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FACULDADE DE DIREITO DE FRANCA HISTÓRIA DO DIREITO VICENTE DE PAULA SILVEIRA (ORGANIZADOR) 2011 1

Historia Do Direito 2011

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FACULDADE DE DIREITO DE FRANCA

HISTÓRIA DO DIREITO

VICENTE DE PAULA SILVEIRA(ORGANIZADOR)

2011

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HISTÓRIA DO DIREITO

1. INTRODUÇÃO “Todo Estado dispõe de ordenamento jurídico próprio, composto de normas nas quais se distinguem determinados valores protegidos pelo direito. Esses valores, ou bens jurídicos, contam com maior ou menor amparo perante as respectivas normas que os resguardam conforme a natureza e relevância que estas lhe emprestaram, no momento em que editadas e em face do ambiente para a qual se destinaram; e como substrato social se encontram em continuada alteração, também aquelas vão conhecendo periódicas mudanças, de acordo com a época e conveniência de sua manutenção, ou não”. (AZEVEDO, Luiz Carlos. Introdução à história do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.21). Considerando que o Direito está presente em qualquer meio social civilizado e não se conserva estático, mas se dinamiza e se transforma na medida em que as condições assim exigem, conclui-se claramente que não é possível apartá-lo da realidade histórica. É necessário, pois, saber como o Direito foi, até ontem, para melhor compreendê-lo, no momento atual, e melhorá-lo, amanhã. Em face do acima exposto, não há como negar a importância fundamental da História do Direito. A História do Direito fornece ao Direito atual a compreensão dessa retrospectiva, esclarece dúvidas, afasta imprecisões, levantando, passo a passo, a verdadeira estrutura do ordenamento jurídico, seus institutos mais sólidos e perenes, suas bases de fundo e suas características formais, até alcançar a razão de ser de seu significado e conteúdo, nas palavras de Luiz Carlos de Azevedo.

2 CONCEITO DE HISTÓRIA DO DIREITO A História do Direito não se limita a um inventário, nem se reduz a erguer e revolver os antecedentes históricos das instituições ora vigentes; explica-se, não pela volta às antiguidades jurídicas, mas pelo fato de constituir o “único caminho para a compreensão da essência do Direito” na sua atual conjuntura (José Manuel Pérez-Prendes Muñoz de Arracó. Curso de historia del derecho español. Madri: Darro, 1978.p.17). Segundo Luiz Carlos de Azevedo, a História do Direito:- “É tanto uma ciência histórica quanto jurídica; em face desta dualidade, sua área de atuação não se restringe a limites rígidos ou previamente direcionados; já que não se conforma com a mera descrição dos fenômenos jurídicos, deve compreendê-los e explicá-los desde o momento em que se sucederam, como na seqüência temporal na qual persistiram sobrevivendo ou deixando de existir”. E continua, “Ademais, se alguém aspira a empenhar-se com afinco ao estudo do direito, empregando-o e utilizando-o para o exercício de sua atividade profissional, não pode reduzir-se à leitura sistemática dos textos legais vigentes, aplicando-os mecanicamente na medida em que possam se ajustar aos casos concretos; a tarefa é sobremaneira ingente (muito grande, enorme, imenso): compreensão e explicação; sugestões e idéias; experiência e interpretação são qualidades que se integram a este trabalho; e no qual se insere, por sua vez, a História do Direito, pois ela ensina que o direito não surgiu espontaneamente ex nihil, mas sempre esteve condicionado a incontáveis ordens de realidade, nunca estáticas, mas dinâmicas, e que se alternam conforme igualmente se modificam outros inumeráveis fatores que a vida continuamente proporciona”.

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A História do Direito deixou de ser meramente descritiva, para fornecer a reconstrução viva dos fatos, colocando-os à luz de “processos orgânicos e evolutivos”; trata-se de conhecer “o ambiente físico, os fatores étnicos e o meio social em que as instituições jurídicas nascem e se desenvolvem; e de observar a origem e transformação dessas instituições, relacionando-as com o condicionalismo social e natural de que são produto” (Waldemar Martins Ferreira. História do direito brasileiro. Rio de Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos,1951.p.17-18). Em que pese a importância da História do Direito já demonstrada, Henri de Page, citado por John Gilissen, na sua Introdução histórica do direito, assim se refere a ela: “A história do direito é muitas vezes tratada com um condescendente desdém, por aqueles que entendem ocupar-se apenas do direito positivo. Os juristas que se interessam por ela, quase sempre à custa de investigações muito longas e muito laboriosas, são freqüentemente acusados de pedantismo... Uma apreciação deste gênero não beneficia aqueles que a formulam. Quanto mais avançamos no direito civil, mais constatamos que a História, muito mais do que a Lógica ou a Teoria, é a única capaz de explicar o que as nossas instituições são as que e porque é que são as que existem” (Henri de Page. Traité de Droit Belge. Bruxelas: [s.n.], 1942.p.806. Apud John Gilissem. Introdução histórica ao direito. Trad. Antônio Manoel Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.p.13). No Brasil a Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito, em seu artigo 5º ressalta a importância dos estudos históricos quando insere a História como conteúdo essencial para os estudos jurídicos, dentro do Eixo de Formação Fundamental que tem por objetivo integrar o estudante no campo jurídico, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber (Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia).

3. OBJETO DE ESTUDO E OBJETIVOS

“A História do Direito estuda, cronologicamente, o direito como fato empírico e social, resultante da interação humana, salientando os seus caracteres peculiares, as causas ou motivos de suas mutações ou transformações, envolvendo a experiência jurídica do passado, procurando individualizar os fatos e integrá-los num sentido geral, ao se ater à evolução das fontes do direito (fontes formais, compreendendo a legislação, o costume jurídico, a jurisprudência, a doutrina, o poder negocial e o poder normativo dos grupos sociais e fontes materiais, compreendendo a realidade social e os valores sintetizados no conceito amplo de justiça), ao desenvolvimento jurídico de certo povo, à evolução de ramo específico do direito (história do direito civil, penal, etc.), ou de uma instituição jurídica (história da propriedade, do casamento, etc.), mostrando a sua projeção temporal em conexão com as teorias em que se baseiam” (Maria Helena Diniz. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 208).

A História do Direito tem por objetivo a interpretação dialética (dialética: arte de raciocinar, deduzir ou persuadir com método e justeza; modo de argumentar e discutir ou debater com fundamento na lógica; argumentação segura, engenhosa e fundamentada) do fenômeno jurídico e seu dimensionamento em função do tempo.

Segundo Miguel Reale, a História do Direito “pode se desenrolar em três planos que se correlacionam: o dos fatos sociais (aspecto sociológico), que explicam o aparecimento das soluções normativas, bem como as mutações esperadas no ordenamento jurídico, dando relevo ao problema das fontes do Direito;

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o das formas técnicas de que se revestem tais soluções normativas, pela constituição de modelos institucionais ou normativos (aspecto técnico) e o das idéias jurídicas que atuam como fins, nas alterações verificadas nas fontes e seus modelos normativos (aspecto filosófico)” (Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 323).

No século XIX e início do século XX, a História do Direito era vista à luz das idéias de evolução e progresso dentro de um panorama unitário e englobante, porém, em nossos dias, prevaleceu a idéia de ciclos culturais sem preocupação de descobrir as leis universais da experiência jurídica, enfatizando a história de institutos e instituições particulares (com dedicação especial à História do Direito de cada país, que apresenta traços comuns quando se refere a povos da mesma “família cultural”.

4. EVOLUÇÃO DO DIREITO POSITIVO

Entendemos por Direito Positivo o conjunto de normas estabelecidas pelo poder político passíveis de serem impostas coercitivamente, com o objetivo de regularem a vida social de um dado povo em determinada época. É o Direito histórica e objetivamente estabelecido, efetivamente observado, encontrado em leis, códigos, costumes, tratados internacionais, resoluções, regulamentos, decretos, decisões dos tribunais, etc., aplicado pelas autoridades do Estado e pelas organizações internacionais. Oportunamente voltaremos a esse tema; por ora basta a conceituação de Direito Positivo e sua evolução.

Como questão preliminar, podemos afirmar que a lei (nome próprio e técnico para designar as normas do Direito Positivo) não surgiu repentinamente e nem o problema da jurisdição, da atividade decisória dos juízes, acompanhou o homem desde as sua origens.

O Direito foi em primeiro lugar um fato social bem pouco diferençado, confuso com outros elementos de natureza religiosa, mágica, mal ou meramente utilitária.

4.1 DIREITO NA ANTIGÜIDADE

4.1.1 DIREITO PRIMITIVO Nas sociedades primitivas o Direito era um processo de origem costumeira. Não se pode nem mesmo afirmar que havia um processo jurídico costumeiro, uma vez que as regras jurídicas se formaram anonimamente no todo social, em confusão com outras regras não jurídicas. Dos costumes primitivos, paulatinamente se desprenderam as regras jurídicas discriminadas e distintas das regras morais, higiênicas, religiosas, etc. Mesmo quando o homem começou a ter vaga noção dessas distinções, o Direito foi, durante milênios, pura e simplesmente um amálgama de usos e costumes.

As regras no Direito primitivo se originavam da força (moral ou física) onde a supremacia de um indivíduo se empunha na tribo pelo prestígio, advindo de sua inteligência, de sua sabedoria, astúcia, força física e se expressavam também através de procedimentos religiosos, mágicos, pois o homem primitivo era um ser dominado pelo temor, precisando defender-se de todos e de tudo. Na realidade ele se defende de si mesmo pela sua angústia permanente em face da existência, ante a natureza que o envolve e que ele não compreende.

Segundo Miguel Reale, “essa posição do homem primitivo, dá uma coloração mágica às primeiras regras jurídico-sociais que se ocultam na noite dos tempos” “Não pensem que o Direito surgiu com os romanos, que tem a história curta do

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Código do rei Hamurabi, que é de dois mil anos antes de Cristo. Os etnólogos nos afirmam que, em épocas remotas, houve cavernas em que trabalhavam dezenas de indivíduos empenhados na fabricação de machados neolíticos para serem vendidos em mercados distantes. A existência dessas cavernas implica uma discriminação de tarefas já naquela época e, do direito civil, penal, etc., por conseguinte, uma relação de senhores e escravos, primária e tosca forma de relação de trabalho, visando à relação de troca, etc.”.

Etnologia: ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas. No campo do Direito a etnologia é o estudo comparativo do direito dos povos em sua evolução histórica.

Etnografia: registro descritivo da cultura material de um determinado povo. Segundo Declarevil, “o Direito mais antigo foi exclusivamente consuetudinário,

tendo por origem, geralmente a decisão tomada um dia por um chefe ou uma sentença conhecida ou não como tal”. Assim também entende Cogliolo, quando escreve: “um povo deixa a vida nômade e se apresenta com certa solidez, as contendas privadas deixam de ser resolvidas com as armas na mão e passam a ser decidias pelo chefe da tribo, pelo pai de família ou pela pessoa mais velha e mais considerada. A primeira fonte do Direito é, pois, a sentença do juiz. Antes de existirem os costumes e as leis, existem as sentenças dos chefes”. A repetição e a autoridade dos chefes que as prolataram, tornaram-nas precedentes, surgindo assim o costume.

Com a multiplicação e complexidade crescente das relações jurídicas e com a transformação quantitativa e qualitativa das sociedades, os costumes tornaram-se incertos, passando a ser compilados pelos reis ou sacerdotes, originando-se daí códigos antigos. Em tais códigos nota-se perfeitamente a origem casuística das regras. Assim, por exemplo, no Código de Hamurabi, gravado em enorme bloco cilíndrico de pedra negra, os antigos apresentam um caso concreto acompanhado de uma solução jurídica. As suas regras são formuladas em breves sentenças, como por exemplo: “A esposa que mandar assassinar o marido por gostar de outro homem será empalada”.

Empalação: punição corporal antiga infligida ao condenado, a qual consistia em espetar-lhe, pelo ânus, uma estaca, deixando-o, dessa maneira até a morte. (Empalar: espetar, enfiar).

O Direito primitivo era respeitado religiosamente pelo grande temor às suas sanções draconianas e desumanas, bem como pelo medo de vingança dos deuses que o teriam ditado como acreditavam os povos primitivos - daí o ilícito se confundir com o pecado, ou seja, com o desrespeito à divindade que o ditou.

Preleciona Paulo Dourado de Gusmão que nos códigos antigos não há distinção entre Direito Civil e Direito Penal, podendo-se dizer que do Direito Penal surgiu, bem como disse Ihering, o Direito Civil. A noção de culpabilidade lhe era estranha, respondendo o criminoso pelos seus atos, independente de culpa, juntamente com sua família, bem como destruídos os seus pertences e tudo que ele havia tocado com suas mãos. Da mesma forma, débito não pago significava pecado sendo o devedor faltoso sacrificado pela prestação não executada. O juramento dava segurança aos negócios. Predominava a crença de que não honrá-lo era pecado. Se tal ocorresse o grupo poderia sofrer as conseqüências da ira divina, se o faltoso não fosse exemplarmente punido. Os sacerdotes-juízes ou os reis-juízes invocavam divindades para saber com quem estava a verdade, a fim de que com sua intervenção fosse apontado o criminoso, protegido o inocente e castigado o culpado. Os julgamentos de Deus (Ordálios) sob a forma de prova do fogo, do

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veneno ou da imersão do corpo em água fervente e se acusado não morresse no caso do fogo ou do veneno ou se as queimaduras fossem curadas sem seqüelas, no caso da água fervente, era considerado inocente e em caso contrário, culpado.

Nos julgamentos de Deus com o emprego do duelo, os acusados duelavam fisicamente (duelo de armas) ou verbalmente (duelo judiciário) e o vencedor era considerado inocente perante Deus.

A princípio, a violação dos costumes deu lugar à justiça privada, à “lei de talião” (do latim talis, que significa igual,tal, ou seja, punir uma pessoa com o mesmo dano que haja causado a outrem - dente por dente, olho por olho, como está no texto bíblico), impondo represália igual à ofensa (pena privada). Porém, tal solução, fonte de insegurança e intranqüilidade, acabou sendo substituída pela composição pecuniária, a princípio maior que o prejuízo, em regra o dobro, inicialmente com caráter facultativo (pena privada, como prescrevia, por exemplo, o Código de Ur-Namu) descoberto depois da última guerra, contido na “Tabuinha de Istambul”, muito anterior ao de “Hamurabi”, também mesopotâmico.

O direito primitivo se caracteriza pelo formalismo, pelo cerimonial, prevalecendo a forma, os atos simbólicos, os gestos, as palavras sagradas e os rituais sobre o conteúdo dos atos e das ações, não sendo possível investigar o sentido ou o espírito da lei. (Hermenêutica: descobrir o sentido e o alcance da norma jurídica).

