substituída pela de Weber e Marschner mas essa ainda é uma ópera tradicional. Foi bem recebido pelo público e à orquestra já coube a função de transformar a ópera inteira numa grande sinfonia.

Tannhauser é de 1844 e ainda é uma ópera com árias, recitativos e marchas e o assunto (a redenção do pecador por sua amada) é o mesmo do Navio Fantasma, mas o público e os críticos não gostaram, talvez, da confusa mistura de paixão erótica e contrição religiosa ("justamente aquilo que comoveu até as lágrimas o pecador Beaudelaire", lembra Carpeaux).

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Toda a rotina da ópera é, enfim, abandonada em Lohengrin (1848), o primeiro drama musical, uma tragédia psicológica num ambiente da Idade Média onde sofre a infeliz Elsa. Para Carpeaux "é obra menos revolucionária do que se pensa" porque ainda há números destacáveis para execução em concerto. Com esta ópera Wagner aproxima-se, pela primeira vez, da mitologia germânica, embora fantasiada de lenda medieval.

Em 1854Wagner escreve Rheingold (Ouro do Reno), a primeira parte de uma obra sobre a saga dos Nibelungen, que teria quatro partes. Tinha um prelúdio colossal, em forma musical totalmente nova, composto à maneira de uma sinfonia, em um único movimento, com as vozes do coro fazendo parte da orquestra e com incríveis harmonias novas.

Segue-se A Valquíria (Die Walkuere), de 1856. A grande tragédia nasce da tensão entre as idéias revolucionárias de um ateísmo assombroso e a filosofia pessimista. A música foi considerada moderna e descrita como germanicamente bárbara.

No mesmo ano ele começa a escrever a terceira parte da tetralogia: Siegfried.

Wagner interrompe o trabalho com uma paixão adúltera por Mathilde Wesendonck. Deixe de lado os deuses e heróis germânicos. Escreve Cinco Lieds a Mathilde Wesendonck, com letra da amiga, e aí nasce Tristão e Isolda (Tristan und Isolde), óperas de 1859. É a dramatização de uma lenda medieval tida como base de toda a filosofia do erotismo ocidental. A obra é uma tragédia de amor, com poucos personagens e muito simples. Para muitos críticos é a música mais expressiva que jamais se escreveu. É uma sinfonia colossal que quase destrói o sistema tonal de Bach - Rameau.

Wagner volta-se para a polifonia e para a Renascença na Alemanha e escreve, em 1867, Os Meninos Cantores de Nuremberg (Die Meistersinger Von Nuremberg). O nacionalismo orgulhoso da época e do compositor criam a alegria jubilosa dessa comédia em cujo meio está o Mestre, retratado com uma expressão de dolorosa resignação. A abertura é a maior peça sinfônica que escreveu, "uma obra-prima singular de pompa e grandiosidade barrocas.

Quando Wagner retomou Siegfried, já era outro. A obra, terminada erm 1869, trem como assunto a mocidade do herói e é romântica no assunto mas é conservadora na música. Não há mais as tempestades cromáticas de Tristão.

A última parte é Crepúsculo dos Deuses (Goerterdaemmerung), de 1874.: a tragédia do fim apocalíptico do antigo mundo germânico, ruidosa por fora e serena por dentro, completando o enorme panorama da vida humana, representada pelos deuses e heróis da antiga religião germânica.

Segue-se Parcifal (1882), um hino dramático à resignação religiosa, ao desprezo pelos prazeres mundanos, à adoração permanente do ideal inconquistável., o graal. É o final de um homem moralmente cansado que volta à música celeste, à musica sacra, dando a Nietzsche a oportunidade para falar em apostasia e em "contribuição insincera de um pecador impenitente", e em "religiosidade hipócrita de um ator consumado". Mas Parsifal é uma obra-prima.

Wagner é o último romântico e o anúncio da música moderna. O Drama Lírico foi uma criação de Wagner. E Mário de Andrade escreveu: "É um

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dos fenômenos mais extraordinários da história musical. Reformando a ópera em sua totalidade, esse grand esteta e musico inventava, com o Drama Lírico, uma criação tão admiravelmente lógica pela fusão de poesia, música, dança, pintura, ao mesmo tempo que exemplicava as suas teorias com obras sublimes que o problema do teatro musicalk parecia estar resolvido. E com efeito, depois das repulsas iniciais que toda invenção causa mesmo, o drama lírico despertou entusiasmo universal, se tornou moda e chegou a ser mania. Isso deu lugar a manifestações românticas do maior egoísmo e ridículo, que nem a criação dum teatro na cidadezinha de Bayreuth, esécie de basílica do drama lírico, onde numa certa época do ano, os introxicados de wagnerismo iam escutar as obras do deus deles, religiosamente, ritualmente, sem bater palmas, com êxtases bem diferentes dos prazeres naturais da música. Na verdade a cosntrução genial de Wagner parecia e parece mesmo ainda hoje, uma solução definitiva. Não era não. Parecendo a mais fecunda das formas melodramáticas, o drma lírico foi a mais infecunda de todas! Apenas alguns poucos músicos entre os quais avulta ainda o romantiquíssimo Ricardo (sic) Strauss, procuraram aplicar sistematicamente os processos de Wagner. Mas logo espíritos refinados e mais críticos perceberam tudo o que havia de egoísticoda invenção de Wagner, um dos maiores egoístas que a história apresenta. O drama lírico, na tese wagneriana é uma solução exclusivamente pessoal. Serviu para Wagner criar duas obras-primas ( Tristão e Isolda e Mestres Cantores ) e mais uma série de obras cheias de passos geniais. Mas ficou só nisso: a na sua tese estrita não deu mais nenhuma obra-prima de nenhum outro músico."

"A intenção básica de Wagner foi, à imitação da Grécia, conceber a música no sentido artístico totalizado de fusão de todas as artes: a Arte das Muysas. O único lugar possível desdsa fusão era o teatro. No teatro wagneriano todas as artes devem devem de ter igual importância e nenhuma prevalecerá sobre as outyras. A arquitetura da cena, a pintura do guarda-roupa e da ambiência, a escultura coreográfica dos personagens se movendo, apresentam a participação das artes plásticas que devem se ligar em união indissolúvel com artes sonoras, música e poeasia. A obra deve ser concebida por um artista só que escreverá o poema e a música, e determinará o espetáculo cênico. Só assim a gente pode conseguir uma unidade absoluta de concepção e realização. O valor dramático da obra, o seu sentido espiritual está determinado pelo poema, ao qual, pois, todas as outras devem se condicionar, não como subalternas, mas como concordantes. O papel da poesia é, pois, dar a significação intelectual básica da obra. O papel da música é reforçar essa significação com os seus valores que são mais dinâmicos, mais profundos que os da palavra."

"Logicamente pois: o texto deve ser o mernos cantado possível. O estilo recitativo é o mais lógico para a palavra cantada, em que o canto deve se desenvolver uma linha livre, sem frases medidas, em que a melodia seguirá modulatroriamente, sem quadratura, sem conclusões, sem cadências completas: a Melodia Infinita enfim. Os diálogos entre os personagens são lógicos porém não os Duetos, Tercetos e outras manifestações de música de conjunto concertante. O próprio coro só pode ser utilizado em ocasiões raras e lógicas. A essa Melodia Infinita, cantada pelos personagens do drama, a orquestra se ajunta. É na orquestra que está deveras a participação da música do drama lírico. A orquestra é comnentadora, esclarecedora e reforçadora da ação e do sentido íntimo, psicológico e filosófico do drama. A orquestra pois, que deve ser invisível aos espectadores, traz a sinfonia para o teatro: e se desenvolve livre do canto, fundida com ele mas sem função subalterna de acompanhadora. E por meio da orquestra e da melodia infinita, sempre modulantes, as cenas se

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encadeiam, saindo umas das outras sem o seccionamento tradicional. Na realidade cada ato deve ser uma cena só. Para exercer o papel sinfônico de comentar e aprofundar os valores dramátricos da obnra, a sinfonia se baseia em temas usicais de qualquer espécie, rítmicos, melódicos, harmônicos, de timbre, temas que conduzirão o comentário sinfônico e lhe darão compreensibilidade intelectual. Esses termas são chamados de Motivo Condutor ( Leitmotif ). Fixados inicialmente os elementos básicos do entrecho dramático, a cada um destes elementos (personagem, fatos, problemas psicológicos ou filosóficos) será atribuído um Motivo Condutor; e sempre que um desses elementos entra em foco na ação do drama, o Leitmotif que o represernta aparece no tecido orquestral, comentando, evidenciando o valor funcional do elemento aparecido. Assim, o Motivo Condutor, ao mesmo tempo que tem um valor dramático lógico, é a cérlula temática da construção sinfônica."

"Em suas bases essenciais, essa foi a criação de Wagner. É admirável, lógica nas suas deduções, genialíssima nas suas sistematizações de elementos já existentes em potência na música anterior. Apresenta um único defeito, porém defeito fundamental: acredita num drama cantado que seja lógico, quando justamente o melodrama está fundado no ilogismo de falar cantado. O drama lírico deu para Wagner ocasião de compor obras admiráveis, porém não mais lógicas, nem mais admiráveis, nem mais dramárticas que as de Monteverde, Gluck, Mozart, Verdi e Honegger."

O drama lírico, na sua forma típica, não teve continuidade. Mas a influência de Wagner foi enorme. Os seus processos formais, e muitas das suas invenções estéticas, melódicas, harmônicas, orquestrais, espalharam-se por toda parte e modificaram bastante a fisionomia musical do último quarto do século 19.

Tchaikovsky Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840 - 1893) é uma glória permanente da música russa. Não foi um autodidata, como os Cinco. Estudante de Direito e depois, para sobreviver, funcionário do Ministério da Justiça, ele estudou piano com Nikolaus Rubinstein no Conservatório de Moscou.

Sua vida, relativamente curta, foi marcada por desastres, maledicência e sofrimento. Seu casamento, em 1877, foi desfeito em menos de um ano. Ele teve depressão, colapso nervoso, tentou matar-se e sua ex-mulher afirmou a amigos que ele era "sexualmente desviado"..

Com mania de doença, "patologicamente infeliz" (segundo o testemunho de Rimsky-Korsakov) foi uma mulher que fez com que se dedicasse exclusivamente à música. Madame de Meck, durante muitos anos, sustentou-o generosamente, permitindo que ele trabalhasse e criasse sem preocupações de ordem material. Há uma extensa correspondência entre os dois, que nunca se encontraram pessoalmente porque "o contato pessoal poderia decepcioná-los", segundo Otto Maria Carpeaux.

Na sua morte correu o boato do suicídio, mas na verdade ele morreu de cólera.

Amigo pessoal de Rimsky-Korsakov e de Balakirev, desprezava a música que produziam e suas fontes folclóricas. Criticava Mussorgsky pela facilidade de seus temas e a Cui pelo seu "nacionalismo infantil". Mas a boa crítica não era

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um dos seus pontos fortes, porque de Bach ele dizia ser um "bom compositor mas não um gênio",; quanto a Handel seria "um compositor de quarta categoria"; de Beethoven só reconhecia as obras da juventude, tudo o mais era "caótico e sem sentido",; Brahms era "de uma mediocridade arrogante"; e Wagner provocava nele "um tédio infinito".

Mário de Andrade não gostava dele e, em seu livro, só uma vez se refere ao seu nome, de passagem. Em artigo na revista Paulicéia, escreveu: "de Tschaikovski (como ele grafava) o que se pode dizer de bom é que seu ídolo era Mozart".

Segundo Carpeaux, Tchaikovsky foi "um eclético sem profundidade" que "ignorava por completo a polifonia". E "daria um bom compositor de ópera à maneira antiga".

Para a crítica russa as óperas são mesmo as suas obras-primas, a começar por Eugenio Onegin (1877), inspirada em um romance em versos de Pushkin mas com a atmosfera musical dos romances de Turgeniev, da vida ociosa da culta aristocracia russa. Escreve Carpeaux: "A música é de nobre melancolia, reunindo da melhor maneira elementos russos, italianos e franceses; é um ecletismo que se adapta perfeitamente à cultura daquele ambiente aristocrático." Por isso mesmo, provavelmente, tem seu lugar no repertório internacional.

Pique-Dame (1890) não é inferior.

"Mas a maior parte da obra de Tchaikovsky é música instrumental e não pode ser julgada tão favoravelmente", na opinião de Carpeaux. O compositor escreveu dez óperas, seis Sinfonias, três Concertos para Piano, um Concerto para Violino, várias overtures que ficaram famosas como as de Romeu e Julieta e de 1812 (que termina com sinos tocando e tiros de canhão), três balés e muita música instrumental, principalmente lieds.

Sua obra instrumental é, geralmente "música de salão", alegre, para divertir, sentimental, para gente educada mas frívola. Hoje seria classificada como "música de nov ela" ou chamada de "trilha sonora" Mesmo assim, o Quarteto para cordas em ré maior (1872), famoso pelo tema melancólico do seu movimento lento, comoveu Tolstoi às lágrimas. Também merece destaque o Trio para piano e cordas em lá menor (1882) para homenagear Nikolaus Rubinstein em sua morte.

Sem dúvida, o mais conhecido e amado de Tchaikovsky é sua obra para o balé. O Lago dos Cisnes (1876) e o Quebra-nozes.(1892) são os mais famosos de todos os balés, embora Carpeaux diga que "essa música só deve ser ouvida acompanhando a exibição de bailarinos de primeira ordem em cenário feérico". Para ele, o valor musical é pequeno. Mas a verdade é que a popularidade é excepcional (Carpeaux diz que isso é "lamentável") e faz a glória do compositor (que, ainda segundo Carpeaux, com isso "prejudica a educação do gosto musical")

O crítico diz mais, os apreciadíssimos poemas sinfônicos Francesca da Rimini (1876) e Manfred 1886), assim como as aberturas de Romeu e Julieta (1876) e 1812 (1886) é "música para ser executada por bandas, ao ar livre, para divertir ou emocionar um público pouco atento".

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A Serenata para orquestra de cordas (1881),a Suíte nº 3 1884) e a Suíte nº 4 (1886), para Carpeaux, "são agradáveis contrafações do estilo mozartiano", mas reconhece que os virtuoses têm o direito de manter no repertório os concertos de Tchaikovsky e que o Conserto para violino e orquestra em ré maior (1878) é "irresistível, pelas melodias bem inventadas e pela verve rítmica".

Quanto às sinfonias, elas não são verdadeiras sinfonias, no sentido clássico, mas são poéticas e relativamente bem trabalhadas, têm forte colorido russo e a atração do exótico. A crítica prefere a Sinfonia nº 4 em fá menor (1878) e a Sinfonia nº 5 em mi menor (1888), mas o público sempre preferiu a Sinfonia nº 6 em mi menor (1893) denominada Patética que os críticos condenam por ser rapsódica e pela efusão de sentimentos. No público que aplaude queiram incluir Tolstoi, Thomas Mann e o crítico Tovey.

Veementemente emocional, Tchaikovsky conhecia a fundo a arte de dramatizar e encenar, com o máximo de efeito, sua tristeza, sentimentos e desespero, seu pessimismo, seu sentimentalismo melancólico, com intervalos de apaixonada revolta contra o destino. O problema é que suas sinfonias não são trágicas, na verdade são melodramáticas e realmente patéticas em sua retórica.

Para o crítico e professor Alfredo Khoury, Tchaikovsky "comprometeu sua arte como compositor pelos maneirismos típicos do comportamento sexual desviante".

Com tudo isso o sucesso de Tchaikovsky foi enorme e não se limitou à Rússia: ele conquistou todo o Ocidente e foi aplaudida como autor da melhor música russa. O compositor ficava à época, na mesma altura que os escritores Tolstoi e Dostoiewski, que também faziam muito sucesso. Só na França ele sofreu alguma restrição dos críticos, contra o aplauso, por exemplo, de Stravinsky.

Nem a Revolução Comunista fez diminuir o prestígio de Tchaikovsky, provavelmente por sua grande aceitação popular. Ele continuou como o Grande Compositor Nacional, título que lhe foi concedido, oficialmente, pelo Soviet Supremo.

Rimsky-Korsakov Nikolai Andreievitch Rimsky-Korsakov (1844 - 1908) foi um romântico russo, dos mais russos, um autodidata que tornou-se um conhecedor perfeito do seu métier. Por profissão ele era oficial de Marinha, mas sempre estudou música e chegou a ser o Inspetor-Geral das orquestras na esquadra russa.

De uma geração após o Grupo dos Cinco, foi de um nacionalismo intransigente, embora sua música seja a menos eslava der todos os compositores russos. Ela está cheia de orientalismos e de exotismos, mas é evidente a influência de Liszt e sua musica de programa. Assim como é clara a influência da orquestração de Berlioz que ele, no entanto, superou, na opinião de Otto Maria Carpeaux, no que diz respeito à técnica.

Aluno de outro autodidata, Balakirev, é possível que Rimsky-Korsakov tenha sido o maior mestre da orquestração em toda a música moderna. Segundo Carpeaux, "sua arte de produzir sonoridades fascinantes e fantásticas é inigualada". Só que não serviu a objetivos mais altos.

