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História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Vice-Presidente da República José Alencar Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Paulo Vannuchi Secretário Executivo Rogério Sottili Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Def Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura – OEI Secretário-Geral da OEI Álvaro Marchesi Diretora da OEI no Brasil Ivana de Siqueira 1

História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil

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Histria do Movimento Poltico das Pessoas com Deficincia no Brasil

Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Vice-Presidente da Repblica Jos Alencar Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica Paulo Vannuchi Secretrio Executivo Rogrio Sottili Secretria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior Organizao dos Estados Ibero-americanos para a Educao, a Cincia e a Cultura OEI Secretrio-Geral da OEI lvaro Marchesi Diretora da OEI no Brasil Ivana de Siqueira

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Presidncia da Repblica Secretaria de Direitos Humanos Secretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia Coordenao-Geral de Informao e Comunicao sobre Deficincia SCS- B, Quadra 09, Lote C, Edifcio Parque Cidade Corporate, Torre A 8 andar Cep: 70.308-200 Braslia DF Brasil E-mail : [email protected] Site: http://www.direitoshumanos.gov.br Reproduo autorizada, desde que citada a fonte de referncia. Distribuio gratuita. Impresso no Brasil. Copyright @2010 by Secretaria de Direitos Humanos. Tiragem : 2.000 exemplares acompanhados de cd-rom com o contedo em OpenDOC, PDF, TXT e MecDaisy - 1 Edio - 2010 Tiragem: 50 exemplares em Braille Este livro faz parte do Projeto OEI/BRA 08/001 Fortalecimento da Organizao do Movimento Social das Pessoas com Deficincia no Brasil e Divulgao de suas Conquistas.

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Normalizao: Llia Novais de Oliveira (CRB - 1 n 1370) Referncia bibliogrfica : Lanna Jnior, Mrio Clber Martins (Comp.). Histria do Movimento Poltico das Pessoas com Deficincia no Brasil. - Braslia: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia, 2010. 443p. : il. 28X24 cm. Ficha Catalogrfica :

H673 Histria do Movimento Poltico das Pessoas com Deficincia no Brasil / compilado por Mrio Clber Martins Lanna Jnior. - Braslia: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia, 2010. 443p. : il. 28x24 cm. Este livro faz parte do Projeto OEI/BRA 08/001 Fortalecimento da Organizao do Movimento Social das Pessoas com Deficincia no Brasil e Divulgao de suas Conquistas ISBN 1.Histria, movimento poltico, Brasil. 2. Pessoa com Deficincia, movimento poltico, Brasil. I. Titulo II. Brasil. Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia. CDD 362.402681 CDU 329-056.26(81)

DIREITO ACESSIBILIDADE3

Caro leitor,

Por favor, avise s pessoas cegas, com baixa viso, analfabetas ou por alguma razo impedidas de ler um livro impresso em tinta que esta obra est publicada em distintos formatos, conforme o Decreto n 5.296/2004 e a Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia da Organizao das Naes Unidas (ONU), ratificada no Brasil com equivalncia de emenda constitucional pelo Decreto Legislativo n 186/2008 e Decreto n 6.949/2009: - OpenDOC, TXT e PDF no site www.direitoshumanos.gov.br, para que seja acessada por qualquer ledor de tela (sintetizadores de voz). O site da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (SDH/PR) est de acordo com os padres de acessibilidade. - CD em formatos OpenDOC, TXT, PDF e MECDAYSE encartado ao final deste livro (o software MECDaisy est disponvel no site www.intervox.nce.ufrj.br/mecdaisy para download). - Em Braille, quando solicitada pelo email [email protected] ou pelo telefone (61) 2025-3684.

