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1 “HISTÓRIA DE UM HOMEM” Autor: Pietro Ubaldi Tradutores: J. Herculano Pires, Jerônimo Monteiro, Medeiros Corrêa Junior A meu filho, morto pela pátria. “O progresso das comunidades depende do sucesso de raríssimos sábios, que se esquivam ao contágio da mentalidade comum.” JOSEPH JASTROW Prefácio Quantos lerem este volume, crendo encontrar nele o mesmo Ubaldi dos seus livros anteriores, ficarão desiludidos. A cada novo livro ele transforma e renova a sua personalidade. Cada um dos seus volumes é um documentário daquilo que foi, real e espiritualmente, de uma fase de sua vida. Inútil, portanto, procurar-se nestas páginas as mesmas proposições e atitudes dos seus trabalhos precedentes. É necessário desde logo este esclarecimento, para que o leitor não seja enganado e porque os mal- entendidos são detestáveis. Nada existe aqui de mediunidade, biosofia, espiritualismo e semelhantes. A personalidade do autor, que nunca fez parte de nenhum grupo nem se ligou a qualquer escola, permanecendo sempre livre, no seu desenvolvimento, independente, atinge agora, completamente renovada, outras afirmações. É horrível repetir-se, permanecer-se estagnado em determinado campo. Somente quem se renova, vive. A constante especialização no particular poderá ser materialmente útil, mas é paralisia do espírito.

“HISTÓRIA DE UM HOMEM” - Biblioteca Virtual Espírita … A precedente tetralogia, em que o Autor, partindo da matéria e chegando ao espírito, percorre o caminho que vai da

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    HISTRIA DE UM HOMEM

    Autor: Pietro Ubaldi

    Tradutores: J. Herculano Pires,

    Jernimo Monteiro,

    Medeiros Corra Junior

    A meu filho,

    morto pela ptria.

    O progresso das comunidades depende do sucesso

    de rarssimos sbios, que se esquivam ao contgio

    da mentalidade comum.

    JOSEPH JASTROW

    Prefcio

    Quantos lerem este volume, crendo encontrar nele o

    mesmo Ubaldi dos seus livros anteriores, ficaro desiludidos. A cada novo livro ele transforma e renova a sua personalidade. Cada um dos seus volumes um documentrio daquilo que foi, real e espiritualmente, de uma fase de sua vida. Intil, portanto, procurar-se nestas pginas as mesmas proposies e atitudes dos seus trabalhos precedentes. necessrio desde logo este esclarecimento, para que o leitor no seja enganado e porque os mal-entendidos so detestveis. Nada existe aqui de mediunidade, biosofia, espiritualismo e semelhantes. A personalidade do autor, que nunca fez parte de nenhum grupo nem se ligou a qualquer escola, permanecendo sempre livre, no seu desenvolvimento, independente, atinge agora, completamente renovada, outras afirmaes. horrvel repetir-se, permanecer-se estagnado em determinado campo. Somente quem se renova, vive. A constante especializao no particular poder ser materialmente til, mas paralisia do esprito.

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    A precedente tetralogia, em que o Autor, partindo da matria e chegando ao esprito, percorre o caminho que vai da Terra ao Cu, a tetralogia representada pelas Mensagens Espirituais1, A Grande Sntese, As Nores, Ascese Mstica, um edifcio completo, uma fase superada, um perodo encerrado. Ocorreu, depois, no esprito do Autor uma crise terrvel, necessria para uma renovao, um completamento e uma continuao, coisas que, sem tormentas e crises, no podem acontecer. Aqui Ubaldi reaparece, depois de um silncio em que passou pelos dolorosos sofrimentos que esperam os que seguem os caminhos do ideal. Antes, ele era um terico e sonhador, podia dizer-se. Mas agora, ele j bateu a cabea na realidade da vida humana, e no o mais. O golpe foi duro para ele, e destruiu aquela f ingnua e simples que lhe fazia dizer tudo com franqueza, sem a astcia das prevenes humanas. Avalie-se, pois, este livro, tambm por aquilo que o Autor teria podido dizer, mas que preferiu calar. Desencadeou-se naquela alma, partindo do homem, uma grande tempestade, que terminou ante a face de Deus. Ele no se lamenta de tudo isso, pois sabe ter vislumbrado uma novidade importante, embora atravs da amarga experincia, sabe que aprendeu a conhecer o homem, e porque fez uma nova e grande descoberta: ou seja, que as conquistas espirituais, como a matria e a vida, os sofrimentos, refinam e purificam o esprito, no o abatem. Est satisfeito porque, com o seu ideal, atravessou um perodo de morte, ressurgindo mais forte do que antes, e a sua f renasceu ainda mais profunda, mais consciente, mais slida. Ele oferece as pginas escritas com o sangue do seu tormento ao mundo ctico e sbio, que sabe o que faz porque conhece a vida e no se importa, rindo dessas paixes e afirmaes ideais. Mas ele conhece, por sua vez, as leis que regem esses fenmenos, e sabe que o riso, a incompreenso que lhe volta as costas, a indiferena e a desaprovao, que no de uma classe social, mas a expresso do homem comum de hoje, devem naturalmente estar na vida de quantos segue o caminho da redeno humana, indicado por Cristo. Sonhos de grandeza, vitalidade expansiva, conquista vitoriosa, e ainda potncia de gnio e de domnio sobre a natureza, todas estas grandes a admirveis coisas no podem suprimir aquela lei do sacrifcio individual, que pertence, ela tambm, vida, e que o homem de hoje, perseguindo os ideais abraados, teria de fato muita vontade de esquecer. crime, porm, trair o ideal, qualquer que ele seja, quando por ele tantos mrtires se sacrificaram. Chamado trgico e

    1 Ou Grandes Mensagens (N. do T.)

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    desesperado, mas quem sabe compreender; chamado feito numa hora histrica e solene, pleno de sua fora e do seu desejo de dar, a quem sofre, f e esperana em coisas sempre mais altas.

    Este volume no autobiogrfico. Traduz, entretanto, as experincias do Autor, e reflete estado do esprito reais, por ele realmente sentidos, ou, pelo menos, idealmente vividos. Como sempre, atrs de cada palavras h uma real vibrao de vida espiritual, um verdadeiro tormento de paixes, h freqentemente uma experincia vivida, uma prova enfrentada e superada, uma dor suportada talvez ainda um caminho percorrido, um pouco do trgico e doloroso caminho da vida seriamente vivida.

    No obstante esta renovao, os princpios dos volumes precedentes no so aqui negados. Ao contrrio, eles so revigorados, porque, desenvolvendo-se agora sob outra viso e com diferente estado de esprito, ou seja, com ceticismo demolidor, ressurgem mais belos e mais fortes, com uma f menos ingnua, com menor simplismo, com um senso mais trgico, de angustiada humanidade. Dessa maneira, o leitor reencontrar nestas pginas a personalidade de Ubaldi, mais completa, amadurecida atravs de novas experincias, levada a uma nova fase que, se a continuao lgica das precedentes, assemelha-se s vezes ao reverso, to violentos foram os golpes e a desordenada tormenta que a envolveu. Aqui o autor se debrua sobre o abismo infernal da vida estpida do mundo que ele descobre. Por um momento as nuseas o sufocam e o terror o paralisa, mas as foras do esprito so poderosas, e o equilbrio, por fim, se restabelece. A concepo evanglica, que parecia vacilar, resplandece de novo, mais luminosa do que antes, consolidando-se nas provas superadas e j agora definitivamente triunfante.

    O tipo de leitor a que estas pginas se dirigem diferente, e os mesmos princpios so apreciados aqui de outro ponto de vista, de maneira a desconcertar, talvez, o observador superficial, ainda apegado s perspectivas anteriores. Este pretende ser um livro forte, de colorido humano, marcado por violentos contrastes, um livro real e atual, no mais olimpicamente pensado na paz do Cu, como A Grande Sntese, mas tragicamente vivido nas lutas da terra. A mesma verdade aqui diversamente observada. Aquele um livro de clara viso da verdade, contemplada na paz serena de um ser tranqilamente situado fora das competies terrenas . Este , pelo contrrio, um livro escrito por quem vive na terra, imerso na sua psicologia, fazendo prpria a alma infernal do mundo, por quem viveu as suas dores, e lutando e sangrando, as descreve. natural que a mesma realidade da vida, no observada na paz das alturas, mas na luta e no tormento da terra

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    e expressa s vezes com a psicologia do mundo, vista assim de um ngulo diverso, oferea-nos diferente quadro. Mas desta vez era necessrio descer ao mundo das realidades humanas e falar tambm a outra categoria de pessoas, quelas que vivem planamente a vida; era necessrio falar com a sua prpria linguagem e segundo a sua maneira de pensar, mesmo a quantos haviam at agora sorrido e dado de ombros, como se faz ante a ingnua e impraticvel utopia de um idealista sonhador. Era necessrio falar, desta vez, no somente aos eleitos, capazes de intuir e de crer, j amadurecidos, videntes, sensveis s provas da razo, s exploses do sentimento, ao fascnio do belo e do bem, j encaminhados e vidos de maiores ascenses espirituais. Era necessrio, agora, falar tambm aos cegos e surdos, colocando-se no seu prprio nvel, para fazer-se compreender, falar aos insensveis, ligados matria como a sua nica forma de vida, aos involudos, aos inertes, aos rebeldes, aos negadores sem f e sem esperana. E para fazer compreender-se era necessrio tornar-se um deles, fazer prpria a sua cegueira, a sua revolta, a sua cruz. Esta nova voz no podia mais descer do Cu, lmpida e melodiosa, mas devia, penosamente, sair do inferno, spera e fatigada, no mais de anjo e sim de condenado. Quando o homem do mundo ouvir esta linguagem mais facilmente abrir ouvidos e compreender. Quando, desta vez, ouvir falar algum que mostra conhecer a realidade da vida, com todas as suas mentiras, maldades e traies, ele mais facilmente se persuadir, e no lhe ser mais to fcil sorrir com ceticismo, acusando de ingnua e incongruente utopia o idealista sonhador. De resto, natural que assim apaream, na terra, as coisas vistas do Cu. necessrio, ento, v-las na prpria terra. Questo de perspectiva. E, por fim, tudo se mostra mais real do que antes. Os mesmos princpios, antes s terica e racionalmente afirmados, atingem aqui diferente potncia, quando ao invs de descer do Cu, emergem ensangentados do inferno terrestre. E uma verdade que resiste a esta prova humana de lama e de sangue, adquire a fora que antes no tinha, ao menos sobre a Terra, e pode ento proclamar-se mais alta, pois tambm aqui, experimentalmente, provou a sua realidade.

    Nesta nova posio, o autor espera ter encontrado outra maneira de fazer o bem. E nisto consiste a continuao, o completamento do seu passado, o seu progresso. Talvez, fosse necessrio um livro de verdadeira experincia espiritual, como especial reao a certos romances estrangeiros, livros de inconscientes, feitos para demolir aquilo que de mais elevado o homem possui, conquistado custa do sacrifcio dos mrtires e da runa de tantas vidas, feitos para enfeiar-nos e envenenar-nos a existncia, roubando-nos a f no bem e a esperana no futuro, livros, enfim, desapiedadamente

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    demolidores e sutilmente malficos, que o povo avidamente devora. Quem, como esses livros, tudo nega, mutila e mata primeiramente a si mesmo. Esta Histria de um Homem diz, pelo contrrio, a cada passo: Sim! E quem afirma, constri, cria, reencontra a vida que a negao lhe rouba. A criao uma afirmao. Deus o Sim. Satans, o No.