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Rimsky-Koprsakov tinha uma preferência e paixão pelo balé, pela dança e muitas de suas obras continuam no repertório. Os russos preferem suas óperas: A Moça de Pskov (1873), Floco de Neve (1882), Sadko (1896), Kitaj (1906), O Galo de Ouro (1907). Os músicos e a platéia ocidental preferem os poemas sinfônicos; Sadko (1867), Antar (1868) e sobretudo o popularíssimo Scherezade (1888), além da abertyura do concerto Páscoa Russa.

Se é verdade de quase todas essas obras são tecnicamente perfeitas, os críticos concordam que nenhuma delas tem profundidade.

Sua tradição foi continuada por Alexander Konstantinovitch Glazunov (1865 - 1936), compositor que ficou conhecido sobretudo pelo poema sinfônico Stenka Rasin, cujo tema principal ficou conhecido no mundo todo: a Canção dos Barqueiros do Volga

Mário de Andrade, como crítico, não demonstra muito respeito pela música de Rimsky-Korsakov. Reconhece sua técnica de "instrumentador formidável", mais informa que ele (com o francês Saint-Sãens e o alemão Richard Strauss) elevaram o gênero "à mais grandiosa e mesquinha finalidade" (acusação que fez também a Berlioz e a Liszt).

A única outra referência que faz ao compositor é para reconhecer que Balarirev, O Grupo dos Cinco, César Cui, Borodin, Mussorgsky e Rimsky-Korsakov souberam empregar elementos musicais populares na criação de uma música russa eficientemente nacionalista.

Segundo Edson Frederico, Rimsky-Korsakov escreveu três sinfonias, 15 óperas. Música orquestral e um Tratado de Orquestração. E ainda fez música para uma cena dramática de Pushkin, Mozart e Salieri (sobre a culpa do invejoso saliere na morte de Mozart).

Rachmaninov, Grieg, Sibelius, Nielsen

O russo Serge Rachmaninov (1873 - 1943) dizia-se um pianista que também compunha. Excepcional ao piano, sua carreira foi repleta de sucessos internacionais como concertista, várias vezes interrompida por graves crises mentais que acabam levando ao suicídio.

Figura tchaikovskyana, era musicalmente antinacionalista, embora não negasse a força da música popular eslava. Com sólida formação acadêmica, foi um conservador em matéria de música e suas sinfonias mereceram respeito, embora fossem raramente executadas.

Comparado a Liszt como concertista, seus concertos tinham também a mesma qualidade e o Concerto para piano e orquestra nº 2, em dó menor (1901) não perde seu lugar seguro no repertório internacional.

Mas a grande popularidade de Rachmaninov vem de suas peças menores, como o Prelúdio em dó sustenido menor, op.3, nº 2, muito tocado pelas mocinhas e gravado como se fosse música pop.

Segundo Otto Maria Carpeaux, "a primeira onda de nacionalismo musical das nações da Europa Oriental tinham pouco impressionado o Ocidente: Glinka,

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Moniuszko e Erkel não se tornaram conhecidos fora dos seus países. Tampouco os escandinavos Kuhlau e Hallstroem. A segunda onda foi mais agressiva; mas, por isso mesmo, um Borodin, um Mussorgsky tinham que esperar decênios até o reconhecimento internacional de seu gênio. O sucesso coube aos ocidentalizados como Lizst ou aos ecléticos como Tchaikovsky". Só um nacionalismo moderado, em que a música folclórica desse apenas um colorido exótico, era aceita pelo público ocidental.

A moderação também foi a sorte de Edvard Grieg (1843 - 1907) o maior compositor norueguês. Em seu tempo a Noruega lutava para romper os laços culturais que a amarravam à Dinamarca havia séculos. (Época do nacionalismo romântico de Wergeland, Bjoernson, de Ibsen em sua mocidade.) Os músicos noruegueses não quiseram saber da Dinamarca de Gade e a declaração de independência começou com Richard Nordraak, morto antes dos 25 anos. Grieg, um homem suave e tímido, dedicou-se a combater o meldelsohnianismo de Gade. E assumiu o risco de basear a música norueguesa exclusivamente no rico folclore musical do seu país, mesmo causando estranhesa ao público europeu pelo exotismo das harmonias. Na realidade ele foi menos radical do que em teoria: ele foi um schumaniano que não desprezou as lições de Lizst, segundo Carpeuax. Segundo Mário de Andrade, "com o romantismo, os acordes de Liszt, de Wagner, e depois mais claramente os de Grieg, surgem como que isolados, independentes." E esclarece: "Essa independência, esse isolamento provém de que a estranheza, a dificuldade interpretativa dele é tal que obriga a verdadeiros sofismas teóricos.". Para Mário, os acordes de Grieg apareciam sozinhos, individualizados, "não apenas no seu corpo físico, como também na sua entidade psicológica." "O acorde agora não serve mais para acompanhar a melodia solista. Se emparelha com ela, vai ao lado dela, característico, livre, individual. E o acorde seguinte, em vez de continuá-lo e completá-lo, o substitui. E o seguinte substitui a este, e vão todos assim numa procissão de indivíduos diferentes", escreve Mário. Para ele, "isso submete-se ao conceito republicano, à essência popular do romantismo: cada obra se apresenta como uma verdadeira multidão em que todos os indivíduos se fundem nu, grupo que é a alma coletiva (a obra), mas em que cada indivíduo é diferente dos outros na psicologia e no físico". E conclui: "A bem dizer não existem mais acordes agora." Grieg escreveu três sinfonias, dois concertos para piano, música instrumental e música de câmara e, segundo o maestro Edson Frederico, foi o precursor do Impressionismo na música. Suas Peças Líricas, para piano, foi talvez o melhor da sua obra, mas são mais alemães que escandinavas, Nos lieds é que explorou mais o folclore nórdico, mas observe-se que ele musicou poemas alemães. Apoiado por Liszt, produziu em geral uma música alegre, sem aquela melancolia sombria que se atribui à invernal música escandinava. Mesmo com o grande sucesso do seu Concerto para piano e orquestra em lá menor (1868), esreveu pouco em sonata-forma: só um quarteto e sonatas para violino e piano. Segundo Carpeaux, ele tinha consciência da sua pouca habilidade em construir estruturas maiores, preferindo as peças poéticas e a forma livre da suíte. Da sua música de cena para o grande drama simbólico Peer Gynt, de Ibsen, Grieg tirou (em 1876) duas suítes que tiveram o maior sucesso no mundo todo e, até hoje, é sua obra mais conhecida e mais executada nos concertos sinfônicos e de banda. A popularidade de Grieg irrita a crítica, que o considera hoje como um compositor de quarta ou quinta categoria, o que é injusto. Como observa Carpeaux, "a invenção de melodias que sobrevivem ao gosto do dia não é talento dado a qualquer um." O lugar de Grieg foi ocupado pelo finlandês Jan Sibelius (1865 - 1957). Quando

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o século passado começou, parecia que uma "escola finlandesa" tinha possibilidade de conquistar o mundo. Mas a fama de Palmgren e Kilpinen não conseguiu atravessar as fronteiras do país. Dos três grandes finlandeses só Sibelius obteve sucesso internacional. Sibelius foi um músico de formação excelente, acadêmica, com instintos que Carpeaux chama de "anacronicamente românticos". Suas sinfonias não são dramáticas nem melodramáticas, mas afrescos musicais de natureza épica. O crítico pode perguntar por que necessidade íntima foram escritas, e por que diabos continuam oi repertório. Mas o certo é que estão, principalmente a Sinfonia nº 2 em ré maior (1902), a Sinfonia nº 6 em ré menor (1923) e a Sinfonia nº 7 em dó maior (1925). Tão executado quanto Brahms, mais do que Bruckner, a verdade é que não pode passar desapercebida a sólida feitura de suas obra, como o Concerto para violino e orquestra (1903). Solidez que, curiosamente, não está presente nas obras mais divulgadas de Sibelius, a sua música de programa. Os poemas sinfônicos O Cisne de Tuonela, Finlândia, Tapiola e a suíte Carélia são rapsódicas, dedicadas à natureza sombria da terra finlandesa, mas não dizem coisa alguma de importante. Mas é inegável a beleza da Valsa Triste (tirada da música de cena para o drama Kuolema, de Jaernefelt,1903) e que acabou virando música popular. O sucesso de Sibelius foi negado a seu contemporâneo e rival dinamarquês Carl Nielsen (1865 -1931), preferido por muitos críticos. Dele, só se tornou conhecido o espirituoso Quinteto para instrumentos de sopro (1922), mas pelo menos duas sinfonias mereciam (e ainda merecem) um lugar de destaque no repertório internacional, as que foram chamadas Expansiva (1913) e O Inextinguível (1917).

O Grupo dos Cinco

Os românticos russos mais importantes ficaram conhecidos como O Grupo dos Cinco, ma na Rússia eram conhecidos como Mogutchaya Kutchke (Grupo Poderosos). Eles retomaram a tradição deixada por Glinka, criando uma música especificamente russa, deliberadamente diferente da música ocidental e inspirada no folclore do país, embora não conseguissem esquecer nem repudiar as influências de Schumann e Liszt.

Deixar para trás as normas e regras da música ocidental foi relativamente fácil, porque eram todos autodidatas. Diletantes na arte musical e com pouca base teórica. Seu nacionalismo foi intolerante mas havia uma dificuldade: não podiam colocar-se ao lado do Partido, os radicais que queriam ocidentalizar a Rússia para libertá-la do despotismo oriental dos czares.

Como os eslavófilos (com Dostoiesvsky à frente na literatura) tinham em comum o interesse pelo passado histórico da Rússia, pelos velhos costumes, pela tradição popular, o folclore e a Igreja Ortodoxa. Nenhum deles, ao que se sabe, participou de qualquer movimento revolucionário.

Se Glinka fora um patriota fiel ao Czar, os cinco seriam patriotas fiéis ao povo humilde, como os norodniki, intelectuais que abandonaram o conforto burguês para viverem com os pobres, com os camponeses e mendigos da cidade, difundindo entre eles o conhecimento, a razão, a esperança da libertação.

"Os Cinco são norodniki sem objetivos políticos", afirma Otto Maria Carpeaux.

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O mais velho era Alexander Sergeievitch Dargomychky (1813 - 1869), que foi diretamente influenciado por Glinka. Foi autor de óperas italianizadas nas quais o elemento russo só é sobreposto como ornamento: Russalka (1856) e O Convidado de Pedra (1872) não tiveram sucesso. O público continuava esperando óperas à maneira de Verdi e Gounod.

Os comunistas da Rússia soviética sempre exageraram os méritos do compositor, considerado como "o pai da verdadeira música russa".

De César Antonovitch Cui (1835 - 1918) o que se pode dizer é que não tinha força criadora e que sua música não sobreviveu, embora chegasse a ser muito popular e muito executada, não só na Rússia, por sua animação, alegria e força expansiva.

A figura central do movimento nacionalista, no entanto, é Mily Alexeievitch Balakirev (1837 - 1910), fundador da Escola Livre de Música (em 1861), influenciado pelas idéias do grande romancista e crítico revolucionário Tchernichjevsky. Balakirev colecionou canções e ritmos populares e em 1886 publicou a famosa Canção dos Barqueiros do Rio Volga, sucesso imediato na Rússia, na Europa, no mundo.

Balakirev empregou o folclore musical russo com muito sucesso na sinfonia Rússia, de 1861, e foi o primeiro a se interessar e a divulgar a música dos povos orientais que habitavam a periferia da Rússia e que o fizeram escrever o poema musical Islamey, para piano (1863).

Sua maior obra, sem dúvida é o poema sinfônico Tâmara (1882) e, para os que imaginam que aquilo é folclore russo, uma informação: todos os temas e modos foram inventados por ele, "à maneira das melodias que o povo canta". Foi um grande sucesso.

Balakirev escreveu pouco e nunca se sentiu realizado como compositor.

Grande, na verdade, é Borodin, Alexander Porfirievitch Borodin (1834 - 1887). Era um médico militar, depois professor de Medicina na Universidade de Petersburgo r um conselheiro imperial. Músico autodidata, é autor de apenas três obras-primas: a Sinfonia nº 2 em si menor (1876), "a mais russa entre todas as obras instrumentais que saíram do Grupo", segundo Carpeaux, "superior a todas as outras sinfonias escritas na Rússia"; o Quarteto para cordas nº 1 em lá maior (1877), "a mais valiosa obra camerística de toda a música rusdsa"; e a ópera O Príncipe Igor (representada em 1890), da qual toda gente conhece, dos concertos, as Danças Polovetzianas (ou Polovetz).

A música de Borodin, com seu uso da dissonância, antecipa Debussy e suas complexidades rítmicas antecipam Ravel. Ele é muito original

Mas o gênio do Grupo foi Modest Petrovitch Mussorgsky (1839 - 1881). Como todos do Grupo, "um autodidata que nunca chegou a dominar as regras acadêmicas", segundo Carpeaux mas que, "por isso mesmo terve a liberdade de criar obra originalíssima".

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Ele foi um oficial da Guarda Imperial mas logo demitiu-se para poder dedicar-se à música. Aceitou desempenhar funções subalternas na admi stração pública para sobreviver, miseravelmente.

Sofreu vários colapsos nervosos, tornou-se um alcoolista crônico, era homossexual e fetichista e morreu na miséria completa. No hospital militar de Petersburgo. Uma vida trágica.observa Carpeaux, "mas não perdida" porque Mussorgsky conseguiu realizar o que os outros apenas imaginaram e realizaram apenas em parte.

Seu pequeno poema sinfônico Uma Noite no Monte Calvo (de 1867) é um fascinante estudo orquestral de transfiguração musical de temas populares. Carpeaux diz que é "Gogol em música" e que, de tudo que escreveu, é "a melhor realizada".

Sua capacidade de pintar com sons permitiu que fizesse Quadros de uma Exposição (1873) inspirados em uma exposição de desenhos do arquiteto Viktor Hartmann e que entrou de imediato para o caderno dos melhores pianistas. Diz Carpeaux: "São peças poéticas, realistas, humorísticas ou patéticas, de linhas melódicas originalíssimas, ritmos irresistíveis, modos estranhos como saídos da memória atávica da gente russa". Mas é preciso advertir que só é autêntica a versão original, para piano, embora hoje seja muita mais ouvido o arranjo para orquestra, muito popular, feito por Maurice Ravel, uma obra brilhantíssima mas que é Ravel e não Mussurgsky.

A música ilustrativa de Mussorgsky não qurr competir com a literatura (como a de Berlioz, por exemplo). Ele pretende retratar a realidade e rejeita toda tentação de embelezá-la, quer a verdade.

Segundo Carpeaux, a oposição ao esteticismo dos italianos e dos românticos alemães levou-o a tentar superá-lo com o humorismo fantástico-grotesco. (à maneira de Gogol). Com um texto de Gogol, a propósito, ele escreveu uma ópera cômica, A Feira de Sorotchinzi, que deixou inacabada (e foi terminada em 12923 por Nikolai Tcherepnin). E escreveu a ópera O Casamento, inteiramente em prosa. Eram composições que interessavam à elite e aos intelectuais.

Até que assumiu o seu lado norodniki e foi ao encontro do povo. O primeiro fruto são os lieds, que têm nada a ver com os Schumann, são populistas e seu objetivo é o realismo perfeito: personagens estranhos mas verdadeiros, cantando histórias verdadeiras, revelando sua personalidade e história. Por isso mesmo assumem um aspecto dramático, até teatral, como o Hopak, do embriagado, ou o lamento do Seminarista. Os quatro lieds do ciclo Canções e Danças da Morte (de 1875) são das suas obras mais perfeitas, sobretudo Trepak e O General. A melodia surge diretamente do ritmo das palavras faladas e a harmonização adota os modos da antiga música sacraslava, o que dá (pelo menos para os ouvidos ocidentais) um estranho sabor de coisa arcaica e exótica.

A harmonia sacra eslava, o ritmo falado, o populismo, o motivo permanente da morte e a força das tradições russas estão reunidas em Boris Gudonov, sua maior obra, na qual ele trabalhou de 1868 a 1874, reescrevendo e remodelando várias vezes. O resultado é a ópera nacional russa.

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O enredo (o episódio mais trágico e mais enigmático da história russa) é tirado de uma tragédia do poeta nacional Puchkin. Os problemas religiosos e psicológicos que atormentam a alma do czar Boris Godunov são tipicamente russos. A coroação, o monólogo de Boris, a cena do relógio e a da morte do czar são de uma força e de uma profundidade dignas de Dostoievsky.. No terceiro ato, o dos invasores poloneses, a música é diferente, entre o modo parisiense e o modo italiano, exatamente para fortalecer o contraste com o efeito do nacionalismo agressivo. Como diz Carpeaux, "o grande papel atribuído aos coros e aos personagens populares transforma o gênero: Boris Gudonov é ópera de espécie nova, popujlar e realista". Realmente uma obra-prima singular.

O autor chegou a sr consideradoi louco e ignorante das regras elementares da composição musical. Depois da estréia, em 1874, em Petersburgo, Boris Gudonov caiu no esquecimento e só depois da morte de Mussorgsky entrou para o repertório russo e internacional, embora ainda cause estranheza.