SUMRIO4

APRESENTAO Primeira Parte INTRODUO Captulo 1 AS PRIMEIRAS AES E ORGANIZAES VOLTADAS PARA AS PESSOAS COM DEFICINCIA Captulo 2 O ASSOCIATIVISMO DAS PESSOAS COM DEFICINCIA Captulo 3 O MOVIMENTO POLTICO DAS PESSOAS COM DEFICINCIA Captulo 4 O MOVIMENTO DAS PESSOAS COM DEFICINCIA E A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE Captulo 5 A CORDE E O CONADE NA ORGANIZAO ADMINISTRATIVA DO ESTADO BRASILEIRO Captulo 6 O SCULO XXI Segunda Parte GUIA DE LEITURA DAS ENTREVISTAS Entrevistados 1. Adilson Ventura 2. Ana Maria Morales Crespo (Lia Crespo) 2. Antnio Campos de Abreu 4. Cludia Sofia Indalcio Pereira 5. Dbora Arajo Seabra de Moura 6. Dorina de Gouva Nowill 7. Elza Ambrsio 8. Ethel Rosenfeld

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9. Flvio Arns 10. Jorge Mrcio Pereira de Andrade 11. Karin Lilian Strobel 12. Liane Martins Collares 13. Llia Pinto Martins 14. Lizair de Moraes Guarino 15. Lcio Coelho David 16. Manuel Augusto Oliveira de Aguiar 17. Maria Aparecida Siqueira (Cidinha Siqueira) 18. Maria de Lourdes Brenner Canziani 19. Messias Tavares de Souza 20. Raimundo Edson de Arajo Leito 21. Regina Lcia Barata Pinheiro Souza 22. Romeu Kazumi Sassaki 23. Rosangela Berman Bieler 24. Suely Harumi Sotow 25. Teresa de Jesus Costa dAmaral HOMENAGENS IN MEMORIAM REFERNCIAS LISTA DE SIGLAS Apresentao Com o lanamento da publicao Histria do movimento poltico das pessoas com deficincia, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, em parceria com a Organizao dos Estados Ibero-americanos para a Educao, a Cincia e a Cultura (OEI), busca resgatar a trajetria histrica desse grupo em nosso pas. Esse registro indito contribuir para que as futuras geraes se espelhem nesses exemplos de persistncia e perpetuem a caminhada pela promoo da cidadania de qualquer indivduo, sem distino de sexo, nacionalidade, cor de pele, faixa etria, classe social, opinio poltica, religio ou orientao sexual. O livro conta a evoluo da luta pelos direitos das pessoas com deficincia, a partir da organizao das mobilizaes sociais na dcada de 70 e elaborao de suas demandas, at conquistar o seu reconhecimento e assimilao pelo Estado brasileiro com vistas a garantir direitos de 25 milhes de pessoas.

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Ao colocar a coordenao da poltica para incluso da pessoa com deficincia na pasta dos Diretos Humanos, o Governo do Presidente Lula reconhece que esta incluso , antes de mais nada, um direito conquistado por este importante segmento da populao a partir de muita luta. Em 2009, a OEA reconheceu que poucos so os pases capazes de superar a ao meramente reabilitatria e assistencialista considerando ainda que alguns no apresentam nenhuma poltica pblica voltada para esse grupo. O Brasil foi enaltecido por coordenar medidas administrativas, legislativas, judiciais e polticas pblicas, sendo considerado um dos pases mais inclusivos das Amricas. Tais avanos no seriam possveis sem a atuao engajada e militante da sociedade civil organizada, sempre vigilante em seu papel de cobrar do Estado brasileiro sua responsabilidade na garantia dos Direitos Humanos das pessoas com deficincia. O trabalho de sensibilizar os poderes pblicos para as especificidades das questes ligadas a este pblico foi fundamental para os avanos conquistados at aqui, apesar dos inmeros desafios que ainda precisam ser superados. Nos ultimos oito anos, importantes passos foram dados. A interao democrtica entre Estado e sociedade civil, com a realizao inovadora das 1 e 2 Conferncias Nacionais dos Direitos das Pessoas com Deficincia, em 2006 e 2008, assim como encontros nacionais de conselhos estaduais ligados ao tema, possibilitaram maior participao da sociedade civil na discusso sobre os rumos que o Brasil segue nesta rea. As principais decises adotadas nesses fruns de ampla participao democrtica foram incorporadas integralmente ao 3 Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH3), lanado em dezembro de 2009. O Brasil avana nesse marco civilizatrio em Direitos Humanos, com a sociedade assegurando mais liberdade, igualdade e solidariedade. Liberdade que comea com a eliminao das barreiras fsicas e de atitude, as barreiras do preconceito e as que impedem a igualdade nas oportunidades de emprego. Ao unificar as aes do Poder Executivo voltadas para as pessoas com deficincia, a Agenda Social do Governo Lula produziu resultados expressivos no que se refere s pessoas com deficincia. Os investimentos em educao inclusiva foram multiplicados em 5 vezes, elevando de R$ 60 milhes para mais de R$ 300 milhes, entre 2002 e 2010, as aes de reabilitao receberam recursos da ordem de R$ 2,5 bilhes nos ltimos oito anos e o Projeto Minha Casa, Minha Vida construir 2 milhes de unidades respeitando o desenho universal da acessibilidade. importante destacar ainda avanos nos marcos institucional e regulatrio como o Decreto da Acessibilidade, a Lei de Libras, o Decreto do Co Guia e a elevao da Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa Portadora de Deficincia (Corde) ao status de Secretaria Nacional, 20 anos depois de sua criao em 1989.