O formalismo jurídico, no dizer de Cogliolo, compõe-se de duas partes distintas; atos e palavras, sobressaindo o ato, depois as palavras, faladas ou escritas. Assim, o formalismo das palavras sucede o dos atos, desaparecendo mais tarde. Da palavra surgiu o Direito, e da fórmula a ação judicial. Com o tempo, a palavra e a fórmula perderam o significado arcaico, sendo mantidas pelo uso. Tardiamente o homem se libertou das fórmulas, porém, não totalmente, pois até hoje, sem caráter sagrado, algumas fórmulas e formas são empregadas no Direito para atos legislativos e para certos atos e negócios jurídicos, como por exemplo, o compromisso no casamento ou a forma na compra-e-venda de imóvel.

Para uma melhor compreensão e aprofundamento a respeito da História do Direito Universal, sugerimos a leitura do livro de Jayme de Altavila, Origem do Direito dos Povos (Editora Melhoramentos) onde o autor aborda com propriedade e segurança o Direito egípcio, mesopotâmico (Código de Hamurabi e Código de Ur Namu), mosaico (Pentatêutico) que compreende o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, contendo a legislação civil e religiosa de Israel (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e o Deuteronômio, este último era tido como o “Livro da Lei”, que além de matéria jurídica, prescrevia preceitos morais e religiosos), indiano (Código de Manu), da Grécia Antiga (direito das cidades gregas de Esparta com as Leis de Licurgo e Atenas e com as Leis de Dracon, rígidas e duras, substituídas pelas leis de Sólon, mais moderadas, acabando inclusive com a escravização por dívidas, etc), islâmico (Alcorão, livro sagrado do Islamismo) e Direito Romano (Lei das XII Tábuas que codificou o direito romano primitivo e a codificação de Justiniano, que recebeu o nome de Corpus Juris Civilis e incorporou a codificação anterior).

4.1.2 DIREITO EGIPCIO. MESOPOTÂMICO, MOSAICO, INDIANO E ISLÂMICO O antigo Egito corresponde ao Estado do Egito atual e, em alguns períodos, boa parte do atual Sudão, antiga região da Núbia. “Na Civilização Egípcia predominou, como nas demais teocracias da Antigüidade, a Religião. Por isso, o direito egípcio sofreu a infuência do elemento religioso. O seu estudo é difícil pela precariedade de fontes. Os documentos

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jurídicos egípcios (atos jurídicos e decisões judiciais) desafiaram os séculos em papiros, que o clima seco do Egito conservou até nós. O mais antigo que se conhece é o Papiro de Berlim, da VI Dinastia (2420-2294). Luta-se assim no estudo desse direito com a deficiência de fontes. Sabe-se que as terras eram de propriedade do rei, podendo as castas privilegiadas usufruí-las, pagando tributos altíssimos à Coroa. Compra-e-venda de terras não era conhecida, reduzindo-se o direito de propriedade e dos contratos a locações de serviço e a transações com bens móveis, objetos de propriedade privada. As obrigações a serem cumpridas no futuro eram assumidas mediante juramento, com invocação do nome (não de deuses) do Faraó., como garantia de sua observância. Em virtude da crença na continuidade de vida depois da morte, era comum haver contratos em que a parte que sobrevivesse obrigava-se a levar oferendas periódicas ao túmulo da que morresse primeiro. Tais contratos são equiparados por Erwin Seidl (El Legado Egipto, trad.) às donationes pro anima medievais, ou seja, ao compromisso de uma pessoa mandar celebrar missa pela alma da outra. No casamento, uma das formas de contrato, a mulher mantinha a propriedade de seus bens. O divórcio só o marido podia obtê-lo. Mais tarde, ao tempo dos Ptolomeus, a mulher conquistou esse direito. A autoridade do marido e o pátrio poder eram absolutos. O testamento, desconhecido. Entretanto, permitia o direito egípcio que, por ato inter vivos, pudesse ser feita a doação de bens móveis a outrem, produzindo efeitos após a morte do doador. O doador, para se garantir, retinha em seu poder o documento que a comprovava, que com sua morte era entregue ao donatário. A posse desse documento transferia a propriedade dos bens doados. Era comum o ato jurídico ser celebrado em “documento duplo” (E. Seidl, ob.cit.), sendo um deles, o original, selado, fechado, lacrado e arquivado; a cópia circulava; o original era aberto em Juízo quando fosse posta em dúvida a autenticidade da mesma. Os atos jurídicos eram celebrados com observância de formulários preestabelecidos. Havia atos solenes, celebrados por escribas (funcionários) , na presença de testemunhas, autenticados com o selo real. Os tribunais, cujos juízes eram os dignitários locais, julgavam em nome do Faraó, orientados por um funcionário da corte, que dirigia o julgamento. O tribunal só podia iniciar o julgamento com a presença desse funcionário. A tortura era meio de prova usualmente empregado não só aos acusados, como, também, às testemunhas. As penas eram cruéis e draconianas. Para o homicídio, pena de morte; para o parricídio, a morte na fogueira; para o adultério, mutilações e vergastadas.(parricídio: crime cometido por um parricida, isto é, aquele que matou um parente – qualquer descendente – pai, mãe, avô, avó, filho, filha, tio, tia, neto, neta. Reserva-se, porém, a denominação de matricídio, o crime cometido pelo indivíduo que matou a própria mãe). Mas, se a mulher adúltera estivesse grávida, a execução da pena só ocorria depois do parto. Para o furto, escravização do ladrão ou mutilação. Assim, bastonadas, mutilações (ablações das orelhas, do nariz, da língua ou das mãos), exílio, lançamento à fogueira com mãos e pés amarrados, eram as penas mais usadas no direito penal egípcio. O direito internacional parece ter sua pré-história no Egito. Conhece-se um tratado de aliança e paz celebrado por Ramsés II (1297-1231) com o rei hitita Hattusibis III.” (Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito,p.294/295). 4.1.3 DIREITO MESOPOTÂMICO

A Mesopotâmia antiga corresponde, de modo geral, ao atual Iraque, com algumas regiões localizadas em partes das nações hoje designadas Turquia (antiga Ásia Menor), Irã e Arábia Saudita.

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O documento legal que melhor representa o Direito Mesopotâmico é o famoso Código de Hamurabi, gravado num enorme bloco cilíndrico de pedra negra, de 2,25 m de altura, com 2m de circunferência, encontrado em 1902, na cidade persa de Susa, para onde fora levado, por volta de 1175 a.C., como despojo de guerra. E se encontra atualmente no Louvre. Nele, ao alto e em baixo relevo, vê-se bem o rei Hamurabi, também chamado Khamu-Rabi (de origem árabe), assimilando, por inspiração divina, os decretos de eqüidade, grafados na parte inferior do código de pedra, em 46 colunas, contendo um texto de 3.600 linhas, dispostos em 14 capítulos e 282 artigos. Os babilônicos acreditavam que Hamurabi recebeu esse código de Shamash, o deus Sol, tornando-se o “rei do direito”, com a missão de decidir com eqüidade e disciplinar os maus e os mal-intencionados e impedir que o forte oprima o fraco. O Capítulo I dedica-se aos Sortilégios (feitiçaria,bruxaria), juízo de Deus, falso testemunho, prevaricação de Juízes (prevaricar: desobedecer – crime cometido por funcionário público, quando indevidamente, este retarda ou deixa de praticar ato de oficio, ou pratica-o contra disposição legal expressa, usando satisfazer interesse pessoal). O Capítulo II refere-se a Crimes de furto e de roubo e reivindicações de móveis. O Capítulo III destina-se aos Direitos e deveres dos oficiais, dos gregários e dos vassalos em geral e organização do benefício. O Capítulo IV regula as Locações e regime geral dos fundos rústicos. Mútuo (contrato de empréstimo oneroso, diferente do comodato, que é gratuito), locação de casas, doação em pagamento. O Capítulo V estabelece as Relações entre comerciantes e comissários. O Capítulo VI, composto apenas de quatro artigos, tem por epígrafe (do grego: epigraphe – inscrição) – título ou frase colocada no início de um livro, de um capítulo, de um poema, servindo de tema: Regulamento das tavernas (taverneiros, prepostos, polícia, penas e tarifas). O Capítulo VII estabelece os vínculos das “Obrigações” (contratos de transporte, mútuo), processo executivo e servidões por dívidas. O Capítulo VIII cuida dos Contratos de depósito. O Capítulo IX sintetiza num único artigo a Injúria e difamação. O Capítulo X versa sobre: Matrimônio e família, delitos contra a ordem de família. Contribuições e dotações nupciais. Secessão (separação). O Capítulo XI refere-se à Adoção. Ofensas aos pais. Substituição de criança. O Capítulo XII é geralmente o mais citado e se refere aos Delitos e Penas (lesões corporais, talião, indenização e composição). O Capítulo XIII destina-se aos Médicos e veterinários; arquitetos e bateleiros (Salário, honorários e responsabilidade). Choque de embarcações. O Capítulo XIV encerra a corporificação jurídica, tendo este enunciado: Seqüestro, localização de animais, lavradores de campos, pastores, operários. Danos, furto de arneses, de água, de escravos (ação redibitória – ação do comprador contra o vendedor para que este responda pelos vícios redibitórios da coisa vendida, os quais eram dele ocultos ou desconhecidos – ação pelos defeitos encontrados na coisa, que não estavam no contrato, tornando-a imprópria ao uso ou diminuindo seu preço justo), responsabilidade por evicção (desapossar judicialmente. Ato pelo qual vem um terceiro desapossar a pessoa da coisa ou do direito que não se encontrava sob sua posse – evicto: vencido, pessoa que sofreu evicção; evictor: pessoa que intenta a evicção para desapossar daquilo que lhe peetence) e disciplina.

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Em 1952 foi descoberta a “Tabuinha de Istambul”, na qual encontramos um código mais antigo, denominado Código de Ur-Namu, também mesopotâmico, porém, menos famoso do que o Código de Hamurabi. Hersílio de Souza, em sua obra, Novos Direitos e Velhos Códigos (Recife, 1924), nos oferece uma tradução do Código de Hamurabi, organizada de acordo com o trabalho de Pietro Bonfante, Le leggi di Hamurabi, Re di Babilonia , com 14 capítulos, distribuídos num texto de 282 artigos, sem preâmbulo e nem fecho. Para a análise estrutural e normativa do Código de Hamurabi, recomendamos a obra já citada de Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos.

4.1.4 DIREITO MOSAICO No opúsculo sobre “O Direito na Bíblia”, elaborado por Regis Fernandes de Oliveira, ex titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (1934) e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (1990/1993), o autor aponta no texto bíblico, o material jurídico de interesse, tecendo comentários sobre as infrações previstas nas normas jurídicas e respectivas sanções, bem como os institutos que subsistem até hoje, seguindo, rigorosamente, a ordem dos livros bíblicos no Velho e Novo Testamento, conforme o abaixo exposto.

VELHO TESTAMENTO: A constituição político-religiosa do Velho Testamento não contém exclusivamente matéria jurídica, prescrevendo preceitos morais e religiosos, acima de tudo rituais, sob a forma de sentenças, salmos, provérbios, que expressavam a vontade de Deus, objetivando proteger o povo hebreu (“povo eleito”). A Torá (Pentateuco - Bíblia/Velho Testamento) foi um dos códigos fundamentais da humanidade. Dos seus cinco primeiros livros (Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), o de maior importância jurídica é o Deuteronômio, uma vez que os outros livros antecedentes fixam a Cosmogonia (ciência afim da Astronomia, e que trata da origem e evolução do Universo) e a história israelita, apesar de apresentarem, também, assuntos de natureza jurídica A principal pena prevista pela Torá é a lapidação (morte por apedrejamento), aplicada aos feiticeiros, filhos rebeldes, prostitutas e mulheres adúlterasGênesis: primeira citação (3.8/9); primeiro homicídio (4.8); primeiro julgamento e a primeira pena (4.10/12/15/16); bigamia (4.19); primeiro acordo (6.11, 9.9/11/16/17, 17.9/10; prova (17.11); pagamento (21.30); declaração pública (21.30); instrumento público e particular de contrato (21.30); direitos (25.33); Tratado Internacional (26.29); contrato de casamento (falsa identidade) (29.18/19/21/25); locação de serviços (30.16); o contrato (19.21/22, 31.47/48/51/52, 37.28); calúnia (39.13/15).; estupro (34.2/27); o administrador público (41.40/41); o direito de alimentos (47.12).Êxodo: ameaça (9.18, 10.3/6, 11.4/5); prova de compromisso (12.7/12); instituição de juízes e Juizado de Pequenas Causas (18.21/23); o direito costumeiro (20.3/4/7/8/12/13/14/15/16/17, 21.7/15/16/22) código e as leis (os Dez Mandamentos – 20.21); leis e regulamentos (20.21); aborto (21.22/23); sanções criminais e civis; responsabilidade civil; normas urbanísticas (24.8, 39.33/40).Levítico: dolo e culpa (4.2); falso testemunho (5.1/4); culpa presumida; presunção do conhecimento das leis (5.17); previsão legal de não devolver coisa encontrada; apropriação indébita e deixar de pagar o penhor (6.2/3); proporcionalidade da sanção (6.4/5/6); Direito Sanitário (13.45/46); medidas urbanísticas (14.43/44); demolição (14.45); periclitação da saúde (15.1/2/15/19, 18.19); impedimentos matrimoniais (18.7/8/10/15); atentado violento ao pudor (homossexualismo)

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(18.22/23); tipificação de crimes: roubo (19.11), falso testemunho (10.11), apropriação indébita (19.13), injúria, calúnia e difamação (19.16), adultério (20.10); pena de morte (20.12/13/15, 24.17/19/20); vigência pessoal da regra jurídica (24.22); direito de arrependimento e pacto de retrovenda (25.24); doação e sua revogação (26.9/10).Números: depósito e apropriação indébita (5.5/6); troca (9.16); a vigência do direito (15.15/16); o Direito das obrigações e a obrigação de dar, de fazer e de não fazer (30.3); agravantes no crime de homicídio (35.16/21); o preterdolo: que resultou em resultado mais grave do que esperava, embora a vontade do criminoso fosse dirigida à prática menos grave (35.16/21); crime culposo (35.22).Deuteronômio: (do grego deuter: segundo e nomia: lei – segundo a lei), atribuído pela Bíblia ao rei de Judá, Josias (621), era tido como o “Livro da Lei encontrado na casa de Yahvé (Jeová – deus universal), pelo sumo-sacerdote”. A seguir, fixaremos nossos estudos nos temas de interesse jurídico, encontrados no Deuteronômio, abaixo relacionados, deixando de lado as práticas religiosas, morais e higiênicas. * Juiz (1.14/16) * Legislador (5.7/21) * Servidores do Judiciário (16.18) * Regras sobre o julgamento (16.19/20) * Corrupção do magistrado (16.19/20) * Testemunha única (17.6). * Codificação (17.18). * Recursos (17.9/10/11). * Execução (17.10/11) * Cumprimento de pena em regime aberto (19.4/7). * Circunstâncias agravantes (19.11/13). * Esbulho possessório, posse e propriedade (19.14, 22,28). * Falso testemunho (19.16/21). * Norma edilícia (22.8). * Difamação e adultério (22.18/19/22/25/27). * Juros, penhora e impenhorabilidade do bem de família (23.19/20, 24.6). * Casa como asilo inviolável (24.10/13). * Pessoalidade das penas (24.16). * Transações comerciais e o Código do Consumidor (25.13/16). * Justiça (1.17; 4.8; 16.18/19/20). * Educação e Cultura (4.5/6). * Descanso Semanal (5.12/13/14). * Regras Gerais de Direito (5.17/18/19/20). * Dispositivos de Direito Internacional (10.19/20/; 23.7; 24.17). * Normas Processuais (13.14). * Limites de Propriedades (19.14). * Assistência Social (14.27/28/29; 15.7/8). * Direito do Trabalho (15.12/13). * Princípios de Direito Constitucional (17.15/16/17/18). * Repressão ao Charlatanismo (18.10/11). * Homicídio Involuntário e Cidades de Asilo (19.4/5/6/11/12). * Prova Testemunhal (19.15). * Estupro (22.28). * Falso Testemunho (19.16/17/18/19). * Penalidades (19.21 (lei de talião); 24.16; 25.1/2).