Autodidata, sem uma forte educação musical, deve-se admitir que Mussorgsky nunca chegou a dominar completamente as regras da composição. Mas, para o crpitico, é difícil saber em que momentos ele não soube seguir a regra e em que momentos decidiu desconhecê-las deliberadamente. Autodidata e antiacadêmico por excelência, ele foi reescrito por um gênio: Rimsky-Korsakov. Sua versão e adaptação de Boris Gudonov retifica erros de Mussorgski, mas acaba por eliminar passagens originais, deliciosas e características. Hoje, a versão original, "bárbara" é a preferida do público, deixando para os músicos e críticos a versão de Rimsky-Korsakov. Que teve um mérito: venceu as resistências na Rússia, na Europa e fez da ópera o que ela é hoje e de Mussorgsky um dos mais importantes compositores da Rússia e do mundo.

Escrevendo sobre Mussorgsky, o crítico Mário de Andrade afirma que ele foi "uma das mais elevadas expressões artísticas do romantismo", chamando-o de "gênio possante que em suas obras resumiu a profundeza trágica, o humorismo sinistro, a alegria descabelada, o sentimento pueril, a barbárie incontida, a ingenuidade meiga, o satanismo, a inocência, toda essa multifária contrariedade a que nos acostumam os escritores e fatos históricos da Rússia.".

Depois dele, segundo Mário, a escola russa foi universalizada pela moda russa "que ridiculamente tomou o mundo desde a última década do século passado", (referindo-se ao século 19).

Mozart

João Crisóstomo Wolfgang Amadeus Mozart foi influenciado por todas as correntes musicais de sua época, mas não pertenceu a qualquer delas. Por sua vez, sua influência fez-se sentir apenas sobre o começo da carreira de Beethoven e foi bem menor que a de Haydn e mesmo menor que a de Weber. Como escreveu Otto Maria Carpeaux "a admiração que se lhe dedica tem como objeto uma arte extra-temporal e supra-temporal".

Do ponto de vista historiográfico, Mozart é um episódio e sua vida também foi episódica e dolorosa.

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Mozart nasceu em 1756. Começou a aprender os elementos da harmonia aos 4 anos de idade, com o pai, Leopold Mozart, violinista na corte do Arcebispo de Salzburgo. E o menino devia tocar, no piano e no violino, avançados exercícios.

Aos 5 anos o pequeno Mozart já compunha, embora os contemporâneos e mesmo os biógrafos afirmassem que ele tinha a colaboração do pai. Não importa, porque essas composições não contam na sua obra.

Em 1762 ele foi levado pelo pai para Munique e logo depois para Viena, onde fez um sucesso estrondoso e imediato. Sucesso que repetiu em Paris e em Versalhes em 1764. Em 65 e 66 o sucesso do menino foi em Londres, mas já parece mais maduro, tendo assimilado, conscientemente, a influência de Johann Christian Bach.

Em 67 está em Viena e em 70 na Itália, onde consegue a consagração definitiva

Em 1771, adolescente, é nomeado maestro da Corte de Salzburgo, então uma arquidiocese soberana. O arcebispo, conde Colloredo, era uma aristocrata soberbo e estúpido, que trata Mozart mal e como se fosse um lacaio.

Em 77 está novamente em Paris e, no caminho, faz contato com a orquestra de Mannheim. Só em 78 consegue desligar-se da corte de Salzburgo, que odiava, fixando residência em Viena. Aí começa o seu calvário. Tem prestígio mas não tem emprego, um cargo que garanta sua sobrevivência. Ganha a vida dando concertos, nem sempre bem freqüentados, ou dando aulas mal remuneradas. Suas composições rendem algum dinheiro mas não o tiram da pobreza humilhante, da miséria permanente e preocupante.

Sua mulher, Constanza, é uma gastadeira. Seus filhos morrem, pouco depois de nascidos e ela gasta cada vez mais, pedindo empréstimos que sabe que o marido não vai poder pagar. Mozart se dá a noitadas alegres e ao deboche e é caluniado pelos rivais, principalmente os italianos. Sua saúde fica ruim e por fim vem a uremia e a morte dolorosa em 1791, aos 35 anos.

Foi enterrado em vala comum, como indigente, que depois não foi possível identificar. O túmulo no Cemitério Central de Viena é um cenotáfio. Quer dizer que é um monumento erguido em sua memória mas que não contém os seus restos mortais, perdidos para sempre.

Suas biografias foram muito romanceadas (como se fosse preciso). Uma das histórias mais freqüentes é a de um Réquiem que um aristocrata desconhecido encomendou-lhe já no final da vida e que ele, "sacudido por acessos histéricos", teria dito que era para os seu próprio funeral. O episódio é verdadeiro, mas foi pintada com cores mentirosas, até porque Mozart referia-se ao epísódio com graça, dizendo que se não fosse pago e morresse antes, não desperdiçassem tão boa música.

Outra lenda é o episódio do seu envenenamento pelo rival Salieri. Apresentado como um anjo estabanado e fútil, perseguido por demônios implacáveis em várias biografias e no filme Amadeus, o retrato não é bom. Mozart foi um homem do seu tempo, um dandi, um rococó aristocrático, honesto, sério mas com princípios morais não muito rígidos. Jogava muito, teve muitos romances, passou fome. No pior momento da sua vida (logo após a morte dos filhos) escreveu o Divertimento para trio de cordas (K 563) e o Quinteto com clarinete

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(K 581). Como diz Carpeaux, "sua aparente alegria é a polidez do aristocrata que não quer, pela exibição dos seus sofrimentos, importunar outras pessoas".

No entanto, mesmo nas suas obras mais alegres o observador atencioso vai perceber um fundo de melancolia, porque Mozart foi um homem muito infeliz. Menino prodígio, com um sucesso retumbante, dele ninguém esperava menos que milagres diários. E, quando produziu esses milagres em sua música, pareceu que ele fosse um revolucionário, um tipo perigoso que ameaçava as boas tradições musicais e que era desrespeitoso com as regras estabelecidas pelos grandes mestres.

Criticado, no tempo dele, por ser "expressivo demais", seus adversários diziam que a pureza da sua linha melódica era "prejudicada pela comoção". Mozart é acusado de fazer "música só para se escutar" e de escrever danças que ninguém dança, canções que ninguém canta, serenatas sem amor.

Chamado por Mário de Andrade de "o mais musical de todos os músicos" e de "protótipo da musicalidade humana", Mozart, como ele disse é "a música antes de mais nada" e a expressão mais característica do Classicismo. "Não possui a religiosidade nem a ciência polifônica de João Sebastião Bach. Não possui a profundeza de Gluck ou de Beethoven... Em vão a gente despojará Mozart de muitos valores e reconhecerá maneirismos e pressa em muitas das obras dele; Mozart persevera música só, e de posse de tudo quanto é exclusivamente música."

Chamado muitas vezes de "divino" e de "universal", Mozart foi bem humano e bem austríaco. Como anotou Mário de Andrade: "A música dele é austríaca, refletindo um gosto pela vida gozada, uma espontânea e epicurista substituição do sofrimento pela melancolia, possuindo tal maleabilidade de manifestação que é quase inconstância até..

"Mozart deixou obras-primas em quase todos os gêneros musicais", escreve Mário, acrescentando: "uma série maravilhosa de sinfonias, suítes, concertos pra piano, quartetos, quintetos, trios, o Réquiem, sonatas pra piano, pra violino, pra órgão. E no meio dessas obras-primas ainda óperas que são monumentos incomparáveis."

O problema é que o povo aceita mal a música pura, porque a artre popular tem sempre uma função social, interessada. Os românticos, depois, fazem sucesso porque exageram isso. Para a maioria é impossível conceber a música pura, ela deve ser sempre uma expressão dos estados da alma. Essa não é a de Mozart, ele é um músico e talvez por isso tenha sido tão amado por Chopin.

Mozart escreveu 50 sinfonias, 17 óperas sérias e bufas,25 concertos para piano, 7 concertos para violino, 18 missas e incontável música religiosa e instrumental, inclusive divertimentos como os concertos para flauta e trompa. Voltamos a Carpeaux: "O mundo seria mais pobre se não existisse a encantadora Kleine Nachtmusik (o Pequeno Sarau Musical, K 525, de 1787), ou a mais ambiciosa Serenata de Haffner (K 250, 1776), escrita para divertir os convidados ao casamento de um rico padeiro de Salzburgo."

Em Mozart, a música dramática atinge a coerência da música sinfônica. E seus maiores quartetos, escritos para uso em sua casa e para tocar com amigos, dedicados a Haydn, são experiências de novas soluções que provocaram a admiração ilimitada de Beethoven .

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Mendelssohn

Felix Mendelssohn-Bartholdy (1809 - 1847) era neto do filósofo judeu Moses Mendelssohn, mas foi balizado pelos pais na igreja luterana, à qual foi sempre ortodoxamente fiel. Representante do Biedermeier prussinao, foi sempre rigorosamente apolítico, fervorosamente religioso, altamente moral e tinha excelente nível cultural.

Filho de banqueiro rico, recebeu educação brilhante e nunca chegou a conhecer as preocupações materiais da vida

Extraordinariamente precoce, fez sucesso como pianista ainda menino como compositor ainda adolescente e como regente antes dos 20 anos. Idolatrado em vida, foi o fundador dos famosos Consertos Sinfônicos de Gewandhaus, em Leipzig e do não menos famoso Conservatório da cidade.

Morreu cedo, antes que sua glória começasse a empalidecer, com apenas 38 anos de idade.

Um dos mais importantes feitos de Mendelssohn, segundo Mário de Andrade, foi revelar para o mundo o valor de Bach como compositor. Admirado como virtuose do cravo e como organista, Bach foi um compositor adiantado para o seu tempo e esse anacronismo fez com que seu valor musical passasse despercebido dos seus contemporâneos. Um século depois, Mendelssohn executou na própria Leipzig (em 1829) a Paixão Segundo São Mateus. Desde então é que se firmou e começou a crescer o valor de Bach.

Depois de ter sido o compositor mais festejado da sua época, principalmente na Inglaterra (onde, até hoje, tem a admiração incondicional dos músicos, regentes e críticos conservadores), Mendelssohn (já morto) foi perdendo importância porque os críticos acreditavam reconhecer nele um epígono da grande época clássica que só havia adotado certas feições exteriores do romantismo. Mas, em grande parte, também, por conta do fortíssimo anti-semitismo wagneriano. Segundo Otto Maria Carpeaux, durante o nazismo as obras de Mendelssohn foram banidas de repertório alemão e logo sua execução chegou mesmo a ser proibida.

Hoje, ninguém combate Mendelssohn por ser judeu, mas porque as grandes qualidades formais da sua música não chegam a compensar o sentimentalismo romântico e a falta de paixão desse homem rico, fino, culto e equilibrado que não conheceu a necessidade de lutar por qualquer coisa que fosse.

Sua linguagem musical, no entanto, é inconfundivelmente pessoal e Carpeaux considera que "seria injusto confundir Mendelssohn com os mendelssohnianos alemães e ingleses da segunda metade do seco XIX".

Foi grande artista, mas grande parte da sua obra pianística está morta. No entanto há obras-primas que ficaram, as mais difíceis, como as Variations sérieuses em ré menor, op. 54 e o Concerto para piano e orquestra nº 1 em sol menor, que continua muito executado.

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Dos seus lieds sobrevive apenas Auf Fluegln dês Gesanges (Nas Asas do Canto) e para a maioria dos críticos Mendelssohn criou poucas obras-primas mas as que criou têm valor permanente.

Carpeaux destaca, "antes de tudo", a abertura para o Sonho de uma Noite de Verão (de Shakespeare), escrita em 1826. (A música incidental e a marcha nupcial foram acrescentadas em 1842). E escreve: "A abertura é obra do mais íntimo lirismo e de encantador colorido romântico da orquestração. É o milagre entre os milagres da precocidade; pois nem sequer o próprio Mozart chegou a escrever com 17 anos de idade uma obra-prima dessas".

Do Concerto para violino e orquestra em mi menor, op. 64, diz Carpeaux, "nem sequer os inimigos de Mendelssohn ousam falar mal. É a mais melodiosa, a mais nobre e a mais brilhante entre as obras desse gênero", uma das criações mais puras da música alemã.

Sobre o famoso Trio para piano e cordas em ré menor é que os críticos ficam divididos: enquanto uns o colocam entre os trios de Schubert e o quinteto de Schumann (como Shoemberg), outros batem no seu ponto fraco, o movimento lento, considerado sentimentalóide.

Primeiro grande regente de orquestra do século XIX, foi Mendelssohn quem criou o repertório histórico das nossas orquestras de concerto, com Haydn, Mozart e Beethoven servindo de base do programa. Ressuscitou Bach, renovou Handel e ainda refletiu-o em seus próprios oratórios, Paulus e Elias que ainda impressionam e fazem parte do repertório dos corais na Inglaterra. Foi dos poucos a reconhecer, em seu tempo, o valor dos últimos quartetos de Beethoven, o que assumiu no seu próprio Quarteto em fá menor, op. 80.

Seus detratores falam nas "sinfonias de turista", mas as impressões de viagem resultaram em admiráveis obras-primas pelo equilíbrio entre a perfeição formal, rigorosamente clássica e o colorido romântico da Sinfonia Italiana em lá maior e da Sinfonia Escocesa em lá menor.

No fundo, para Mário, Mendelssohn não foi romântico, mas parnasiano, muito antes de haver a literatura parnasiana.

Hoffmann e Paganini

O típico representante do romantismo fantástico (e demoníaco e burlesco) é o grande contista, pintor, crítico de música e compositor Theodor Amadeus Hoffmann (1776 - 1822). O grande narrador do romantismo, mozartiano entusiasmado, ele produz muita música sacra e obras instrumentais, todas na linha de Mozart.

Otto Maria Carpeaux diz que sua ópera Undine só tem de romântico o enredo e que "nada, antecipa a obra de Weber, pela qual Hoffmann não sentia entusiasmo: preferiu Spontini."

Excelente crítico musical, suas críticas da obra de Beethovem (publicadas entre 1810 e 1813) são, segundo Carpeaux "os primeiros comentários congeniais". Para ele, o único defeito desses "textos notáveis" é "a tentativa de romantizar

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demais o clássico de Viena e de considerá-lo como mensageiro de ´províncias misteriosas do espírito".

Hoffmann também romantizou Gluck em seu conto O Cavaleiro Gluck. Outro conto seu, bastante famoso, Don Juan, é a interpretação trágico-romântica do Don Giovanni de Mozart.

As obras literárias de Hoffmann estão cheias de inspiração musical e serviram de enredo a várias óperas: Tanhauser, de Wagner, Brautwahl, de Busoni, Cardillac, de Hindemith, e o próprio Hoffmann é personagem dos Contos de Hoffmann, de Offenbach.

Um personagem de Hoffmann, o músico Kreisler (meio gênio, meio louco) "influenciou profundamente o comportamento humano e artístico de Berlioz, Schuimann, Wagner, dos jovens Brahs, de Hugo Wolf e de Mahler", segundo Carpeaux, e "ofereceu aos biógrafos de Beethoven e para a lenda em torno do mestre surdo alguns traços característicos.

Muitas pessoas (inclusive alguns historiadores da música) acreditaram reconhecer em Paganini o maestro e violinista Kreisler. Romântico e genial até os limites da loucura, foi provavelmente o mais genial dos violinistas e um excepcional compositor para violino. Nascido em 1784, morreu em 1840. Segundo o maestro Edson Frederico, "desenvolveu os discursos musicais em cordas duplas, pizzicati com a mão esquerda, staccati, scordature e harmônicos (inclusive os duplos)."

Mário de Andrade (que não fala de Hoffmann), fala de Paganini apenas para dizer que ele é o "exaspero da virtuoside" e "o suprassumum do malabarismo". É evidente sua má vontade com os românticos e suas "orquestras monstruosas", seus "cumes de emoção", sua "exasperação patológica", o "entusiasmo pelo entusiasmo", sua "inadaptação à vida", seu "cultivo da dor". Ele não respeita nem mesmo Nicolo Paganini, a quem chama de "espetaculoso".

Seria mesmo espetaculoso o primeiro grande virtuose do romantismo. Heine o descreveu como um homem espantosamente magro, de fealdade fascinante, de gestos burlescos, fazendo caretas incríveis. Foi o maior dos violinistas mas ele mesmo incentivava as lendas fantásticas que corriam a seu respeito. Ele afirmava que sua arte devia-se aos exercícios intermináveis durante os anos que passou na prisão pelo rapto e assassinato da amante. Não há comprovação histórica. Mas seus amigos diziam que ele admitia ter feito um pacto com o diabo, com quem aprendera violino em troca de sua alma imortal.

Parte da sua arte (a acreditar-se nas testemunhas) perdeu-se com a sua morte. Outra parte, greaças aos progressos técnicos, tornou-se propriedade comum dos grandes violinistas. Do seu virtuosismo dão pálida idéia as suas obras, exibições técnicas que, mesmo assim, têm valor musical..