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O Brasil hoje uma referncia mundial na reparao de vitimas da hansenase que foram segregadas do convivio social no passado. E aprovou em 2008 a Conveno da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia, pela primeira vez com fora de preceito constitucional, fato que balizar toda a discusso em torno de um possvel estatuto dos direitos da pessoa com deficincia. Soma-se a isso a oportunidade de receber a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpadas em 2016, desafios que exigiro novos avanos para a incluso deste grupo, no s assegurando acessibilidade nas novas construes, mas com a criao de estruturas permanentes que ampliaro as chances dos esportes paraolimpicos. Em resumo, o Brasil no mais recuar na promoo e defesa dos Direitos Humanos das pessoas com deficincia. E contar sempre com um movimento social forte e engajado para impulsionar o Estado a aprofundar essas conquistas. Que esta luta siga adiante ! Paulo Vannuchi Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da repblica (SDH/PR)J que se h de escrever, que, pelo menos, no se esmaguem com palavras as entrelinhas. Clarice Lispector Este livro busca, pela primeira vez, registrar a histria do movimento de luta pelos direitos das pessoas com deficincia no Pas, bem como trata de resgatar as polticas pblicas do Estado brasileiro sobre o tema. Foi uma longa jornada. Tanto a do movimento quanto a da produo desta publicao. O movimento forjou-se no dia a dia, na luta contra a discriminao, na busca incansvel pela incluso, na disputa poltica. Reconstituir essa trajetria era o desafio. Para enfrent-lo, foi necessrio pesquisa e muito trabalho. O ponto de partida: ouvir os prprios protagonistas desta histria. Nada sobre ns sem ns! Como eram muitos, 25 pessoas que participaram diretamente de fatos decisivos para as conquistas da populao com deficincia foram escolhidas. A partir de suas memrias, e tambm de documentos, foi possvel refazer o percurso. Em livro e tambm em documentrio. Entre os protagonistas esto lideranas com deficincia fsica, intelectual, visual, auditiva ou mltipla e especialistas. Todos atuaram no movimento, seja no surgimento ou na sua consolidao. Ao reviverem suas lembranas e tornarem pblicos documentos, muitas vezes particulares, essas pessoas compartilham mais do que conhecimento, compartilham a histria que ajudaram a construir. Ao longo de seus depoimentos, a viso individual, quase sempre carregada de emoo, conduz a narrativa, mostrando os esforos e mesmo as contradies do

