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Historia de um caracol que

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Historia de um caracol que descobriu a importancia da lentidao.PNL

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LUIS SEPÚLVEDA

HISTÓRIA DE UM CARACOL

QUE DESCOBRIU

A IMPORTÂNCIA DA LENTIDÃO

Ilustrações de Paulo Galindro

Tradução de Helena Pitta

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Há alguns anos, no jardim de nossa casa, o meu neto

Daniel observava atentamente um caracol. De repente

olhou para mim e fez-me uma pergunta muito difícil de

responder: porque é tão lento o caracol?

Respondi-lhe que não tinha uma explicação nesse

momento e prometi-lhe que lhe responderia, não sabia

quando, mas que o faria.

Como me prezo de cumprir com a palavra dada, esta

história tenta responder a essa pergunta.

E é naturalmente dedicada aos meus

netos Daniel e Gabriel, às minhas netas

Camila, Aurora e Valentina e aos lentos

caracóis do jardim.

Ace

rca d

esta

hist

ória

…aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa…ddddddddddddddddddddddddddddddeeeeeee

stttttttttttttóóóóó

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Um

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10

Num prado próximo da tua

casa ou da minha vivia uma

colónia de caracóis, conven-

cidos de que estavam no melhor lugar possível. Nenhum

deles tinha viajado até aos limites do prado ou, menos

ainda, até à estrada de asfalto que começava justamente

onde cresciam as últimas ervas. Como não tinham via-

jado não podiam comparar, e assim ignoravam que,

para os esquilos, o melhor lugar ficava na parte mais

alta das faias ou que, para as abelhas, não havia sítio

mais aprazível do que as colmeias de madeira alinhadas

na outra extremidade do prado. Não podiam comparar

e nem se importavam com isso pois, para eles, aquele

prado onde, alimentados pelas chuvas, cresciam com

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abundância os dentes-de-leão era o melhor lugar

para se viver.

Quando chegavam os primeiros dias de pri-

mavera e o sol espalhava suavemente a sua carícia

morna, acordavam de uma letargia invernosa, um

ligeiro esforço muscular permitia-lhes levantar a

concha o suficiente para porem a cabeça de fora

e imediatamente esticavam os corninhos que lhes

suportavam os olhos. Nessa altura descobriam

com alegria que o prado estava coberto de ervas, de

pequenas flores silvestres e, sobretudo, de saboro-

sos dentes-de-leão.

Alguns caracóis, os mais velhos, chamavam

ao prado País do Dente-de-Leão e também cha-

mavam Casa à frondosa planta de calicanto que

surgia todas as primaveras, com renovado vigor,

dos restos das suas folhas castigadas pelas geadas

do inverno. Era debaixo destas folhas que passa-

vam grande parte do tempo, escondidos do

olhar ávido dos pássaros.

Entre si chamavam-se simplesmente cara-

col, e isto às vezes criava algumas confusões que

eram ultrapassadas com lenta parcimónia. Aconte-

cia, por exemplo, que algum do grupo queria falar

com outro e nessa altura sussurrava: «Caracol,

quero contar-te uma coisa», e isso bastava para que

os outros voltassem as cabeças. Os que estavam do

seu lado direito voltavam-na para a esquerda; os

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da esquerda, para a direita; os que estavam à frente, para

trás; e os de trás esticavam as suas cabecinhas sussur-

rando: «É a mim que queres contar uma coisa?»

Quando isto acontecia, o caracol que queria contar

uma coisa a outro movia-se lentamente, primeiro para a

esquerda, depois para a direita, a seguir para a frente ou

para trás, repetindo: «Sinto muito, não é a ti que quero

contar uma coisa», até chegar ao caracol a quem de facto

queria contar uma coisa, geralmente algum episódio rela-

cionado com a vida no prado.

Sabiam que eram lentos e silenciosos, muito lentos

e muito silenciosos, e sabiam também que essa lentidão e

esse silêncio os tornavam vulneráveis, muito mais vul-

neráveis que outros animais capazes de se moverem com

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rapidez e de emitirem vozes de alarme. Para que a lenti-

dão e o silêncio não os assustassem, preferiam nem falar

disso e aceitavam ser como eram com uma lenta e silen-

ciosa resignação.

«Ágil, o esquilo chia e salta de ramo em ramo, o pin-

tassilgo e a gralha voam velozes, um canta e o outro grasna,

o gato e o cão correm velozes, um mia e o outro ladra, mas

nós somos lentos e silenciosos, a vida é assim e não há

nada a fazer», costumavam sussurrar os mais velhotes.

Mas entre eles havia um caracol que, apesar de acei-

tar uma vida lenta, muito lenta e entre sussurros, desejava

conhecer os motivos dessa lentidão.