    Desta vez o Autor fala a um mundo de estridores infernais, e deve usar uma linguagem de contrastes e de tormenta, de luta e de revolta. Estamos, agora, no mais no Cu, mas verdadeiramente na Terra, na dura realidade da vida, numa atmosfera baixa e tenebrosa, que a luz custa a rasgar, e onde os seres lutam e sofrem. Uma guerra de todos contra todos impera sem trguas, impedindo a serenidade de contemplao superior. Toda energia est empenhada nas rivalidades humanas, na necessidade se sobrepor-se. Tentar evadir-se intil. Em tal mundo, o cu, lugar de ventura, no pode parecer seno uma utopia. Todos, mais cedo ou mais tarde, fazem esta dura experincia. O Autor, tambm, devia e quis faz-la, mas no para se sepultar com ela, e sim para ressuscitar, ao final, e indicando a todos as vias da ressurreio. O mal no aqui invocado para demolir, mas para construir, com a finalidade do bem. Este livro foi escrito numa pausa arrancada a essa incessante tenso infernal, numa trgua brevssima, roubada inquietante necessidade do trabalho e da luta pela vida. O prprio autor sofreu a dura lei de todos, a vida humana imersa na matria, o esprito invadido pelas suas impiedosas necessidades. A experincia e a superao que ele nos descreve so as que o mundo tambm, seja embora por mil maneiras diversas, dever realizar. O relato tem, portanto, significado e interesse, universais, pois no seu caso particular vemos agirem-se as leis universais da vida, que guiam a todos. Trata-se, nestas pginas, de um Cu visto pelos olhos crticos e positivos do homem que conhece a luta da vida e conhece a dor, vista com a mentalidade objetiva da cincia e do bom senso, atravs do critrio prtico e realista como realidade do amanh, em que se acordam o conceito cientfico da evoluo biolgica e o conceito religiosos da redeno crist, um cu, enfim, que a prpria razo nos indica como o lgico e necessrio porvir da humanidade.

    Embora no sendo autobiogrfico, este livro foi, entretanto, realmente lutado e sofrido. Foi escrito, de fato, em quarenta dias, como uma exploso. Qui a vida real se apresente, s vezes, mais trgica e desapiedada do que esta, imaginada pelo autor, e a certos indivduos negue tambm a consolao dos ltimos anos, que, na sua grande f na vitria final de quem luta por uma idia, o autor no pode deixar de conced-la ao seu protagonista. Mas o princpio no abalado e a tese no resulta menos vlida

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    por isso. Talvez no haja tempo no presente volume, para se demonstrar tudo aos cticos. H neste livro muitas teorias. Sua principal demonstrao ser dada pelo fato de que elas foram vividas e aplicadas, concluindo na prpria vida. Essa demonstrao saltar sempre, igualmente evidente, da logicidade do desenvolvimento do conjunto, da ardente f revelada pelo autor, da objetividade com que a experimentao conduzida na histria aqui narrada e, por fim, da excelncia das concluses. Este um livro escrito numa hora de espasmo mundial. verdade que so excelentes e santas as teorias pregadas, talvez mesmo com f e convico, no campo religioso e civil. Mas este livro no se firma em teorias. Quer, pelo contrrio, ter a coragem de olhar no seu ntimo a realidade biolgica, aquilo que de fato o homem , e no aquilo que acredita ser ou desejaria ser, ou s excepcionalmente o . No verdade, porventura, que estamos numa poca construtiva e de grandes audcias? Pois bem, ento necessrio termos esta grande coragem de olhar tudo face a face, sem nos iludirmos e sem mentir.

    A hora presente, mesmo a despeito de todos os mopes e de todos os fracos que a maldizem, ampla e vigorosa, exigindo-nos largueza de viso e a coragem dos fortes. Esta no a hora da tranqila e prazenteira psicologia mozartiana, do anjo que fala aos felizes, que so pouqussimos; no a hora dos doces equilbrios da beleza, mas a hora da humana, trgica e potente psicologia beethoveniana, feita de luta e de tormenta, de fadiga e de dor, que fala aos sedentos de felicidade, que so em maior nmero. a hora dos impetuosos e fortes sentimentos da criao. Este o estilo do presente livro, dado pelo esprito de nosso tempo, que essencialmente beethoveniano; no rossiniano, mas wagneriano; no rafalico, mas miguelangesco; no aristico, mas dantesco; no barroco, mas revolucionrio, napolenico, ferreamente retilneo, novecentista. Tantos, como formiguinhas presas terra, no vem seno as pequenas coisas vizinhas, e assim se perdem em consideraes de somenos, sem imaginarem o gigantesco quadro de conjunto, que torna apocalptica a hora presente. Tantos no sabem, como tantos no sabiam, s vsperas de revoluo francesa, o que hoje se prepara, e se lhes explica, eles no compreendem. Mas quem o sabe, treme, exulta, vive de febre, e, tambm, de esperana. Este livro um grito, lanado sobretudo aos psteros e aos que hoje os antecipam, o grito de f do homem novo que espera, para poder viver a nova civilizao do terceiro milnio, no mais a passada civilizao da fora, nem a hodierna civilizao do dinheiro, mas a do esprito. Desta era e para ela, sobretudo, fala o nosso autor, sabendo que s ento poder ser plenamente compreendido. Fala hoje para preparar por

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    enquanto os espritos, para apontar problemas e solues, para dar a sua contribuio maturao do homem novo da nova civilizao. Se o autor fala alto e solene, porque sente que nos encontramos, realmente, numa grande curva biolgica, em que o homem primitivo, ignaro e feroz, est para sair da sua menoridade e se prepara para novas formas de vida, nas quais, cansado de ser uma inconsciente marionete, guiada por uns poucos instintos, viver na lgica, na potncia diretora, na conscincia, liberdade, bondade e justia do esprito.

    Este um livro de reao ao mundo atual, ao homem que se fez inerte, egosta, falso e bestial, no seio da chamada moderna civilizao, e o seu escopo torn-lo melhor, dando-lhe novamente, em primeiro lugar, luz, f e esperana, dando-lhe uma direo ao desencadeamento das foras primordiais. Reao que pode ser talvez brutal, mas a linguagem enrgica pode ser um bem, quando o esprito no escuta mais, habituado as frmulas rotineiras de advertncia. Por detrs dessa forma, a substncia e evanglica. E o mundo, ao chegar ao fundo da sua atual e trgica experincia, ter certamente fome dessa substncia e procurar reencontrar as coisas do esprito, sobrepondo-se sordcie da matria, venerada hoje em particular, e de fato at idolatria. Pobreza e dor sero salutares, por despertarem as almas, e este livro os prepara, pois nele, mesmo das profundezas do inferno, sempre o cu que se olha. Nele sempre seguida, seja embora por vias diversas das precedentes, o mesmo objetivo evanglico, que a meta constante, e jamais desmentida, do autor.

    Se neste livro se fala com energia e se enfrenta corajosamente a realidade humana tal qual e no como ser ou dever ser, a franqueza no usada somente para condenar, mas tambm para compreender e para ajudar. Por detrs de uma forma spera est o cumprimento de um misso de bem. Nele est compreendida a trgica paixo do homem que sofre para se libertar, subir, redimir-se da animalidade. O autor a sente e a vive, porque tambm seu aquele afadigado anseio pelo ideal e a humana impotncia para atingi-lo em cheio. Para convencer e impulsionar em direo sada, ele se apega s verdades biolgicas, que no so questes religiosas, de filosofia, de classes sociais ou de opinies particulares, e portanto motivos de discrdia, mas verdades aceitas por todos, porque todos as aplicam, no importa se acreditem ou no, se as professem ou no, e no-las atiram ao rosto com a energia da desesperao, pois a crise do mundo de fato desesperada. Para despertar e convencer, ele se apega tambm a estas verdades mais compreensveis, porque tangveis e prximas, que todos tem ao

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    alcance da mo, encontrando-as a cada passo, na realidade da vida. Nenhuma via despreza, para chegar ao seu escopo, que o bem. Se por momentos, com spera linguagem, desnuda a humana baixeza, afronta, logo mais, e racionalmente resolve os problemas. Com o senso do amor e de uma compreenso profundamente humana, aproxima-se fraternalmente do homem, para estender-lhe a mo e ombrear-se com ele, sob a mesma cruz e sobre o mesmo caminho das ascenses humanas.

    Aqui se trata do esprito. bom esclarecermos logo, para evitar mal entendidos. Aqui o esprito no concebido no sentido materialista, como o por alguns, em determinada mstica moderna. O esprito, para o autor, no um rgo ou uma funo da vida animal, posto a servio desta, somente para que ela triunfe, nas lutas da existncia terrena. O esprito, por ele, qualquer coisa de muito maior, qualquer coisa que pertence, alm dos limites da vida humana, ao absoluto e eternidade. verdade que o materialismo hoje se requintou a ponto de alcanar o campo do esprito. No mais, a no ser para alguns retardatrios, o materialismo grosseiro e negativista de cinqenta anos atrs. Mas a sua substncia e os seus resultados podem ser os mesmos. A colocao materialista dos problemas do esprito no pode ser aceita pelo autor, que sabe muito bem existir, alm do mundo terreno, todo um outro mundo. Ele o conhece to bem, que faz viver nesse mundo o seu protagonista, do princpio ao fim, e no-lo mostra to vivo e operante, que serve de exemplo e de aviso aos que o conheceram e esqueceram, e de demonstrao aos que o ignoram. Entendamo-nos logo. No o esprito o servo da vida terrena e humana, mas esta o meio de que se serve a vida do esprito, que tem outros objetivos e outros limites. Este livro o demonstra bem claramente. O esprito qualquer coisa que supera todas as humanas afirmaes utilitrias, e a moral do autor no admite que ele seja reduzido a simples instrumento de conquistas materiais.

    Tudo isso no impediu o autor de compreender o sentido da atual hora histrica e admirar o seu titnico esforo construtivo, que ele sempre sustentou e secundou. Ele quer somente manter-se no equilbrio da verdade universal de todos os tempos, no desejando limitar-se a um dado ponto de vista, como necessrio para quem se v arrastado pela fora das circunstncias, em todo momento ou situao histrica. E a ao das circunstncias hoje de tal maneira titnica e urgente, que mobiliza tudo, inclusive o esprito, absorvendo-o em si mesma. Mas o autor no pode olvidar os objetivos distantes, e se dirige tambm s geraes futuras, que, colocadas em condies diversas, por certo, pensaro diversamente e de outras

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    afirmaes necessitaro. Ele no pode seno completar e antecipar, com uma viso que s massas de hoje poder parecer utopia. E aqui est esboado um ideal que, hoje, no atual para a maioria, mas talvez o seja amanh. Entre a concepo que este livro oferece e os tempos presentes no h antagonismo; trata-se apenas de uma posio diversa, no caminho da evoluo. O autor compreende muito bem e admira o esforo dos povos para se organizarem em novas ordens sociais, o esforo da cincia para descobrir os segredos da natureza, o esforo coletivo do trabalho para domin-la e utiliz-la. Mas roga que se compreenda, tambm, o esforo do homem isolado, que conquista outro tanto, perigosa e utilmente, pelas vias do esprito. Estas sero hoje, talvez, vias de exceo, muito complexas para que a cincia os compreenda e o homem comum as siga, mas justamente por isso mais interessantes, pois representam determinado tipo, entre os tantos caminhos do porvir. Quase sempre o futuro utopia somente enquanto no se torna presente, e aqui antecipada uma fase que, se hoje pode parecer absurda, amanh poder ser normal. Devemos bem compreender que o autor no destri ou condena, mas apenas previne. A sua atitude no , pois, uma evaso do mundo humano, que no seu plano ele deve aceitar, mas um complemento do mesmo, com vises mais vastas e longnquas.