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movimento, os avanos, os retrocessos, a necessidade de subverter a ordem para sensibilizar a sociedade e os governantes. O que se percebe a busca incansvel pela transformao da sociedade brasileira, para ultrapassar uma viso caritativa e encarar os desafios de incluir as pessoas com deficincia como uma questo de Direitos Humanos. Iguais na diferena! Entrevistas, fotos, atas, convites, selos comemorativos, encartes, reportagens, tudo est devidamente registrado nas pginas seguintes. Desde o Brasil Imprio at os dias atuais, o livro resgata as primeiras aes e instituies voltadas para as pessoas com deficincia: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (hoje Instituto Benjamin Constant), o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos (atual Instituto Nacional de Educao de Surdos), as Sociedades Pestalozzi, as Associaes de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes), alm de centros de reabilitao, tais como a Associao Brasileira Beneficente de Reabilitao (ABBR) e a Associao de Assistncia Criana Deficiente (AACD). Das obras assistenciais do sculo XIX atualidade, o livro contextualiza historicamente os avanos e a quebra de paradigmas na rea das pessoas com deficincia. Esta publicao, tal qual o documentrio, foca-se a partir da abertura poltica no final da dcada de 1970 e da organizao dos novos movimentos sociais no Brasil. Nessa perspectiva histrica, vai alm e mostra ainda os avanos nas polticas pblicas do Pas, especialmente nos ltimos oito anos, quando o Governo do presidente Luiz Incio Lula da Silva instituiu a Agenda Social de Incluso das Pessoas com Deficincia, elevou o status do rgo gestor da Poltica Nacional de Incluso da Pessoa com Deficincia de Coordenadoria Nacional (Corde) Secretaria Nacional - e o Congresso ratificou a Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia da ONU, conferindo-lhe equivalncia de emenda constitucional. Esta histria no vem completa. Por se tratar de uma iniciativa pioneira, tanto no formato como na abrangncia, a pesquisa privilegiou os personagens mais antigos, que representam as diversas correntes de atuao, as diferentes regies do pas e os tipos de deficincia. Sobram lacunas a serem preenchidas com as lembranas de tantas outras pessoas que igualmente viveram e tiverem participao fundamental nesse processo. O livro presta homenagem in memoriam queles que dedicaram a vida luta pelos direitos das pessoas com deficincia, reconhecendo por meio deles os milhares de militantes, na maioria annimos, que tambm contriburam, e ainda contribuem, para os avanos na incluso das pessoas com deficincia. Esse livro e o filme documentrio so a primeira etapa do projeto Fortalecimento da Organizao do Movimento Social das Pessoas com Deficincia no Brasil e a Divulgao de suas Conquistas. A sua realizao se deve cooperao internacional entre a Organizao dos Estados Ibero-americanos para a Educao, a Cincia e a Cultura (OEI) e Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, por intermdio da Secretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia. Ao resgatar e dar visibilidade aguerrida histria do movimento poltico das pessoas com deficincia no Brasil, o governo federal tambm cumpre com sua misso de9

promover os Direitos Humanos. E d exemplo ao oferecer, livro e documentrio, em formatos acessveis. Traduzido para o espanhol e o ingls, o filme facilita a divulgao da histria brasileira para a comunidade internacional. A expectativa que tanto o livro como o documentrio possam servir como fonte de pesquisa e inspirar novos trabalhos. Da mesma forma, espera-se que esse esforo em registrar a histria colabore para a emancipao, a identidade e o futuro, ainda mais forte, do movimento das pessoas com deficincia no Brasil e no mundo. A Secretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia expressa seus mais sinceros agradecimentos a todas as pessoas que contriburam para que este livro existisse e, em particular, queles que emprestaram seu tempo, sua militncia e sua vida para tornar essa histria real. Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior Secretria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com Deficincia

O Brasil vive desde meados do sculo passado e incio do sculo XXI um clima de efervescncia em torno das lutas pela garantia dos direitos das pessoas com deficincia. Esse movimento impulsionado, sobretudo, pelo cenrio internacional, que a partir de 1948 com o advento da Declarao Universal dos Direitos Humanos, iniciou um amplo e profundo debate sobre os direitos iguais e inalienveis como fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo. As pessoas com deficincia foram por muitos anos tratadas com desprezo e desrespeito quanto aos seus direitos, o que as motivou a se organizarem em grupos e promoverem um forte movimento de participao poltica no mbito do processo de redemocratizao do Brasil. Esse espao foi sendo construdo com muita luta, embates polticos, mas tambm, com conquistas importantes, embora, em muitos momentos sob a omisso do governo e com total invisibilidade por parte da sociedade. A Constituio Federal brasileira foi um marco importante no avano e, tambm, um referencial de proteo por parte do Estado dos Direitos Humanos dessas pessoas. No perodo de debates da Constituinte, os grupos de pessoas com deficincia tiveram um protagonismo notvel, conseguindo que seus direitos fossem garantidos em vrias reas da existncia humana. Da educao, sade, ao transporte, aos espaos arquitetnicos. Foi realmente uma vitria a se comemorar sempre que conseguimos avanar na legislao que regulamenta tais dispositivos constitucionais.10