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* Pesos e Medidas Justas (25.13/14/15). * Divórcio (22.13/15/16/17/18/19/20/21; 24.1/2/3/4) * Adultério (22.22). * Bens Impenhoráveis (24.6). *Usura (23.6) – empréstimo de dinheiro a juros superiores à taxa legal. Agiotagem.Josué: aquisição originária da propriedade; o crime de favorecimento pessoal é praticado contra a administração da Justiça.Juízes: deserdação (11.2); autorização para que tropa estrangeira transite pelo pais (11.14/17); estupro (19.25/26).Rute: compra e venda e sua confirmação (4.7/8).Samuel 1: aposentadoria como direito (8.1).Samuel 2: adultério (12.1/4); estupro (13.14); recenseamento (24.2).Reis 1: julgamento de Salomão (3.27); normas urbanísticas (6.1); autoridade - investidura no cargo (12.1); posse e propriedade (21.16).Reis 2: nada a ressaltar de importante.Crônicas 1: sucessão e impedimentos matrimoniais (10.4); auxílio ou instigação ao suicídio (10.4/5).Crônicas 2: regras urbanísticas (2.4);Senado (10.8/9); tutela (24.1).Esdras: registro de nascimento (2.59); impostos (6.7/8); imunidade tributária de templos (7.24); confisco (7.26).Neemias: juros ext (8.8); autenticação de documentos (8.8).Jó: raciocínio jurídico e persuasão racional (9.32/33); princípio do contraditório (10.2); defesa (13.18).Salmos: obediência à Justiça (11.3); políticas públicas (11.5, 72.1/2/3); vedação à quebra de contratos (89.34).Provérbios: aval ou fiança (6.1); vadiagem (6.6); castigo físico aos filhos - pátrio poder (6.23, 13.24); flagrante (6.31); Ministros e Secretários (11.14); falso testemunho (14.5, 19.9); corrupção (15.27, 17.23); boa fé nos negócios jurídicos (16.11); apropriação de bens de órfãos (23.10); obediência às autoridades - vedação à sedição (24.21); punição aos usuários (28.8); tributos (28.16); crime contra a administração da Justiça - favorecimento pessoal (29.24).Eclesiastes: herança (2.20/23); alimentos (3.12).Cântico dos Cânticos: nada a destacar.Isaías: Ministério Público (4.11); julgamento (17.1, 19.1, 21.1, 22.1, 23.1); Tratados Internacionais (33.3); defesa (41.1); obrigações de fazer (46.6); direito ao silêncio (53.7).Jeremias: divórcio (3.1); bem de uso comum do povo (5.21); delitos omissivos (5.29); salário (22.13); pessoalidade da sanção (31.30); testemunhas instrumentárias (32.9/10); instrumento público em cartório (32.12, 36.20); posse (37.12); prisão especial (37.21); co-autoria (40.13/14).Lamentações: camelôs ou “marreteiros” (1.4).Ezequiel: sanção (7.7, 14.13); troca (27.13); imunidade do templo (44.12); testemunha e o dever de dizer a verdade (44.12); leis urbanísticas (45.2); polícia de pesos e medidas - poder de polícia (45.10); bens de uso comum do povo - classificação (46.18).Daniel: Ministros (1.19); irrevogabilidade das leis (6.15); ordem de prisão (6.16); tribunais (7.10).Oséias: adultério (2.5).Joel: nada de importante.

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Amós: juízes corruptos (2.6); corrupção ativa (2.6, 3.10); excesso de exação (5.11); corrupção passiva (5.12); direito do consumidor (9.5).Obadias: representação diplomática (1.1).Jonas: arrependimento eficaz (3.10).Miquéias: presunção do conhecimento da lei (3.1); corrupção (3.11); concussão (7.3).Naum: nada a ressaltar.Habacuque: corrupção (1.4); execução de dívidas (2.7); enriquecimento ilícito (2.9).Sofonias: incriminação de todos que, de qualquer forma, agridem o patrimônio particular ou público – lucros desonestos – via furto, roubo, estelionato (do latim stellionatus: fraude, engano, embuste, ardil – qualquer espécie de fraude, em virtude da qual se induza alguém em erro, para conseguir vantagem ilícita, que tem em mente, sem violência ou coação. Ex: vender coisa alheia, dar cheque sem fundo), apropriação indébita, etc (1.9); juros (1.11); juiz desonesto (3.3).Ageu: nada de interessante, juridicamente.Zacarias: julgamento à morte (5.3).Malaquias: nada de importante, em termos jurídicos.

NOVO TESTAMENTO

Mateus: ratificação de lei – repristinação (do latim: re + pristinus – retorno ao antigo, volta ao passado, adoção de preceito que já não se encontrava em voga. Norma revigorada) e desuso (5.17); interpretação da lei (5.28); revogação (5.31/32/39); provas (12.39/40); execução (18.28); salário (20.1); separação Estado-Igreja (22.21); empréstimo (25.15); recurso (26.59); conflito de competência (26.65/66); imposto sobre atividades lícitas (27.5); perdão e indulto; irresponsabilidade (27.15/24); poder de polícia (27.65).Marcos: divórcio (10.9); arrendamento (12.1); esbulho possessório (12.7); estelionato (12.40); sentença (14.63/67).Lucas: recenseamento (2.1); fiscalização e corrupção – concussão (do latim: concussio – extorsão . Exigência abusiva do funcionário público ou autoridade pública, que encarregada de arrecadar dinheiro, oriundo de impostos, direta ou indiretamente exorbita de seus deveres, fazendo com que os contribuintes paguem mais do que realmente devem pagar. Ou, em razão do cargo, exige de outrem qualquer vantagem, para si ou para outra pessoa - 3.13/14); ilegalidade (6.2, 14.3); empréstimo - perdão da dívida (8.41/42); auto-composição da lide (12.58); confissão (22.70/71); conflito de competência (23.7/11). Obs. Denomina-se “antinomia” o conflito entre normas jurídicas. Supera-se o conflito pelos critérios: cronológico (a norma posterior prevalece sobre a anterior); hierárquico (a norma superior prevalece sobre a anterior); especialidade (a norma especial prevalece sobre a geral).João: direito de defesa (7.50); adultério (8.4); furto (12.6); representação (14.26); prova (18.23); direito a conhecer a acusação (18.29).Atos: política pública (6.2); objeto impossível de contrato (8.18/19); especialização da Justiça (12.19); aplicação da lei (15.23/29); expedição de alvará judicial (16.36); julgamento (16.37); linchamento - exercício arbitrário das próprias razões (21.30, 7.59); direito a defesa (22.1, 24.2/8/10/21/26, 25.16).Romanos: vigência da lei (7.2); cargo público (12.8); policia (13.4); obediência à lei (3.5, 13.1).Coríntios 1: deveres matrimoniais (7.3/5); clareza na expressão (14.6).Coríntios 2: interpretação das leis (3.6).Gálatas: testamento (3.15); dois sistemas de leis (3.19/24).Efésios: nada de importante, em termos jurídicos.

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Filipenses: idem.Colossenses: idem.Tessalonicenses 1 e 2: idem.Timóteo 1: respeito às autoridades (2.2); direito ao salário (5.18).Timóteo 2: nada a destacar.Tito: obediência os governantes (3.1).Filemom: nada a destacar.Hebreus: revogação (8.9); testamento (9.16/17); ato ilícito (10.17).Tiago: calúnia, injúria e difamação (3.6).Pedro 1: obediência às leis; crimes contra a honra.Pedro 2: nada de jurídico.João 1, 2 e 3: nada de relevo para o mundo jurídico.Judas: nada a destacar.

APOCALIPSE: sem importância jurídica. Will Durant em sua obra filosófica, afirma:- “A Grécia teve cultura, mas não revelou coração; até seus filósofos defendiam a escravidão. Se os gregos produziram arte e ciência, dos judeus saiu a idéia de justiça social e dos direitos do homem. Graças a esta fé, a pequenina Israel, perdida entre os grandes impérios antigos e perseguida pelas nações modernas, alcançará a vitória no fim. Os povos que hoje a oprimem, curvam-se ante seu espírito e encampam os ideais que Israel deu ao mundo”. 4.1.5 DIREITO INDIANO “O direito da Índia antiga era de fundo religioso, destinando-se a proteger e a consolidar o regime de castas, então dominante. O nascimento marcava a posição social do homem até a morte; era, pois, inalterável. O Código de Manu, escrito em versos, é, apesar de ter fundamento religioso, mais jurídico do que os anteriores. Está, como foi dito, em verso porque, segundo Summer Maine (L’Ancien Droit, trad.), o verso é um dos expedientes adotados para auxiliar a memória e, assim, manter nela viva a lei. Nesse código os contratos, principalmente o de compra-e-venda, decorridos três dias, tornavam-se irrevogáveis. O credor poderia escolher entre senhorear-se do devedor relapso, transformando-o em escravo temporário, obrigando-o a trabalhar até pagar a dívida, ou chamá-lo a Juízo. Se não comparecesse para se defender, estaria sujeito a penas draconianas. Podia, também, coagir (coação moral ou física) o devedor faltoso a pagar a dívida. A usura não era proibida. Como meio de prova admitia o ordálio, que consistia em queimar o acusado com ferro em brasa, ou fazê-lo ingerir veneno; resistindo, era considerado inocente. Permitia a prova testemunhal. A mulher era venerada: “Não se bate em uma mulher nem mesmo com uma flor, qualquer que seja a falta por ela cometida”, prescrevia o Código de Manu. Mesmo assim, o homem desfrutava de posição privilegiada. A mulher, se solteira, estava sob a autoridade do pai; se casada, sob a do marido, e se viúva, sob a do filho mais velho, Não tinha ela direito a divórcio, reservado só aos homens. No que concerne à herança, só o filho mais velho herdava os bens. No campo criminal, as penas eram draconianas, além da de morte, a de mutilação. No campo político o rei reinava assessorado por um conselho dos mais sábios” (Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito , p. 299/300).

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Formulado dez séculos depois do Código de Hamurabi, o Código de Manu não teve a projeção legal deste, porquanto a legislação cuneiforme se infiltrou pela Assíria, Judéia e Grécia e constituiu “um legado comparável ao que Roma fez ao mundo moderno” (Will Durant. História da Civilização). Ainda, nas palavras de Jayme de Altavila, “ foi um código sem ressonância fora dos limites hindus”. 4.1.6 DIREITO ISLÂMICO “O Alcorão é uma espécie de Mil e uma noites religiosa e jurídica dos árabes. Um povo utilitarista como o romano da primeira época só poderia enfeixar uma lei sucinta e retilínea como as XII Tábuas, em que a incidência se faz sem rodeios e sem palavras inúteis. A bíblia maometana é uma tela de pequena dimensão, encaixada numa larga e espalhafatosa moldura de ouro e esmalte, maior do que a paisagem nela recolhida. As suas 114 Suratas poderiam ficar reduzidas a 24, se lhe podassem os galhos sem flores e sem frutos, mas com abundantes folhagens de imaginação e devaneio. Mas nem um árabe letrado ousaria fazer tal expurgo numa lei que foi redigida à sua semelhança espiritual, por um profeta que não teve pejo (acanhamento, vergonha, timidez, pudor) de cavar, a ponta de lanças, o solo em que lançou as sementes de sua fé. Ademais, ainda hoje o selo da lei islâmica continuou inviolado, conquanto haja quem afirme por conta de Maomé que de três juízes somente um se salvará” (Jayme de Altavila. Origem dos Direitos dos Povos). O Alcorão, como dissemos, contém 114 Suratas (Capítulos), sendo que a maior é a Surata II, denominada A Vaca, composta por 286 versículos. As menores Suratas são: A Hora depois do meio-dia (Surata CII) e O Kauther (Surata CVIII), que são duas primorosas e sintéticas orações islâmicas. Do Alcorão selecionamos os assuntos de maior interesse jurídico, de exclusiva função legiferante do profeta Maomé. * Filhos Adotivos (XXXIII, v. 4, 5 e 37). * Adultério (IV, v. 19 e 34; XXIV, v.2) * Assassinato (IV, v.92 e 93 ). * Asilo (IV, v. 6). * Boato (IV, v.85). * Calúnia (XXIV, v.23). * Casamento (XXXIII, v.52; II, v.25 ). * Fraudação (LXXXIII). * Dívidas (II, v. 280). * Difamação (XLIX, v.11). * Divórcio (II, v. 227; IV, v.24; XXXIII, v. 49; LVIII, v. 2, 3 e 4; LXV, v.1,2 e 6). * Embriaguez e Jogo (II, v. 219; V, v. 90 e 91). * Falso Testemunho (IV, v. 112). * A Guerra (IV, v. 94, 95, 102, 104; VIII, v.42, 43, 44, 45, 57 e 60; X, v. 90; XLVII, v. 4, 5 e 35; XLVIII, v. 15 e 16). * Imunidades (IX, v. 1). * Juramentos (V, v. 89). * As Mulheres perante o Alcorão (II, v. 223; IV, v. 34). * Órfãos (II, v. 220; IV, v. 2, 3, 127; VI, v. 152; XVII, v.34). * Deveres para com os pais (XXIX, v.8; XXXI, v.14; XLVI, v.15). * Sucessão (IV, v.8, 9, 12 e 176). * Talião (II, v.178; V, v.45). * Testamento (V, v. 106). * Testemunhas (II, v. 282; IV, v. 135; V, v. 8).