Certo é que o público, alimentado pela publicidade hábil de empresários judeus,, pelas lendas e mistérios que cercavam Paganini e pelo espetáculo pessoal das suas aparições, ficou estupefato e aplaudia entusiasticamente em Viena, Paris, Londres. Paganini morreu milionário e seu sucesso popular só foi igualado por Liszt, pela cantora Jenny Lind e pelos Beatles.

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Schumann

"O que admira e comove toda gente na obra de Schumann e de outros gênios compositores de peças características (como nosso Vila-Lobos) não é o caráter descritivo, imitativo, literário ou pictórico das obras deles, mas a musicalidade formidável de que estão impregnadas. Os gênios são homens que nem nós mesmos. A diferença é que vão sempre além daquilo que pretendem fazer". A frase é de Mário de Andrade, para quem os gênios cumprem um destino de homem, ao passo que nós cumprimos o destino da humanidade. E acrescentava: "Essa é mesmo a parte irritante que os gênios têm".

Robert Schumann (1810 - 1856) foi a personificação do alto romantismo alemão. Foi grande escritor, importante crítico musical e sua música (como a de todos os românticos) alimentava-se de estímulos literários, embora nunca chegasse a fazer música de programa..

Não lhe bastava usar a música para reforçar a expressão dos estados da alma. Como bom romântico a música, sistematicamente, deve exprimir os sentimentos por meio de sons.. No decorrer de uma obra, os temas dela mudam de aspecto e de interpretação não mais por intenções puramente musicais, porém para caracterizar estados psicológicos ou aspectos exteriores diferentes da mesma coisa, como ensinou Mário.

"Outra deformação específica do romantismo foi transformar num repugnante cultivo da dor, a sinceridade com que o povo exprime às claras o sofrimento. Um dos traços essenciais do romantismo é o cultivo da dor", escreveu Mário de Andrade. No caso de Schumann ele explorou sua própria loucura e Mário observa que ele, como todo romântico, não se achava bem dentro da vida, era um inadaptado.

Aproveitando a lição de Schubert e a invenção absolutamente germânica e maravilhosa do Lied, Schumann (talvez o mais romântico de todos os românticos) iguala e funde a expressividade, permanentemente psicológica, de voz e piano, com perfeição estética. Com isso, Schumann representa o momento supremo do Lied. O piano não se limita a acompanhar o canto, ele é o comentador psicológico, o ambientador até descritivo do texto. Ele levou ao máximo o que Schubert começou, invertendo as funções naturais de voz e instrumentos: com a voz\ fazia música pura, e com o instrumento música descritiva.

Um dos três maiores espíritos do romantismo (com Chopin e Debussy), Schumann teve sua genialidade reconhecida ainda em vida.

O romantismo de Schumann é alemão, de Hoffmann, Eichendorff, Heine e, como escreveu Otto Maria Carpeaux, "sua ate não é só o ponto mais alto do romantismo na Alemanha; é o resumo e o fim do romantismo alemão em geral".

Filho de um livreiro e editor, Schumann cresceu no meio dos livros e, ainda cedo, teve ambições literárias e mesmo a decisão de tornar-se um músico e pianista profissional não as apagou.

Seu professor de piano foi o severo Wieck, pedagogo eficiente que fizera de sua filha Clara um prodígio. E se o jovem Schumann não esteve disposto aos exercícios de contraponto de seu mestre, apaixonou-se loucamente por sua filha. Wieck (não se sabe o motivo) foi contra o casamento e a luta dos dois

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jovens contra o velho foi o primeiro grande drama da vida de Schumann. Só mesmo por decisão judiciária eles conseguiram casar-se.

A felicidade só não foi completa porque Wieck continuou em oposição, mas os dois formaram um par perfeito, harmonioso, eram dois espíritos que se completavam.

A abundante produção musical de Schumann não foi logo reconhecida em todo o seu valor. Mas como editor de uma revista de música que ele criou e por sua função de crítico que escrevia muito bem, obteve logo posição dominante na vida musical alemã. E ele continuou produzindo, com pressa que parecia prever a decadência da inspiração, o aumento da angústia e das sombras que cobriram seu espírito logo perturbado por alucinações.

Sua loucura levou-o à tentativa de suicídio e à internação em um manicômio, onde morreu. Clara sobreviveu por 36 anos como grande virtuose dói piano, incansável na propaganda eficiente da obra do marido.

Segundo Carpeaux, a obra de Schumann é tão grande que "é difícil orientar-se nela". Para o crítico, a maior parte das obras escritas depois de 1845 (as mais numerosas) não tem muito valor e "exumá-las só significa prejudicar a memória do compositor". A inspiração de Schumann está concentrada, principalmente, nas suas obras da mocidade.

Dentro de um único ano ele produziu os seus melhores lieds. E em cada fase ele preferiu determinado gênero.. Entre uma fase e outra houve sempre intervalos de improdutividade, de profunda depressão, o que levou Carpeaux a afirmar que "Schumann é um caso psicopatológico".

A primeira fase é do piano. Carnaval (1835) é uma obra-prima: uma série de pequenas peças altamente românticas, baseadas em um sonho juvenil do autor que imaginara uma aliança de espíritos poéticos (os Davidbuendler) contra os filisteus. É a obra preferida do público ee concertos prefere, até hoje.

De inspiração semelhante, os Davidsbuendlertaenze (Dança dos Davidsbuendler, de 1837) é outra obra-prima, assim como Faschingsschwank aos Wien (Farsa Carnavalesca Vienense, de 39).

Todas as obras para piano de 1835 a 1839 são obras-primas que surpreendem pela variedade. As Kinderszenem (Cenas Infantis) não são obra didática, destinada ao ensino do piano, são para serem tocadas por adultos que sabem sentir a alma infantil (como ele soube). Uma dessas cenas Traeumerei (Réverie) é a mais bela melodia que Schumann inventou.

As Phantasiestuecke (Peças Fantásticas, de 1837) são fantásticas em todos os sentidos, estudos em expressão musical de situações psicológicas, uma das obras mais românticas no melhor sentido da palavra. Especialmente Aufschwung (palavra intraduzível que significa a firme resolução depois de momentos de angústia) cuja melodia de energia sombria é inesquecível.

As Études synphoniques (1837), a preferidas dos virtuoses sérios, são sua obra tecnicamente mais difícil, uma série de variações engenhosas que culminam num jubiloso canto de triunfo.

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Os Kreisleriana (1838) foram inspirados pelo fantástico personagem Kreisler, de E.T.A. Hoffmann e são sua obra mais audaciosa do ponto de vista harmônico.

A Fantasia em dó maior (1838), segundo Carpeaux, "teria sido escrita assim por Beethoven, se ele tivesse sido romântico na mocidade".

Durante algum tempo alguns críticos mal informados (talvez induzidos pelos títulos literários que Schumann deu à maior parte da sua obra pianística) disseram que o compositor era "um literato que, por engano, dedicou-se à música". O que se sabe é que ele primeiro escrevia a peça e depois dava um nome a ele. Apenas o esdtímulo de produção era de ordem poética (como aconteceu com Debussy).

Mas Schumann foi poeta, mas um poeta que só sabia fazer poesia em música. Para Carpeaux, "como poeta do piano, Schuimann não é inferior a Chopin", mesma opinião de André Gide. Como inventor de melodias, Schuimann não tem rival, a não ser em Mozart. Experimentador audacioso de inovações harmônicas, ele chega a ser de surpreendente modernidade.

A preferência de Schumann pelas pequenas formas, as peças poéticas de tamanho reduzido que dispensam maior construção arquitetônica, tem sido interpretada por alguns historiadores da música e críticos musicais como incapacidade de manejar a sonata-forma. Pedro Nava observou muito bem que "é o mesmo que dizer de um excelente contista que ele não escreve um romance porque não sabe como lidar com a sua estrutura".

Schumann foi um excelente contista. O mínimo que se pode dizer de suas três Sonatas para piano (em fá sustenido menor, em fá menor, e em sol menor, todas de 1835) é que são belas e se não são sonatas no sentido beethoveniano da palavra, as de Schubert e Chopin também não o são. Como escreveu Carpeaux, "talvez não seja mesmo possível escrever verdadeiras sonatas para o piano depois de Beethoven ter esgotado todas as possibilidades desse gênero".

Esquecem os críticos que Schumann escreveu duas obras-primas em sonata-forma. O Concerto para piano e orquestra em lá menor (1845), um dos mais belos do gênero, lírico, quase camerístico, e o Quinteto para piano e cordas em mi bemol maior, opus 44 (de 1842), para muitos a sua maior obra.

Schumann não tece sorte com os seus discípulos. E até Brahms, para quem escreveu um artigo entusiasmado predizendo grande futuro, foi fiel a Clara Schumann mas, em música, enveredou logo por caminhos muito diferentes.

Na Alemanha só houve um único schumanniano autêntico e convicto: Peter Cornelius (1824 - 1874). Romântico conservador, de muita profundidade emocional, iludiu-se a si próprio e aderiu ao círculo de Liszt e Wagner e prejudicou sua obra, que não é mais tocada.

A glória de Schumann, no entanto, não deixa de crescer, até hoje. Seus valores são líricos. Muito mais culto que Schubert ele é reconhecido como o grande mestre do lied. Os melhores foram escritos em 1840. A coleção Myrtehn (Mirtos) começa com o mais belo de todos, Widmung (Dedicatória). O ciclo Frauenliebe und Leben (Amor e Vida de Mulher) continua sendo muito cantado. O ciclo Dichterliebe (Amor de Poeta) é uma homenagem a seu poeta preferido, Heine. Sãos os lieds mais queridos de todo o repertório alemão. No ciclo Lierderkreis von Eichendorff

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(Ciclo de Lieds de Eichendorff), ele homenageia outro poeta querido, autor dos textos mais afins com o seu temperamento. Deles, Mondnacht (Noite de Luar) é o maior lied do compositor.

Suas baladas também são numerosas e uma delas conquistou gloria mundial: Os Dois Granadeiros, letra de Heine (1840), com o emprego genial da Marselhesa no desfecho.

Nas obras corais de grandes dimensões Schumann foi menos feliz. O oratório profano Das Paradies und die Peri (O Paraíso e a Fada, de 1834) é cheio de beleza lírica mas é prejudicado pelo libreto sentimentalóide. E mesmo a obra mais ambiciosa de Schumann, Szenen aus Goethe's Faust (Cenas do Fausto de Goethe, de 1849/50) é desigual e marca o começo do fim da inspiração, embora certos trechos sejam maravilhosos, como o final grandioso com artes polifônicas que ninguém podia esperar de um compositor lírico.

A maior expressão do seu romantismo noturno é a música de cena para a tragédia Manfred, de Byron (1849), acompanhando a obra sinistramente misteriosa do poeta inglês. Dela ficou a abertura, que é a maior peça sinfônica DE Schumann, sua última grande obra antes do declínio e da loucura que oi fez mergulhar na noite escura do espírito.

Berlioz

No auge do romantismo (1830 a 1870) o ambiente parisiense é, segundo Otto Maria Carpeaux, "quase hostil à música séria". Diz ele que literatos e críticos revelam "ignorância espantosa" e que não se admite outra música a não ser a dramática, a ópera. E mesmo na ópera não se admite a menor intervenção do elemento sinfônico, e nem Gounot escapou de ser hostilizado. Meyerbeer é o nome da moda.

É nesse ambiente que Hector Berlioz sofre uma sucessão de decepções, derrotas, críticas duras, humilhação, misérias. Mesmo assim, em meio a um romantismo "falso e falsificado" ele foi o único verdadeiro romântico na música, podendo estar ao lado da poesia de Victor Hugo e da pintura de Delacroix.

Hector Berlioz (1803 - 1869) foi um homem extravagante cuja vida foi um romance tempestuoso com desfecho melancólico. Rebelde, incompreendido, começou por enfrentar a família de médicos e juízes: sua escolha pela música foi muito mal recebida e ele não teve qualquer apoio dos seus parentes.

No Conservatório de Paris (onde Cherubini atuava como um ditador), rebelou-se contra o ensino e contra a moda parisiense (que classificou como "frívola e burra"). Sua prova final foi uma obra sinfônica, o que os mestres já julgavam um desaforo. A Symphonie Fantastique era, segundo ele mesmo, "um romance erótico em sons musicais", uma incrível declaração de amor à atriz inglesa Harriet Smithson. Uma declaração irrecusável que fez com que os dois se casassem. Foi um desastre, porque ela não era um moça séria.

Sem dinheiro, quase na miséria, Berlioz (que era muito bom escritor e musicalmente bem educado), aceitou um emprego como crítico musical no Journal dês Débats e tinha todo o direito de pedir para que esquecessem o que escreveu: tinha que ser agradável aos nomes da moda na ópera, Aubet, Adam,

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Halévy, que ele detestava. Em carta a Georges Sartel ele confessa: "Procurar qualidades nesses compositores de terceira é uma trabalho superior às minhas forças ao qual estou obrigado, infelizmente."

Suas estréias foram repetidamente desastrosas, porque ele insistia em remar contra a corrente. Seu Réquiem foi oferecido para os funerais de várias personalidades, em vão: foi sempre recusado, até ser usada por um personagem menor.

A execução da obra sinfônica Romeo e Juliette só rendeu 1.100 francos.

Em 1846 o fracasso completo do concerto em que apresentou pela primeira vez La Damnation de Faust obrigou-o a desistir de se apresentar como compositor em Paris.

Passou a ganhar a vida como regente viajante de orquestra no estrangeiro, principalmente na Alemanha e na Rússia.

Sempre acompanhado pela amante, a medíocre Marie Recio (que lhe amargurou a vida), não conseguiu fazer com que a aceitassem, o que prejudicou a possibilidade de fazer representar sua grande ópera Les Troyens.

Liszt procurou ajudá-lo, lutou por ele, mas o sucesso de Wagner ofuscou de vez a estrela de Berlioz que morreu na miséria de sempre, e abandonado. Só a história colocou-o no lugar de melhor e único representante do alto romantismo francês e de uma das cinco figuras dominantes do romantismo (segundo Mário de Andrade, juntando o nome dele ao de Chopin, Schumann, Lizt e Wagner).

Segundo Mário, "tudo o que esses cinco artistas inventaram como estética e técnica musical, resume o romantismo na sua essência mais pura".

Berlioz sonhou com orquestras monumentais e em seus poemas sinfônicos juntou coros e solos vocais à orquestra (como Beethoven). Ele e Liszt sitematizaram a música de programa, a música que procura, por intermédio dos instrumentos musicais, descrever um fato, uma situação, um sentimento, fixado preliminarmente por uma página literária que está impressa no programa. A habilidade sinfônica de Berlioz fez com que ele fosse tido como o mais luminoso e pictórico dos românticos.

Segundo Mário de Andrade, "o poema sinfônico engrandeceu os limites da orquestra beethoveniana e abriu as portas à pesquisa de ambientes sinfônicos novos." Mas "Berlioz só escreveu música quando estimulado por impressões literárias", informa Carpeaux. Ele mesmo foi um bom escritor, um dos maiores críticos musicais de todos os tempos, um cronista espirituoso e um memorialista de qualidade.

Não é correto, no entanto, dizer que foi mais literato que compositor, como sugeriram alguns biógrafos. Se é verdade que ele organizou suas obras sinfônicas como ilustrações musicais de enredos literários, não deixou de ter valor como compositor de música absoluta.

A obra-prima de Berlioz, reconhecida pela maioria dos historiadores da música, é a cantata cênica La Damnation de Faust, destinada às salas de concerto mas que também podia ser encenada em um palco. A cena da Caverna e Floresta,

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para Carpeaux, "é grande poesia musical, digna do poema de Goethe". E não só ela.

Berlioz é maior quando se apóia num elevado texto poético. Mas a sua "música de programa" e a idéia de transpor textos e enredos poéticos para a música orquestral sem palavras ´é uma idéia romântica, no mau sentido. Não só a arte musical raramente é capaz de transmitir situações físicas e acontecimentos dramáticos, como acaba sendo um simples acompanhamento para criar ambiente. A necessidade de um programa que explique ao público o que a música quer transmitir já seria suficiente para mostrar que os compositores não conseguiam fazer chegar ao público, só com a música, o que queriam transmitir. Há mais ruído e efeitos especiais nessas músicas. Mesmo assim, Berlioz fez música melhor que a sua teoria.

Embora partindo da sinfonia beethoveniana, Berlioz encontrou seu próprio caminho, sem querer resolver os problemas dos outros, principalmente dos adeptos da música absoluta. Sua música é essencialmente dramática e ele "odiava e ignorava deliberadamente a polifonia, qualquer polifonia", no dizer de Carpeaux. Evitou as dissonâncias e é preciso reconhecer que sua música, muitas vezes, é mais teatral do que expresso nas suas intenções, provavelmente por contaminação do ambiente operístico.