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Dois

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O caracol que desejava conhecer

os motivos da lentidão tam-

bém não possuía um nome

(tal como os restantes caracóis) e isso causava-lhe uma

grande preocupação. Parecia-lhe injusto não ter um

nome, e quando algum dos caracóis mais velhos lhe per-

guntava porque o queria, igualmente sem erguer a voz,

respondia:

– Porque o calicanto se chama assim, calicanto, e por

isso quando chove, por exemplo, dizemos que nos vamos

refugiar sob as folhas do calicanto. Também o saboroso

dente-de-leão se chama assim, dente-de-leão, e, por isso,

quando dizemos que vamos comer umas folhas de dente-

-de-leão, já não comemos urtigas por engano.

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Mas os argumentos do caracol que desejava conhecer

os motivos da lentidão não despertavam grande inte-

resse nos outros caracóis. Entre eles murmuravam que

as coisas estavam bem assim, que bastava saber o nome

do calicanto, do dente-de-leão, do esquilo e da gralha, do

prado a que chamavam País do Dente-de-Leão, e que não

precisavam de mais nada para serem felizes sendo como

eram, caracóis lentos e silenciosos, decididos a conservar

a humidade dos seus corpos e a engordar para suporta-

rem o longo inverno.

Um dia, o caracol que desejava conhecer os moti-

vos da lentidão ouviu os sussurros de dois caracóis mais

velhos. Falavam do mocho que vivia entre a folhagem da

faia mais antiga e alta das três que se erguiam num dos

lados do prado. Comentavam que ele sabia muitas coisas

e que, nas noites de lua cheia, sem se preocupar se era

ou não ouvido, cantava uma litania que falava de mui-

tas árvores chamadas nogueira, castanheiro, azinheira e

carvalho, que os caracóis nunca tinham visto nem conse-

guiam imaginar.

Decidiu o caracol perguntar ao mocho os motivos

da lentidão e lentamente, muito lentamente, dirigiu-se à

mais antiga das faias. Saiu da proteção das folhas do cali-

canto quando o orvalho fazia brilhar o prado, refletindo a

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primeira luz matinal, e chegou à faia quando as

sombras já se espalhavam como um manto de

silêncio.

– Mocho, quero fazer-te uma pergunta –

sussurrou, esticando o corpo para cima.

– O que és tu? Onde estás? – quis saber o

mocho.

– Sou um caracol e estou ao pé do tronco –

respondeu.

– É melhor subires até ao meu ramo; a tua

voz é tão fraca como o ruído da erva ao crescer.

Sobe – convidou o mocho, e o caracol começou

outra viagem lenta, muito lenta.

Trepando até à parte mais alta da faia e ilu-

minado apenas pela ténue cintilação das estrelas

que se filtrava por entre a folhagem, passou

junto de um esquilo que dormia abraçado

às suas crias, mais acima contornou

o trabalho laborioso de uma ara-

nha que tecia a sua teia entre os

ramos e quando, fatigado pela

subida, chegou ao ramo do

mocho, a luz do novo dia devol-

via à faia todos os seus tons e cores.

– Cá estou – sussurrou o caracol.

– Eu sei – respondeu-lhe o mocho.

– Não abres os olhos para me ver? –

tornou a murmurar o caracol.

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– Abro-os à noite e vejo tudo o que há; durante o dia

fecho-os e assim vejo tudo o que houve. Qual é a tua per-

gunta? – inquiriu o mocho.

– Quero saber porque sou tão lento – segredou o

caracol.

O mocho abriu então os seus olhos enormes e redon-

dos e observou atentamente o caracol. Depois fechou-os

outra vez.

– És lento porque carregas um grande peso – reve-

lou-lhe o mocho.

O caracol não achou aquela resposta convincente:

nunca julgara que a sua concha fosse pesada, carregá-

-la não lhe causava fadiga e jamais ouvira um caracol a

queixar-se desse peso. De modo que o disse ao mocho e

esperou que este acabasse de rodar a cabeça em volta do

pescoço.

– Eu conseguia voar e já não o faço. Antes, muito

antes de vocês, os caracóis, habitarem no prado, havia

muito mais árvores do que estas que se veem agora.

Havia faias e castanheiros, azinheiras, nogueiras e car-

valhos. Todas essas árvores eram a minha casa, voava

de ramo em ramo, e a lembrança dessas árvores que já

não existem pesa-me tanto que deixei de poder voar.

Tu és um jovem caracol e tudo o que viste, tudo o que

provaste, as coisas amargas e doces, a chuva e o sol, o

frio e a noite, tudo isso vai contigo, pesa, e, como és tão

pequeno, esse peso torna-te lento.

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– E de que me serve ser tão

lento? – sussurrou o caracol.

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– Não tenho resposta para isso. Tu próprio terás de

encontrá-la – disse-lhe o mocho. E com o seu silêncio

deu a entender que não queria mais perguntas.