    Ele mostra-se, assim, de pleno acordo com a hora presente. Ningum mais do que ele respeitas os sacrossantos direitos e trabalhos do homem sobre a terra. Mas ele no pode deixar de olhar mais longe e mais alto, de lembrar que h, antes de tudo, um outro mundo no Cu, que a meta da caminhada neste. Ele no pode, portanto, limitar-se a conceber o esprito como instrumento exclusivo da luta terrena, escravizando aos fins da matria, mas tem necessidade de lhe traar, neste livro, os objetivos maiores, que se encontram alm da Terra e da vida terrena. Este complemento necessrio e til. Acreditamos ainda que as perspectivas de certas audaciosas e inusitadas superaes, a narrao de certas experincias fora do comum, possam ajudar os espritos, seja por lhe mostrar a afinidade entre as metas prximas e aquelas mais altas e distantes do porvir, - que o homem, um dia, mais civilizado, dever chegar a compreender e comear a viver, - seja porque tudo isso d um senso profundo de orientao vida e sobre ela projeta um til e fecundo princpio de ordem, uma confortante esperana, uma luz que satisfaz e guia a razo, rumo a realizaes sempre mais nobres e boas. A viso daquilo que moralmente mais elevado sempre uma lio de sabedoria, e portanto s pode ser benfica. No poder jamais prejudicar a algum o relato de uma experincia de vida, em que o motivo feroz e desapiedado da luta brutal se

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    eleva ao motivo do amor evanglico, o sentido da existncia elevado a plano mais alto, e a ascenso nos rumos do bem individual e coletivo proclamada atravs do exemplo experimentalmente efetuado.

    O autor no renega, neste livro, a realidade humana. Demonstra, antes, t-la compreendido e vivido, e nem sempre a condena, mas sabe tambm compreend-la, compadecer-se dela, e para ela se volta, para a auxiliar, segundo o evanglico "ama o teu prximo". Mas no pode deixar de lhe fazer brilhar frente as supremas finalidades do esprito, que so a chave da redeno. Ele se mantm em de equilbrio. De um lado aceita a moderna concepo biolgica do esprito ( A Grande Sntese ), e faz deste, no uma unidade abstrata, isolada, estranha vida, mas fundida na realidade humana e na unidade orgnica do todo, ele sente a fecunda colaborao entre esprito e matria. De outro, ressalva, entretanto, a finalidade superior daquela fuso e colaborao, finalidade que se encontra no esprito, inteiramente acima das menores e contingentes finalidades relativas, filhas do momento e situadas no plano da matria. Este seu livro justamente uma equilibrada chamada das finalidades ltimas, no campo das finalidades prximas, compensando assim as concepes unilaterais, que tudo procuram reduzir ao ponto de vista humano, em funo da utilidade da vida terrena e transitria, em detrimento e sufocamento do ponto de vista super-humano, divino e eterno.

    O mundo atual aspira a dominar, e isso justo no seu plano. Mas, para dominar, precisa tornar-se melhor e, tornar-se melhor, no lhe basta a simples concepo utilitria do esprito. lhe necessria uma concepo mais vasta e orgnica, que supere os limites deste simples rendimento prtico e imediato, sobre o plano humano e terreno. Para vencer na vida, para ter um objetivo, uma razo e o direito de vencer, e dar um sentido vitria, necessrio que veja tambm as metas distantes e super-humanas do esprito. Estas no podero tornar-se suscetveis de aplicao imediata, porque o mundo est ainda atrasado. Mas somente elas podem dar-lhe uma orientao segura. A concepo puramente utilitria permanece egoisticamente isolada no funcionamento orgnico do universo. E, no caminho da evoluo, como um instrumento quebrado ou um rgo mutilado, ante a viso das grandes linhas e das metas longnquas.

    Por isso, no presente trabalho, mesmo que o protagonista nem sempre seja vitorioso, apresenta-nos o modelo ideal de um homem que busca, num trgico esforo, elevar-se, em clara oposio ao tipo normal, com bem diversas qualidades, estaticamente ligado terra, e que deseja, por si mesmo, somente por fora do nmero, torna-se o modelo da vida. A este tipo

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    biolgico, hoje normal, o autor ope e indica um novo tipo de homem, que luta desesperadamente para se tornar superior e melhor, projetando-se inteiro na direo do futuro. As leis da seleo, j agora atuando no plano psquico, parecem tender justamente para a formao e a normalizao daquele tipo, hoje de exceo. A moderna descoberta cientfica da energia e o seu domnio, conduzindo o mundo da fase esttica da matria fase dinmica do movimento, introduz o homem, desde agora, no limiar daquela nova civilizao do esprito, de que o irrequieto dinamismo do tipo "900 j um primeiro, embora elementar, degrau. Este tipo de homem novo hoje uma concepo biolgica aristocrtica e individualista, que entretanto no se encontra em antagonismo com os hodiernas concepes socialistas, niveladoras e coletivas, porque justamente ao servio dos demais que o protagonista coloca as suas qualidades e conquistas. Este livro um desafio ao mundo, mas a favor do mundo, a quem mostra um tipo ideal, ante o qual o melhor que se pode fazer voltar-se para ele, e que, se pode ser melhor, faz com isso perdovel a sua superioridade. Ele, se rico em bondade, em tenacidade, em esprito de altrusmo e sacrifcio, demonstra e utiliza essas qualidades, no egoisticamente para si, mas no que elas representam de alto valor coletivo, no que elas tm de necessrio formao de mais compactas unidades sociais.

    Isso poder provocar as fceis acusaes de orgulho. Mas o protagonista nos mostra, nestas pginas, o trabalho antes do triunfo, o martrio antes do sucesso. E este se expande no Cu, longe da Terra, da qual, dessa maneira, no prejudica nem perturba os interesses. Nesta obra se demonstra como o primeiro atributo de toda superioridade so os seus correspondentes deveres, como tudo conquistado e merecido, so severas e justas as leis do progresso, que grandes compensaes coroam esses esforos de superao, e que coisa profunda, srie e grande , ainda no caso mais doloroso, a vida. Tudo isso altamente moral. Este livro quer ser um estmulo a todos, no caminho da superao. Seja para os menos elevados, aos quais se dirige, assumindo quase sempre a sua forma psicolgica, seja para os mais avanados, atravs de sua substncia e das suas concluses evanglicas, e aos quais deseja guiar, como aos primeiros. O livro est, nesse sentido, sobre as linhas da evoluo, constituindo uma fora que age segundo as mais poderosas correntes da vida. Talvez seja ele uma expresso instintiva e inconsciente, manifestada atravs da sensibilidade do autor, do impulso biolgico criador, que prprio da natureza, ora ativa, sobretudo, no campo psquico-espiritual. O livro encontra-se, portanto, entre as boas foras criadoras, que guiam a

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    Deus, e no poder seno despertar, no ntimo das conscincias sadias, uma vibrao de aprovao e de sincera adeso. Se a certos momentos as palavras so enrgicas e a advertncia poder ser calorosa, por trs delas, entretanto, no h qualquer interesse a ser defendido. Com toda a franqueza, trata-se to somente de um ser sincero, que no se permitiu outra riqueza, alm da coragem de dizer a verdade. O autor se sentir, por isso mesmo, satisfeito, e se considerar recompensado do eu trabalho, se puder constatar que, com esse livro, ainda melhor atingiu a finalidade dos precedentes. Se verificar, enfim, que, instigando a subir, rumo a formas mais elevadas de vida, conseguiu fazer um pouco daquele bem que a sua aspirao mais ardente.

    No seu ltimo volume, que precede a este, Ascese Mstica, o autor, no ltimo captulo, "Paixo" , concluiu com estas palavras: (....) A hora intensa para todos. No se pode parar. Preparada pelo tempo, ela se precipita. Tenho medo de olhar. (....) Rasga-se ento diante de mim a viso da terra e do cu... a terra treme convulsa, no pressentimento de uma catstrofe sem nome. (....) Vejo um turbilho de foras que se projetam sobre a terra, e vejo a terra abalada, convulsa, submersa num mar de sangue. Ttrica a hora da paixo do mundo. E parece, sem esperanas. O crculo se estreita, se estreita, e logo estar fechado, e ser tarde para fugir ao seu aperto. A mo do Eterno empunha o destino do mundo, esto prontas a se desencadearem as foras para o choque fatal. Avizinha-se a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Bem-aventurado quem, ento, no tiver vivo sobre a terra. ...J disse h tempos: preparai-vos, preparai-vos, mas no me ouvistes. Breve, ser tarde demais. O drama est prximo, eu o percebo... Naquele momento, senti tremer a terra. ... Dentro de mim, est a viso do real. Senti, realmente, a terra tremer". Se esse livro, publicado em 1939, claramente predizia, como iminente, o atual cataclisma mundial, o presente volume, Histria de um Homem, continuando o caminho seguido em Ascese Mstica, conclui, ao invs, da seguinte maneira, no testamento espiritual do protagonista ( cap. XXX ): "Estudai sobre o grande livro da dor; aprendei a sofrer, se desejais subir. bom que o mundo sofra, para que possa corrigir-se e avanar. (....) sem dor no h salvao. A esta lei fundamental no se foge. Mas depois da paixo e da cruz, h a ressurreio e o triunfo do esprito. Aceitai, portanto, o batismo da dor, a expiao que purifica, porque esta a nica via de redeno. Deixo-vos o aviso de que na necessria paixo do mundo est a aurora da nova civilizao do esprito." Este novo volume, publicado em 1942, escrito em meio de j anunciada tormenta, encerra-se, portanto, com o anncio da aurora de um novo dia. Depois da destruio, a reconstruo: depois da dor, a

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    alegria de uma vida mais alta; depois da necessria paixo da guerra, desponta a nova era do esprito.

    este, portanto, o livro da ressurreio, que se anuncia no final porque no pode chegar, para um, como para todos, seno depois de percorrido o necessrio caminho da dor purificadora. Se este o livro da prova e do sofrimento, do angustioso aperto entre as garras do mal, tambm o livro da esperana, do triunfo do esprito e do bem. A trabalhosa elaborao da ascenso aqui impulsionada, para o indivduo, na histria do protagonista, e para o mundo, na conscincia da sua atual e apocalptica experincia. Ao contrrio da cena de terror e de paixo com que se encerra Ascese Mstica, o presente volume conclui invocando o chamado, das entranhas das maturaes biolgicas, o homem novo, consciente no esprito, e anunciando e saudando a alvorada da nova civilizao do Terceiro Milnio. Natal, 1941.

    I

    Do Seu Dirio

    O universo ordem, ou caos? O universo ordem. Isto o

    que me dizem a cincia, a histria, e tantos anos de observao e de experincia. Cheguei concluso de que o universo um funcionamento orgnico em marcha para determinada meta; que todos os fenmenos se encandeiam segundo uma lei, em cujo mago sinto o pensamento e toco com as mos a vontade de Deus presente e atuante. Assim conclu, com a segurana que me deram trinta anos de estudo, de experincia e de dor.