Cético, profundamente arreligioso, para ele foi difícil escrever música sacra. O seu Réquiem é uma sinfonia fúnebre que abala os nervos já abalados pela perda, com o barulho apocalíptico de duas orquestras enormes e quatro coros. Nasceu daí sua má fama de escrever "só para 500 executantes". Mas a obra, com todos os seus defeitos, é um dos pontos mais altos do romantismo musical francês, "sempre grotescamente fantástico e, ao mesmo tempo, brutalmente realístico", no dizer de Mário de Andrade.

Berlioz negava a má fama: "Nem sempre escrevi párea 500 músicos; 'as vezes contento-me com 450". Na verdade, contentava-se com bem menos, até mesmo com uma orquestra de câmara e um pequeno coro no oratório L'Enfance du Christ (1854), obra de beleza íntima e (surpreendente) inspiração religiosa.

Homem de muitas idéias, sua capacidade de invenção melódica é notável. E mais admirável é o aproveitamento dessas idéias musicais na instrumentação. Segundo Carpeaux, "entre todos os compositores grandes ou notáveis, de todos os tempos, foi Berlioz o único que não dominava o piano nem o violino, nem qualquer outro instrumento. Seu instrumento foi a orquestra inteira". Na verdade, para Carpeaux, "ele renovou, ou melhor, revolucionou a arte e a técnica da instrumentação". A esse respeito, Liszt, Wagner, Richard Strauss e Rimsky-Korsacov são seus discípulos.

Berlioz foi um dos compositores que exerceram mais influência sobre todo o século XZIX. Mas, grande individualista, não teve alunos nem discípulos.

Chopin

O romantismo foi um bom recurso para fazer da alma popular um bom meio de expressar o nacionalismo. Se Rossini era uma glória internacional defendendo as cores da Itália, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Mendelssohn e Weber defendiam as cores da Alemanha. Outras nações não tardaram em opor à

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predominância dos alemães suas próprias particularidades nacionais, como observou Otto Maria Carpeaux.

Flamengos, espanhóis e ingleses, desde o século XVI haviam deixado de contribuir para a música européia, quase que inteiramente dominada por italianos, franceses e alemães Mas no começo do século XIX surgem os escandinavos, os russos, os húngaros e os poloneses.

Os dinamarqueses apresentam-se com Niels Gade (1817 - 1890), famoso pela abertura Nachklaenge aus Ossian (Ecos de Ossian). Apesar do colorido nórdico da sua musica, os dinamarqueses, depois do sucesso inicial, passaram a considerá-lo "um Mendelssohn petrificado". Preferiram Friedrich Kuhlau (1786 - 1832), que embora fosse de origem alemã tinha aproveitado o tesouro melódico da canção popular dinamarquesa na ópera Elverhjoej.

Na Suécia foi Ivar Hallstroem (1826 - 1901) quem usou o folclore sueco para fazer música e obter sucesso com a ópera Bergtagna.

Na Rússia foi Mikhael Ivanovitch Glinka (1804 - 1857) quem primeiro se libertou da influência italiana, com enredos nacionais, danças típicas e coros populares, nas óperas A Vida pelo Czar e Russlan e Ludmila. Ele foi mais longe e não se limitou a empregar motivos e ritmos russos: deixou de pensar musicalmente nos termos do sistema tonal ocidental, voltando-se para o modo da velha música sacra eslava. Por isso mesmo encontrou resistência: ele era esquisito e só mesmo os russos souberam apreciar plenamente o seu gênio. Até hoje A Vida pelo Czar é representada, só que sob o nome de Ivan Sussanin (o nome do personagem principal)

Glinka foi quem melhor explorou a diferença essencial entre o "modo ocidental" e o "modo russo". E isso serviu para que ele pudesse perceber outros "modos". Na peça sinfônica Jota Aragonese (depois de uma viagem à península ibérica) ele escreve do "modo espanhol". E na peça sinfônica Kamarinskaja ele parece um polonês. Pela sua posição histórica para a música russa, Tchaikovsky chamou-o de "Mozart russo, ou melhor, Haydn russo".

Na Hungria quem fundou a ópera nacional com base folclórica foi Franz Erkell (1810 - 1893), com Hunyddy László e Bankban, mas do ponto de vista formal essas óperas seguem o modelo italiano.

A mesma observação vale para Stanislaw Moniuszko (1819 - 1872), autor da ópera Halka, a primeira na Polônia com enredo e temas musicais reconhecíveis pelo povo como lembranças folclóricas.

Todos eles não encontraram ressonância internacional para essa primeira onda romântico-nacionalista, a não ser em seus próprios países, onde ainda são executados por sua importância histórica. Nem sequer o genial Glinka, lembra Carpeaux.

A lista dos que foram buscar motivos nacionalistas para sua música na segunda metade do século XIX é longa, e todos buscaram no folclore e na música popular uma caracterização definida: Stanislaw Moniusco, na Polônia, Smetana, na Boêmia, Albenitz e Granados, na Espanha, Sibelius, na Finlândia, Granville Bantok, na Inglaterra, Alfredo Keil, Viana da Motas, Rei Colaço, Rui Coelho, em Portugal, Bartok na Hungria, Carlos Gomes e Nepomuceno, no Brasil, Júlio Ituarte, Manuel de Ponce, Carlos Chaves, José Rolon, no México, Alfredo Wild,

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na Guatemala, Eduardoi Sanches de Fuentes, Pedro Sanjuan, Amadeu Roldan, Alexandre Caturela, em Cuba, Alberto Williams, Gillardi, Atos Palma, Gaito, De Rogatis, Suffern e Morilo, na Argentina, Henrique Soro, Allende, Domingos Santa Cruz, Isamitrt Prospero Bisquert Prado, no Chile, Fabini, Brosqua, Carlos Pedrell, Cluseau-Mortet, Cavavecchia, no Uruguai e muitos outros, por toda parte, mas sem um grande sucesso internacional.

A vitória internacional ficou para um nacionalista polonês, muito francês: Chopin. E ele não foi o primeiro a fazer música nacionalista na Polônia.

No começo do século XIX a música para piano no país já se apropriara de temas folclóricos e as polonesas e mazurcas de Michael Kleophas Oginski (1'765 - 1833) são uma prova disso. O jovem Chopin conhecia-as muito bem. Assim como aos noturnos do pianista irlandês John Field (1782 - 1837), o inventor do gênero e que escreveu polonesas e valsas sonhadoras e muito bem ornamentadas.

É preciso não esquecer a origem francesa do pai de Chopin.

Frédérick Chopin (1810 - 1849) nasceu em Zelazowa Wola, perto de Varsóvia. Filho de um francês de Nancy e de uma polonesa, sua vida é um romance melancólico. Menino prodígio ao piano, saiu de Varsóvia em 1830 (aos 20 anos, portanto), para aperfeiçoar-se. Pouco depois estoura a revolução aristocrático-liberal cujo fracasso fortalece o domínio do czar russo sobre a Polônia, o que provoca a fuga em massa de refugiados, principalmente intelectuais e aristocratas.

Chopin não chegou a participar do levante patriótico e nunca mais volta à Polônia em vida. Daí, supõe-se, sua posição em relação ao seu país: ele é nostálgico, de um romantismo moderadamente nacionalista.

A simpatia de toda a Europa pelos poloneses se deve, principalmente, à antipatia e até hostilidade pelo czarismo russo. Os poloneses tornaram-se moda em Paris e tudo o que lembrasse a Polônia era bem recebido, inclusive sua músicas popular, suas danças, sua vodca.

Aproveitando-se de suas recordações, Chopin transformou-as no elemento nacional da sua música. Artista já feito quando deixou seu país, tornou-se francês por admiração à cultura e pelo ambiente. Sua polonidade é, inclusive, contestada, por exemplo, pela musicóloga polonesa Windakiweiczewa. Ela admite o melodismo folclórico popular polonês, mas afirma que a linha melódica de Bellini é o mais importante.

Pensar sempre na Polônia inspirou concertos, sonatas, estudos, prelúdios, noturnos. Mas especificamente polonesa é a música de Chopin quando ele escolhe ritmos nacionais: polonesas e mazurcas. A polonesa mais famosa é a heróica, em lá maior (Polonaise militaire, op 40) que os sonhadores refugiados adotaram como "hino da revolução". Nas valsas ele já tem mais da inconfundível elegância parisiense

Um traço curioso do romantismo de Chopin é o fato dele ter uma limitação às formas pequenas. Mas Carpeaux sugere que essa afirmação deve ser retificada, em parte, explicando que a aversão de Chopin pela sonata-forma e sua incapacidade de manejá-la bem tem "motivos mais profundos e diversos". Ele não gostava de Beethoven porque a música parecia-lhe "democrática" e

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"barulhenta". Mas amava o aristocrático Mozart. E, diz-se, ouvia sempre o Cravo Bem Temperado de Bach, e os prelúdios e fugas que são anteriores à sonata-forma.

Para Carpeaux, Chopin "é mais clássico do que se pensa". "embora não no sentido do classicismo vienense": a preferência pelas melodias de Bellini "fortalece a impressão de um gênio menos eslavo-nórdico do que latino-mediterrâneo".

Chopin, como todos os românticos, usa o piano desligado da palavra para expressar sentimentos, como lembra Mário de Andrade, para quem Chopin é "um dos mais essencialmente musicais dos músicos". (Acrescentando que "não é à-toa que Chopin adorava Mozart".)

Mário diz que a música, para Chopin, é uma confidente a quem ele confiava todos os seus ideais, sentimentos e paixões e a sua dor. Por ser "a musicalidade mais completa do século", Chopin escapa da literatura e da literatice.

Criticando a chamada "peça característica", que chama de "refúgio dos incompetentes e dos frouxos", Mário de Andrade afirma que os românticos produziram "um dilúvio medonho de aleijões musicais" que encheu a biblioteca musical de Primaveras, Luares, de Reveries, de Crepúsculos, de Burrinhos trotando, Procissõeszinhas passando, Bonecas, Soldadinhos de Chumbo, Pescadores, Chuvas, Chuvisqueiros, Tempestades, Souvenirs, etc. etc., numa insuportável mascarada de nulidades. E diz mais: "A peça característica romântica é talvez a maior desgraça caída sobre a arte musical, porque se servindo do instrumento familiar quotidianizou na sensibilidade do povo o gênero engraçadinho, a coisa interessantinha, a música onde-está-o-gato? Na qual o ouvinte, em vez de se elevar aos prazeres puramente sonoros da música, se diverte em achar nas imagens sonoras o barulho do vento, o pio dos sabiás,, o trote de muitas patas". E termina essa crítica afirmando: "Só mesmo os gênios é que conseguem conservar a peça característica dentro da estrita musicalidade. E com efeito nela se manifestam especialmente três dos maiores espíritos do romantismo: Schumman, Chopin e Debussy".

Para Mário, a peça característica de função psicológica assume em Chopin "a mais alta expressão dela". Acrescentando: "Mas este polaco maravilhoso era um apaixonado de Mozart e deformou com inteligência a orientação da peça característica, para não fugir nunca da criação essencialmente musical." E lembra: "Os títulos dele foram sempre vagos, Noturnos, Polonesas, Valsas, Prelúdios, Mazurcas, Estudos, Sonatas..."

Os primeiros sucessos de Chopin foram em Viena. Depois, em Paris, principal ponto de destino dos poloneses, onde a sociedade aristocrática abriu-lhe as portas, assim como os círculos intelectuais, onde alguns sonhadores imaginavam uma nova Polônia, livre dos russos.. Era o seu público predileto e nunca chegou a ser tão bem sucedido como virtuose tocando para público anônimo nas grandes salas de concerto.

Chopin não é eclético e sua arte é altamente pessoal. A personalidade artística desse homem fraco é forte, a tal ponto que tudo em que tocou ficou sendo inconfundivelmente seu. Ornamentos e arabescos que, em outros compositores, só servem de enfeite e de exibição para a perícia dos dedos, em Chopin são essenciais, indispensáveis, ganham vida e alma. Com isso ele criou um novo estilo de tocar piano.

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As formas clássicas, a sonata e o concerto, não se prestaram bem ao seu estilo. Se o Concerto para piano e orquestra em mi menor e o Concerto para piano e orquestra em fá menor (que o antecedeu) têm lugar permanente no repertório, é pela beleza encantadora das melodias e pelo brilho virtuosístico que os torna indispensáveis aos pianistas, mas ninguém ousa compará-los aos grandes concertos de Mozart e Beethoven. A Sonata em si bemol menor com a famosíssima Marcha Fúnebre como movimento lento, é menos uma sonata do que uma coleção de trechos gloriosos, na opinião de Otto Maria Carpeaux. A Fantasia em fá menor op. 49 é espantosa, mas a análise formal demonstra que mesmo nessa forma livre de fantasia há certas incoerências e brechas.

O verdadeiro reino de Chopin são as curtas peças poéticas, a começar pelos Estudos, escritos para resolver determinados problemas pianísticos mas que resultaram em uma obra de arte definitiva (assim como as obras didáticas de Bach). As Études op. 10 são da mocidade mas já são perfeitas: especialmente a melodia inesquecível do nº 3 em mi maior , que Carpeaux considera uma melodia inesquecível, "a mais bela que Chopin inventou"; a nº 5 em sol bemol maior ("nas teclas pretas"); o difícil nº 10 em lá bemol maior; o nº 11 em mi bemol maior (quase um noturno); e o famoso nº 12 em dó menor, chamado Étude revolucionnaire.

Para Carpeaux, no entanto, as Études op. 25 são ainda mais importantes, especialmente o nº 2 em fá menor, o n º 7 em dó sustenido menor, o nº 11 em lá menor e "o maior dos estudos", o nº 12 em dó menor.

Dos noturnos, os mais notáveis são os do op. 9, op. 15, op. 27, op. 48 e op. 62, na opinião do historiador da música e crítico Otto Maria Carpeaux, que considera o maior dos noturnos a Barcarole em fá sustenido maior op. 60, "que não pode ser bastante elogiada".

Em todas essas formas Chopin teve precursores e modelos, mas superou a todos, sem medida. Mas o compositor criou suas próprias formas. Primeiro as baladas, peças de extensão um pouco maior e que sugerem uma seqüência de estados psicológicos. A mais famosa é a Balada nº 3 em lá bemol maior, mas na verdade ela seria "mais elegante que profunda", segundo Carpeaux, que prefere a Balada nº 1 em sol menor (uma espécie de auto-retrato, e a apaixonada Balada nº 4 em fá menor, que muitos autores consideram a maior obra de Chopin.

Depois criou os scherzi, que têm nada ou têm muito pouco em comum com os scherzo de Beethoven: eles são expressões de um humorismo muito original, cáustico, sarcástico, desesperado, no reverso da medalha do romantismo melancólico e elegante. Seus quatro scherzi (nº 1 em si menor, nº 2 em si bemol menor, nº 3 em dó sustenido menor, nº 4 em si maior são reconhecidos como as obras mais originais do compositor e as mais audaciosas na procura de novas combinações harmônicas ("quase antecipando o Impressionismo", segundo Carpeaux).

Os Prelúdios (op. 28) são fragmentos isolados do universo pianístico de Chopin, expressões de seu pessimismo desolado, esboços de idéias que o desespero, o cansaço ou a doença não permitiram ao artista realizar plenamente. São de 1839. Mas são importantes porque foi a primeira vez que um compositor ofereceu ao público uma visão da sua intimidade, do seu interior, dando à música um novo espaço, um novo terreno a ser explorado.

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Algumas obras de Chopin têm apelidos, nomes dados por admiradores ou editores. Mas não tiveram títulos poéticos. Poética é a sua música absoluta, que apenas insinua estados de alma líricos. Como diz Carpeaux, "é arte para gente emocionalmente madura".

O problema é que, colocada cedo nas mãos de adolescentes, para fins didáticos ou por exibicionismo dos professores, não são lidas corretamente, não são entendidas, são confundidas com a doença do compositor e sua decadência física., idéia que o cinema americano tratou de explorar e tornar permanente, como alguns biógrafos mal informados.

A decadência física de Chopin é um fato histórico, inquestionável, mas não pode ser um argumento contra a sua arte. Como não se pode negar também o caráter feminino de sua sensibilidade artística.

Chopin não fez música de salão para os aristocratas ou a alta sociedade, embora seja verdade que só eles foram capazes de apreciá-la e aproveitá-la. A imensa popularidade de certas obras entre os musicalmente menos educados, nada tem a ver com os valores dela. E o esnobismo de certos críticos em relação a Chopin está à altura do entusiasmo popular: ambos incapazes de entender, mas amando sua obra altamente esotérica. Depois do período de suas relações amorosas com a escritora George Sand, tida como lésbica, logo vem também a tuberculose que o mataria.

À procura de sol e de ar puro, foram para Palma, na ilha de Maiorca. O romance não sobreviveu à doença e o rompimento com a amiga deixou-o deprimido. Mas deprimido ainda quando foi forçado a fugir da Revolução de 1848. Foi para Londres, onde sua saúde só fez piorar.

Voltou a Paris para morrer solitário. Foi sepultado no cemitério Père Lachaise, onde seu túmulo é um dos mais visitados. Só o seu coração, anos mais tarde, foi sepultado na catedral de Varsóvia.