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* Usura (II, v. 276; III, v. 130; XXX, v. 39). Cumpre ressaltar que todo muçulmano se delicia com uma vida eterna esplendorosa expressa na Surata LXXVIII (A Grande Nova), constituindo uma verdadeira poesia oriental. E ainda a Surata CI (O Som), que é de um fino lavor oriental. Por fim, o contexto alcorânico nos fornece na Surata XXIV, v. 35, uma interessante e literária definição de Deus: “Deus é a luz dos céus e da terra. Esta luz é como um foco em que está um facho, um facho colocado em um vidro, vidro parecido com uma estrela brilhante; este facho alimenta-se com azeite de uma árvore abençoada, de uma oliveira que não é do Oriente nem do Ocidente e cujo azeite brilha ainda que o fogo lhe não chegue. É luz sobre luz. Deus guia para a sua luz aquele que quer e propõe aos homens parábolas; porque conhece tudo”. 4.1.7 DIREITO GREGO ANTIGO

Aristóteles já se referia à eqüidade em sua obra Ética a Nicômaco, quando a considerou “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade”.

Herdamos, em grande parte, a idéia de justiça de Platão, Aristóteles e dos juristas romanos. Os filósofos gregos (Platão e Aristóteles) expressaram o sentido ético e formal da justiça, pois Platão a considerava como virtude suprema, harmonizadora das demais virtudes e como equilíbrio; assim também a concebeu Aristóteles, como equilíbrio e proporção (proporção aritmética na justiça comutativa, corretiva ou sinalagmática e proporção geométrica na justiça distributiva). Em síntese, de Aristóteles acolhemos dois elementos formais característicos da justiça: igualdade e proporcionalidade.

4.1.8 DIREITO ROMANO CLÁSSICO

O Direito criado pelos romanos desde a Lei das XII Tábuas, incorporado ao Corpus Juris Civilis de Justiniano, constitui o marco inicial do direito europeu e em conseqüência, do direito latino-americano.

Quando estudamos Direito Romano abordamos, obviamente, a Lei das XII Tábuas, acima citada, documento fundamental de Direito do Ocidente que se caracteriza por ser uma consolidação dos usos e costumes do povo do Lácio. Nessa época, a lei não se distinguia do costume, a não ser por esse elemento extrínseco de ser escrita, pois se esculpiam os usos e costumes para conhecimento de todos, face ao poder anônimo revelado através dos tempos. Edward Mcnall Burns, em sua obra História da Civilização Ocidental afirma que as Leges duodecim tabularum foram gravadas em pedaços de madeira; outros historiadores falam em tábuas de bronze. Para um estudo mais detalhado da Lei das XII Tábuas, sugerimos a leitura da obra de Jayme de Altavila – Origem dos Direitos dos Povos, cujas epígrafes das tábuas são as seguintes: Tábua I – De in jus vocando – Do chamamento a juízo. Tábua II – De judiciis – Das instâncias judiciárias. Tábua III – De aere confesso rebusque jure judicatis – Da execução em caso de confissão ou de condenação. Tábua IV – De jure patrio – Do pátrio poder. Tábua V – De haereditatibus et tutelis – Da tutela hereditária. Tábua VI – De domínio et possessione – Da propriedade e da posse.

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Tábua VII – De jure aedium et agrorum – Do direito relativo aos edifícios e às terras. Tábua VIII – De delictis – Dos delitos. Tábua IX – não há comentários. Tábua X – De jure sacro – Do direito sagrado. Tábua XI – ficou perdida no maremoto romano. Tábua XII – Pignoris capio – Da apreensão do penhor (inciso I). O Corpus Juris Civilis compõe-se de quatro partes, assim conhecidas: a) Institutas (Institutiones), parte elementar da obra, calcada nas Institutas de Gaius e constituída de quatro livros, subdivididos em títulos; b) Digesto (Digesta) ou Pandectas (Pandectae), composto de uma coleção de fragmentos das obras dos antigos jurisconsultos, constando de cinqüenta livros, subdivididos em títulos, com exceção dos 30,31 e 32, que não tem divisão; c) Código (Codex), composto da coleção de constituições imperiais,dividida em doze livros, subdivididos em títulos; d) Novelas (Novellae Constitutiones), compostas de 168 constituições promulgadas posteriormente por Justiniano e por dois de seus sucessores, que foram compiladas e acrescidas às partes anteriores.

Com o decorrer do tempo a lei passou a ter valor em si e por si, traduzindo a vontade intencional de reger a conduta ou de estruturar a sociedade de modo impessoal e objetivo. Com o surgimento da norma legal ainda ligada ao costume, aparece também a jurisdição.

Vimos também, que o Direito primitivo é um direito anônimo (não se sabe quando nem onde surge o costume, não há, pois, paternidade) que se vai consolidando em virtude das formas da imitação, do hábito ou de comportamentos exemplares. Já em estágio mais evoluído da civilização, aparecem os primeiros órgãos cuja finalidade específica é conhecer o Direito e declará-lo órgão de jurisdição (jurisdicere) – dizer o que é de direito a cada caso concreto, obra de juízes e pretores.

O Direito Romano é um direito doutrinário e jurisprudencial por excelência, pois se orienta pelo saber dos jurisconsultos, combinado com as decisões dos pretores, ambos atuando em função da experiência. Quando surgia uma demanda, os juízes julgavam segundo a ratio juris e não segundo critérios morais. Essa vocação jurídica dos romanos, distinguindo o Direito da Moral e da Religião tornaram-lhes aptos a resolverem os problemas no domínio do Direito. Em Roma, a consciência da jurisdição aparece de maneira clara e concreta devido a sua vinculação ao sistema objetivo de regras de competência e de conduta.

Com a decadência do mundo romano, após o Direito romano clássico, o processo legislativo passa a prevalecer sobre o processo jurisdicional como fonte reveladora do Direito.

4.2. DIREITO NA IDADE MÉDIA

4.2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C) inicia-se com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C) e termina com a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453 d.C) e finais da guerra dos cem anos. Apresenta um pluralismo de ordens jurídicas, compreendendo o direito bárbaro ou germânico, direito feudal ou dos senhorios, direito das corporações de mercadores ou mercantil, direito das cidades, direito canônico e o aparecimento dos glosadores.

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Com a decadência do Império Romano, aqueles que viviam fora do Império (bárbaro-estrangeiro), se quisessem poderiam nele penetrar e eram muito bem recebidos. Já partir do século III, famílias germânicas iniciaram uma penetração pacífica e o vasto mundo dos romanos começou a se barbarizar.

4.2.2 DIREITO GERMÂNICO

Até o século IV os germânicos não fizeram uma penetração em massa pelas férteis terras dos romanos, porém, com a tremenda seca na Ásia, os povos que aí viviam tiveram que marchar para o ocidente em busca de terras melhores. Dentre eles, os hunos, povo violento e cruel, que empurrou os romanos para dentro do Império Romano em verdadeiras hordas. Os primeiros foram os visigodos, que foram seguidos pelos vândalos, anglos, saxões, jutas, francos, borgúndios e finalmente os ostrogodos.

Invadindo diversas regiões da Europa, os germanos levaram seus costumes e instituições, dando personalidade a cada local em que se radicaram e assim foi-se delineando a Europa moderna.

Os germanos acolheram o princípio da personalidade das leis segundo a qual a origem (nacionalidade) da pessoa deveria estabelecer o seu estatuto jurídico: germanos, direito germânico; latinos, direito romano vulgar, e clérigos, direito da Igreja (canônico). A existência de tribos germânicas e a falta de unidade no direito germânico ocasionaram um pluralismo de ordens jurídicas, como vimos anteriormente. Surgiram neste período diversas compilações, que datam do século V, tais como Lex Visigothorum para os godos e a Lex Romana Visigothorum também chamada Breviarum Alarici (506), aplicável aos latinos no território dos godos (Itália, França, Espanha e Portugal) que vigiu até 654, substituída pela Líber Judiciorum, que procurou dar unidade ao direito germânico, direito romano vulgar e direito canônico, imperando na Espanha e em Portugal, vigorando até o século XIII e foi restabelecida por Afonso X com o nome de Fuero Juzgo (Forum Judicium) com algumas inovações. Outras compilações são a Lex Burgundionum dos burgundos (sudeste da França) e a Lex Romana Burgundionum para os latinos no território dos burgundos; Lex Alamannorum, dos alemães; Lex Salica, dos francos.

O direito germânico admitia a vingança da família da vítima, renunciável em troca de uma boa compensação (Wehrgeld – dinheiro da proteção), no caso de delito; a propriedade coletiva do solo e a propriedade familiar dos demais bens.

No direito penal germânico, o agressor pagava pelo prejuízo de acordo com uma tabela, o que lhe dava um caráter privado e admitia os “juízos de Deus”, indicadores do culpado através da prova (Ordálio) do veneno, da água fervente, do fogo ou do duelo. Era também comum a “prova do punhal” onde o acusado, com os olhos vendados, era colocado frente a dois punhais, um dos quais era o que foi usado no crime, e o outro, do rei ou juiz, devendo apontar um deles: a indicação corresponderia à sentença de culpa ou de absolvição. O Ordálio é muito antigo, aparecendo no Código de Hamurabi e consistia, como vimos, numa prova baseada no juízo divino, invocando, na falta de outras provas, tanto da acusação como da defesa e pela qual o acusado se submete à prova mortal, com risco de vida ou mutilação: sobrevivendo ou ficando incólume ao perigo, seria considerado inocente; perecendo ou ferido, era, portanto, considerado culpado, com a sentença condenatória já aplicada.

4.2.3 DIREITO FEUDAL

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O direito feudal ou dos senhorios imperava fora da cidade, com jurisdição própria dentro de cada feudo (propriedade) dos senhorios, militarmente centralizado no castelo-fortaleza, símbolo da subordinação, dominando servos e vassalos. A jurisdição senhorial não era submetida à soberania do rei, que a reconhecia por conveniência.

Os nobres possuidores de terras (feudos), com grandes privilégios, exerciam um direito desigualitário, baseando-se num contrato entre o proprietário e os vassalos e servos, que em troca da proteção, cultivavam as terras, pagavam impostos e prestavam serviços aos senhorios.

O direito feudal utilizava-se de técnicas cruéis para obtenção da confissão dos acusados e aplicava penas severíssimas.

4.2.4 DIREITO DAS CORPORAÇÕES DE MERCADORES

O direito das corporações de mercadores era um direito convencional e consuetudinário, flexível, desprovido de formalismos, que foi inicialmente compilado em Gênova (1506) e, posteriormente em Pisa e em Milão. Não era um direito reconhecido pelos tribunais das cidades, mas acatado espontaneamente pelos mercadores, que respeitavam as decisões das cortes das corporações, os costumes e as convenções celebradas por elas.

4.2.5 DIREITO DAS CIDADES

O direito das cidades era constituído pelo direito consuetudinário, nelas predominante, e com fragmentos do direito romano, recebendo forte influência do direito mercantil. Cada cidade era uma sociedade política que se comportava como um verdadeiro Estado, como por exemplo, Florença, Milão e Gênova na Itália e Antuérpia na Bélgica , etc.

O direito das cidades foi compilado entre o século X e o século XI, tendo como primeira compilação o Líber iurium republicae Januensis de Gênova, resultado de acordo com os senhores feudais, com validade somente nos territórios das cidades, em razão das vantagens que lhes proporcionavam as feiras realizadas nos seus domínios, não regulamentadas pelo direito feudal, além, dos impostos que lhes favoreciam; porém, em muitos casos, os direitos das cidades foram conquistados com lutas sangrentas, exigindo muitas vezes que os citadinos renunciassem aos seus direitos de origem (germano ou romano), para ficarem sob o seu império.

4.2.6 DIREITO CANÔNICO

O direito canônico, contido em vários decretos e influenciado pelo direito romano, foi compilado, no século XII, por Graciano (Franciscus Gracianus), monge, jurista e professor de Teologia em Bolonha, com o título de Decretum Gratiani ou Concórdia discordantium canonum (1140), versando sobre todo o direito: das pessoas, sacramentos, direito eclesiástico e direito em geral. Graciano apresenta os decretos anteriores em ordem sistemática, fazendo comentários e resolvendo dificuldades e contradições, adotando o método dos “casos”, formulando problemas hipotéticos e soluções com base em suas idéias, nas idéias das autoridades da Igreja e no direito romano. Como indica seu título, trata-se de conciliar a totalidade das normas canônicas existentes desde séculos anteriores, muitas delas opostas entre si, representando um passo importante para a consolidação do Direito da Igreja Católica na Idade Média, fruto da atividade doutrinal de um canonista e não de uma política legislativa pontifícia, que embora não tenha sido promulgado

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oficialmente, segundo a tradição medieval, teria sido aprovado pelo Papa Eugênio III. Outras legislações seguiram-se a essa (Decretali, de Gregório IX; Líber sextus, de Bonifácio VIII (1298); Clementinae, de João XXII (1317). No Concílio de Basiléia (1431-1443), tais legislações foram compiladas com o título de Corpus iuris canonici. Na Idade Média, corpus significava conjunto de documentos sobre determinada matéria. Corpus iuris significa, assim, um conjunto de documentos jurídicos e canônicos da Igreja. Cânones eram as normas prescritas pela Igreja, em oposição às leges seculares.

No pontificado de Pio X, o cardeal Gasparri reformou o Corpus Juris Canonici, cujas modificações entraram em vigor em 1917, no Pontificado de Benedito XV, com o nome de Codex Juris Canonici.

Em 25/02/83, foi promulgado pelo Papa João Paulo II novo Código Canônico, observando as resoluções do Concílio Vaticano II.

O direito canônico exerceu significativa influência nos institutos jurídicos; a separeção judicial (desquite) acolhida pelos nossos legislados correspondia ao divortium dos canonistas, que tinha por causa o adultério, a injustiça ou a crueldade grave.

No Brasil, o divórcio foi introduzido pela Lei nº 6.515/77, precedido da “separação judicial”.