    Se desta verdade universal deso a verdades mais particulares e mais prximas, mais relativas e mais tangveis, descubro que a vida do homem e do planeta que ele agora chamado a reger, correspondem a uma ordem particular e a um funcionamento orgnico, cuja meta indicada por estados sempre mais perfeitos a atingir, cuja lei o progresso. Verifiquei, afinal, que a lei do nosso planeta progredir em todas as formas; evoluir sempre, em todo sentido, a idia dominante. A evoluo uma soberba e incessante marcha de todos os seres da terra, do mineral planta, ao animal, ao homem, ao gnio: a marcha em direo a Deus.

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    Descendo sempre mais no particular e relativo, sempre mais prximo e tangvel para ns, descobrimos que o homem est frente do movimento. A sua lei a seleo do melhor, conseguida atravs da luta.

    Homem e mulher, masculino e feminino, so os ministros desta lei, que no particular se bifurca em dualismo que tambm complementao. Como tudo, tambm esta unidade humana dada pela fuso de duas unidades, menores e inversas. Em posies e movimentos inversos e complementares, elas fecham o mesmo circuito. O homem diz: eu sou a vontade, a fora, a conquista, a vitria. Eu sou o senhor. No h outro senhor alm de mim. Submeto a mulher para que me d filhos fortes e vencedores, como eu. A mulher diz: eu sou a beleza, a bondade, o amor, a conservao. Eu sou a esposa e a me. No h, nisto, outra mulher alm de mim. Escolho o homem forte para que me d filhos fortes e vencedores como ele.

    Dois so, portanto, os grandes motivos da vida humana: o macho e a fmea. So opostos e se atraem. Dividindo, embora, entre si, o campo da vida, liga-os o recproco fascnio. Bastam estes dois motivos para cantar-se at s ltimas notas a sinfonia da vida, num entrecho e numa compensao contnua. Cada um desses dois princpios uma afirmao em si mesmo, mas uma negao em frente ao outro, um vcuo que aspira ao oposto, desejoso sempre de se encher com a oposta afirmao, e assim se precipitam um no outro, saciando-se apenas ao fechar-se na sua soldadura com a metade oposta do circuito. Nenhum dos dois superior ou inferior. A mulher domina como o homem. No importa se a primeira se afirma calando e negando, o segundo gritando e comandando. O princpio feminino tem tanto o que completar, quanto o masculino. Ambos reinam igualmente, mas atravs de formas e tarefas contrrias e complementares. Mas cada um dos dois se sente isolado no seu reino incompleto, e deseja completar-se revertendo-se ao seio do oposto. A fragilidade da bondade, o altrusmo do amor so potentes como a fora da conquista e o egosmo do domnio. Cada qual tem as suas armas: armas opostas e complementares, feitas no para se combaterem mas para se abraarem. Entre essas armas no pode existir rivalidade, porque no tendem a se evoluir, mas a se ajudar. O princpio masculino faz parte do feminino, o pressupe o compreende e o completa. Cada ser humano nasce no seio de um desses princpios, carrega-o em si mesmo e o representa. Cada um deles existe e tem sentido somente em funo do outro. Opostos apenas para se unirem, eles dividem o trabalho e as opostas funes da vida: criar conservando, acumulando, proliferando, e criar destruindo, renovando, selecionando; sempre fundidas as opostas posies na mesma funo de criar. A mulher,

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    como a terra, conservadora e fecunda, ou seja, apta formao e proteo do material primitivo da vida; o homem, como o ar e o sol, ativo e fecundante; como o martelo que forja, o dinamismo que seleciona e renova. A primeira metade do ciclo, criadora da quantidade, resta intil, se no se completa com a segunda, criadora da qualidade. A mulher vale quanto vale o homem, e este quanto a mulher. Cada um dos dois tem a sua funo e misso, de cujo cumprimento sumamente cioso. O homem assim invejoso de qualquer outro que tente super-lo na sua tarefa de seleo; sente nele o rival, e cioso de sua funo evolutiva, acusa-o de soberba e velhacaria. A mulher tambm invejosa de qualquer mulher que tente super-la na sua tarefa de proteo e conservao; sente nela a rival, e, ciosa da sua funo de amor e reproduo, acusa-a daquela desonestidade que atraioa a misso de me. Nenhum dos dois suporta que outros lhes usurpem ou os superem, na funo que tm o direito e o dever de realizar, porque nela est o objetivo da sua vida e a realizao de si mesmos, porque no obedecer ao comando da Lei est a maior alegria, e no obedecer a maior dor que o ser possa provar.

    Ambos desejam a mesma coisa, a vida; expressam a mesma lei, criar; um dizendo: sim; a outra dizendo: no. A lei faz que se unam os contrrios para o seu mesmo objetivo. A satisfao do indivduo est no cumprimento do instinto, ou seja, na obedincia ao comando. E o homem, quanto mais ignaro e primitivo, mais cegamente obedece, quanto menos evoludo, menos emancipado do determinismo originrio da matria. Nos momentos histricos do regresso involutivo, o homem canta a liberdade, acreditando que se liberta. Mas no se livra seno do trabalho de evoluir, submetido s superiores leis sociais que lhe impe ordem, disciplina, virtude. No se livra seno para tornar a criar, mais cegamente, a servio das mais elementares e frreas leis da vida, inscritas no instinto.

    Peregrinei pelas longnquas e abstratas filosofias do absoluto. Mas a que agora me interessa esta filosofia especfica e prtica, mais prxima de ns do que os princpios abstratos, relativa a pequena, mas traduzida em aes; objetiva e concreta, aquela que a cada passo se encontra na realidade humana vivida, aquela que cada homem, mesmo sem compreender, pratica.

    Na raiz da vida humana encontra-se este mecanismo. Ele implica rivalidade, luta, enfim, seleo. Assim, guerra e amor so as duas funes fundamentais desses dois termos: masculino e feminino. O amor protege e cria, a guerra destri e mata. Inversa complementao, mesmo nos efeitos. Nela se cumpre, em equilbrio, o ciclo, e se completa o circuito da vida

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    e da morte. Assim, na morte, condio de vida a vida, e na vida, condio de morte a morte.

    intil discutir. A lei biolgica assim ordena, quer e age; no se corrige, no se burla, mas apenas se cumpre. A guerra e o amor so o binrio sobre o qual avana a vida. intil pergunta-se: por que assim, e no de outro modo? O fato que assim funciona o nosso mundo. O fato que os objetivos impostos, certamente por uma inteligente vontade oculta, so assim atingidos: continuao e seleo. Pois que com esse fim protegida pelas supremas defesas e conservao individual, tanto como a coletiva e a evoluo da espcie. O mundo veio at aqui, chegando ao estado atual, porque aqueles objetivos foram atingidos.

    Tudo isto luta, risco, fadiga imensa. E no que resulta? Na seleo, no progresso. A significao do processo est na evoluo. Fazer, pois, um homem, uma nao, uma raa sempre melhor, este o resultado que a lei biolgica quer. O materialismo ateu no compreendeu que a sua evoluo significa justamente criao no esprito. Assim avana o mundo. Este o significado do poder de comando que o instinto revela.

    O nosso mundo social um campo onde se chocam foras diversas, que na sua oposio desejam elidir-se, e assim se corrigem. necessrio reconhecer que na sua disposio h profunda sabedoria, pois desse catico coexistir emerge, no destruio ou desordem, mas a construo de uma ordem sempre mais perfeita. O progresso verificado no mundo consiste precisamente na passagem da desordem primitiva ao estado de ordem que progressivamente se realiza. O progresso um progresso de harmonizao. Assim o Universo caminha para Deus, que harmonia, ou seja, realiza cada vez mais a manifestao do Seu pensamento.

    Assim nascem e renascem, sempre mais perfeitos, por evoluo orgnica, mas agora sobretudo psquica, os homens, as naes, os povos, as civilizaes, a humanidade. Assim, povos e civilizaes, como os homens individualmente, crescem, envelhecem, decaem, morrem e renascem, para completar, partindo de bases sempre mais elevadas, construdas com os materiais precedentemente conquistados, ciclos sempre mais altos.

    A luta portanto necessria, til, lei da vida, fundamental, criadora, inevitvel. A harmonia divina no se pode realizar na Terra seno atravs desse grande esforo, preo da redeno humana, condio da vinda para a Terra do reino dos cus.

    Desta luta, uma forma, no mais baixo plano humano, a guerra. Nela sempre nos encontramos, porque a ela est confiada a evoluo

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    do mundo com a supresso do involudo, do parasita, do inepto. Ela , por certo, a forma primitiva da luta, prpria da fase no evoluda em que o homem dito civilizado ainda se encontra. E enquanto, pela evoluo, aquela forma no puder ser superada, a luta, que ser sempre necessria, dever subsistir naquela mesma forma. At hoje a guerra lei inexorvel, como parte integrante da zona de determinismo do destino humano, e isso porque ela est no passado biolgico da humanidade. At, portanto, a neutralizao desse passado, pela superao, a guerra ser uma fatalidade biolgica. E isso porque a luta o meio de que dispe a natureza, para conseguir seleo e progresso. No a luta o que se pode suprimir, mas somente as suas formas mais atrasadas. Mas estas no podem ser superadas enquanto o homem no tenha aprendido por si mesmo, com a sua fadiga, a super-las. Cada humanidade tem as leis biolgicas que merece.

    Sob pena de trair o supremo escopo da vida, que o de subir, a forma de luta que a guerra no pode ser abandonada enquanto o homem no tenha aprendido a transform-la em formas superiores de luta, dirigidas a fins superiores. necessrio que a humanidade tenha primeiro a fora de transportar-se, inteira, para um plano mais alto. Hoje, a guerra e o amor se equilibram no recproco esforo corretivo. Se esta fora do amor, que conserva e multiplica, no fosse corrigida pela destruio seletiva e reconstrutora da guerra, terminaria igualmente na estagnante podrido da morte. No basta multiplicar os homens, com o amor. necessrio refazer os povos, com a guerra. Proteger e prolificar no podem ser mais do que um meio para tingir o fim, a que s a luta conduz: destruir para reedificar.

    A verificao destas leis levou-me concluso de que a vida e no pode ser seno dura, sria, til; que ela no uma alegre excurso de gozadores, mas um trabalho srio, dirigido sobre o plano orgnico de leis biolgicas, rumo a objetivo elevado e preciso. Cheguei concluso de que intil tentar evadir-se, na inconscincia e nos prazeres fceis, a este necessrio esforo de evolver, a esta lei de progresso que est escrita em nosso sangue e em nosso destino humano. Quem tenta evadir-se inexorvel e terrivelmente punido pela invisvel Lei. Quantas coisas invisveis tm tremenda fora!

    Sob tais concluses, estabeleci uma vida dura, sria e til. A utilidade no aquela que comumente se entende, ou seja, a das vantagens materiais: a conquista dos valores morais, que no se vem e que regem o mundo. Estou convencido de que cada um pode escolher os prprios objetivos, independentemente da opinio dominante entre os seus semelhantes. Estou

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    convencido, tambm, de que a verdadeira verdade simples, a que serve para a vida; que intil o complicado e erudito filosofar, pois o que importa viver aquela verdade, antes de profess-la e preg-la. Assim tenho feito e vivido seriamente.