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Johann Sebastian Bach

Johann Sebastian Bach (1685 - 1750) não foi, em vida, o centro do mundo musical nem na Alemanha do Norte. Esta posição foi de Telemann. Bach era famoso como o maior organista do seu tempo, virtuose do cravo e no violino, e por sua notável pontualidade no cumprimento de suas obrigações de Kantor, escrevendo a tempo e a hora grande quantidade de música sacra que o culto luterano requeria. Também foi reconhecido por suas brigas constantes com as autoridades administrativas quanto aos recursos para executá-las. (A informação é de Otto Maria Carpeaux.)

A Alemanha protestante não conheceu a verdadeira Renascença, interrompida pela Reforma e pela Guerra dos Trinta Anos. O barroco protestante é uma tentativa de recuperar o terreno perdido e é caracterizado pela síntese da religiosidade luterana com a influência mediterrânea, latina.

O maior entre os precursores de Bach surgiu na Dinamarca, então um país de civilização predominantemente alemã: Diderik Buxtehude, organista da igreja

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St. Marien, em Luebeck. Suas cantatas Also hás Gott geliebt (Assim Amor Deus) e Gottes Stadt (A Cidade de Deus) são exemplos de uma arte evangélica que lembra as gravuras de Rembrandt pelo sombrio.

Desde 1673 ele regia os famosos concertos das noites de domingo (Abendmusiken) na sua igreja e não houve músico alemão que não viajasse para ouvi-lo, inclusive Bach.

Homem de Deus, testemunha do Verbo, Martinho Lutero reformou a Igreja com severidade, o que não o impediu de ter como lema "vinho, mulher e música". Bach foi seu filho espiritual, sincronizando perfeitamente os dois mundos, o de Deus e o dos homens. Bebia bem, teve mulher, muitos filhos e louvou a Deus segundo as regras do contraponto e da polifonia.

A historiografia liberal do século XIX considerava Lutero como o primeiro homem moderno, pelo rompimento com as cadeias da Igreja medieval. Mas a historiografia moderna mostra em Lutero os elementos medievais, góticos, que sobreviveram na Igreja luterana.

São esses, segundo Carpeaux, os elementos que determinam o primeiro e mais arcaico aspecto da obra de Bach:o gótico, pelo qual ele se liga à polifonia dos mestres flamengos do século XV (embora sem conhecê-los). Bach, dono de órgão e orquestra, não deve ter sentido grande atração para a música vocal sem acompanhamento (e é bom lembrar que o coro a capela não tinha lugar no culto luterano) tanto que escreveu apenas cinco motetes a capela. Mas não se pode negar que principalmente Jesus meine Freude (Jesus Minhas Alegria, de 1723) seja a mais profunda expressão do misticismo gótico.

O recurso habitual da polifonia bachiana é o órgão. E Bach foi tão soberano nesse instrumento que suas obras são mais do que suficientes para formar um repertório completo, sendo dele a obra mais tocada em todos os tempos e em todo o mundo: Tocata e Fuga em ré menor (1709).

Na obra para órgão de Bach está realizadas a suprema ambição da época barroca, a conquista do espaço pela música. O espaço da fé gótica.

Pó obrigação de serviço, Bach escreveu durante anos, uma cantata por semana. Sabe-se de 295, das quais grande parte se perdeu por conta da devassidão de seu filho mais velho (e herdeiro dos seus papéis) Wilhelm Friedemann. Só subsistem 198. Quem ouve uma reconhece qualquer cantata como sendo de Bach, embora nenhuma se pareça com a outra.

A cantata de Bach sempre se baseia em determinado coral luterano (que fornece a base do libreto) e, quase sempre, os temas musicais a que se refere o Evangelho no domingo, no dia de festa ou na cerimônia (casamento, funeral) para o qual a cantata é destinada.

Com a cantata Bach consegue satisfazer os ortodoxos que exigem obediência cega à letra da Bíblia, e os pietistas que cultivavam um devoção entre o místico e o sentimental. A razão de Bach é ortodoxa, mas seu sentimento é piedoso.

Há cantatas para tudo e para todos os gostos: trágicas ("sombrias como as igrejas medievais iluminadas através de vitrais", escreveu Carpeaux), lamentosas, alegres, pomposas, bucólicas, angustiadas, místicas, confissionais,

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luminosas, até o maior de todos os seus hinos, o Magnificat (1723), possível porque a igreja luterana do século XVII ainda não havia banido de todo a adoração a Maria.

Membro da Sociedade das Ciências, em Leipzig, Bach deve ter conhecido e apreciado a filosofia de Leibniz e deve até ter aprovado as fracassadas tentativas do filósofo de promover a reunião das Igrejas separadas.

É preciso não esquecer que, para obter o título de Hofkapellmeister (Maestro da Corte Real), o maior músico do protestantismo escreveu uma missa católica, dedicada ao rei da Saxônia, convertido ao catolicismo para ser rei da Polônia. A Missa em si menor (também chamada Missa Solene) é uma obra de inspiração protestante, luterana. Parece manifestar a esperança de reunião da Cristandade e é a maior obra de Bach, "talvez a maior de toda a música ocidental", segundo Carpeaux, que chamou-a "uma catedral invisível, a mais alta que jamais foi construída".

Segundo Mário de Andrade, "a polifonia não tem senão essa razão de ser: produzir a obra de Bach". E, para ele, Bach é um anacrônico: "Toda a obra dele se coloca no século XVIII, fase do Classicismo musical". Mas de clássico, Bach tem coisa alguma, porque ele é. Intimamente, popularesco. "Porém, se não foi um clássico no sentido histórico nem estético da palavra, tendo fundido como ninguém a musicalidade genial com uma ciência técnica incomensurável, Bach se tornou o Clássico por excelência. O homem que a gente estuda nas classes..."

Para Mário, Bach "é a síntese de seis séculos musicais". Mas, por ser anacrônico, seu valor musical passou despercebido dos seus contemporâneos, que apreciaram o instrumentista mas consideravam suas composições maçantes. Foi preciso que Mendelssohn executasse, pessoalmente (em 1829), na mesma igreja de Leipzig onde Bach era Kantor, a Paixão Segundo São Mateus, para o compositor ser reconhecido e crescer sempre como o maior polifonista de todos os tempos.

Com Bach e a nova afinação do cravo, agora "bem temperado", deu-se um verdadeiro golpe de Estado na música, estabelecendo o império da lei de separação rigorosa de toma maior e tom menor, a pureza de cada uma das tonalidades e a possibilidade de usar na composição todas as 24 tonalidades possíveis.

O próprio Bach esgotou todas as possibilidades nos 24 prelúdios e fugas do primeiro volume do Cravo Bem Temperado e, depois, nos 24 prelúdios e fugas do segundo volume. É a maior obra pianística de todos os tempos, que Hans Von Buelow chamou de Velho Testamento do Piano (sendo o Novo Testamento as sonatas de Beethoven). Para Carpeaux "é o manual da técnica do instrumento, seu breviário didático, e é obra fundamental da harmonia moderna".

Os Concertos de Brandenburgo revelam claramente mais um aspecto característico do gênio de Bach: a tendência de esgotar todas as possibilidades de um gênero, todas as soluções possíveis de um problema musical, produzindo as realizações mais monumentais, definitivas e, ao mesmo tempo, manuais práticos para o ensino do gênero ou problema.

A última obra de Bach é a Kunst der Fuge (Arte da Fuga, 1748 - 1750). Um verdadeiro monumento da sua arte polifônica, quando um único tema é explorado para fornecer todas as formas possíveis do gênero. O grande

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Ricercare é a maior fuga de toda a história da música e todas elas formam um esquema arquitetônico, uma construção onde ficou faltando a torre, a harmonização do coral Vor deinem Thron treet'ich hiermit (Apareço Perante Teu Trono), interrompida porque Bach foi chamado a compareceu perante o trono de Deus.

Descendente de uma família cujos membros todos eram conhecidos como músicos desde o século XV, Bach teve educação religiosa severa, formação erudita, foi violinista na corte de Weimar, organista na igreja de Arnstadt, não se tornou sucessor de Buxtehude porque não quis casar com sua filha (como era costume na época). Suas "inovações audaciosas" nos prelúdios de órgão fizeram-no perder o emprego em Arnstadt. Organista da igreja de Muehlhausen (na Turígia) também ficou desempregado porque deu razão aos pietistas contra os ortodoxos. Maestro na corte de Koethen (onde o calvinismo do príncipe não aturava música litúrgica) dedicou-se inteiramente à música instrumental.

Seu casamento com uma prima, Bárbara, é motivo de escândalo. Quando ela morre, casa com Ana Magdalena. Tem muito prestígio social como Kantor da igreja de São Tomás, em Leipzig, mas não é reconhecido pelos músicos do seu tempo que não compreendem a "antiquada música polifônica". Seus próprios filhos, todos músicos, abandonam a memória do pai.

Místico extático mas homem dos prazeres substanciais da vida, homem de Deus e burguês de vida confortável, profeta e pai de 15 filhos, poeta abstrato e homem irascível e permanentemente envolvido em brigas e contendas judiciais, autor da maior obra musical de todas as obras mas pouco preocupado em preservá-la (os originais dos Concertos de Brandenburgo foram escritos em papel de embrulho de uma loja comercial), Bach não se considerava um gênio musical e sim um artesão.

Bach nunca escreveu para exprimir-se e trabalhava sob encomenda da igreja, da corte ou para o ensino. Depois da morte foi rapidamente esquecido, até ser ressuscitado por Mendelssohn, quase 100 anos depois.

Ele julgava-se destinado a reformar fundamentalmente a música sacra da Igreja luterana. Não conseguiu realizar o seu objetivo. Rejeitado pelos contemporâneos, esquecido até pelos filhos, sobreviveu, ressuscitou, veio ocupar o primeiro lugar nas história da música.

Como escreve Carpeaux, consumou-se a profecia bíblica (Mateus, XXI, 42): "A pedra que os obreiros rejeitaram, tornou-se pedra fundamerntal".

Haydn

Joseph Haydn (1732-1809) é, dos grandes compositores, aquele que mais explorou a música folclórica e onde o folclore teve mesmo um papel decisivo. Mas seu legado mais importante foi ter lançado o fundamento permanente daquilo que hoje nós chamamos de "música clássica".

Haydn veio do povo. Era filho de um artesão numa aldeia da chamada Áustria Baixa, perto de Viena e da fronteira húngara. De vez em quando a tese da sua origem eslava (inventada por um autor inglês), ainda aparece e foi muito divulgada por autores germanófobos. Hoje, está abandonada.

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O certo é que ele é austríaco e foi menino de coro na catedral de Santo Estevão, em Viena, onde recebeu sua formação musical. Pobre, vivia de tocar em tavernas e em serenatas encomendadas. Livrou-o da miséria um casamento, por amor, com a filha de um pequeno-burguês vienense.

Mas a incompatibilidade de gênios condenou o casamento a um fracasso doloroso para Haydn. Viveu separado da mulher mas seu casamento foi, para ele, um martírio vitalício.

Contratado pelo riquíssimo príncipe húngaro Esterházy como músico, foi viver em seu castelo, em Eisenstadt, perto de Viena. Não passava de um empregado mas era tratado com muita consideração e respeito. Tinha à sua disposição uma orquestra excelente, que dirigia e que lhe serviu para experimentar suas obras.

Haydn tornou-se conhecido em Viena, depois em toda a ÁUSTRIA E NA Alemanha, na Hungria, em toda a Europa. Em 1785 os cônegos da catedral de Cadiz, na Espanha, escrevem a ele encomendando uma obra. Em 1786 escreve, sob encomenda, uma sinfonia para os concertos públicos promovidos pela Loja Maçônica Olympique, de Paris.

Com a morte do príncipe Esterházy e da mulher, fica livre para viajar a Londres em 1791, a convite do violinista e empresário Salomon. Ganha muito dinheiro com os seus concertos e um título de doutor honoris causa da Universidade de Oxford.

Uma segunda viagem, em 93, repete o sucesso musical e financeiro.

Em 1797 é contratado para escrever o hino do Império Austríaco e foi reconhecido como "compositor oficial da Áustria".

No mesmo ano apresenta o oratório A Criação e faz enorme sucesso.

Logo depois retira-se, vai viver em sua casa, em solidão, não se sabe o motivo.

Quando morre, em 1809, em Viena ocupada pelas tropas francesas, por ordem expressa de Napoleão doze oficias franceses fizeram sua guarda de honra no funeral.

No século XIX Haydn foi injustiçado e houve até quem escrevesse que ele era "o pé menor do classicismo vienense". A historiografia falsifica a perspectiva histórica e a realidade, dando ao leitor a impressão de que Haydn foi inferior a Mozart que, poir sua vez, teria sido superado por Beethoven.

Hoje reconhecemos que Haydn não foi menor, nem imperfeito. O problema é que a fama de Mozart e a idolatria que o cercou fizeram com que Haydn fosse relegado e que Schumann fosse tratado com benevolência. Os românticos fizeram de Mozart um deus e só o trabalho de Toscanini, Bruno Walter e Beecham reabilitaram Haydn e o recolocaram entre os gênios, com Bach, Mozart e Beethoven.

Suas poucas letras foram assunto para diminui-lo, como se a inteligência musical não fosse um fenômeno à parte, inteligência suficiente para realizar uma revolução mais profunda que a da ars nova e mais construtiva que a de

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Monteverde, como observou Otto Maria Carpeaux, afirmando que ele "enterrou a música barroca e iniciou a moderna".

Haydn foi o mais original de todos os compositores no que diz respeito à invenção melódica. E sua criatividade levou-o a escrever a Sinfonia do Adeus e, para significar a vontade que os músicos tinham de deixar Sisenstradt para irem a Viena, fez com que os músicos, um a um, fossem saindo, até que o regente, sem orquestra, sai também.

Sobre Haydn, escreveu Mário de Andrade: "estamos agora na mais pura elevação de arte clássica instrumental. Sem dúvida que Haydn também, principalmente nos oratórios, nos consegue comover sentimentalmente, mas isso não nasce de que a música dele se baseie em valores intencionalmente psicológicos, senão porque a beleza musical comove mesmo e assume, pelo seu dinamismo essencial, as diversas ordens gerais da comoção: alegria, tristeza, calma, graça, paz. Haydn não tem nada de profundo, como também, nas obras mais representativas, não tem nada de superficial. É uma das expressões mais étnicas da música germânica. Se coloca, sob esse ponto de vista, ao lado de Bach, de Schubert e de Wagner."

Para Mário, a vida de Haydn foi "a de um bocó". Mas, na música sua ingenuidade não resultou em qualquer manifestação ridícula ou pueril e contribuiu para a sua invenção melódica, pelos temas curtos, pela riqueza rítmica rara na música européia, pela vivacidade graciosa, engraçada, livre, espontânea. E o que mais assombra a Mário é que essas qualidades, duma franqueza incomparável, estivem "engaioladas dentro da forma inflexível da sonata". E observa: "Inflexível, não tem dúvida, sempre a mesma, não permitindo escapatórias, porém a que Haydn deu uma articulação maravilhosa que só Mozart superou".

Por ter origem no folclore, Haydn é o mais típico, o mais inconfundível dos austríacos. Ele aproveitou o folclore musical dos germânicos, dos eslavos, dos húngaros, dos italianos porque nas ruas e Viena, em sua época, cantava-se em alemão, em tcheco, em húngaro, em italiano e até em croata e romeno e ele começou sua carreira como músico de rua e tocando violino em serenatas pagas (como era do costume).

Foi sua auto-suficiência nas cordas que enterrou o baixo-contínuo e a música barroca inteira, porque não se pode levar um cravo ou piano para tocar na rua habitualmente. Nas bandas populares não há solista virtuose, o que vale é o conjunto instrumental. Assim se fez a música de Haydn que, infelizmente, provocou o esquecimento de Bach.

Para garantir a construção e a coesão do quarteto e da sinfonia, sem o apoio harmônico do baixo-contínuo, Haydn elaborou uma nova polifonia instrumental, o que torna cantáveis seus temas instrumentais. Inventoir de melodias, o hino que fez para o Império Austríaco (e que os alemães usurparam e usam até hoje) é um coral de grande e emocionante simplicidade, destinado a ser cantado pelo povo. (E que seriviu como tema das extraordinárias variações do Quarteto opus 76, nº 3, um dos pontos altos da música instrumental.)

Haydn desenvolveu, simultaneamente o quarteto e a sinfonia e é bobagem afirmar que ele criou primeiro o quarteto, ampliando-o para a sinfonia, como é bobagem dizer que criou a sinfonia e depois espiritualizou-a no quarteto.

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A maturidade plena de Haydn está revelada nos Quartetos opus 33 (de 17810), denominados Quartetos Russos e nos alegres Quartetos opus 64 (1790), especialmente o chamado Cotovia.

Para Carpeaux, "os quartetos de Haydn constituem um mundo da mésica, completo e autônomo, assim como as cantatas de Bach".