4.2.7 DIREITO DOS GLOSADORES

No século XI, em Pisa, ou em Amalfi, no sul da Itália, segundo alguns historiadores, foi encontrado um texto completo do Digesto de Justiniano que aplicado aos reinos, artificialmente divididos e às nações em gestação da Europa medieval onde dominava um pluralismo jurídico, organizou a vida social em bases mais estáveis, proporcionando melhor unidade política. Irnério, um gramático erudito da Universidade de Bolonha estudou o texto do Digesto e formulou interpretações (glosas) do mesmo. Os comentários escritos nas entrelinhas do texto chamavam glosas interlineares e posteriormente, as interpretações registradas à margem dos textos denominavam-se glosas marginais. Com os glosadores de Bolonha, inicia-se o renascimento do direito romano na Idade Média. Esse novo direito romano, fruto do trabalho dos glosadores, adaptado à sociedade medieval e ao cristianismo, com o tempo se transformou no direito comum de toda a Europa, vigindo até o século XIX.

4.3.DIREITO NA IDADE MODERNA E CONTEMPORÂNEA

4.3.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS

A Idade Moderna inicia-se em 1453, tomada de Constantinopla pelos turcos e fim da Idade Média e vai até 1789, tomada da Bastilha e início da Revolução Francesa.

A Idade Contemporânea inicia-se em 1789, tomada da Bastilha e início da Revolução Francesa e termina segundo a maioria dos historiadores, em 1945, data das explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão e término da 2ª Guerra Mundial. A partir de 1945 inicia-se a Era Atômica, na qual ainda estamos atualmente.

As descobertas marítimas do século XVI impulsionaram o desenvolvimento do comércio marítimo através dos portos que a rota atlântica criou. Tal desenvolvimento

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exigiu um direito codificado que proporcionasse mais segurança nas relações jurídicas, que surgiu primeiramente no Direito Comercial.

Assim, aparece na França, em 1674, a Ordonnance de Colbert, que embora enfatizasse os atos de comércio, o Direito Comercial ainda continuou a ser um direito para a classe dos comerciantes. Mais tarde, em 1681, Colbert compilou costumes marítimos dominantes nos portos do Atlântico e do Mediterrâneo na Ordennance touchant la marine (touchant: tocante, comovente, terno e marine: marinha) que substituiu a antiga compilação Guildone del maré (1607) que reunia as antigas leis de Rodes dos séculos VIII e IX.

No campo do Direito Civil, a França e em especial a Alemanha se baseavam no Corpus Juris Civilis, que continuou a vigir na França, até o século XIX e na Alemanha até o início do século XX.

Com referência ao Direito Constitucional, em 1787 os norte-americanos promulgam a primeira Constituição moderna, instituindo o presidencialismo como forma de governo e o federalismo como forma de Estado, constituindo-se no documento jurídico mais importante da Era das Revoluções, de grande repercussão no Brasil.

A Revolução Francesa, acabando com o Antigo Regime, impôs leis rígidas e intocáveis, bem como princípios revolucionários de “igualdade” e de “fraternidade”, contidos na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789).

4.3.2 ORDENAÇÕES DO REINO PORTUGUÊS Este tema será abordado na parte referente à História do Direito Privado no Brasil..

4.3.3 A CODIFICAÇÃO FRANCESA E ALEMÃ

Após uma legislação de transição, aparece em 1804 o Code Civil des Français elaborado por uma comissão, sob a influência de Napoleão, a ponto de denominá-lo, em 1807 de Code Napoleon e mais tarde, em 1814, Code Civil, que está ainda em vigor na França, graças às interpretações atualizadoras dos tribunais franceses.

A codificação napoleônica, influenciada pelo direito romano e direito canônico, inspirando códigos civis europeus (português, italiano, espanhol, belga, holandês, romeno, egípcio, etc), constitui o primeiro trabalho de codificação científica (sistematização, classificação, concisão, precisão e clareza).

O movimento codificador europeu que se inicia em 1804 com o Code Civil des Français, vencendo a resistência dos romanistas e as severas críticas do alemão Savigny, conseguiu se impor no Direito Europeu. Assim, em 1º de janeiro de 1900, surge o Código Civil alemão, que influenciou profundamente nosso Código Civil e que no dizer de Saleilles está “impregnado de direito romano”.

As codificações européias, compreendendo o grupo francês referenciado pelo Código Civil francês e o grupo alemão, tendo como referencial o Código Civil alemão, formam o sistema jurídico continental com domínio no continente europeu, exceto na Inglaterra, ou sistema de direito codificado, ou ainda, Civil-law, tendo em suas raízes, o Direito Romano.

4.3.4 OS SISTEMAS JURÍDICOS

No sistema jurídico continental ou Civil law, a lei é a principal fonte do direito, atuando as demais fontes de forma subsidiária. Tal sistema também se caracteriza

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pela significativa influência que recebeu do direito romano, do direito canônico, do direito francês e do direito germânico.

Em oposição a esse sistema está o sistema anglo-americano ou do Common law, cuja fonte principal do direito é o precedente judicial (sentença padrão), reservando à lei um papel secundário, sendo seus princípios e regras jurídicas formulados com base na eqüidade e nos costumes, exceto no Direito Constitucional norte-americano, que apresenta um sistema misto, onde a lei tem preferência em vários campos jurídicos.

O Common law ou sistema de direito jurisprudencial surgiu na Inglaterra nos meados do século XII, quando Henrique II (1154) criou os juízes visitantes do rei, cujas decisões, revistas pelas Cortes Reais, deram origem a um corpo de julgados uniformes (precedentes judiciais) que, a partir de 1800, tornaram-se obrigatórios para todos os juízes.

A partir da Primeira Guerra Mundial, a Europa entrou em crises sucessivas e a tão sonhada fase de progresso sem fim, advinda do direito da Era Vitoriana (longo reinado da Rainha Vitória, a grande soberana que ocupou o trono inglês de 1837 a 1901) se desvaneceu e os códigos inspirados no individualismo jurídico (interesse individual) lentamente procuram a solidariedade social e aos poucos, o direito privado tem seu território dividido e subdividido, adquirindo autonomia várias partes do Direito Civil e Comercial.

Com a Revolução Russa aparece um terceiro sistema jurídico: o sistema soviético, que quanto às fontes do direito, se enquadra no sistema continental ou Civil-law (sistema legislado), mas apresentando conteúdo diverso, fundado numa sociedade socialista que não admite a propriedade privado dos meios de produção, subordinando o exercício dos direitos à sua destinação econômico-social, instituindo um governo colegiado de partido único (Partido Comunista). Assim, como diz Paulo Dourado de Gusmão, “quanto ao conteúdo, depois da Revolução Russa, dois sistemas jurídicos conflitaram-se: o sistema capitalista (sistema continental ou Civil Law e sistema do Common-law) e o sistema soviético (URSS). Mas, depois de 1945, a área socialista deixou de ser identificada com a soviética, porque países socialistas como por exemplo, a China e a Iugoslávia, passaram a ter, apesar de não integrados no bloco soviético, direitos socialistas. Em virtude de tal cisão pode-se dizer que, depois de 1945 até 1990, tivemos dois sistemas jurídicos fundamentais: sistema capitalista (continental ou Civil law e do Common law) e sistema socialista (URSS, China, Iugoslávia, Alemanha Oriental, etc). Entretanto, acelerada e imprevisivelmente mudou o mundo nos anos 80 e 90. Caiu o muro de Berlim e em 1990 unificou-se a Alemanha. O Leste europeu ingressou na economia de mercado. Gravíssima crise econômica, social e política implodiu a URSS no final de dezembro de 1991, substituída pela Comunidade de Estados Independentes (CEI), sem poder central, confederação criada pela Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia, nos moldes da commonwealth britânica. Terminou, assim, após 70 anos, a Revolução Russa. O que virá depois é imprevisível, só a História dirá...”

Commonwealth: comunidade das nações, organização de grupos de nações com interesses comuns, era a mais importante e original organização política do mundo moderno. Tem raízes em todos os continentes e abrange uma superfície total de cerca de 30 milhões de Km2.

Constitui uma associação de Estados praticamente soberamos que juntamente com territórios coloniais, se acham reunidos ao Reino da Grã-Bretanha por laços pessoais (desde que respeitem seu monarca como chefe supremo) e uma fraternal solidariedade.

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O centro deste Império encontra-se no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte

4.3.5 O SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO Para este tema, os alunos deverão elaborar um trabalho, com base na bibliografia fornecida pelo professor.

5. HISTÓRIA DO DIREITO PRIVADO NO BRASILIntrodução à História do Direito Privado e da Codificação - Capítulo 3Giordano Bruno Soares Roberto

A História do Direito no Brasil começa com o descobrimento. Inicialmente, confunde-se com a História do Direito português. Em seguida, durante a Colônia, a ele permanece intimamente ligada, mas já acrescida de elementos locais. Somente com a Independência, em 1822, inicia seu próprio curso. Nas belíssimas palavras de Pontes de Miranda,

“O Direito, no Brasil, não pode ser estudado desde as sementes; nasceu do galho de planta, que o colonizador português, - gente de rija têmpera, no altivo século XVI e naquele cansado século XVII em que se completa o descobrimento da América, - trouxe e enxertou no novo continente”.

5.1 AS ORDENAÇÕES DO REINOO estudo da legislação portuguesa é importante porque no Brasil Colônia e no

Brasil Império muitas leis portuguesas foram aplicadas e dentre elas destacamos a Lei das Sete Partidas e as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas.

A Lei das Sete Partidas era espécie de enciclopédia jurídica, inspirada basicamente no Direito Romano e no Direito Canônico, trazida da Espanha pelo rei de Portugal, D. Diniz (1279-1325) e traduzida para o português, com aplicação obrigatória em todo o reino. O nome Lei das Sete Partidas deriva de sua divisão em sete livros: Livro I – Fontes do Direito e Direito Eclesiástico; Livro II – Composição Política e Militar do Reino; Livro III – Procedimentos Judiciais; Livro IV – Direito de Família; Livro V – Contratos; Livro VI – Sucessões e Livro VII – Delitos e Penas.

O Direito português, como já dissemos, participa de uma herança européia comum. Em sua formação entram elementos de Direito Romano, Germânico e Canônico. Mesclando-se esses elementos com outros locais, surge, em 1446, a primeira compilação de origem portuguesa do Direito português. São as Ordenações Afonsinas, publicadas em nome de D. Afonso V que foram influenciadas pelo Direito Canônico e pela Lei das Sete Partidas, divididas em cinco livros: Livro I – Direito Administrativo e Organização Judiciária; Livro II – Direito Eclesiástico, do Rei, da Nobreza e dos Estrangeiros; Livro III – Regras do Processo Civil; Livro IV – Direito Civil e Direito Marítimo (Comercial); Livro V – Direito Penal e Processual Penal.

Por ordem do rei, D. Manoel I, o Venturoso, organiza-se outra compilação, acrescentando a legislação publicada depois da primeira, mantendo-lhe, porém, o sistema, com pequenas alterações. Trata-se das Ordenações Manuelinas, de 1521, redigidas em forma de decreto, com destaque ao Direito Marítimo e aos

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contratos mercantis e divididas em cinco livros: Livro I – Direito Administrativo e Organização Judiciária; Livro II – Direito Eclesiástico, Direito do Rei, Direito da Nobreza e Direito dos Estrangeiros; Livro III – Regras do Processo Civil; Livro IV – Direito Civil e Direito Marítimo (Comercial); Livro V - Direito Penal e Processual Penal

Por problemas de ordem sucessória, assume o trono português D. Felipe II, rei da Espanha, neto de D. Manuel I, o Venturoso, nascendo, assim, a União Ibérica (1580-1640) Em 1603, publicou-se a reforma das compilações, iniciada por Filipe I e concluída por Filipe II. São as Ordenações Filipinas, que teriam sido usadas pelos reis espanhóis como artifício para ganhar a estima do povo português e estavam divididas, também, em cinco livros: Livro I – Direito Administrativo e Organização Judiciária; Livro II – Direito Eclesiástico, Direito do Rei, Direito da Nobreza e Direito dos Estrangeiros; Livro III – Regras do Processo; Livro IV – Direito Civil e Direito Marítimo (Direito Comercial); Livro V – Direito Penal e Processual Penal.

Todas as três compilações se caracterizavam pelo apego comodista ao Direito Romano e ao Direito Canônico, além das inúmeras falhas e contradições. Em todas, inclusive na última, nascida já no século XVII, as opiniões de Acúrsio e de Bártolo eram consideradas regras subsidiárias e deveriam ser seguidas pelo seu valor extrínseco e não apenas quando fossem razoáveis.

Por uma série de fatores, Portugal permaneceria infenso às idéias iluministas por um longo tempo. Já se aproximava o último quartel do século XVIII, o século das luzes, quando as terras portuguesas receberam significativo impulso de renovação. Trata-se da reforma realizada pelo Marquês de Pombal que, no aspecto que nos interessa, atingiu seu ponto alto com a Lei de 18 agosto de 1769, conhecida com Lei da Boa Razão. Com ela, o Direito Romano era mantido como base do ordenamento, mas deveria ser filtrado pela boa razão.

5.2 A INDEPENDÊNCIAO Direito na Colônia atravessou as mesmas fases do Direito na Metrópole.

Somente a partir de 1822, com a Independência, os ordenamentos jurídicos de Brasil e Portugal seguiriam caminhos próprios.

Portugal promulgaria seu Código Civil, em 1867, colocando fim à vigência das Ordenações Filipinas em matéria civil. Não seguiremos, contudo, a linha evolutiva do Direito português.

O Brasil, como veremos, teria que percorrer um caminho bem mais longo até seu Código Civil.

Logo em 1823, o governo imperial promulgou uma Lei que mantinha em vigor no território brasileiro as Ordenações Filipinas e toda a legislação portuguesa anterior a 25 de abril de 1821, enquanto não se organizasse um novo Código e desde que não fossem especialmente alteradas por outra lei.

A Constituição de 1824 determinou que se organizasse o quanto antes um Código Civil e um Código Criminal para o Império.

O segundo foi promulgado em 1830. A história do Código Civil é mais tortuosa. Dela nos ocuparemos nos próximo capítulo.

5.3 OS DESAFIOS DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO ANTES DA CODIFICAÇÃO

No contexto da Independência, quais seriam os maiores desafios do Direito Privado brasileiro?

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Certamente que um dos mais urgentes era a modernização. Basta dizer que continuávamos regidos pelas Ordenações Filipinas, organizadas em 1603. O atraso era evidente.