Este livro mais uma conquista deste movimento! a conquista da memria e da visibilidade desse movimento de luta por direitos das pessoas com deficincia. o Estado proporcionando sociedade a devida e justa visibilidade de uma histria que no pode ser apenas parte da memria de quem a vivenciou. uma luta, uma vitria de vrios cidados e cidads brasileiras que na invisibilidade contriburam para que nossa sociedade hoje possa se orgulhar dos avanos e conquistas dos direitos dessas pessoas. uma parte dessa histria construda com fatos e episdios de pessoas que colocaram suas emoes, seus arquivos pessoais, seus sentimentos de pertencimento e a oportunidade de reviver momentos de muita luta, conquistas e tambm de derrotas. O texto est impregnado dessas emoes. A Organizao dos Estados Ibero-americanos para a Educao a Cincia e a Cultura OEI, em sintonia com os princpios dos Direitos Humanos fundamentais, da dignidade e do valor da pessoa humana e da igualdade de direitos de todos em busca de melhores condies de vida e uma liberdade mais ampla, se junta ao governo brasileiro nessa indita iniciativa de reconstruir a memria desse movimento de luta de grande significncia no cenrio da democracia em nosso pas. A importncia da parceira da OEI como um organismo internacional, ao lado de um rgo de governo como a Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica e uma instituio privada, Instituto Vargas, que se responsabilizou por reunir e registrar neste livro parte dessa histria a demonstrao da possibilidade de uma ao genuinamente integrada, quando os objetivos e os princpios so claramente definidos e seguidos ao longo de todo o processo. Quero registrar que este livro uma importante contribuio que o governo brasileiro pe disposio de pais, gestores pblicos, educadores, e demais segmentos da sociedade, se estendendo para outros pases em edies traduzidas para o espanhol e ingls, para que conheam e reconheam a magnitude de parte da histria dessas pessoas. Ivana de Siqueira Diretora da OEI no Brasil

INTRODUO As pessoas com deficincia conquistaram espao e visibilidade na sociedade brasileira nas ltimas dcadas. Na literatura acadmica, h estudos na rea da psicologia, da educao e da sade que se configuram como tradicionais reas do11

conhecimento que se interessam pelo tema. Entretanto, esse grupo de pessoas pouco interesse despertou nos historiadores e se encontram margem dos estudos histricos e sociolgicos sobre os movimentos sociais no Brasil, apesar de serem atores que empreenderam, desde o final da dcada de 1970, e ainda empreendem intensa luta por cidadania e respeito aos Direitos Humanos. O objetivo deste livro analisar a histria dessas pessoas, com nfase no aspecto poltico, particularmente no contexto da abertura poltica no final da dcada de 1970 e da organizao dos novos movimentos sociais no Brasil. A busca pelo reconhecimento de direitos por parte de grupos considerados marginalizados ou discriminados marcou a emergncia de um conjunto variado e rico de atores sociais nas disputas polticas. Assim como as pessoas com deficincia, os trabalhadores, as mulheres, os negros, os homossexuais, dentre outros com organizaes prprias, reivindicavam espaos de participao e direitos. Eram protagonistas do processo de redemocratizao pelo qual passava a sociedade brasileira. Ao promoverem a progressiva ampliao da participao poltica no momento em que essa era ainda muito restrita, a atuao desses grupos deu novo significado democracia. A opresso contra as pessoas com deficincia tanto se manifestava em relao restrio de seus direitos civis quanto, especificamente, que era imposta pela tutela da famlia e de instituies. Havia pouco ou nenhum espao para que elas participassem das decises em assuntos que lhes diziam respeito. Embora durante todo o sculo XX surgissem iniciativas voltadas para as pessoas com deficincia, foi a partir do final da dcada de 1970 que o movimento das pessoas com deficincia surgiu, tendo em vista que, pela primeira vez, elas mesmas protagonizaram suas lutas e buscaram ser agentes da prpria histria. O lema Nada sobre Ns sem Ns, expresso difundida internacionalmente, sintetiza com fidelidade a histria do movimento objeto da pesquisa que resultou neste livro. Anteriormente dcada de 1970, as aes voltadas para as pessoas com deficincia concentraram-se na educao e em obras caritativas e assistencialistas. Durante o sculo XIX, de forma pioneira na Amrica Latina, o Estado brasileiro criou duas escolas para pessoas com deficincia: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Paralelamente s poucas aes do Estado, a sociedade civil organizou, durante o sculo XX, as prprias iniciativas, tais como: as Sociedades Pestalozzi e as Associaes e Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE, voltadas para a assistncia das pessoas com deficincia intelectual (atendimento educacional, mdico, psicolgico e de apoio famlia); e os centros de reabilitao, como a Associao Brasileira Beneficente de Reabilitao (ABBR) e a Associao de Assistncia Criana Defeituosa (AACD), dirigidos, primeiramente, s vtimas da epidemia de poliomielite. O movimento surgido no final da dcada de 1970 buscou a reconfigurao de foras na arena pblica, na qual as pessoas com deficincia despontavam como agentes polticos. H um movimento nico?