    No pretendo que a minha verdade seja absoluta, nem que se deva imp-la a algum. Esta a minha experincia. Os outros faam, a seu modo, a sua. Cada um recolhe para si o resultado do seu sistema. Uma experincia conduzida honestamente, com convico, objetividade e seriedade cientfica, sempre merece respeito. Uma hiptese de trabalho que, aps trinta anos de controle, corresponde ainda aos fatos, resolve os problemas e resiste experincia de uma vida, deve conter qualquer coisa de verdico. Passei pelas verdades particulares - rivais, em luta entre si, filosofias e teologias - mas o slido, qualquer coisa de objetivo, sempre presente, inderrogvel e convincente, no o encontrei nas construes da psique pessoal, que no so mais do que elevao a sistema do prprio temperamento - um caso biolgico - mas encontrei-o na observao do funcionamento orgnico do universo. Na convico de que somente este nos pode exprimir o pensamento de Deus, na forma por que ele se realiza, e pelo qual, sem dvida, tudo dirigido e guiado, eu o deduzi dos fenmenos de todo gnero. E nestes, que esto sempre presentes, eu o vi continuamente em ao, como recndito motor, que para mim uma realidade objetiva, inegvel, porque sempre funcionando. Tudo, a cada momento, dele me fala. Deste pensamento e desta realidade tenho vivido. No caos das concluses humanas, dissonantes at oposio, apeguei-me a esta realidade biolgica, isto , a esta realidade de vida. Deixei-me guiar pela sbia voz da natureza, que aquela realidade nos indica a cada passo. Todo o meu ser, das zonas inferiores s superiores, dela se tem nutrido, como de uma fonte divina. Se me tenho proposto inusitados objetivos e tentando experincias a que os outros fogem ou ignoram; se tenho cado e s vezes falhado; se perigosamente tenho vivido e duramente sofrido, tenho, sem dvida, trabalhado em harmonia com a criao. Se o progresso um processo de harmonizao com o pensamento de Deus, atuante no mundo, e vai do caos ordem, eu, depois de haver baseado a minha vida numa concepo universal de ordem absoluta, consegui trazer para o meu destino essa harmonia e essa ordem, no obstante tudo. Assim lutei e venci o caos e o mal, que podem aparecer em dado momento da vida individual e coletiva, mas dos quais triunfa aquele que possui as bases do equilbrio, a orientao fundamental e a chave do funcionamento fenomnico. Decidi-me assim a marchar, creio-o, na

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    direo fundamental da vida, que no a de vagabundear ou gozar, mas a de lutar para conquistar e ascender.

    II

    O Protagonista e o Ambiente

    Quem escrevia assim? O protagonista deste relato, o homem cuja histria

    narramos. Com aquelas suas palavras o individualizamos e apresentamos. Mas, para melhor compreender, necessrio narrar ainda. A histria desenvolve-se na hora titnica e apocalptica

    que, como um rasgo no cu, aparece cada vez mais lampejante, sobre a outra metade do sculo XX, prenncio da hora ainda mais grave. Esta histria um pouco a histria de todos os espritos sensveis e amadurecidos, que tm uma vida individual profunda e prpria. Neste esprito, espelho refletor de todas as luzes do seu tempo, refletem-se em parte e as grandes tempestades ideolgicas que o sculo vinha maturando. Nascido nos fins do sculo XIX, ele tinha visto, depois, realizarem-se ao seu redor as maiores transformaes polticas, sociais, intelectuais, espirituais e cientficas. Crescido entre velhas ideologias, em ambiente de provncia, intelectualmente restrito, tinha visto a vitria do automvel, do aeroplano, do rdio, e assistindo profundas mutaes no campo cultural. Muitas vezes, fora obrigado a mudar a prpria orientao e renovar as suas concluses. Num mundo em evoluo assim to rpida, ele, gil de mente e de corpo, havia-se renovado ainda mais rapidamente. Apreciara o frenesi de dinamismo, o esforo de ascenso. E sentia-se satisfeito de ter nascido em hora to intensa e interessante, para a sua nsia vertiginosa de renovao, para as suas tentativas de elevao, tormentosas e, embora por momentos, frustradas. E lanou- se no turbilho, no para girar como tantos, em torno de si mesmo, num torvelinho intil, mas para compreender o sentido profundo daquele turbilho e dele tirar o mais elevado proveito. Tinha a completa sensao daquela hora histrica, grave e solene, e a vivia toda, avanando e fremindo, para realizar-lhe o significado mais real, eterno, ou seja, a trabalhosa ascenso do homem rumo a melhores formas de vida. Ergueu a cabea ante os adormecidos, em que tropeava, na sua luta para salvar os valores morais do mundo e conquistar entre eles os mais elevados. Foi asfixiado, desprezado, incompreendido. Vida de fadiga e de desgastes, mas

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    vida de ascenso interior e de conquistas espirituais, profundamente concebida, alm de todas as formas; aderente substncia, vida de laborioso silncio criador, de f, e no raro de desespero e de sangue. Ele foi, assim, um lutador, e lutador no mais elevado campo que o do pensamento e da ascenso moral. Algumas vezes caiu, foi trado pelo ideal e pelos homens, trado at ao desprezo, ao ridculo, desesperao; viveu, na solido, horas trgicas, no vistas e no compreendidas. Mas a idia alta e reta no o caminho do sucesso fcil. E embora possam rir os gozadores, facilmente triunfantes, ele quer para si a vida sria, com srio objetivo. E se ao mundo apareceu falido, estava muito satisfeito com a prpria conscincia.

    O nosso protagonista assim um smbolo, uma idia, que, vivida, transforma-se em realidade, uma experincia realizada, em cujo seio se atormentam e amadurecem, ainda, tantos outros espritos ousados.

    Sobre o fundo longnquo da cena est a multido annima, rumorejam as grandes massas amorfas, instintivas, ignaras, inconscientes, o grande povo, vaga entidade para a qual devemos dirigir-nos, obedecendo ao antiqussimo ensinamento evanglico e ao novssimo ensinamento das mais recentes concepes sociais. A multido uma das foras que se movimentam neste enredo. Aqui, ela um indistinto rumor de fundo, imenso como o do mar, um som coletivo, resultante de muitos pequenos sons, um vago som confuso, que no se sabe de onde nasce porque vem de todos os lados, nem de quem procede, porque provm de todos. Entretanto, ela uma fora que toma, s vezes, forma de pensamento definido e de vontade decisiva, e, em certos momentos, tudo transforma, impondo-se histria. Aqui, a multido aparece como termo de comparao, como elemento de resistncia, de misonesmo, como inrcia em face da fora, como a grande terra polo negativo, sobre a qual o verdadeiro homem, polo positivo, caminha, sozinho, rumo aos seus objetivos, to distanciados das multides de hoje. Ele uma idia, uma vontade que reage psicologia coletiva e contra a qual esta reage. Veremos aqui se formarem os circuitos de ressonncias e o seu dispersar-se em dissonncias, ouviremos acordes e discordncias. Ouviremos sintonizaes com outras foras do impondervel.

    Neste trabalho encontraremos freqentemente citados o mundo e o homem comum. O mundo tem aqui o sentido evanglico de lei humana da terra, inferior, contraposta s mais altas leis do Cu. Por homem comum, ou normal, ou qualquer, entendemos o tipo dominante, modelo em srie, com a sua psicologia uniforme. Esse, no h dvida, existe na prtica. o homem da rua, o que constitui o pblico annimo e amorfo, um tipo a que se

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    reduzem todos os outros, no momento e pelas exigncias da normal convivncia social. o homem da mediana cultura dos jornais, simplista, restrito aos elementares impulsos animais, envernizado de alguma erudio e educao; o homem que vegeta, luta pela mulher e pelo amor, pelo necessrio e pelo suprfluo, permanecendo no campo material. o homem que pensa por si e pelos seus, movido pelos instintos fundamentais da vida, incapaz de vibrar ante as altas paixes do esprito. O homem que no sabe caminhar seno em rebanho, que no sabe pensar seno em si, que no sabe fazer seno aquilo que todos fazem. Ele feito de muitos homens diversos, de muitos tipos de gradaes. Ele como a expresso pblica dominante, qual todos se equiparam, pelas necessidades da vida prtica, nas relaes sociais. Homens, at mesmo, de alta percepo, homens de todos os nveis, assumem, pela necessidade prtica, a expresso desta psicologia dominante, que resume os traos do maior nmero prevalecente. Ela um meio de se entenderem, a unidade monetria das trocas e contatos comuns, um ponto prtico de referncia. a psicologia das ruas, comum a todos, como um hbito que todos devem adquirir quando descem rua. a psicologia corrente, que faz a opinio pblica e o uso, a que todos se adapta, para poder existir: a religio, a imprensa e todas as derivaes da vida pblica.

    Mas se ela constituir, freqentemente, o ponto de referncia, a substncia deste trabalho situa-se em outro plano. Para os negadores do esprito, que pela sua prpria cegueira se sentem autorizados a lhe negar a existncia, ser uma prova, muito mais convincente do que tantas argumentaes, a narrao desta vida, vivida no seu prprio mundo, no meio deles; vida do princpio ao fim em plano lgico e orgnico, dirigido, no s conquistas efmeras, mas a outras, situadas inteiramente no esprito, dotadas de potncia e lucidez. Aquele tipo de homem, hoje comum, contrape-se aqui um tipo de homem novo, para cuja formao luta este livro com toda a energia com que foi concebido. Homem novo, lutador viril do ideal, no mais inconsciente, do qual ningum, por mais necessitado de evoluo, pode desconhecer o valor e a utilidade, na senda do progresso, e cuja formao, nesta hora histrica, que alvorece no limiar do terceiro milnio, uma necessidade vital, se a civilizao no quiser precipitar-se na morte.

    Assim, no se encontraro neste volume os habituais motivos passionais, nem os costumeiros enredos de fico, com tipos que se movimentam fisicamente em vrios ambientes e em vrias circunstncias. Se personagens e fatos se apresentarem, isto ser, somente, para dar forma ao movimento de correntes de pensamento e de vontade, dar vida tangvel ao

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    entrechoque de idias e de foras, pois que estes so os verdadeiros personagens da narrativa. Esta ser assim, mais rpida, mais sinttica; os fatos sero reduzidos sua pura substncia. Para isso, deixaremos de lado os acontecimentos mais comuns da vida do nosso personagem, aqueles que o fazem assemelhar-se aos demais. No interessante, segundo pensamos, a referncia s coisas que todos fazem, que todos sabem, que todos dizem, e que so, at mesmo as narrativas, sempre repetidas.

    Numa hora, justamente, em que tudo se torna coletivo, e no se pensa nem se age seno em massa, sem esprito prprio, o nosso protagonista permanece solitrio, como se estivesse fora do seu tempo, talvez por hav-lo compreendido demasiado; um rebelde, decidido a viver a todo custo a sua prpria vida. Por certo, alguns temperamentos e alguns destinos no se escolhem, e esto muito acima da prpria vontade. Ele no quer nem poder aceitar e suportar o pensamento alheio. Quer aceitar a sua experincia da vida, sozinho, diante das foras csmicas. Quer permanecer sempre ele mesmo, um desenvolvimento lgico, dirigido a um objetivo prprio, conscientemente escolhido, seguido tenazmente at o fundo. Cheio de disciplina, ferreamente ligado ao dever, mas observador e rbitro de tudo, e, ao menos no seu ntimo, l onde somente se pode s-lo, livre, independente de tudo e de todos. Assim coordenou as foras de sua tormenta, em meio tormenta do mundo.