Haydn exprime tudo, menos a tragédia. (Segundo Nietzche por "moralismo tímido".) E, ao contrário do que afirmaram alguns biógrafos e musicólogos mal informados, não foi uma personalidade simples. Era um requintado, um sofisticado, um aristocrata que nunca esqueceu suas origens camponesas e populares ou o folclore da sua terra. Católico fiel à sua Igreja, é ético, mas também é um racionalista, como maçom que era. Galante, burguês (principalmente em matéria de dinheiro) sentimental como um romântico, suas tensões e ambigüidades resdultaram na sonata-forma, a música especificamente dramática.

Mestre de Mozart, dedicou a ele muita atenção e apreço e, na segunda fase da sua vida, deixou-se influenciar por ele. Sua música toma formas musicais mais amplas, a construção é mais complexa. Em melodias de Mozart é possível identificar Haydn mas a diferença fundamental é que o estilo de Haydn é pessoal, o de Mozart é o estilo da época, da moda.

O que impressiona é que Haydn nunca deixou de progredir, mesmo depois de velho. Suas missa são alegres, pouco litúrgicas, mas agradam ao povo. São sinfonias cantadas, tendo o texto litúrgico como letra. Filho de um século profano, no fim da vida escreve oratórios (é verdade que com inspiração meio profana). Atinge o apogeu com Die Schoepfung (A Criação, de 1798), sua maioor obra, monumento de devoção realista, otimista e alegre.

Haydn é o precursor e, em boa parte, o antecipador de Beethoven. A repercussão da sua obra foi fulminante e vasta: todos os músicos de seu tempo foram haydnianos.

Gluck

A renovação da música instrumental, com Haydn, não atingiu a ópera, petrificada como gênero desde os tempos de Scarlatti. Até mesmo os libretos não mudavam e eram reaproveitados até mais de dez vezes. Os donos da ópera são os cantores, sobretudo os castrados, alguns deles mais famosos do que os compositores. E eles só querem saber das suas árias, a tal ponto que a ópera praticamente deixa de fazer parte da história da grande música para ser parte da história dos costumes, como observa Otto Maria Carpeaux.

Essa música que encantou as cortes de Nápoles e Parma, Viena, Dresden e Munique, Madri, Estocolmo, São Petersburgo, está morta e sepultada. Restam, como fantasmas, algumas árias antiche.

É quando entra em cena Christoph Willibald Gluck (nascido em 1714, Filho de alemães humildes, foi estudar no colégio dos jesuítas, que era gratuito. Suas boas notas o levaram à Universidade de Praga onde, formado, foi convidado para ser professor.

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Preferiu ser músico, seguindo sua vocação.

Como músico era ruim, "de ínfima categoria", segundo mais de um biógrafo. Para sobreviver tocava violino nas aldeias, acompanhando as danças dos camponeses e sendo pago, na maioria das vezes, com comida e bebida.

Voltou a Praga e tentou sobreviver tocando violino mas não conseguiu. Foi para Viena, o grande centro musical, onde não faltava emprego aos músicos, nas casas dos aristocratas.

Foi um deles que mandou Gluck para a Itália, aperfeiçoar sua deficiente formação musical. Lá, encantou-se pela ópera e começou a compor, à maneira de Johann Adolf Hasse que, embora alemão, era o mais famoso operista italiano, chamado Il Caro..

Teve algum sucesso e chegou a receber um condecoração papal, no grau de cavalheiro, o que lhe deu o direito de ser chamado Ritter Gluck.

Foi para Londres, contratado por um empresário da Ópera mas não se deu bem, a não ser pelo contacto que teve com Handel e Rameau e que despertou'-lhe ambições mais sérias e o desejo de estudar mais.

As numerosas obras dessa primeira fase foram justamente esquecidas.

Gluck aproveitou bem a reforma da música instrumental em suas obras maduras e graças a ela, de volta a Viena, é nomeado maestro na corte da imperatriz Maria Teresa.

Em contato com o conde Durazzo, diretor dos teatros imperiais e com o aventureiro libretista Raniero Calzabigi, imaginam uma reforma da ópera como gênero. A começar pelo assunto: saem as intrigas amorosas complicadas e entram os enredos mitológicos e simples, mas de muito maior efeito dramático, trágico. Fica eliminada a vazia pompa barroca, os arabescos do bel canto exibicionista, a música é enriquecida e a ópera deixa de viver de árias mal costuradas..

Segundo Gluck, é impossível reaproveitar um bom libreto, de literatura séria, porque a ele só corresponde plenamente uma determinada música, exatamente aquela que interpreta o libreto e exprime o seu sentimento emocional.

Quando é criticado porque sua ópera "submete-se às palavras" ele diz que o homem aprendeu a falar para expressar pensamentos e a fazer música para transformar as palavras em melodia e espetáculo.

Sua primeira "ópera reformada" é Orfeo ed Eurídice (1762) e embora o papel de Orfeo ainda tenha sido escrito para um cantor castrado, ao levantar-se o pano os solenes funerais de Eurídice já são um espetáculo, uma cena trágico-misteriopsa.

Mas a nova ópera aparece por inteiro é em Alceste (1767), um dramma per musica.

O ambiente de Viena, completamente italianizado, não era propício à reforma da ópera. Depois do insucesso de Paride ed Elena (1770), Gluck vai para Paris,

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onde o teatro também estava sendo renovado. O sucesso de Iphigénie em Aulide (1774) é uma "vitória completa"., embora ela raramente apreça no repertório atual. De todas as suas óperas, é a mais dramática, e a que ]melhor leva a nobreza e a serenidade da tragédia de Racine ao palco musical. A propósito, á a primeira ópera em que o amor não tem papel de destaque no enredo.

Restou dela a Abertura que, graças aos concertos sinfônicos, é a obra mais conhecida e mais tocada de Gluck.

Aí começa a luta entre os gluckistas e os piccinnistes, entre os que admiravam Gluck e os que preferiam o italiano Piccinni, que termina com o reconhecimento do próprio rival do compositor alemão.

Em 1780 Gluck volta a Viena, onde passou seus últimos anos, venerado como um patriarca da música e o renovador da ópera, pela expressividade da sua música que atraiu Heinse, Hoffmann, Voltaire.

Gluck era um cético, um pensador que não admitia o sentimentalismo e queria representar a verdade da vida por meio de símbolos mitológicos. Nisso, antecipou Wagner.

"Gluck purificou a ópera, conferindo ao gênero a dignidade do teastro clássico francês, de Racine sobretudo, e, um pouco, das tragédias de Voltaire", escreve Carpeaux, acrescentando: "Sem sabê-lo, voltou à simplicidade clássica dos florentinos que, no final do século XVI, inventaram o gênero."

Até hoje discute-se a riqueza da musicalidade de Gluck.. Handel, por exemplo, dizia que "Gluck entende menos de contraponto do que a minha cozinheira". Mas a verdade é que Gluck substituiu a falha pela altíssima inspiração, com a nobreza da invenção melódica e os notáveis achados da orquestração. Ele só queria fazer música huimana, dramática, e fez. Suas obras são, segundo Carpeaux, "as experiências mais profundas que o teatro musical team a oferecer".

No dizer de Mário de Andrade, "o que tem de essencial no gênio de Gluck é a força profunda, impressionante, incomparavelmente sugestionadora de dramaticidade. Jamais a música atingiu grau mais poderoso de realismo dramático que em algumas passagens de Gluck".

Só de livrar a ópera dos sopranistas Gluck tem um lugar de honra na história da grande música, embora hoje ele seja mais ouvido por suas composições para o copofon, um instrumento musical permanentemente afinado co um teclado e copos que são tocados com a ponta do dedo molhado. Seus Concertos com Vasos d'Água Afinados são executados nos circos de todo o mundo até hoje e levaram Maria Antonieta a estudar com ele em Viena. Com a morte de Luís XV, a Rainha da França deu a Gluck uma das mais belas e suntuosas residências de Viena, onde ele morreu em 1787.

Weber

A música foi uma arte cosmopolita até o fim do século XVIII, para a qual contribuíram principalmente três países: Itália, Alemanha e França. O

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Romantismo quebrou esse bom entendimento entre as nações e deu início às dissensões.O convívio e a competição pacífica foram substituídos por uma rivalidade apaixonada e "as vezes venenosa", como observou Otto Maria Carpeaux.

Os alemães, que já haviam conquistado a hegemonia na música instrumental, não aceitavam mais o predomínio italiano no teatro de ópera. Passaram a rejeitar até os libretos em italiano e os temas sugeridos por autores italianos (que ainda empolgaram Mozart).

Os alemães voltaram-se para o seu folclore, para as suas lendas, para as superstições populares, para a Idade Média alemã. Este é o mundo teatral de Carl Maria Von Weber (1786 - 1826), o maior nome da ópera romântica alemã.

Filho de um aristocrata decaído, jogador profissional e empresário teatral, Weber teve uma vida dissoluta na mocidade e foi um aventureiro que, no entanto, recebeu uma sólida educação musical. As guerras contra Napoleão fizeram dele um nacionalista que, como diretor da Ópera de Dresden, expulsou os franceses e os italianos.

Durante algum tempo gozou a glória internacional. Como bom romântico morreu cedo, de tuberculose.

Um pré-romântico sentimental, escreveu lieds antes mesmo da criação do gênero, por Schubert. Nenhum sobreviveu. Foi o sentimento nacionalista e patriótico, que o levou a manifestar-se fervorosamente como antinapoleônico, e a superar a fase pré-romântica, escrevendo coros bélicos.

É esta a inspiração e a motivação para a Aufforderung zum Tanz (Convite à Dança, de 1819), uma valsa que se tornou moda e que passava por ser uma dança tipicamente germânica. "A melodia é tão habilmente inventada que parece canção popular; e voltou a ser canção popular", observa Carpeaux.

O Konzertstueck em fá menor (1821), é uma brilhante peça para piano e orquestra que ainda figura no repertório dos pianistas e é uma declaração nacionalista.

Weber foi um compositor muito versátil. Por exemplo: escreveu uma Missa em mi bemol maior; escreveu as Sonatas para piano em ré menor; escreveu o Quinteto para clarinete e cordas em si bemol maior; escreveu o Concerto para clarinete e orquestra em si bemol maior op.71 e todos eles sobrevivem.

Tal como Mendelssohn, Weber insuflou o espírito romântico nas formas do classicismo vienense.

No teatro, no entanto, não teve sorte ou sucesso durante muito tempo: a forma da ópera, com seus recitativos, árias e coros, resistia às tentativas de usá-la para propagar o romantismo.

Em 1821, um sucesso parcial, a ópera Freischuetz, do tipo italiano, mas cujo enredo e melodias são inconfundivelmente alemães, com a exploração da natureza da misteriosa floresta noturna e da vida alegre e perigosa dos caçadores, recheado com superstições populares e o sentimentalismo da hauss, do lar alemão

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Foi um sucesso tão fulminante que a abertura da ópera passou a ser tocada nos realejos e o coro final era cantado nas ruas. Até hoje essa ópera é representada na Alemanha, mas o sucesso atingiu Londres, São Petersburgo, Paris e Nova York.

Em Furyanthe, de 1823, ele foi procurar o romântico mundo medieval e tentou abolir a separação tradicional das árias, coros (dos "números") escrevendo cenas musicalmente ininterruptas. A sobrevivência dessa obra foi prejudicada pelo libreto confuso, mas é uma antecipação de Lohengrin e do drama musical wagneriano.

Oberon, de 1826 foi um novo passo em terreno inédito, com sons nunca ouvidos antes, ecos de um Oriente fantástico e do país das fadas. Foi seu último trabalho antes de ser vencido pelo pulmão doente.

Antes dele a ópera alemã limitava-se á Flauta Mágica, cuja popularidade foi limitada pelo esoterismo maçônico e pelo colorido regional da música, vienense. Weber criou a ópera alemã, escolhendo enredos tipicamente germânicos e que o povo podia entender imediatamente. Ele descobriu e trouxe para o palco a Idade Média cavalheiresca, o exotismo do Oriente, fadas, duendes, lendas, florestas fantásticas e demoníacas, os resíduos da mitologia germânica, despertando sentimentos atávicos na alma de seu povo.

Weber deu um colorido novo à orquestra, valorizando sobretudo as trompas. Suas aberturas são suas criações mais originais e todas sobrevivem, até porque, pela primeira vez, elas são parte importante das obras que prefaciam, são anúncios dos temas principais das próprias óperas, preparam o público e marcam sua lembrança depois. Até as bandas de música adotaram suas aberturas.

Depois de um breve eclipse por conta de seu sucessor, Wagner, Weber teve o reconhecimento e a glória. Stravinsky disse que ele era "um autêntico príncipe da música".

Segundo Mário de Andrade, Weber "fixa o espírito racial da ópera alemã" e "traz de mais pessoal para a música alemã uma palpitação de vida vibrada, uma inquietude nova, irrequieta, às vezes mesmo saltitante, com o que ele genializa o que em Meyerbeer ficou abatido na banalidade e na brilhação falsa".

Diz Mário que é em Weber que Wagner vai encontrar uma tradição nacional segura.por onde dirigir as suas forças de poeta e músico. Assim como afirma que Weber (como Schubert) concebeu o piano como instrumento capaz de caracterizar estados psicológicos e mesmo, às vezes, objetivos.

Uma observação interessante de Mário de Andrade responde à pergunta dos que lêem a história da música e se perguntam porque a maioria das óperas, mesmo as mais elogiadas pela crítica, são inexeqüíveis no teatro hoje em dia. Segundo ele é porque "o teatro é o gênero mais transitório da música. Ao mesmo tempo em que restringe a liberdade musical do criador, está muito sujeito às normas sociais do tempo e estas passam no interesse. Outra precariedade vasta dele é o tamanho das obras." Essas precariedades, diz ele, "torna apenas de interesse histórico uma execução de centena de óperas celebradas".

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Liszt

Seu nome era Ferenc Liszt e ele nasceu na Hungria.. Seus antepassados eram alemães e ele nunca chegou a falar bem o húngaro, pois foi educado na Áustria. Nascido em 1811, menino prodígio, aos 11 anos era um sucesso ao piano, um virtuose. E começou a viajar, já apresentado com o seu "nome alemão": Franz.

Em Paris ele conheceu Paganini e Mário de Andrade dizia deles que eram "o exaspero da virtuosidade". Romântico, Liszt não imagina a música desligada da palavra e ele cuida de expressar os fatos, as impressões de viagem e as leituras com a sua música e a sua técnica píanística que, para Mário "chegava ao suprassumo do malabarismo"..

Autor de música programática, Liszt deu ao poema sinfônico a solução mais lógica, fazendo peças em um único movimento. Ele sistematizou o que Mário chamou de "esse gênero espúrio", elevando-o "à mais grandiosa e mesquinha finalidade". No entanto, Mário de Andrade reconhece que Liszt era um instrumentador formidável e que o poema sinfônico engrandeceu os limites da orquestra beethoveniana e abriu as portas às pesquisas de ambientes sinfônicos novos. Assim como reconhece nele "um grande experimentador, um grande criador, o explorador da quinta aumentada e da sétima diminuída".

Acusado de criar um caos harmônico, na verdade ele e outros compositores românticos criaram uma definição nova de harmonia. Para Mário, eles colocaram o acorde em tal evidência "que ficou individualizado, psicológica e fisicamente". Isto é, deixou de ter ligações com os vizinhos,, de tomar parte numa concatenação, destruiu o conceito clássico de harmonia.

A segunda onda

Para os historiadores da música, Schumann teve mais influência no exterior do que na Alemanha e, segundo Otto Maria Carpeaux, foi quem abriu aos alunos estrangeiros de música que estudavam nos conservatórios alemães a idéia do nacionalismo: de transformar os folclores nacionais em música clássica.

Esta segunda onda nacionalista ´é agressiva e tenta evitar a avassaladora influência alemã sobre os valores próprios da música popular de cada país. Nesse terreno o elogio não deve ir só para Schumann mas também para Liszt (que foi da primeira onda, por influência de Weber).

Liszt é um cosmopolita ocidental de origens exóticas, que oferece a contribuição das recordações de sua infância e juventude sem querer impô-las. Mas, na verdade, Liszt pertence menos à Hungria que Chopin à Polônia. Quando foi recebido em Budapeste com honras régias, em 1840, respondeu aos discursos em húngaro falando... em francês. E, no final do discurso, acrescentou uma peroração... em alemão..

Reconheça-se que seu temperamento era húngaro. E que sua memória era tão notável que sabia de cor todo o Cravo Bem Temperado, de Bach, que ouvira na infância. Foi essa memória que valeu lembrar as músicas do folclore húngaro que ouvia na infância.

O valor do seu livro sobre a música dos ciganos que viviam na Hungria e das famosas 19 Rapsódias Húngaras (1846) escritas para piano e depois

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orquestradas por ele mesmo para execução em concerto, são inegavelmente um eco da música folclórica e popular da Hungria. A grande verve rítmica e desconcertante trivialidade melódica são de fácil entendimento para o público e não é sem razão que a Rapsódia nº 2 em dó sustenido menor tenha-se tornado imensamente popular, uma das músicas mais conhecidas do mundo.

É curioso que Liszt tenha querido levar ao público uma espécie de explicação sobre as particularidades modais e rítmicas da sua música húngara, escrevendo um livro sobre a música dos ciganos de sua terra. Ele é mesmo o responsável pela confusão entre música húngara e música cigana, (Segundo Carpeaux, a música húngara autêntica só será descoberta em nosso tempo, por Bartók e Kodályi.)