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possvel perceber, no movimento das pessoas com deficincia, unidade e diviso, consensos e dissensos, amor e dio. Parte desses conflitos so criados pelo fato de que novos movimentos sociais so, tambm, movimentos que buscam criar uma identidade coletiva para determinado grupo, seja em oposio a outros segmentos, seja em oposio sociedade. Um dos objetivos dessa afirmao identitria dar visibilidade e alterar as relaes de fora no espao pblico e privado. O sentimento de pertencimento a um grupo elemento discursivo importante para mobilizar qualquer luta poltica. Os movimentos sociais so formados pela diversidade de identidades, porm, unificadas nas experincias de coletividade vividas pelas pessoas. A unidade ameaada por fatores como a disputa pelo poder, pela legitimidade da representao e pela agenda da luta poltica. Na histria do Movimento das Pessoas com Deficincia no Brasil essa tenso esteve presente nos primeiros debates nacionais organizados no incio da dcada de 1980, quando se agregaram grupos diversos formados por cegos, surdos, deficientes fsicos e hansenianos. Esses grupos, reunidos, elegeram como estratgia poltica privilegiada a criao de uma nica organizao de representao nacional a ser viabilizada por meio da Coalizo Pr-Federao Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. O impasse na efetivao dessa organizao nica surgiu do reconhecimento de que havia demandas especficas para cada tipo de deficincia, as quais a Coalizo se mostrou incapaz de reunir consentaneamente em uma nica plataforma de reivindicaes. O amadurecimento do debate, bem como a necessidade de fortalecer cada grupo em suas especificidades, fez com que o movimento optasse por um novo arranjo poltico, no qual se privilegiou a criao de federaes nacionais por tipo de deficincia. Tal rearranjo, longe de provocar a ciso ou o enfraquecimento do movimento, possibilitou que os debates avanassem em seus aspectos conceituais, balizando novas atitudes em relao s pessoas com deficincia. No se tratava apenas de demandar, por exemplo, a rampa, a guia rebaixada ou o reconhecimento da Lngua Brasileira de Sinais (Libras) como uma lngua oficial, mas, principalmente, de elaborar os conceitos que embasariam o discurso sobre esses direitos. Essa elaborao conceitual e os paradigmas que dela surgiram mantiveram e mantm o movimento unido na luta por direitos. Termos da poca Os paradigmas em disputa possvel afirmar que o esforo do movimento nos ltimos trinta anos foi, principalmente, de refinar conceitos e mudar paradigmas, criando uma base slida para a construo de uma nova perspectiva sobre a deficincia. As atitudes, suposies e percepes a respeito da deficincia passaram de um modelo caritativo para um modelo social. No modelo caritativo, inaugurado com o fortalecimento do cristianismo ao longo da Idade Mdia, a deficincia