    O seu tempo lhe oferecia um pensamento catico. O mundo estava abalado pelo entrechoque de tantas verdades diversas, dividido entre o desmoronar de edifcios milenares e a tenso construtiva de novos valores, em todos os setores humanos. O seu tempo era um campo de batalha de grandes maturaes, em que o passado, solidamente firmado, mas justamente por isso ossificado, resistia, com grande fora da inrcia, ao novo que irrompia da velha casca e fremindo de vida. O nosso homem encarou profundamente a grande luta em que a civilizao jogava a sua cartada suprema, e entregou-se todo, de alma e corpo, preparao do advento da nova civilizao do terceiro milnio. Assim, o solitrio fundiu a sua vida na substncia do seu tempo, consciente disso como poucos, vidente e atuante, e como poucos preocupado pelos destinos do mundo. Distante do intil burburinho, ausente da hora fcil dos direitos e da colheita, preferiu estar presente no trabalho silencioso, na hora do dever, do esforo obscuro da semeadura. Assim viveu muito mais ligado aos seus semelhantes do que podia parecer, pois preferiu envolver-se nas suas dores, mais do que nos seus triunfos. Assim, e no de outra maneira, quis ser, a qualquer custo, mesmo a preo de decepes e de desprezo.

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    Preferiu uma vida de luta, a fim de permanecer sempre coerente consigo mesmo. Quis ser um verdadeiro homem, vivendo a srio. Esta nota fundamental de honestidade, qualquer seja o erro que ele tenha podido cometer, nunca o abandonou. No pactuou jamais com o mundo, contra a sua conscincia. Teve de andar contra a corrente, a corrente real, no aparente, antes bem oculta, das aes humanas. Foi por muitos considerado um imbecil. Por isso, no querendo nunca reduzir-se vileza de uma traio aos seus princpios de retido, viu-se constrangido a ser um solitrio.

    Se o leitor no ama um ideal, se no tem paixo pelas coisas mais elevadas e santas da vida, se no sabe vibrar nestes dramas do esprito, se no tem vivido ascendendo atravs da dor, se no compreendeu a gravidade do nosso tempo, se no sente, enfim, a necessidade de fugir cotidiana misria da vida, no poder interessar-se por histrias como esta. Aqui, no encontramos amor seno por Deus e pelos que sofrem, nem paixo seno pelo bem. Este no um livro de vida fcil, que se rebaixa, mas o livro da vida dura e severa, que constri e se eleva. Quem aqui procura, para o seu deleite, qualquer vaidade literria, quem gosta somente de curiosidades para distrao, quem pensa encontrar aqui, repetidos, os motivos que costumam mover os homens e as suas paixes, largue o livro. Quem no tem buscado e seguido, na luta e na dor, as speras vias da ascenso, caminha na vida sobre outros trilhos. Cada um tem os seus, e vai para onde quer. Largue o livro, mas lembre-se de que, em qualquer posio social ou espiritual em que se encontre, participa tambm da narrativa, chamada histria de um homem, mas que na realidade, a histria de todos os homens.

    III

    O Significado e o Mtodo da Vida

    Ele nasceu como nasce um homem qualquer, num

    ambiente comum e insignificante. Nascer coisa to simples e natural que parece, de fato, no merecer ateno. Em geral, ningum se surpreende com as coisas mais maravilhosas da vida. Entretanto, naquele feto que vem luz, h abismos de sabedoria e de mistrio, do ponto de vista orgnico, como do espiritual. Aquele organismo humano teve de percorrer longo caminho, para se transformar naquilo que , ao nascer. No era, no princpio, seno minscula clula, o ovo humano fecundado, e teve de recomear desde a

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    origem a sua existncia, retornando at as razes da rvore genealgica da vida, ou seja, a uma forma unicelular, como a da alga ou da ameba. Transformou-se depois, lentamente, em pluricelular, em esfera de clulas. S fora de multiplicaes e diferenciaes, tornando-se sempre mais complexo, chegou forma humana completa. Em nove meses, recapitulou toda a escala biolgica evolutiva da qual descende, e que precedeu e amadureceu a sua forma atual. E s ento pde vir, completo, luz. Esta indiscutvel verificao de fato surpreendente e nos mostra quo gigantesco trabalho o imenso passado teve de realizar para atingir as formas presentes. Mostra-nos que ciclpico feixe de foras faz presso sobre aquele feto, para que o impulso no se detenha e a vida continue.

    O retorno, a necessidade de se refazer desde o princpio, resumindo o trabalho realizado, antes de prosseguir, como para reter o impulso ante a nova tarefa construtiva, corresponde lei universal dos ciclos fenomnicos, da qual no mais que um caso particular. Para cada fenmeno avance na evoluo, necessrio a consolidao das suas bases, resultante da repetio e reviso do passado2.

    Tudo isso o ser realizou sem nada saber. Pouco do presente, nada do passado e nada do futuro. Tanto assim, que s por ltimo chegou formao da conscincia, nica que pode saber e compreender as coisas. H, portanto, um princpio diretivo e inteligente, que tudo guiou, com lgica, economia e tcnica que nos aturde, e que no se encontra no ser, ignorante de quase tudo. Ora, no se compreende como a cincia darwiniana e haeckeliana, que descobriu aquela verdade, tenha desembocado no atesmo, quando o materialismo a mais profunda demonstrao da existncia de Deus. Demonstrao cientificamente slida, muito mais do que as filosficas, teolgicas, abstratas e racionais.

    A comprovao de que o organismo humano repete a sua histria, que claramente nos mostra, dos primeiros at aos ltimos graus, o desenvolvimento biolgico, diz-nos ainda outra grande coisa: fala-nos tambm do parentesco, e portanto da fraternidade, de todos os seres e da comunho de destino biolgico entre o indivduo e o gnero humano. O indivduo traz em si, na constituio celular, na estrutura orgnica, nas diretrizes do seu instinto, uma experincia e uma sabedoria, no somente individuais, mas que pertencem raa. Ele possui em si mesmo qualidades que so coletivas,

    2 Ver A Grande Sntese, do mesmo autor, cap. XXVI: Estudo da trajetria tpica dos motos fenomnicos. (N. do A.)

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    patrimnio de todos, e que a economia da natureza o faz encontrar j realizadas, ao nascer, com grande poupana de esforo criador, prontas para a imediata utilizao nas necessidades da vida. O feto insignificante resume e sintetiza a espcie, traz em si o passado, e sobretudo, ainda em germe, o futuro. Aquele ser uma fora csmica, a vida, fora que no se pode deter. Repetiu, no seu desenvolvimento vibratrio, a histria genealgica da humanidade; percorreu de novo o caminho da formidvel ascenso que, dos unicelulares s amebas, aos invertebrados, aos peixes, s feras, aos pitecides, aos antropides, conduz ao homem, sempre pela mesma lei. Esse homem, que tanto caminhou, no se pode deter, e a sua vida presente no pode ter outro significado seno o da continuao daquele caminho. A cegueira imperdovel do materialismo consiste no fato de no perceber o ntimo motor espiritual deste crescimento e, portanto, a diretriz da continuao daquele ilimitado, incessante e irrefrevel vir a ser da espcie. O erro nasceu do desejo de persistir na precedente viso unilateral da evoluo puramente orgnica, que no , ao contrrio, seno o efeito do desenvolvimento de um princpio espiritual. Que nos indica a histria da civilizao humana: a construo orgnica e, mais especialmente, a psquica? Pois aqui se torna evidente, ressalta e domina a psquica, atuante sobretudo no campo nervoso e espiritual. E acreditamos seja cientificamente slido e persuasivo considerarem-se as conquistas espirituais e morais como construes biolgicas. Somente assim elas adquirem um significado orgnico, em conexo com o desenvolvimento da vida.

    verdade que o moderno materialismo foi constrangido, quisesse ou no, a avanar e orientar-se nos rumos do esprito. Este uma fora to poderosa e evidente em a natureza, que no poderia permanecer perpetuamente sem ser visto. E j grande progresso, em face do velho materialismo ateu. Mas, apesar disso, a cincia no v ainda seno os primeiros sinais do esprito, ou seja, aquilo apenas que se pode ver do plano material em que a cincia se mantm. E isso no suficiente. Para compreender a vida e viv-la seriamente necessrio, ao invs, uma integral concepo do esprito. Mas demos tempo cincia materialista, para ascender segundo aquela lei fatal de evoluo, por ela mesmo afirmada, e chegar ao esprito, de maneira jamais vista na histria, efetiva, slida e completa. S ento se podero lanar as bases da nova civilizao do terceiro milnio, que, se no quisermos retroceder barbrie, no poder ser outra seno a do esprito.

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    Seria absurdo que aquele impulso evolutivo, que se faz do ponto do vista orgnico, to evidente no feto, at o seu nascimento, depois se detivesse, justamente quando comea a vida individual. E se aquele impulso, que lei da vida, como de todos os fenmenos, no se pode deter, logicamente o seu prosseguimento no pode assumir, como os fatos, de resto, confirmam, seno a forma psquica. E assim, ainda aqui notamos que o homem recapitula, na infncia, repetindo todos os graus de desenvolvimento, no mais a histria orgnica, mas a evoluo espiritual j feita, que a prpria substncia da histria da vida, nesta fase superior que a humanidade atravessa. E como o feto s se apresentava completo na vida orgnica, depois desta repetio do seu passado nesse plano, assim a conscincia do jovem se apresenta amadurecida, na vida psquica e espiritual, somente depois de idntica repetio desse passado, em plano superior. Concluindo, o significado biolgico da vida humana, na sua madureza e velhice, no pode ser outro que o da formao de uma personalidade sempre mais completa, atravs de provas, dores, lutas, de todas as experincias teis para o progresso espiritual, individual e coletivo. Se o homem nasce organicamente no ato do parto, o homem, espiritualmente, um feto em gestao, at a sua maturao juvenil, e s ento ele nasce consciente para a vida, e se prepara para a continuao do trabalho criativo e sem fim, do seu prprio esprito. Nascendo, o nosso homem se apresentara, portanto, vida e eis o que o esperava. Eis em que sentido ele orientar a sua existncia, que apenas comeamos a narrar.

    Trata-se de uma experincia realizada contra a corrente hoje seguida pela maioria. As teorias, os ideais pregados no tm importncia, a menos que sejam tambm vividos. As simples palavras, biologicamente, tm pouco valor. Tratar-se- de uma reao e de uma rebelio contra o mundo, em nome dos mais altos valores do esprito, ao qual se d, aqui, uma slida base biolgica, e portanto cientfica, lgica, persuasiva. No mais tempo de nos iludirmos. O mtodo corrente de viver e de conceber a vida est completamente errado. O mundo est hoje, de fato, fora do caminho. Esta afirmao no se encontra apenas na mente de algum vidente isolado, que seria fcil no ouvir ou fazer calar, mas est nas prprias leis da vida, a que ningum jamais poder fugir. No comum, o homem obedece cegamente ao instinto de crescer. Instinto elementar, que se inicia na clula e exprime a vontade fundamental da criao, que a de evoluir. E atira-se ao crescimento como um louco, egoisticamente, caoticamente, isoladamente, desesperadamente. O princpio do crescimento justo, mas o homem normal no tem a mnima idia de um mtodo racional para o seguir. S um mtodo

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    que nos harmonize com as diretrizes dominantes no funcionamento orgnico do universo poder ser satisfatrio, ou seja, sem disperso de energias, levando-nos a um resultado substancial til. A vida do homem de hoje um convulso agitar-se, para se apoderar do mais que possa, de todos os lados e por qualquer meio, para si e para os seus. uma luta desesperada, sem mtodo, sem critrio diretivo, sem conscincia das leis que dirigem, pela vontade divina, a vida. Naturalmente, com esse louco sistema, no pode o homem atual seno colher desiluses. H uma desiluso, que quase normal, ao fim da vida, e que depende toda de nossa m posio diante dela. Comportamo-nos, freqentemente, a este respeito, como verdadeiros inconscientes.