Liszt só é nacionalista numa parte pequena da sua obra. No mais é homem dos círculos aristocráticos e das elites européias dos anos 50 do século 19. Mas é claro que houve em Liszt algo de cigano.

O compositor

Para os historiadores e críticos musicais Liszt foi o maior pianista de todos os tempos e isto foi reconhecido em seu tempo. Improvisador de habilidade vertiginosa, com uma sólida cultura musical e gosto requintado, desde cedo foi um ídolo do público e, ao mesmo tempo, o encanto das elites.

Mas Liszt não queria a glória do pianista e sim a do compositor. Depois de ter reunido as qualidades de Paganini e de Chopin e de superá-los ao piano, queria a glória de Berlioz como compositor orquestral;

Poeta, religioso, filósofo, seus estímulos de compositor foram literários, religiosos e filosóficos e por isso mesmo preferiu a música de programa.

Suas obras sinfônicas não foram bem recebidas pelo público, rejeitada pelos adeptos de Schumann e pelo próprio Brahms. Mas os admiradores do mestre eram em maior número e o sucesso do pianista repetiu-se com o compositor.

No entanto, quase todas estão esquecidas e as tentativas de ressuscitá-las não foram bem sucedidas. Seus poemas sinfônicos não são mais executados e o que se pode ouvir ainda é Ce qu'on entend sur la montagne (1849), ilustrando um texto poético de Victor Hugo; Les Preludes (1854), inspirado em um poema de Lamartine (seu melhor poema sinfônico); Mazeppa (1854), muito admirada à época mas meramente ilustrativa; e Die Hunnenschlacht (A Batalha nos Campos Catalanos, de 1856), inspirado num quadro de Kaulbach, música de efeito espetacular e só isso;

As duas sinfonias em que Liszt empregou (como Berlioz) o princípio de temas que voltam, transformados, em todos os movimentos, são duas obras-primas. A Sinfonia Faust (1855), em três movimentos dedicados a Fausto, Mefistófeles e Margarida, é a sua maior obra orquestral. E a Sinfonia Dante (1856) tem um último movimento genial, o excelente Magnificat.

Todas as suas obras são repletas de interessantes idéias musicais, mas parecem "irremediavelmente antiquadas", no dizer de Carpeaux. Diz ele que são de "gosto suntuoso" e "pseudo-histórico" da "época dos móveis de estilo" e "da imitada arquitetura gótica"..

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Esse estilo falso prejudica também a música sacra de Liszt. "Não se pode duvidar da sinceridade do catolicismo de Liszt, pecador que expiou profundamente o seu passado", escreveu Carpeaux. Mas mesmo as suas obras principais, a Missa Solemnis de Gran (1855) e a Missa de Coroação Húngara (1867) têm grande brilho orquestral mas são pouco litúrgicas.

Sua teatralidade prejudica também o oratório A Santa Elizabete (1862), assim como a simplicidade arcaica do Christus (1866, com texto em latim) não convence.

Liszt, pelo menos aparentemente, não dava importância aos críticos de suas obras orquestradas e corais. Continuou seu caminho, com coerência ferrenha, certo de que sua música seria reconhecida no futuro. Não foi.

Mais feliz ele foi com os lieds, poesias românticas alemãs de Goethe, Heine, Lenau, elegantemente tratados à parisiense: ou os poemas franceses de Hugo e Musset, assim como com os três belos sonetos de Petrarca. Todos com acompanhamento pianístico significativo e tecnicamente difícil.

Os críticos costumam chamar de magistrais os arranjos de lieds de Schubert e Schumann para piano solo.

Liszt só se realizou plenamente como compositor na música para piano, mas mesmo assim é preciso considerar que muitas fantasias e variações sobre melodias de óperas, valsas e danças da moda, são trabalho de virtuose para brilhar como virtuose.e mesmo que sobrevivam no repertório, não têm maior valor.

Para Carpeaux o virtuosismo também domina nos dois Concertos para piano e orquestra, em mi bemol maior (1848) e em lá maior (1848), "mas nenhum grande pianista quer dispensá-los".

Como também eram exercícios de virtuosismo os Estudos Técnicos, que Busoni e Bartók admiravam.

A melhor música pianística de Liszt está nas duas coleções de peças poéticas: Années de pelégrinage (1839, recordações de viagem à Suíça e à Itália) e Harmonies poétiques et religieuses (1848). Seguidas pelas Légendes (1863). A obra-prima incontestada é a Sonata para piano em si menor (1853), uma fantasia rapsódica, com um tema único Além da sua qualidade musical, esta sonata tem outra importância histórica: vai inspirar o princípio cíclico de César Frank..

Uma curiosidade: ouvindo sua execução pelo próprio autor, Brahms adormeceu. Foi o início de uma inimizade que durou o resto da vida. Isto dividiu o público e com a vitória da música de Brahms a maior parte da obra de Liszt (o anti-Brahms) foi para o limbo. Um destino injusto para quem Carpeaux afirma ter sido "um grande artista e homem de rara nobreza da alma e do espírito".

A "Grande Ópera"

Paris, entre 1830 e 1870 é a capital da burguesia européia, onde enriquecer é a ordem-do-dia da Monarquia de Julho. A corte de Napoleão III tem um fausto

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imperial, mas é freqüentada por negocistas e novos-ricos. Uma classe que só vê na arte um motivo de ostentação e de divertimento.

Nesse ambiente, a "verdadeira música" é a ópera, a "obra de arte total" à qual todas as artes ficam subordinadas. Músicos, cantores, atores, bailarinas, cenaristas e iluminadores, além do diretor de cena, estão à serviço do autor, como queria Wagner (o maior inimigo do gênero parisiense.

Essa idéia de Wagner é especificamente romântica, típica do início do século. Mas o romantismo parisience da "grande ópera" é falsificado, não acredita em espectros nem na Idade Média, nem mesmo na História, usando tudo como simples decoração. Só prefere enredos históricos para trazer ao palco bacanais romanas, coroações de reis, tumultos populares. Como diz Otto Maria Carpeaux, "a substância musical fica reduzida a uma grande cena de amor (dueto), uma oração na hora do perigo, uma ária de brinde e muito barulho da orquestra. O efeito é controlado pelo homem da bilheteria".

A orquestra chega a ter 100 componentes, como informa Edson Frederico:: 32 violinos, 12 violas, 12 violoncelos, 4 contrabaixos, 8 flautas, 4oboés, 4 clarinetes, 4 fagotes, 8 trompas, 4 trombones, 6 trompetes, 2 pares de tímpanos

Quem lançou os fundamentos da "grande ópera" foi Spontini. Em 1828, Auber, com a Muette de Portice e em 29 Rossini, com Guillaume Tell, dão exemplos modestos do gênero que tem sua grande expressão em Meyerbeer.

Giacomo Meyerbeer (1791 - 1864) chamava-se Jacob Kiebmann Beer e era filho de um banqueiro israelita de Berlim. Ele acrescentou o Meyer em seu nome para homenagear a memória de um tio que fez dele o herdeiro de grande fortuna.

Depois de receber sólida educação musical na Itália, onde Rossini o entusiasmou, mudou de estilo e passou a assinar como Giacomo e teve grande sucesso com óperas italianas.

Em Paris, mais uma vez mudou seu modo de compor, colocou-se na moda do seu tempo e em 1831 fez sucesso com Robert le Diable. Em 36 conquistou a cidade com Les Huguenots e passou a ser considerado o maior compositor de ópera do seu tempo.

Ele recebeu homenagens extraordinárias, na França e na Alemanha. Mas lento no trabalho, só apresentou sua nova ópera Lê Prophète, em 1849, novamente com sucesso. O terceiro grande sucesso, L'Africaine, só foi representada em 1864, pouco depois da sua morte.

A crítica da época dizia que ele conseguira fazer a síntese da harmonia alemã, da melodia italiana e dos ritmos franceses, "com a elegância de um parisiense". Hoje, os críticos vêm uma confusão de estilos em busca de baratos efeitos teatrais. É legítimo que um dramaturgo e compositor persiga efeitos de sena, mas Meyerbeer sacrificou a arte musical (que ele, músico bem-formado e de talento conhecia bem) pelo efeito que provocava os aplausos do público e boas entradas na bilheteria.

Meyerbeer, na verdade, era uma coletivo, formado por ele, o músico e compositor, Scribe, seu versátil libretista, Véron, o grande diretor. Industrial e

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comerciante teatral (definido como "personagem de romance de Balzac" e Auguste, o notável e eficiente chefe da claque.

Dele não gostavam: Mendelssohn, Berlioz, Schumann, Wagner. Mendelssohn disse que o desconhecia como compositor; Berlioz o hostlizava em público chamando-o até de "compositor de música de realejo"; Schumann combateu-o afirmando que o que ele fazia era "ópera esperta e anti-musical", Wagner disse que viveria o suficiente para ver seu desprestígio e rápida decadência, e assim foi.

Ficou provado que até a lenda medieval em que se baseava Robert le Diable era inventada. Segundo Carpeaux "se ainda fosse possível apresentar hoje sua obra, que entusiasmava e sacudia profundamente nossos avós, ela provocaria gargalhadas". Depois de 1920 ninguém mais pensou em encenar Meyerbeer. Hoje ele é uma celebridade histórica que conseguiu grandes progressos na orquestração e na encenação, dos quais o próprio Wagner serviu-se generosamente.

A Nova Ópera Italiana

Rossini

O que faz os compositores do século XVIII parecerem mais numerosos e excepcionais que os polifonistas do quinhentos ou os monistas do século XIX romântico é, segundo Mário de Andrade, o equilíbrio do classicismo, o conceito estético da música com a realidade dos elementos sonoros e o efeito deles nos organismos humanos. Eles não são pessoas mais geniais do que as pessoas de outros séculos, a música é que se tornara mais perfeita e obrigava os compositores a uma perfeição maior.

No romantismo, "os preconceitos e a falsificação estética da música", diminuem o valor, tornam muito irregular a produção musical do século XIX, "a tal ponto que os compositores menores do Romantismo nos parecem, quando não insuportáveis, no geral destituídos de interesse", escreveu Mário de Andrade na sua Pequena História da Música.

Para ele, no entanto, o drama musical, o melodrama, já então chamado de ópera (abreviação do italiano opera in musica ou opera scenica atingiu a melhor expressão de música pura por meio da ópera cômica (opera buffa). Motivo: a dor, o sofrimento humano, a tragédia, são uma contradição com a música, que se dá melhor com a alegria, com o amor, com o riso, com o prazer. Para Mário, "a ópera cômica é a única solução esteticamente perfeita da arte dramático-musical". E quanto mais cômica, mais artística. Diz ele que "a comicidade sonora se transporta do teatro para o sinfonismo, (e) penetra o campo da própria música orquestral".

Já na segunda metade do século XVII a ópera cômica vinha se desenvolvendo no sul da Itália. Parece que a primeira ópera cômica foi Quem sofre, espere!, de 1639, um texto do cardeal Rospigliosi com música de Vergílio Mazzochi e Domingos Marazzoli, representada no palácio Barberini, em Roma. Mas logo os napolitanos se apossaram dela, com Francesco Provenzale à frente, e com seu aluno Alessandro Scarlatti.

A "música dominante da época", segundo Otto Maria Carpeaux é a nova ópera italiana. Já não é a ópera barroca de Scarlatti e Hasse, nem a ópera classicista

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de Cherubini e Spontini. Às artes do bel canto acrescentou-se um forte elemento histriônico e começa a importar muito o intérprete, que deve emocionar e divertir o público com artes de ator. O enredo torna-se mais importante e a grande área ainda é o centro da arte dramática mas é preciso apresentar música de qualidade e não enchimentos entre as árias.

É a época de Gioachino Antonio Rossini (1792 - 1868), que durante 15 anos (entre 1816 e 1830) subjugou a Europa, a ponto de ser comparado com Napoleão (é a mesma época da Restauração, entre Waterloo e a Revolução de Julho).

Uma verdadeira febre rossiniana percorreu toda a Europa e quem acabou com a epidemia foi o próprio Rossini, retirando-se no apogheu da fama.

Sua formação musical foi muito boa, estudando a música de Haydn. (Ele chegou a escrever alguns quartetos à maneira de.) E m 1813 ele faz o seu primeiro sucesso com a ópera Tancredi, do Teatro Fenice, em Veneza. A ária Di tanti palpiti ficou imediatamente famosa.

Curiosamente, O Barbeiro de Sevilha, no Teatro Argentina, em Roma, foi um fracasso vaiado pela platéia. Mas logo era o maior sucesso da história da ópera, em Paris, Viena, Londres, São Petersburgo, Madri e... em Roma.

Rico, Rossini mudou-se em 1823 para Paris e assinou contrato com a Academia de Música, sob o patrocínio do próprio Rei de França.

Em 1929, novo grande sucesso: Guillaume Tell.

No auge do sucesso, Rossini anunciou sua retirada do teatro, para onde nunca mais voltou, mesmo assediado por convites de todas as grandes cidades do mundo. Ainda viveu mais 39 anos dedicado aos prazeres da cozinha e da mesa e voltou a fazer um sucesso internacional como o inventor do Tournedos Rossini.

Extremamente espirituoso, bem falante e irônico, fazia sucesso também nas rodas sociais que freqüentava, principalmente falando mal dos outros.

Stendhal colocava Rossini no mesmo nível de Mozart, opinião que o filósofo Schopenhauer assinava em baixo. E.no entanto, não há como confundi-los:Mozart é um aristocrata; Rossini é um plebeu que serviu à aristocracia decadente da Restauração e à nova burguesia que se esforçava por imitar os costumes aristocráticos. Não é à-toa que a imitação é um dos elementos da mentalidade romântica.

Rossini já estava bem distante de Haydn e não havia qualquer traço da música clássica vienense na sua música não-trabalhada e que se limitou à inspiração bem anotada. Como escreve Carpeaux, "é brilhante, mas sem nenhuma seriedade moral, sem ambição artística". É que o compositor procurava o ponto de menor resistência do público e mergulhava fundo, explorando-o com facilidade..

Na verdade, Rossini foi um grande autor cômico e o Barbieri di Siviglia é seu maior título de glória, a "apoteoso jocosa da Itália piccola, humilhada pelos dominadores estrangeiros", como escreve Carpeaux. Uma Itália que, se não pode se defender, zomba dos outros.

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Para Carpeaux "é música de uma verve inédita, nos pizzicati e nos famosos crescendi; simbolizando musicalmente os gestos dos cantores que, sendo italianos, são atores natos. É a mais operística de todas as óperas;a obra-prima da música de facilidade."

Das óperas ditas sérias de Rossini (Tancredi, Otello, Mosè in Egitto, Semiramide) todas sucessos internacionais, ficaram, os títulos e, quando muito, as aberturas. E o problema é que Rossini parecia um autor cômico, mesmo quando o enredo era trágico.

Beethoven, em 1824, ao receber Rossini, pediu-lhe que escrever "mais Barbieris e mais outros Barbieris, pois para a ópera séria seu talento não presta".

Se a segunda metade do século XIX deu razão a Beethoven, os críticos contemporâneos começam a rever essa posição, encontrando qualidades antes insuspeitadas na chamada obra séria do compositor. Mas sem exagerar.

Donizetti

Gaetano Donizetti (1797 - 1848) foi rival e sucessor de Rossini. Na verdade, foi um sub-Rossini, melhor adaptado ao ambiente francês. Teve uma vida cheia de sucessos retumbantes e depois enlouqueceu.

Ele era capaz de escrever três ou quatro óperas por ano, com facilidade, mas não foi capaz de evitar frases-feitas musicais, música trivial e a repetição de truques bem sucedidos.

Lá fille du règiment, de 1840, até hoje é representada nos teatros de província na França. Chegando a ser excelente nas óperas-cômicas L'Elisire d'amore e Don Pasquale (que Mário de Andrade classifica como "deliciosas"), acertou, uma ou outra vez, em grandes momentos trágicos, como em Lucia di Lammermoor e em Anna Bolena.

Bellini

Vincenzo Bellini (1801 - 1835) é o oposto de Rossini na nova ópera italiana. Apesar de ter estudado música, parece ignorar os elementos da profissão musical. Seu acompanhamento orquestral é de um simplismo desconcertante. Não existe, para ele, a harmonia. Tudo se reduz à melodia cantada. Carpeaux o chama de "o compositor mais monódico de todos os tempos".

Mas sua melodia, que parece surgir espontaneamente das palavras, é de rara nobreza, tendo influído decisivamente sobre Chopin. Morreu moço, antes de ter dado o que poderia dar.

Quatro de suas óperas sobrevivem: I Montechi e i Capuleti, I Puritani, Sonnambula e sua obra-prima, Norma, "a ópera italiana mais ricamente melódica antes de Verdi", segundo Carpeaux, com um lirismo puro e simples. Norma é uma dessa operas que devem ficar para sempre.

Segundo Mário de Andrade "o açúcar de Belline sempre fez muito sucesso em São Paulo e no Rio".