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considerada um dficit e as pessoas com deficincia so dignas de pena por serem vtimas da prpria incapacidade. O Positivismo e a afirmao do saber mdico do final sculo XIX possibilitaram o surgimento de um modelo no qual as pessoas com deficincia passaram a ser compreendidas por terem problemas orgnicos que precisavam ser curadas. No modelo mdico, as pessoas com deficincia so pacientes eram tratadas como clientela cuja problemtica individual estava subentendida segundo a categoria de deficincia qual pertenciam. Fazia-se todo o esforo teraputico para que melhorassem suas condies de modo a cumprir as exigncias da sociedade. O modelo social defendido pelo Movimento das Pessoas com Deficincia o grande avano das ltimas dcadas. Nele, a interao entre a deficincia e o modo como a sociedade est organizada que condiciona a funcionalidade, as dificuldades, as limitaes e a excluso das pessoas. A sociedade cria barreiras com relao a atitudes (medo, desconhecimento, falta de expectativas, estigma, preconceito), ao meio ambiente (inacessibilidade fsica) e institucionais (discriminaes de carter legal) que impedem a plena participao das pessoas. O fundamental, em termos paradigmtico e estratgico, registrar que foi deslocada a luta pelos direitos das pessoas com deficincia do campo da assistncia social para o campo dos Direitos Humanos. Essa mudana de concepo da poltica do estado Brasileiro aconteceu nos ltimos trinta anos. O movimento logrou xito ao situar suas demandas no campo dos Direitos Humanos e inclu-las nos direitos de todos, sem distino. Palavras e significados Falar ultrapassa a simples exteriorizao de pensamentos ou a descrio de aspectos de dada realidade. Quem fala fala de algum lugar, parte de alguma premissa. As palavras usadas para nomear as pessoas com deficincia comportam uma viso valorativa que traduz as percepes da poca em que foram cunhadas. Para os novos movimentos sociais e suas polticas de identidade, as palavras so instrumentos importantes de luta poltica. A busca por novas denominaes reflete a inteno de rompimento com as premissas de menos-valia que at ento embasavam a viso sobre a deficincia. Termos genricos como invlidos, incapazes, aleijados e defeituosos foram amplamente utilizados e difundidos at meados do sculo XX, indicando a percepo dessas pessoas como um fardo social, intil e sem valor. Ao se organizarem como movimento social, as pessoas com deficincia buscaram novas denominaes que pudessem romper com essa imagem negativa que as exclua. O primeiro passo nessa direo foi a expresso pessoas deficientes, que o movimento usou quando da sua organizao no final da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980, por influncia do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD). A incluso do substantivo pessoa era uma forma de evitar a coisificao,

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se contrapondo inferiorizao e desvalorizao associada aos termos pejorativos usados at ento. Posteriormente, foi incorporada a expresso pessoas portadoras de deficincia, com o objetivo de identificar a deficincia como um detalhe da pessoa. A expresso foi adotada na Constituio Federal de 1988 e nas estaduais, bem como em todas as leis e polticas pertinentes ao campo das deficincias. Conselhos, coordenadorias e associaes passaram a inclu-la em seus documentos oficiais. Eufemismos foram adotados, tais como pessoas com necessidades especiais e portadores de necessidades especiais. A crtica do movimento a esses eufemismos se deve ao fato de o adjetivo especial criar uma categoria que no combina com a luta por incluso e por equiparao de direitos. Para o movimento, com a luta poltica no se busca ser especial, mas, sim, ser cidado. A condio de portador passou a ser questionada pelo movimento por transmitir a ideia de a deficincia ser algo que se porta e, portanto, no faz parte da pessoa. Alm disso, enfatiza a deficincia em detrimento do ser humano. Pessoa com deficincia passou a ser a expresso adotada contemporaneamente para designar esse grupo social. Em oposio expresso pessoa portadora, pessoa com deficincia demonstra que a deficincia faz parte do corpo e, principalmente, humaniza a denominao. Ser pessoa com deficincia , antes de tudo, ser pessoa humana. tambm uma tentativa de diminuir o estigma causado pela deficincia. A expresso foi consagrada pela Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia, da Organizao das Naes Unidas (ONU), em 2006. No raramente, o termo excepcional e a expresso deficiente fsico so usados, erroneamente, para designar todo o coletivo das pessoas com deficincia. Esses equvocos so mais comuns na grande mdia. Como recuperar essa histria e as memrias? O caminho seguido pela equipe de pesquisa para, pela primeira vez na histria do movimento poltico das pessoas com deficincia no Brasil, resgatar as memrias de alguns de seus militantes foi dificultado. Por se tratar de um trabalho pioneiro no Pas, no foi uma tarefa fcil. Alm disso, o tema ainda ocupa pouco os acadmicos brasileiros. Por ser um movimento social que, normalmente, se conforma por meios no institucionalizados, as evidncias materiais necessrias ao historiador para construir uma representao sobre essa histria no se encontravam reunidas e sistematizadas em nenhum arquivo ou acervo especfico. As fontes histricas atas, jornais e boletins de organizaes, folhetos de convocao de manifestaes, publicaes, filmes, fotografias estavam espalhadas por todo o Pas, muitas vezes em posse de personagens dessa histria, indivduos que participaram e ainda participam da luta pelos direitos das pessoas com deficincia. Por isso, alguns desses militantes constituram a principal fonte para a elaborao do contedo deste livro, tanto por possurem as evidncias histricas quanto por carregarem na memria as vivncias do movimento. Os15