    A primeira pessoa que encontramos na rua sabe muito bem que o problema fundamental da vida consiste no prprio bem-estar material. Sonho supremo, ltimo horizonte, alm do qual se encontra o paradisaco Nirvana do repouso. Da a luta sem escrpulos para atingi-lo, egosmo ilimitado, adorao ao supremo deus dinheiro. Em que coisa se transforma uma sociedade de tais indivduos? Um campo de batalha, onde quem se distrair atropelado; um inferno, e isso do nascimento morte, por toda a vida, sem nenhum descanso. Esta a realidade. O resto exceo, ou sonho ou hipocrisia. Assim, o mundo criou a voragem do prprio suicdio, sem ter fora de fugir dele.

    Ningum sabe explicar como, em meio a to decantada civilizao, em meio riqueza e ao bem estar dos povos civilizados, a vida contenha ainda tanta dor e to amaras desiluses, a ponto de espantar aquele que no seja um inconsciente. A razo esta. Que o homem no vive s de po, que no basta, para satisfaze-lo, que ele tenha saciado os instintos da fome e do amor, porque ele possui outro instinto, to fundamental como aqueles, que o instinto do progresso. Este menos concreto, mas nem por isso menos poderoso do que os outros, porque preside ao cumprimento das mais altas finalidades da vida. Ele , tambm, o instinto de satisfao mais difcil, e por isso o homem procura eximir-se de cumpri-lo, sem compreender quo profunda a desiluso que lhe resta, seja embora vagamente, na sua conscincia, por essa recusa ao cumprimento da vontade das maiores leis da vida. Essa desiluso uma vaga, impalpvel, ntima dor, que ele no compreende mas que tem de suportar, como inevitvel reao da Lei, que assim castiga qualquer traio. A sociedade moderna est envenenada por esta dor, que no se sabe onde se localiza, mas que se encontra em todas as

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    coisas, porque os nossos atos, muito freqentemente, constituem uma rebelio s leis da vida.

    No obstante o absurdo do arrivista sistema moderno, h alguns que vencem. E quando vencem e saciam o ventre, regalam-se nos prazeres sensuais, pavoneiam-se de honra e de poder; justamente ento eles sentem, amarssima, essa desiluso que no est nas coisas humanas, mas somente na sua maneira de utiliz-las. E espantam-se, ento, de no encontrar pela frente seno um grande vcuo no esprito, espantam-se de perceber, justamente quando pensavam ter conseguido tudo, que nada conseguiram. Nada a invejar-se, portanto, destes esplndidos vencedores, internamente rodos pela desiluso. A sua felicidade s aparente, eles bem o sabem, uma felicidade trada, como justo caber aos traidores das leis biolgicas. No se pode impunemente trair o instinto fundamental da vida, do qual os demais instintos no so mais do que instrumentos. A vida impe o trabalho de evoluir. Trabalho que custa to grande esforo que, preguiosos, desejaramos esquivar-nos de faze-lo. Para no ouvir a voz da conscincia, que nos adverte, tentamos aturdi-la por todos os meios, procuramos no compreender e esquecer os fins supremos para os quais nascemos, precipitando-nos, assim, de queda em queda, cada vez mais abaixo, at desesperao. intil tentar fugir. intil que a nossa civilizao cientificamente refine a sua sabedoria, na arte do prazer que envenena, do estupefaciente que atordoa, da astcia que se esquiva, da fora que se rebela. Do ponto de vista cientfico como do religioso, a vida deve ser evoluo, ascenso, ou seja, esforo de redeno. No h prazer, estupefaciente, esperteza ou fora humana que nos possa subtrair a esta lei fatal. Se no nos lanarmos de boa vontade pelo caminho da ascenso humana, rumo ao divino, f-lo-emos constrangidos pela desesperao. justamente a isto que o mundo de hoje chegou, e tem de faze-lo, no mais pelo amor, mas pela fora. Ao final do segundo milnio, para a civilizao europia, esta a nica diretriz possvel, para continuar a viver.

    Este livro deseja expor outro sistema de vida, no qual no importa enriquecer, conquistar poder, honras, prazeres. No se d nenhum valor quela disperso de trabalho para a produo de coisas to relativas e aleatrias; mas se d, pelo contrrio, todo o valor construo moral de si mesmo. Este livro deseja demonstrar como se pode fazer da vida um grande edifcio, sem se tocar em dinheiro ou honrarias, e at mesmo combatendo estas coisas. Em nosso mundo pensamos que a felicidade esteja num lugar, quando est noutro, ou seja, no nas vantagens do oportunista, mas na ordem, na harmonia com o prprio vizinho e com as leis da vida e de todo o cosmos. A

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    verdadeira felicidade, que nos satisfaz, no est fora, no plano material, mas dentro de ns mesmos, no plano moral. No em nos revestirmos de roupagens fictcias e passageiras, mas na construo de ns mesmos, na aquisio de qualidades que so bens imperecveis, eternamente ligados nossa personalidade. No se pode negar quantos esforos a terra se impe, entretanto que rendimento eles dariam, se fossem mais bem orientados! verdade que a vida uma experincia que se tenta. Mas que desperdcio de energias, quando no se sabe que direo se deve dar aos prprios esforos! Passam-se, assim, vidas inteiras completamente desperdiadas, vidas cujo resultado se resume em compreender que tanto trabalho foi intil, e que a direo devia ter sido outra. Assim os destinos se desenrolam estupidamente, perseguindo quimeras, e no se encerram seno numa triste colheita de amarguras. Assim se consomem existncias inteiras, em inauditos esforos para a conquista daquelas coisas que so os produtos secundrios do nosso trabalho, no tendo substancialmente outro valor que o de instrumentos transitrios e relativos. intil gritar, depois, que a vida "vanitas vanitatum"3. Quando todos os princpios estavam errados e foi trado o instinto mais alto, o divino comando a que no se pode fugir.

    Quo diferente a concluso para quem trabalhou satisfazendo aquele instinto e obedecendo quele comando! Que alegria brilha atravs das necessrias dores da vida, que messe de ntimas satisfaes, adoa e premia o esforo da ascenso! Ento no se colhem, no fim, desiluses, mas se compreende a grande utilidade e a potncia construtiva da dor. E, embora sofrendo, se louva a Deus, porque uma ntima satisfao do esprito nos convence de que no perdemos tempo e os verdadeiros objetivos foram atingidos. Uma sensao interior, que no pode enganar-nos, uma satisfao instintiva, no obstante tudo, nos assegura que no lutamos e sofremos em vo, e que qualquer coisa de impondervel e imperecvel se encontra em ns conquistada por ns, merecida, e, portanto, realmente nossa, para sempre. Contudo, quantas vidas restam tradas pela preguia, pela ignorncia, pela teimosia de no querer compreender e seguir os verdadeiros fins da vida!

    A cincia e a razo tm prometido vrios parasos na terra, mas eles no foram realizados. Dizemos isto, no para combater ou subestimar o imenso passado e o esforo atual, herico e justo, do mundo, para se colocar numa nova ordem, mas para acrescentar-vos que a nova civilizao, que no pode ser seno a do esprito, no poder efetivar-se antes, cada qual, individualmente, no modificar a srio a sua concepo e o seu 3 Vaidade de vaidades.

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    sistema de vida. Se o mundo no se transformar, de fato, atravs de cada um dos seus componentes; se, no somente em palavras, mas tambm na realidade da vida, no se inaugurar, em vasta escala, uma nova tbua de valores, uma nova civilizao no se formar. Assim como hoje se ri do senso de honra da Idade Mdia, que consistia em passar a fio de espada os inimigos, assim os sculos futuros havero de rir de alguns dos nossos conceitos de respeitabilidade e de honra, baseados na riqueza, nos ttulos e nas posies sociais, filhos da egosta luta individual. O problema da felicidade, - logo se dever compreender -, no se resolve com o bem-estar material, mas somente atingindo, alm daquele, um elevado grau de conscincia, de que aquele no mais do que meio. Enquanto fizermos da riqueza um fim em si mesmo, ela continuar envenenada e envenenar quem a possuir. A felicidade no uma forma de abastana, mas uma ntima satisfao do esprito, um equilbrio moral, "uma harmonia individual na harmonia csmica". O homem possui tambm, indiscutivelmente, um esprito que no pode iludir-se e satisfazer-se somente com vantagens e gozos materiais. Alm destas aquisies h todo um outro mundo, com mais vastos horizontes. O esprito sente por instinto, a necessidade de orientao conceptual, de finalidade das aes, de coordenao dos seus prprios esforos para a meta de si mesmo no todo. Sente a necessidade de realizar qualquer coisa de srio e imperecvel, para quando tiver chegado ao fim da vida. Se o homem no possui tambm estas coisas imponderveis, sente-se freqentemente, sem saber como explicar, insatisfeito, infeliz.

    Enquanto o mundo se ocupar das construes materiais, antes das construes espirituais, e no se ocupar destas como coisas principais, a vida ser desperdiada, as leis biolgicas sero tradas, e ser insensato, nesse regime de insensatez, pretender colher felicidade ao invs de desesperao. Pode-se sorrir com ceticismo e expulsar o enfadonho pregador dessa verdade, mas o dilema hoje tremendo: ou criar uma nova civilizao ou retornar barbrie. As leis da vida exigem e fazem presso para resolver dois milnios de preparao e de espera, e no h lugar para a inconscincia dos que dormem ou gozam. Se no houver o esforo para se criar uma nova civilizao, a barbrie de substncia, no importa se envernizada de civilizao mecnica, ser uma punio para todos.

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    IV

    Nasce um Homem e um Destino

    Ele havia nascido na mstica mbria4, em fins do sculo

    XIX, quase sombra de So Francisco, figura que se agigantou no seu esprito. Penltimo de numerosa srie de filhos, no esperado viu-se no mundo como por engano e provocou atenes especiais. Nascera numa tarde de agosto, na simplicidade, de uma casa simples, num velho bairro de ruas estreitas, enquanto a turma dos irmos, para dar paz casa, tinha sado a passear. E assim como nascera, viveu, longe das vs complicaes da riqueza, livre da escravido de tantas exigncias. Feliz de quem nasce na simplicidade, onde no falta o necessrio mas no se escravo do suprfluo, onde a vida, que em tudo sempre deseja crescer, partindo o humilde, tem espao para subir. Que caminho resta a percorrer a quem j nasceu feito, rico e poderoso, seno decair? A vida um vir-a-ser e no se pode parar. Um caminho necessrio. Se no se puder faz-lo em ascenso, termina-se por faze-lo na descida. Essa lei fatal da vida. Haveria um remdio: livrar-se logo o privilegiado da sua posio de privilgio, da injustia que pesa sobre ele reclamando justia, livrar-se logo do dbito contrado para com os semelhantes ao nascer em posio favorecida, dbito do qual as justas leis da natureza exigem o pagamento. Mas livrar-se muito difcil, seja para o bem nascido, que cresce enfraquecido pelas facilidades da vida, que no lhes ensinam desde cedo a luta, seja pelos pais, que o amam. Essa desgraa de haver nascido j feito no merece, portanto, como se costuma fazer, a nossa estpida inveja, mas antes direito nossa benvola piedade e ao nosso auxlio.