A confusão não era menor. Com o passar dos anos, uma infinidade de leis, assentos, alvarás, resoluções e regulamentos foram editados para completar ou modificar as Ordenações Filipinas.

Também merece destaque que, uma vez independente o país, seu Direito também tinha que tomar rumo próprio, de acordo com as necessidades de seu povo. Quanto à organização do Estado, não era possível esperar. Surge, já em 1824, a Constituição do Império. O Direito Privado teria que esperar mais. Contudo, a situação de dependência em relação ao Direito da antiga metrópole, também nessa seara, era incômoda e inadequada.

Outro desafio extremamente importante relacionava-se com o tema das desigualdades. Em nosso imenso e rico território, elas eram enormes e cada vez mais questionadas. A escravidão, por exemplo, despertava polêmicas e exigia um posicionamento também do Direito Privado.

Os três primeiros desafios serão os motores da idéia da codificação de nosso Direito Civil, enquanto o problema das desigualdades não será sequer adequadamente formulado, muito menos enfrentado.

5.4 O CONTEXTO TEÓRICO DA CODIFICAÇÃO BRASILEIRA

Sobre o pensamento dos juristas brasileiros a respeito da necessidade de codificação, nesse contexto de Independência, há uma informação de Keila Grinberg, em seu inquietante Código Civil e cidadania, que vale a pena transcrever. Para ela:

“Se pudéssemos perguntar a algum jurista daquela época, da Escola de direito de Recife ou da Escola de Direito de São Paulo, a sua opinião sobre a importância da codificação, nenhum teria dúvidas em afirmar que ela era fundamental para a o futuro do país. Qualquer um diria que o direito era a porta de entrada para a civilização, e era impossível adentrá-la sem a codificação do direito civil. Isso porque, desde aproximadamente a década de 1870, a formação de bacharéis em direito estava embebida do espírito positivista e evolucionista que caracterizava o pensamento científico da época. Acreditavam que as sociedades evoluíam positivamente, e que era possível alcançar um estágio superior através da elaboração de boas leis. Quanto melhores e mais avançadas as leis, melhor e mais avançada a sociedade: um passo adiante no caminho do progresso”.

As razões para o consenso são óbvias. O Código de Napoleão despertara interesse em todo o mundo. A teoria da codificação, principalmente na vertente de Bentham, também já havia chegado ao Brasil, influenciando nossos juristas, inclusive o próprio Teixeira de Freitas, que teria um papel decisivo na evolução de nosso direito Civil.

CONCLUSÃO

Estudamos, em linhas muito gerais, a história do Direito Privado, começando com uma referência ao Direito Romano, passando pela Idade Média e pela modernidade. Percebemos, nesse contexto, o surgimento do Direito Privado brasileiro a partir de um longo processo de emancipação em relação ao Direito português.

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Em seguida, percorremos os caminhos da codificação na Europa e no Brasil. Durante o percurso, não pudemos deixar de nos fascinar com a beleza das informações encontradas.

Conhecemos um pouco da história do Código de Napoleão, de 1804, e do BGB, DE 1900. Conhecemos também a história do nosso Código Beviláqua, de 1916, motivo de justo orgulho de todos os brasileiros.

Descobrimos, em meio às tentativas de reformar nosso Código, um projeto já esquecido, formulado na distante década de 1960, que, para surpresa de todos, foi aprovado em 2002, convertendo-se no segundo Código Civil Brasileiro.

Os passos anteriores nos permitiram refletir sobre a adequação desse novo Código ao momento atual do Direito Civil Brasileiro. Eis as conclusões a que chegamos:

1. O novo Código não é adequado porque não pode contribuir para enfrentar o desafio da intensa evolução das relações sociais, uma vez que não trouxe nenhuma regra ou princípio para ajudar a solucionar os novos problemas.

2. O novo Código não é adequado porque não pode contribuir para enfrentar o desafio da explosão legislativa, uma vez que, entre outras coisas, preferiu utilizar a antiga técnica regulamentar, ao invés de apresentar disposições mais principiológicas.

3. O novo Código não é adequado porque não pode contribuir para enfrentar o desafio de facilitar a transposição do umbral de aceso ao Direito Civil, porque todas as soluções que trazia nesse sentido já estavam previstas, em melhores termos, em outras normas.

4. O novo Código não é adequado porque não permitiu aos seus destinatários participar da formação ou simples discussão de seu conteúdo, uma vez que só foi amplamente debatido na época da elaboração do projeto, em contexto histórico bem diferente do atual.

5. O novo Código não é adequado porque o principal fundamento apontado por seus defensores para sua aprovação, qual seja, o de promover a renovação do Direito Civil, carece de contato com a realidade, uma vez que as principais inovações formuladas em seu projeto, na década de 1960, já tinham sido levadas a efeito quando de sua aprovação em 2002.

6. O novo Código não é adequado porque não será a síntese do interessante movimento de renovação do Direito Civil atualmente em curso, seja porque o projeto lhe é anterior, seja porque, sendo ainda jovem, o movimento não está em condições de produzir frutos duradouros.

7. O novo Código não é adequado porque, podendo fazer outras opções metodológicas, ficou preso à idéia de ressistematizar o Direito Civil a partir de suas normas.

8. O novo Código não é adequado porque, podendo utilizar outra técnica legislativa, de natureza mais principiológica, escolheu priorizar a antiga técnica regulamentar.

A todos os títulos inadequado, o novo Código tem também algumas vantagens em relação ao Código anterior, como procuramos indicar neste trabalho.

Acreditamos, finalmente, que sua aprovação pode suscitar duas posturas distintas.

Uma, de culto ao texto da nova lei, de mera exegese, de aplicação cômoda e preguiçosa de seus dispositivos, de um renovado formalismo.

Outra, de utilização do novo texto como mais uma fonte normativa que, ao lado das existentes, pode contribuir para a adequada decisão dos casos concretos.

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Pensamos que a segunda, apesar de mais trabalhosa e, por isso, menos ligeira, acabará prevalecendo.

O vôo de renovação do Direito Civil brasileiro não será interrompido pelo novo Código. A civilística nacional, certamente, saberá aproveitar seus pontos positivos, sem diante dele se curvar. Os operadores do Direito saberão aplica-lo, juntamente com outras inumeráveis fontes, de acordo as peculiaridades de cada caso.

Os desafios do Direito Civil brasileiro nesse início de século convidam todos ao trabalho. É imprescindível que o diálogo seja amplo e constante. E todos podem ajudar. Foi isso que tentei fazer, dentro de minhas limitadas possibilidades.

6. PROCESSO DE RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS NA HISTÓRIA

Historicamente, a resolução dos conflitos ocorrentes na vida em sociedade passou, resumidamente, pelas seguintes fases até a jurisdição:

a) Autotutela – satisfação da pretensão pelo uso da força, garantindo não a justiça, mas a vitória do mais forte, mais astuto ou mais ousado sobre o mais fraco ou mais tímido. A autotutela se caracteriza pela ausência de juiz distinto das partes e pela imposição da decisão por uma das partes à outra.

b) Autocomposição – uma das partes em conflito ou ambas abrem mão do interesse ou de parte dele. A autocomposição assume as seguintes formas: 1) desistência (renúncia à pretensão); 2) submissão (renúncia à resistência oferecida à pretensão); 3) transação (concessões recíprocas). Tais soluções são parciais, pois dependem da vontade e da atividade de uma ou de ambas as partes.

c) Arbitragem – as partes elegem uma terceira (sacerdote, ancião e depois o pretor), que busca uma solução amigável e imparcial, surgindo, pois, historicamente o juiz (árbitro) antes do legislador.

A princípio, a arbitragem era facultativa, pois as partes em conflito escolhiam um árbitro de sua confiança e esse árbitro recebia do pretor o encargo de decidir a lide. A participação do Estado era pequena e o processo civil romano desenvolvia-se em duas fases: perante o pretor ou magistrado e perante o árbitro. Com o fortalecimento do Estado, este adquiriu o poder de nomear o árbitro, passando a arbitragem a ser obrigatória, surgindo o processo.

Para facilitar a sujeição da partes às decisões de um terceiro, a autoridade pública começa a preestabelecer, em forma abstrata, as regras destinadas a servir de critério objetivo e vinculativo para tais decisões, evitando julgamentos arbitrários e subjetivos, surgindo então o legislador.

d) Jurisdição – entrega-se ao Estado-Juiz a composição e decisão da lide.Depois do período arcaico e clássico (século III d.C) o pretor passou a

conhecer ele próprio do mérito dos litígios entre os particulares, proferindo, inclusive, a sentença, ao invés de nomear ou de aceitar a nomeação de um árbitro – a chamada justiça privada passou a ser pública. Dá-se, pois, o nome de jurisdição às atividades através das quais, os juízes estatais resolvem as lides.

A evolução acima descrita, obviamente, não aconteceu de forma linear, límpida e nítida, ocorrendo marchas e contramarchas, avanços e retrocessos, estagnações, servindo tal descrição, apenas, como análise macroscópica da evolução da tendência no sentido de chegar ao Estado, todo o poder atual de dirigir litígios.

7. FASES DE APLICAÇÃO DAS SANÇÕES

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1º Fase – Regime da vingança social – a ofensa a um membro da comunidade era considerada como ofensa a todos os membros. Era o regime da responsabilidade despersonalizada.2º Fase – Regime da vingança privada livre – cada um podia fazer justiça pelas próprias mãos. A responsabilidade do infrator já era personalizada, cabendo ao prejudicado ou aos seus descendentes, aplicar as sanções que julgassem cabíveis como conseqüência do mal sofrido.3º Fase – Regime da vingança privada limitada – já se vislumbrava a possibilidade de uma justiça proporcional entre o ato praticado e a sanção aplicável. É desta fase a Lei de Talião, que representa uma conquista ética da humanidade, pois, estabelecia uma proporcionalidade. Ainda neste período, admitia-se, em alguns casos, a indenização (multa) como forma de compensação pelo mal causado.4º Fase – Regime da coação organizada – a aplicação das sanções passa das mãos dos particulares para o Poder Público, politicamente organizado (Estado).

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas portas do terceiro milênio, surgem mudanças geo-político-econômicas, tornando imprevisível o futuro da Comunidade de Estados Independentes (CEI) e até mesmo a estabilidade atual da Comunidade Européia pela convivência inovadora com uma moeda única e a interdependência e integração de três sistemas jurídicos: o dos direitos nacionais dos países-membros, o do direito comunitário, acima dos nacionais (Direito da Comunidade Européia) e o do direito internacional que submete ambos (nacionais e comunitário). Fora da Comunidade Européia temos o sistema de direitos nacionais (brasileiro, norte-americano, argentino) e o do direito internacional.

Parece que há uma tendência atualmente em dividir o mundo em blocos políticos economicamente organizados, como por exemplo, o MERCOSUL na América Latina (Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina) e os acima já citados, frutos, talvez, da interdependência econômica, desnacionalização do capital com a multiplicação das empresas multinacionais, crises econômicas. Tais configurações geo-político-econômicas, certamente necessitarão de ordenamentos jurídicos integrados e adaptados.

O filósofo e professor da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, Luciano Zajdsznajder afirma que a interpretação do presente pelos contemporâneos não é homogênea, afirmando alguns que apenas vivemos a crise de uma época, com várias e profundas transformações do viver humano, ao passo que outros, como ele, entendem que nos encontramos num tempo que pode ser chamado de pós-moderno. A pós-modernidade realiza-se nas tecnologias da informação, na modificação da base econômica da indústria, para o setor terciário (serviços) e quaternário (informação, conhecimento) e na integração completa entre ciência, tecnologia e acumulação de capital. Ainda segundo Luciano Zajdsznajder, “isso redunda na aceleração da transformação dos conhecimentos científicos em objetos úteis – seja na produção, seja no consumo. Este fato tem sido caracterizado como a redução do tempo entre a descoberta científica e o momento da oferta do produto que a contém no mercado. O outro lado da mudança pós-moderna exibe-se na crítica aos aspectos negativos do progresso industrial – na forma da defesa da natureza – na crítica aos aspectos negativos dos conglomerados urbanos - com seus problemas insolúveis – ao caráter desumano e mesmo ineficiente das grandes organizações burocráticas – que inclui também as

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organizações do sistema representativo democrático. Desenha-se um mundo em que há uma multiplicidade de pólos sem centros e sem modelos de ação de valor absoluto, o que expressa uma forma de anarquismo difuso. De outra parte, junto ao intenso progresso científico e tecnológico do qual se originam parte dos sismos da vida pós-moderna - aparece uma crítica à razão e à ciência (principalmente ao cientificismo) que vai revalorizar a intuição e diversas formas do misticismo e da religiosidade...”- (“A Travessia do Pós-Moderno, Editora Gryphus, Rio de Janeiro, 1992).

LEITURAS COMPLEMENTARES

O JURISTA DO TERCEIRO MILÊNIO (AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à história do direito São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 313/320).

“Nestes primeiros tempos dos anos dois mil, diante das perspectivas que o progresso vem proporcionando em inúmeros setores, de forma mais intensiva no campo das ciências biológicas, da tecnologia, da comunicação, e quando se observa que em rápida sucessão vão sendo substituídas estruturas que até então pareciam sólidas e que já não mais o são, todas estas transformações, que causam impacto e perplexidade, levam a reconhecer que a tarefa do jurista, desde o legislador até aqueles incumbidos de fazer atuar e aplicar as leis, normas e regulamentos editados para manter incólume o Estado de Direito, torna-se cada vez mais ingente, exigindo redobrado zelo e não menor apuro, para que não se perca o respeito ao ideal de justiça e à necessidade de se preservar e conservar a paz social.

Estas preocupações, chamadas e reclamos ao resguardo dos postulados do direito, no entanto, não datam de hoje nem de agora, pois sempre existiram na consciência daqueles que sentiram o dever de assegurar o equilíbrio na convivência entre as pessoas que vivem em sociedade. Pode-se dizer, então, que existiram, antes e depois do primeiro milênio, no segundo e agora, como não poderia deixar de ser, também no terceiro milênio.

Antes de ingressar, assim, no século que alcançamos, vale enumerar alguns exemplos a esse respeito, que a História nos informa como paralelos precedentes à situação atual.

Veja-se o Direito Romano: quando parecia que a República encontrara o sistema definitivo de realização da justiça, característica do período clássico, a expansão de seus domínios iria acarretar inevitáveis modificações neste quadro: estende-se a cidadania aos povos conquistados, o ius civile vai sendo absorvido pelo ius gentium e o reflexo da helenização do mundo antigo não se esgota com a redução do solo grego à província romana; muito ao contrário, mais serve ainda para difundir a cultura e filosofia de vida do povo que ali habita, e que vão emigrar para a metrópole.