    Feliz, pelo contrrio, quem nasce com a riqueza do esprito, que mais facilmente se encontra e se desenvolve na pobreza das coisas humanas. Os tesouros da terra podem ser perdidos, mas no os do Cu. Em meio barafunda das incertezas humanas, h aquela maneira incrivelmente segura de investirmos as nossas riquezas nos valores imperecveis do esprito. Estas primeiras referncias so feitas aqui, justamente por exprimirem o tom fundamental que dominar esta histria, em todo o seu desenvolvimento. Desde o princpio, oposio absoluta entre esprito e matria, luta dos princpios morais contra o utilitarismo do mundo. Desde o princpio mostrada aqui, bem clara, a inverso evanglica dos valores humanos. Neste 4 Foligno, prxima a Assis, cidades da mbria. (N. do T.)

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    relato veremos desenvolverem-se os speros sucessos dessa trgica batalha, nem sempre vitoriosa. Essa histria de um homem est, portanto, em perfeita harmonia com a substncia do Cristianismo e com a revalorizao das foras do esprito, hoje, sob certos aspectos, abertamente sustentada.

    Como todos, ele trazia em si as notas da sua raa; a caracterstica mbrica, assinalando o tipo geral italiano. Diz-se que os antigos romanos possuam o dom da vontade e do equilbrio, os toscanos o da expresso e os umbros o da intuio. Assim, o lugar do nascimento e o tipo da sua gente, taciturna, sbria, trabalhadora, j esboavam um pouco o seu destino.

    Tambm a hora, o dia, o ms, o ano, as constelaes, diz-nos a astrologia, influem no destino de um homem. E seria absurdo neg-lo "a priori", por simplismo ou ignorncia materialista. A radiestesia, cincia das vibraes de todas as coisas, inclusive o homem, transmitem e recebem, est apenas nascendo. E j est sria e cientificamente justificada a desconfiana de que existem muitas coisas sutis, no Cu e na Terra, inegavelmente reais, embora imponderveis. Certamente, em meio a tudo isso que existe, o homem transmite, e sobretudo recebe, uma quantidade infinita de vibraes, das quais se ressente, mesmo que a sua atual insensibilidade no lhe permita perceb-las com clareza.

    No importa saber que nome o protagonista recebeu ao nascer. O leitor lhe d um nome qualquer, o que mais lhe agrade. O verdadeiro nome do homem no dado pelos registros sociais, mas pelo seu tipo, pelo seu destino, pelas suas obras. O nosso personagem aqui se encontra como um soldado annimo da vida, no qual poder encarnar-se quem o quiser. um tipo a que s se poder dar um nome, ao fim do seu caminho terreno.

    Assim ele se encontrou a viver nesta terra, imenso campo de explorao, qual fora progressiva num mar de foras em ao. Em torno dele vibraram efeitos de prximas e remotssimas causas, de que no tinha conhecimento. Para esse recm-nato, o mundo apareceu como trevas, em que a centelha espiritual, concentrada no eu, deve, por si, aprender a ver. A infncia se lhe mostrava incerta e temerria, e cada hora, cada passo, era uma conquista. Indagar, explorar, experimentar, o seu desejo e a sua tarefa. Ele aprende primeiro as grandes palavras da vida: "mame", que a gnese, "eu", o centro da conscincia; "quero", expanso e concentrao no eu; "por que", a grande pergunta a que nunca poder dar a ltima resposta, mas que contm a busca sem fim de Deus. Aprende a caminhar, porque, materialmente

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    e moralmente caminhar toda a vida. Mas sabe chorar desde que veio luz, porque a dor j o tomou em suas garras e no o largar mais.

    Mal nasce, comea, para a criana, a se desenrolar um fio, inicia-se a marcha que ser batida, at a morte, pelo ritmo inexorvel do tempo. Mas nem o fio se desenrola, nem a marcha avana ao acaso. A conscincia da criana semente que se desenvolve e se expande, mas germe que traz em si todas as caractersticas fundamentais da futura personalidade. As notas centrais j esto dadas, e no se mudaro mais. Isso acontece com todos os germes vegetais e animais. Vem depois a educao a que a criana submetida, e a que se adapta ou reage, segundo os casos. Intervm depois as foras externas, as exigncias dos outros seres, as imposies da convivncia social, os freios morais do dever e da virtude, que se sobrepem ao instinto. E o tipo originrio, qual o construra a sua histria biolgica, para se adaptar, mais ou menos, enfrenta todas as presses, um pouco se transforma, um pouco aprende a mentir e a esconder o seu verdadeiro eu; algumas foras externas se dobram ante a sua vontade, por outras termina dobrado. Com o seu eu originrio, com as qualidades boas e ms, com os recursos e as deficincias, ele deve saber chegar at o fim, abrindo caminho num mar de foras que o circundam, e que de todos os lados fazem presso para o invadir. Cada uma, sua prpria semelhana, lhe diz: "eu" e "quero", e no encontra a paz enquanto no se realiza a si mesma. Assim comea a vida, que luta, e, da maneira como est biologicamente implantada em nosso planeta, no pode ser seno luta sem trguas para o forte e para o fraco, para o evoludo e para o involudo. Verdadeira escola, ai de quem a ela se exime. Ai dos jovens a quem os progenitores, por excessivo e muito prolongado afeto, que exagera as funes protetoras da criana alm dos limites naturais, entregam os meios fceis de se eximirem luta. Certas educaes cmodas e fceis so pagas, depois, duramente. No possvel eximir-se; necessrio exercitar-se cada um no seu plano, no seu nvel, segundo o tipo fundamental dado pelo nascimento. A luta no violncia e subjugao seno embaixo. E em todos sabem subir. Nem leis nem religies puderam agir to profundamente para civilizar o fundo bestial da natureza humana. Mas, para quem quer e sabe, h formas superiores de luta viril e generosa, que no so a condenao animalidade, mas a afirmao da mais alta potncia no esprito. Neste campo necessrio aprender a lutar. A luta lei da natureza, necessria, e no est no poder humano evit-la. Mas aquilo por que somos responsveis a forma de luta, forma que nos cabe escolher, segundo aquilo que somos, sobretudo segundo

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    aquilo que queremos e sabemos nos tornar. "Diz-me como lutas e por que lutas, e eu te direi quem s".

    Temos falado do destino. H realmente um destino, e em que sentido? A vida um encadeamento de causas e de efeitos, que se pode perquirir, remontando muito aqum ao momento em que o indivduo nasce. Assim os filhos so uma conseqncia dos pais. Mas, ao nascimento, aquele fio comum que se transmite de gerao a gerao torna-se particular, prprio de cada um, e se chama "eu". Destaca-se do "eu" anterior, do qual muito depende, e conserva-se distinto dos eus sucessivos, nos quais, alis, continua e quase sobrevive. Ora, naquele "eu" que estritamente nosso, a parte que conseqncia do passado, isto , a constituio fundamental do germe, do qual deriva o tipo de personalidade est, j ento, fora do nosso livre-arbtrio. Para ns, ao menos, que o possumos na forma j cristalizada, definida na entidade germe, ela qualquer coisa j ento solidificada num tipo. E dessa forma, sem qualquer inquirio, o recebermos ao nascer. No iremos mais fundo, neste trabalho. Algumas mentes se perturbam, ao ouvir falar de reencarnao, e no se tem o direito de perturb-las. Certas salutares ignorncias sero respeitadas. Salutares, porque a humanidade est ainda muito selvagem para ser posta a par de certos conhecimentos. E quem os possui faz bem de no divulg-los, porque eles no podem e no devem ser concebidos seno por quem os mereceu, ou seja, por quem os conquistou atravs da maturao. Sem isso, eles no podem ser compreendidos nem admitidos. Aqui se fala, portanto, simplesmente do passado da hereditariedade fisiolgica e psquica, e esta no se pode negar, porque a cincia a toca com as mos.

    H, indiscutivelmente, na nossa personalidade, uma zona de determinismo. Ela se encontra no fundo do nosso destino, o instintivo, indiscutvel subconsciente, que s vezes se impe nossa vontade, antes que a prpria conscincia desperte. Mas, sobre este fundo hereditrio, em todos os sentidos possveis, filho do passado, eleva-se uma zona de livre-arbtrio, um campo de novas e livres construes, porque o "eu" se forma e se reforma sempre, sem jamais se deter, e se constri especialmente atravs de exploraes e experincias que atravessamos neste ambiente terreno. E justamente para a sua construo, ao menos no que respeita ao tempo da vida humana, que ns a atravessamos.

    Por destino no devemos portanto entender um cego fatalismo, um fato inexoravelmente imposto, mas um impulso anterior, que se pode e que est em ns corrigir. Ao passado cristalizado podemos opor a fora da nossa vontade presente, que pode retificar a trajetria daquela massa, que

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    no caminha somente pela inrcia, mas guiada pelo impulso da nossa atual, inteligente e livre vontade. Se isso implica uma zona de relativa, transitria irresponsabilidade, que s o no presente, porque o subconsciente filho do passado, no viola, entretanto, a zona muito vasta de responsabilidade consciente do presente, sempre livre nas suas correes e criaes5. E se devemos admitir, sob pena de nada compreender ou de acusarmos de injustia o Criador, um passado nosso, livre e desejado, mesmo que ele hoje se apresente fixado em forma de determinismo, est claro que, na realidade, a responsabilidade abarca todo o nosso destino. O destino humano, momento do eterno e necessrio vir-a-ser, portanto o desenrolar de uma luta entre determinismo e livre-arbtrio, entre o passado que quer resistir e o presente que deve corrigi-lo. E a balana da justia pende segundo uma responsabilidade no presente ligada a uma fatalidade, e segundo uma liberdade que, para vencer, deve, agora, quebrar a resistncia do determinismo, que est no prprio destino

    V

    A Procura De Si Mesmo

    Assim comeou a desenrolar-se o fio da vida do nosso

    homem. H tipos lineares, simples, evidentes, de conscincia superficial. A personalidade pode, ento, revelar-se logo. H indivduo que se manifesta mais facilmente inteligente, de mente brilhante; tudo exterioriza com rapidez, e pode ser logo apreciado e desfrutar a sua posio no mundo. O centro da conscincia, no nosso homem, estava, pelo contrrio, to profundamente situado, que permaneceu, para ele mesmo, longo tempo escondido. Ele sentia qualquer coisa de imenso dentro de si, no seu passado, e uma to vasta complexidade no prprio eu, que levou muito tempo a reencontrar-se, e no pde faz-lo seno lentamente, laboriosamente, parecendo, enquanto isso, inepto, tmido, medocre. A sua conscincia devia ser encontrada no apenas na superfcie, mas em profundidade. No podia viver por imitao, nem aceitar verdades j confeccionadas para o uso prtico. No lhe bastava pautar as aes de sua vida pelas simples idias correntes ou pela simples orientao dos instintos. Sentia a necessidade de penetrar a substncia e de inteirar-se 5 Para uma exata compreenso do subconsciente, ver Ascese Mstica, do mesmo autor, parte I, cap. XIX e XX. (N. do A.)

  • 36

    diretamente das razes da vida. No sabia nem podia agir seno de maneira consciente. No podia faz-lo