Mas é no âmbito do direito que se denota significativa transformação: a jurisdição deixa de ter fisionomia arbitral para ganhar foros de ofício público, e o pretor não mais se limita a ouvir as partes, porque, a partir de então, revestindo-se da delegação do poder imperial, recebe, examina, instrui e decide as causas.

E assim ocorre, tanto porque os contornos da administração judiciária já são outros como porque assim o exige o momento social: nos primeiros anos da era cristã, o filósofo Sêneca advertia contra a acentuada decomposição dos valores éticos e morais que se espalhava em todos os estamentos sociais, e mais ainda

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junto aos patrícios; um derrube de tal ordem, atuando sobre os cidadãos de Roma, que até então haviam conservado como apanágio o respeito à palavra empenhada, repercutia na degradação dos costumes, na instabilidade da família, no desprezo às qualidades inerentes à pessoa humana, no descuido e pouco caso ao ensino, à educação; e, em contrapartida, intensificavam-se os prazeres na permissividade dos hábitos, como se esta atitude pudesse encobrir a queda dos conceitos e a trinca das estruturas.

E concluía o filósofo por acrescentar devesse a justiça ser administrada tanto com reflexão e prudência quanto com acendrada dose de humanismo; mais do que o cumprimento das regras ditadas pela lei, deveria vir revestida destas duas qualidades, sem o que não teria como superar os continuados males que teimavam em viger e recrudescer; não se tivesse a veleidade de afirmar que eles desapareceriam, mas que, pelo menos, não vencessem: non ut desinant, sed ne vincant (males não vão desaparecer, mas não devem vencer).

Para este intuito, nos séculos seguintes, jurisconsultos da magnitude de Sálvio Juliano, Celso, Gaio e depois Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino iriam fornecer os fundamentos de um direito que até hoje permanece em grande parte atual e operante, servindo aos povos e às nações que o recepcionaram.

E vai por conta deste fator um segundo exemplo, igualmente marcante na História do Direito e da humanidade: no início do segundo milênio, achava-se o ocidente europeu fragmentado em diversos feudos, domínios e senhorios, nos quais o suserano, por deter maior extensão territorial ou campos mais produtivos, tornava-se por vezes mais poderoso do que o próprio rei. E a bruteza e ambição que estes potentados carregavam nada mais faziam que despojar dos servos e dos mais humildes de berço ou fortuna suas parcas opções, mais restritas, ainda, em razão do castigo das guerras fratricidas ou do horror das epidemias. Neste passo, quase ou nada lhes sobrava, senão a esperança de uma vida melhor, senão a fé que lhes garantiria a paz extraterrena.

Neste lance, os componentes da arraia-miúda mal se comunicam com os habitantes dos povoados vizinhos, seja porque a lavoura não lhes concede tempo, seja porque temem os perigos das estradas inseguras. E o isolamento chega também aos nobres , acastelados em suas cidadelas, e ao clero, reduzidos aos claustros e abadias, enquanto, junto às muralhas, apegam-se as rudimentares lojas dos artífices e comerciantes, pretendendo haver do senhor local a esperada proteção.

Situação de tal ordem repercute no Direito que à época se aplica: o Direito Romano está assim como sotoposto às práticas costumeiras e ao direito singular e próprio do local onde vigoram: no particularismo dos regimes jurídicos utilizados, sobressaem os privilégios da nobreza, as prerrogativas do clero, os costumes dos bons vizinhos. Pouco a pouco, porém haverá de eclodir um dos movimentos significativos da história da humanidade, o Renascimento do Século XII, quando forças vivas irrompem instintiva e espontaneamente, de modo espantosamente harmônico, provocando sensíveis modificações nos quadros sociais, culturais, econômicos e institucionais da época.

Suas raízes provêm de setores variados: no campo filosófico opera-se a sistematização do pensamento teológico, no qual sobreleva a construção aristotélico-tomista; no cultural vai-se buscar o retorno aos fundamentos da antiguidade clássica e ao humanismo; na área econômica desenvolve-se o comércio e o intercâmbio marítimo, no Mediterrâneo, congregando artesãos e mestres de ofício nas primeiras corporações profissionais. No Direito, o reflexo destas tendências afasta a estratificação e converge para a unidade, divulgando-se pelo

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uso do latim os conceitos jurídicos, agora revistos nos centros de cultura e de saber, as universidades, nas quais se intensifica a elaboração e aperfeiçoamento das idéias que informam o sentido e conteúdo deste expressivo movimento intelectual. No Direito, regionalismo e peculiaridades locais cedem ao novo sistema, mais eficaz, porque homogêneo, comum, capaz de melhor atender às aspirações e necessidades emergentes, dentro de uma distinta perspectiva de vida que aparece, aqui na autonomia, ali, na solidariedade, mais além, na consciência de que estes fatores possuem enorme e transcendental importância no meio social para o qual se dirigem.

E de todo este resolver dos novos quadros jurídicos, o direito comum e universal ganhará tempo e lugar nos países que o adotam, constituindo a origem e marca do direito continental, cujo regime acompanhamos.

Um último exemplo, situado, agora, no final do século XIX e que se espraia pelo século XX; como já se afirmou alhures, embora seja próprio da civilização suportar transformações na diversidade dos impulsos que a História registra, nunca estes seriam tão expressivos quanto os que tiveram seqüência no período: descobertas científicas, alterações profundas do meio ambiente, novas opções de trabalho, entrechoque de idéias políticas, esboroamento dos antigos organismos, duas conflagrações mundiais, causando uma destruição nunca antes alcançada, significam estampas que o direito houve de enfrentar, como resposta às indagações e anseios de uma sociedade envolvida entre tantos e difíceis escolhos.

Daí a necessidade de o direito vir se adaptando às exigências desse momento histórico, abrindo vasas à liberdade, à igualdade, à proteção legal ao mais fraco, ao fim social da lei antes que o individual, consubstanciando-se estes princípios nas relações socioeconômicas, nas garantias do trabalho, na previdência, no direito de família, quando se incluem nas legislações outros critérios com relação ao tratamento dado à mulher, aos filhos oriundos de casamento ou da união estável. E nem ficou por aí esta surpreendente renovação de conceitos, já que se espargiu pelos demais campos do direito, - uma nova visão do direito de propriedade, a afirmação da propriedade industrial, literária, artística, científica; redução do prazo para o direito ao usucapião; novas espécies de condomínio, apenas para mencionar alguns exemplos; no direito das obrigações , a idéia de que, se deve ser respeitada a autonomia da vontade, tão a gosto do liberalismo, esta cede diante do interesse social e do bem comum; ou, ainda, no tratamento da responsabilidade civil, no sentido, de que todo dano à pessoa deve ser indenizado; da mesma forma, na dicotomia entre o dano patrimonial e o dano moral.

Não há porque se estender em tais aspectos, bastando ressaltar, isto sim, que os operadores do direito, tanto como em outras oportunidades, por compreender o alcance de tais mudanças houveram de se ajustar a estes e aqueles fatores, dando-lhes vida na seqüência dos casos concretos, que enfrentaram e resolveram.

E, agora, chega-se, finalmente, ao terceiro milênio, quando os imprevistos são de tal tamanho que nem toda a expressão dramática do grito da célebre tela de Munch conseguiria abarcar.

É bem verdade que não está colhendo temor igual ao que tiveram, segundo consta, aqueles que assistiram à passagem dos anos 1000, aguardando aterrorizados que o mundo ia acabar. Ao contrário, tudo mostra que a sociedade conviverá com situações mais fáceis de superar, diante das vantagens e comodidades ofertadas pelos significativos melhoramentos alcançados no campo da ciência e da tecnologia.

Nem por isso, todavia, hão de se afastar os cuidados, iguais por certo aos daqueles que nos antecederam, para não dizer maiores ainda, diante das questões

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oriundas destes novos quadros socioeconômicos, científicos e culturais; por exemplo, como responderá o direito às conseqüências resultantes das experiências genéticas e quando se reconhece que a reprodução não se faz unicamente pelo meio natural? Mas não é só: a par da aparente ausência de dificuldades que o progresso traz, certo é que estas persistem nos mais variados aspectos da convivência social: já nos acostumamos a viver lado a lado com a violência, a qual deixou as telas da televisão e do cinema para ganhar as ruas, os locais de trabalho, o recôndito do lar. Somos agredidos, gratuitamente, e a todo momento, tanto no físico quanto no espírito, tanto pela ação inesperada e criminosa dos marginais quanto pela licenciosidade e permissividade dos costumes, ambas abertas, expondo-se à claras em todos os meios de comunicação, desenfreada e mal educadamente, como se nada mais houvesse, senão pra proibir, pelo menos para determinar os mais comezinhos critérios de controle.

E enquanto um programa mínimo de resguardo dos valores éticos já não mais existe, quando tudo parece liberado, ao contrário, vemo-nos praticamente forçados a acompanhar aquilo que os condicionamentos impostos pela mídia exibem, seja uma vez, dez ou centena de vezes, como fez exemplo aquela pobre ave cambaleante, encharcada nas vascas do petróleo, símbolo do pretexto à guerra do Golfo.

Assusta mais ainda a insensibilidade com que aqueles que participam do mundo consumista, produto do capitalismo, assistem ao “escândalo da pobreza”, como nos alerta o polêmico cronista latino-americano Mario Benedetti: estamos tão adiantados que a memória eletrônica pode nos informar quantas e tantas crianças estão a morrer de fome pelo mundo afora; mas estamos também tão atrasados que não conseguimos evitar esta catástrofe; a imagem do menino esquálido, semimorto, surge por segundos no vídeo e desaparece a seguir, para dar lugar a outra notícia, mais atraente ou menos incômoda que a anterior.

Esta a realidade do mundo que o jurista de hoje recebe diante da qual não há de ficar estático, mas simplesmente deve agir e se esforçar, empenhar-se, enfim, mais do que nunca, para que não ocorra aquilo que Sêneca alertava há tantos anos: é preciso que os males não vençam, ainda que não tenhamos condições de debelá-los por completo.

De que qualidades haverá de se revestir, então esse jurista, seja o professor de direito, o doutrinador, o jurisprudente, o legislador, o magistrado, o promotor público, o advogado, todos aqueles, enfim, que operam e agem junto ao direito?

Sem ter a ousadia de encontrar a solução ideal para tamanha ordem de problemas, certo é que alguns caminhos podem ser determinados, como diretriz no empreendimento; e é significativo observar que, sob a visão geral no qual se colocam, acabam por retomar, em grande parte, o mesmo traçado já escolhido em outras épocas e em outras situações então ocorrentes.

Em primeiro lugar, há o jurista deste século de possuir a necessária competência, a qual se bifurca sob dois traços: competência técnica, que lhe proporcionará clara e escorreita redação e exposição de pensamento, compreensível a quem dela se utilizar e interpretar, útil a quem nela se amparar. Mas não basta o simples conhecimento do direito em si e por si; é preciso que a lei, desde a elaboração até a aplicação, venha carregada nas tintas da cautela, venha provida daquela prudência a que Aristóteles um dia se referiu, ou seja, do cuidado de verificar se nela sobra a intenção de a todos beneficiar, e não só a um; e é preciso que o jurista se revista daquela aptidão racional, real e prática, capaz de lhe permitir distinguir o que é conveniente, agora, como era, antes; e o que era conveniente, até agora, mas que já não mais o é.

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E aqui acompanha a segunda qualidade, a idoneidade nos propósitos, a probidade e discrição de conduta. Por mais que se respeite e se enalteça a liberdade, esta não se afina nem se ajusta com o agir libertário; a liberdade deixa de existir, quando não existe a garantia da ética, a moral, dos princípios que nos orientam e que vêm centrados no bom senso, na razão e na lei natural; e que nos permitem manter a convivência em sociedade.

Finalmente, a independência; se é possível que, por muitas vezes, apresente-se conveniente transigir, para que melhor ou mais rapidamente se atinja o resultado, não há como condescender quando deste ato possa resultar o abalo dos direitos que a dignidade e o respeito humano reconhecem como indisponíveis.

Na verdade, antes mesmo que a proteção da lei positiva, este posicionamento vem acolhido pela consciência ética da pessoa humana, capaz de repelir qualquer interferência que venha alterar a linha do dever, ou o sentido do direito. Assim, a liberdade há de vir definida pela consciência da responsabilidade assumida pelo jurista, pelo fautor (defensor, partidário) do direito.

No ambiente conturbado em que se vive, em que a escala axiológica dos valores sofre o impacto do imediatismo, da deterioração dos hábitos, da busca acirrada ao bem-estar, ainda que isto se obtenha a qualquer preço, cada vez mais presente se oferece aquela frase de Del Vechio, a respeito do ideal ético na vida em sociedade; a qualidade da pessoa se delineia como exigência primária e absoluta da consciência, afirmando-se por si e pretendendo, dos outros, o respeito, assim como se impõe o dever de aos outros respeitar.

Impossível se arrecadar de tais princípios; por estes impelido e amparado, saberá o jurista deste século encontrar, também, o seu ideal ético, para harmonizá-lo com as freqüentes e cada vez mais sensíveis transformações da sociedade, trazendo sempre revivificada a força do direito, tão necessário quanto útil, tão verdadeiro quanto ineficaz.

Imbuídos destes propósitos, temos a certeza, prezados acadêmicos, de que vocês saberão transpor estas dificuldades para alcançar, em sua plenitude, a nobre e gratificante missão que cabe ao jurista do nosso tempo, ao jurista do terceiro milênio”.

ERROS JUDICIÁRIOS NO PROCESSO DE JESUS DE NAZARÉ

(SEGURADO, Milton Duarte. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. Campinas: Julex Livros, 1992).

Considerando este assunto sob o aspecto humano e jurídico, Jesus (Joshua de Nazaré) não é aqui excepcionalmente encarado como divindade, mas como vítima de processo viciado, pelas seguintes razões:

1. PROCESSO NOTURNO – Jesus foi interrogado à noite, por Anás, quando deveria sê-lo durante o dia, para que fosse obedecido o preceito da mais ampla publicidade processual.

2. INCOMPETÊNCIA: INQUIRIÇÃO - O direito judaico exigia um tribunal coletivo – o Sinédrio – para julgar os crimes dos quais era Jesus acusado. Entretanto, foi Ele inquirido sucessivamente por Anás e Caifás, sendo, assim, nulo o interrogatório pela singularidade. Um só juiz, nenhum juiz.

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3. ALÇADA DO SINÉDRIO NÃO CHEGA ATÉ A PENA DE MORTE – ao raiar do dia, legaliza-se o processo, com a publicidade e a convocação do tribunal pleno (Sinédrio), obedecendo-se também a pluralidade que faltou aos interrogatórios pessoais de Anás e Caifás. Entretanto, o Sinédrio tinha jurisdição para julgar, mas para não condenar à morte, já que a sua competência para tanto fora perdida durante a dominação romana. Só a autoridade romana podia impor pena capital. Só Pilatos poderia absolvê-lo ou condená-lo.

4. TESTEMUNHAS FALSAS – Duas testemunhas depuseram contra Jesus. A acusação baseou-se predominantemente nesta frase: “Destruam este templo e Eu o reedificarei em três dias”. Jesus, entretanto, referia-se ao próprio corpo e não ao templo de Salomão. Podemos complementar o autor do texto, afirmando que os sumos sacerdotes sofismaram, quando disseram: “Mas Salomão levou 40 anos para construir o templo? Como poderá reconstruí-lo em 3 dias? O Divino Mestre, como vimos, percebendo a sagacidade deles, respondeu: “Não falo do templo de pedra, falo do templo que me serve de manifestações”; porém, as duas testemunhas distorceram as palavras de Jesus.

5. LIBELO MUDADO – de blasfêmia e sacrilégio para sedição continuada (blasfêmia: enunciado ou palavra que insulta a divindade, a religião ou o que é considerado sagrado; sacrilégio: pecado grave contra a religião ou contra as coisas sagradas – profanação de lugares, objetos e pessoas que apresentam caráter sagrado; sedição: sublevação contra qualquer autoridade constituída – revolta, motim – crime contra a segurança do Estado – perturbação da ordem pública). No Sinédrio, Jesus foi acusado de blasfêmia e sacrilégio, e tais acusações de natureza religiosa, valiam para o Sinédrio, o qual, todavia, não tinha alçada para sentença capital. Assim, visando a homologação da sentença pela justiça romana, o tribunal judaico modificou o libelo para “sedição continuada” contra Roma, sendo Jesus acusado de pregar o não pagamento de impostos a César e de se rebelar contra o imperador, desde a Galiléia até a Judéia.

6. HERODES SEM JURISDIÇÃO SOBRE JERUSALÉM – Herodes tinha jurisdição sobre a Galiléia e não sobre Jerusalém. Além disso, Jesus era natural de Belém, na Judéia, e não de Nazaré, na Galiléia: Conflito de Jurisdição.

7. PROCESSO EM MENOS DE UM DIA – O processo foi iniciado e encerrado em apenas um dia: Jesus foi denunciado, acusado, processado, condenado e executado em cerca de doze horas: preso pela meia noite, crucificado ao meio dia, morreu às 3 horas da tarde.

8 INCOMPETÊNCIA DE ANÁS E CAIFÁS – Anás e Caifás não tinham competência para interrogar Jesus que, pelo direito hebraico, deveria ser inquirido por um tribunal pleno.

9. AUSÊNCIA DE DEFESA – No transcorrer do julgamento, não foi facultada a defesa do acusado, ainda que se considere a intervenção pessoal de Pilatos. Se realizado segundo o Direito Romano, o julgamento de Jesus teria tido um defensor dativo, nomeado por Pilatos.

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10. SEM APELAÇÃO – Não houve prazo legal entre a condenação e a execução da sentença, visando à possibilidade de apelação, que deveria ser feita, em caso de pena capital, ao imperador Tibério.

11. FALTA DE UNIDADE PROCESSUAL, COM QUATRO JUÍZES – O processo apresentou falta de unidade: nele funcionaram quatro JUÍZES – Anás, Caifás, Herodes e Pilatos. Entretanto, o juiz que inicia um processo deve encerrá-lo indo do interrogatório à sentença.

12. DIREITO HEBRAICO: PLURIDADE CONTRA SINGULARIDADE – O direito hebraico (Deuteronômio, 19:15) não permitia singularidade de juiz e testemunha para o caso de sentença de morte; exigia pluralidade de JUÍZES, o que não foi observado no processo contra Jesus.(19:15 – Uma só testemunha contra ninguém se levantará por qualquer iniqüidade, ou por qualquer pecado, seja qual for o pecado que pecasse; pela boca de duas testemunhas, ou pela boca de três testemunhas, se estabelecerá o negócio).

13. ABSOLVIDO, TORNAVA A JULGAMENTO – Diversas vezes absolvido por Pilatos, outras tantas Jesus voltou a julgamento, até o final da condenação, forçada pelo clamor dos judeus, ou melhor, dos fariseus (membros de grupos religiosos judaicos, surgidos no século II a.C, que viviam na estrita observância das escrituras religiosas e da tradição oral – formalistas e hipócritas segundo os Evangelhos)

14. SUSPEIÇÃO DO SINÉDRIO, QUE SUBORNOU JUDAS – O Sinédrio era suspeito, pois pagou trinta siclos de prata a Judas Iscariotes para que este entregasse o réu.

15 POR QUE A FLAGELAÇÃO? – Se culpado, foi condenado à morte, porque foi flagelado? (flagelação: açoitamento com flagelo; sofrimento, suplício, tormento).Portanto, no julgamento irregular e inteiramente viciado de Jesus, cabem as culpas; moral, aos Judeus; jurídica, aos romanos, através de Pilatos, o único que poderia absolvê-lo ou condená-lo.

O JUSTO E A JUSTIÇA POLÍTICA Esta é uma das melhores e menos conhecidas páginas de Rui Barbosa, onde

ele examina, à luz do Direito Hebraico e do Direito Romano, o processo de Jesus.

(A imprensa, Rio, 31 de março de 1899, em Obras Seletas de Rui Barbosa, vol. VIII, Casa de Rui Barbosa, Rio, 1957, págs. 67-71.)

Para os que vivemos a pregar à república o culto da justiça como o supremo elemento preservativo do regímen, a história da paixão, que hoje se consuma, é como que a interferência do testemunho de Deus no nosso curso de educação constitucional. O quadro da ruína moral daquele mundo parece condensar-se no espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos do dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.

Aos olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.

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Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na função de julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina. Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde o sentimento, que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em cuja memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não houve no código de Israel norma, que escapasse à prevaricação dos seus magistrados.

No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de Quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da Sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de formação judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.

O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: "Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito". Era apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal: "Se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?"

Anás, desorientado, remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim, não, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo. Perante este já muito antes descobrira o genro de Anás a sua perversidade política, aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a efeito a sua própria malignidade, "cujo resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que jamais pensou".

A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, lhe não acharam a culpa, que buscavam. Jesus calava. Jesus autem tacebat. Vão perder os juízes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: Reus est mortis. "Blasfemou! Que

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necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia". Ao que clamaram os circunstantes: "é réu de morte".

Repontava a manhã, quando a sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juízes legais. Mas juizes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.

Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condenar, ou absorver. "Que acusação trazeis contra este homem?" assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada. "Se não fosse um malfeitor, não to teríamos trazido", foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo, de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: "Tomai-o, e julgai-o segundo a vossa lei". Mas, replicam os judeus, bem sabes que "nos não é lícito dar a morte a ninguém". O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.

Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. "Ao mundo vim", diz ele, "para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a minha voz". A verdade? Mas "que é a verdade"? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. "Não acho delito a este homem", disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.

Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde Galiléia. Ora acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe com essa homenagem, a vaidade. Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça.

Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam inveni in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a

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Quarta defesa de Jesus: "Que ma fez esse ele? Quid enim mali fecit iste?" Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda: "Crucificareis o vosso rei?" A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas de Pilatos. "Não conhecemos outro rei, senão César". A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: "Sou inocente do sangue deste justo".

E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não compromete. A história premiou dignamente esse modelo da suprema cobardia na justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.

De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pela facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.

GUIA DE ESTUDOHISTÓRIA DO DIREITO

(INTRODUÇÃO – CONCEITO – OBJETO e OBJETIVOS – DIREITO NA ANTIGÜIDADE)

1. Elabore um texto sobre a importância da História do Direito, utilizando como indicadores os seguintes termos e expressões verbais: Estado – ordenamento jurídico – normas – valores ou bens jurídicos – momento histórico(ambiente) – mudanças/alterações – conveniência – presença do Direito – meio social – realidade histórica – o ontem, o hoje e o amanhã do Direito.2. Quais as contribuições da História do Direito ao Direito atual?3. Comente esta afirmativa: A História do Direito se limita a um inventário, a uma descrição dos antecedentes históricos das instituições.4. Explique a dualidade da História do Direito: ciência histórica e jurídica.5. Como o operador do Direito deve encarar o estudo da História da Direito? O que deve propor como tarefa?6. Por que afirmamos que a História do Direito deixou de ser meramente descritiva?7. Por que os profissionais do Direito devem se preocupar com a História do Direito e não apenas do Direito Positivo (Pedagogia Dogmática)?

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8. As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso Superior de Graduação em Direito ressalta a importância dos estudos históricos? Justifique.9. Qual o objeto de estudo da História do Direito, segundo Maria Helena Diniz?10. Qual o objetivo da História do Direito?11. Segundo Miguel Reale a História do Direito pode se desenvolver em três planos, envolvendo aspectos sociológicos, técnicos e filosóficos. Descreva-os.12. Como a História do Direito era vista no século XIX e início do século XX? Como é vista em nossos dias?13. O que se entende por Direito Positivo? Como surgiu?14. Comente esta afirmação: Nas sociedades primitivas o Direito era um processo de origem costumeira.15. Como se originavam e se expressavam as regras no Direito Primitivo?17. O que se entende por Etnologia e Etnografia?18. A primeira fonte do Direito é a sentença do juiz? Justifique.19. Por que afirmamos que nos códigos antigos as regras tinham origem casuística? Exemplifique.20. Por que o Direito Primitivo era respeitado religiosamente?21. Como os códigos antigos tratavam as seguintes questões: culpabilidade, dívida, juramento e ordálios?22. O que se entende por “lei de talião”?23. Comente esta afirmativa: O Direito Primitivo caracteriza-se pelo formalismo e cerimonial.24. Fale sobre o Direito Egípcio, tendo como referencial os seguintes indicadores: Religião, fontes, terras, compra e venda, locações, contratos, casamento, divórcio, pátrio poder, testamento, doação, atos jurídicos e tribunais.25. Como eram os meios de provas e as penas no Direito Egípcio?26. Fale sobre os aspectos materiais e históricos do Código de Hamurabi.27. Quais as epígrafes dos 14 capítulos do Código de Hamurabi?28. O que se entende por Direito Mosaico? Pentateuco?29. De todos os livros que formam o Velho Testamento, qual o de maior importância jurídica? Cite alguns de seus temas.30. Os livros que formam o Novo Testamento também apresentam temas de interesse jurídico? Exemplifique.31. Will Durant em sua obra filosófica tece rápidos comentários sobre as contribuições dos gregos e dos judeus. Descreva-os.32. Fale sobre o Código de Manu (Direito Indiano), tendo como referencial os seguintes indicadores: versos, contratos (compra e venda), usura, meios de prova, mulher, herança, penas e projeção legal.33. Como Jayme de Altavila descreve o “Alcorão” em sua obra Origem dos Direitos dos Povos? 34. Destaque alguns temas de maior importância jurídica apresentados nas Suratas (capítulos) do Alcorão.35. Qual a definição de Deus encontrada no contexto alcorânico (Surata XXIV,v.35)?36. Quais as principais contribuições de Platão e de Aristóteles para o Direito?37. Qual a fonte material da Lei das XII Tábuas?38. Qual a matéria (epígrafe) tratada em cada tábua?39. Descreva as partes componentes do Corpus Júris Civilis .40. Comente esta afirmação: O Direito Romano é um direito doutrinário e jurisprudencial.

GUIA DE ESTUDO

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DIREITO NA IDADE MÉDIA

1. Qual o período da Idade Média?2. Por que a Idade Média apresenta um pluralismo de ordens jurídicas?3. Qual o significado do termo “bárbaro”?4. Quais os povos que empreenderam uma marcha para o Ocidente e por quê?5. O que se entende por princípio da personalidade das leis do direito germânico?6. Qual a principal conseqüência da falta de unidade do direito germânico?7. Cite as principais compilações do direito germânico.8. Cite algumas situações jurídicas admitidas pelo direito germâmico.9. O que são “juízos de Deus’?10. Fale sobre a jurisdição no direito feudal?11. Por que afirmamos que o direito feudal era desigualitário e contratual?12. Como era o direito das corporações de mercadores?13. Como era constituído o direito das cidades?14. Fale sobre a compilação do direito das cidades. Sua aplicação foi pacífica?15. Qual a importância de Graciano para o direito canônico?16. Cite outras legislações, além da compilada por Graciano.17. Qual a importância do Concílio de Basiléia para o direito canônico?18. Qual o significado de corpus, corpus iuris e cânones na Idade Média?19. O que aconteceu no pontificado dos papas Pio X, Benedito XV e João Paulo II?20. O direito canônico exerceu influência no direito positivo brasileiro? Explique.21. Fale sobre os glosadores

GUIA DE ESTUDODIREITO NA IDADE MODERNA E CONTEMPORÂNEA

1.Assinale os períodos : Idade Média, Contemporânea e Era Atômica.2. Quais as conseqüências das descobertas marítimas no século XVI ?3. Qual o fundamento do Direito Civil francês e alemão na Idade Moderna ?4. Fale sobre a primeira Constituição moderna norte-americana de 1.787 ?5. Como eram as leis e os princípios impostos pela Revolução Francesa ?6. Fale sobre a codificação francesa.7. Fale sobre a codificação alemã.8. Como era formado o sistema jurídico continental europeu ?9. O que se entende por sistema jurídico Civil law ?10. O que se entende por sistema jurídico Common law? Como surgiu ?11. Quais as conseqüências da crise européia, a partir da Primeira Guerra Mundial ?12. Como era o sistema jurídico soviético que apareceu após a Revolução Francesa ?13. Quais os sistemas jurídicos que entraram em conflito após a Revolução Russa ?14. Explique a cisão ocorrida nos países socialistas quantos aos sistemas jurídicos.15. Descreva as mudanças ocorridas no mundo nos anos 80 e 90.16. Por que as mudanças geo-político-econômicas podem afetar a Comunidade dos

Estados Independentes (CEI) e a estabilidade da Comunidade Européia ? 17. Há uma tendência atualmente em dividir o mundo em blocos político-

econômicos. Por quê? 18. Segundo o filósofo Luciano Zajdsznajder como os contemporâneos interpretam o

momento atual ?19. Descreva as características da pós-modernidade apontadas por Luciano

Zajdsznajder em seu livro “A Travessia do Pós-Moderno” (1.992).

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