testemunhos dessas lideranas foram as contribuies mais substantivas do resgate dessa histria. A metodologia da pesquisa visou construir um livro que abordasse tanto a anlise documental quanto as memrias da militncia poltica e da atuao profissional dos que lutaram pelos direitos das pessoas com deficincia no Brasil. Como forma de resgate das memrias, recorreu-se histria oral, procedimento por meio do qual se busca construir fontes e documentos utilizando narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, verses e interpretaes sobre a histria em suas mltiplas dimenses: factuais, temporais, espaciais, conflituosas e consensuais. A entrevista transcrita e aprovada pelo depoente se torna um documento histrico. Com base nessa metodologia, procedeu-se realizao de entrevistas com militantes histricos do Movimento das Pessoas com Deficincia, articulando as vivncias individuais ao movimento social das pessoas com deficincia na luta por seus direitos humanos. Embora as pesquisas no campo da histria possam recorrer metodologia da histria oral, preciso afirmar que nenhuma histria oral. A oralidade uma das formas pelas quais se compartilham as experincias guardadas na memria. A histria, como uma rea do conhecimento, a representao do passado produzida pelos historiadores. A memria so as lembranas, explcitas ou veladas pelas emoes da experincia vivida. Essas lembranas, aps a sistematizao metodolgica da histria oral, tornam-se subsdios para o historiador reconstruir a representao do passado. As memrias constantes nos depoimentos, nesse sentido, devem ser vistas como sustentculo das identidades construdas pelas pessoas com deficincia na conformao de seu movimento. Como ferramenta qualitativa de produo de fontes, a histria oral busca a viso particular de processos coletivos. A historiografia atual aponta trs tipos de entrevistas de histria oral: as entrevistas temticas, as entrevistas de histria de vida e as entrevistas de trajetria de vida. As entrevistas realizadas para este livro tiveram carter temtico, com foco na militncia ou atuao profissional em prol dos direitos humanos das pessoas com deficincia no Brasil. No entanto, todas as entrevistas contaram com uma parte de histria pessoal da vida dos entrevistados, mesmo que panormica, o que possibilitou confrontar as experincias da vida pessoal com as vivncias no Movimento das Pessoas com Deficincia. Para preparar as entrevistas, fez-se o levantamento prvio sobre cada liderana a ser entrevistada. As fontes utilizadas para sua elaborao foram bastante variadas, incluindo biografias (ou autobiografias, quando disponveis), matrias jornalsticas, pginas pessoais e institucionais presentes na internet, imagens, textos e documentos produzidos pela prpria pessoa (inclusive registros de suas falas em eventos e/ou outras ocasies) e outras. O objetivo com esse levantamento foi produzir um dossi bsico sobre a vida da pessoa a ser entrevistada, abordando aspectos pessoais e profissionais relevantes para o contexto do tema da pesquisa.16

Aps todo esse processo preparatrio, foram elaborados roteiros de entrevista individualmente pensados para contemplar as experincias vividas pelo(a) entrevistado(a), mas com um fio condutor definido pelos seguintes eixos temticos: organizaes e lideranas de pessoas com deficincia e a conformao de seu movimento poltico; Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD);

contexto de realizao dos encontros nacionais do movimento, realizados na dcada de 1980; processo de elaborao da Constituio de 1988 e fortalecimento do movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficincia; expanso e especificidades regionais do movimento social das pessoas com deficincia no territrio nacional e sua participao internacional; criao de uma estrutura de Estado voltada para as pessoas com deficincia (coordenadorias e conselhos de direitos nacionais estaduais e municipais); conquistas e desafios futuros.

Alm disso, o roteiro guiou a entrevista sem paut-la, ou seja, buscou recuperar a memria do(a) entrevistado(a) sem forj-la. A hierarquia de importncia dos eventos foi dada pelo entrevistado, e no pelo roteiro. Prova disso que, com base em temas factuais, como os listados acima, foi possvel colher depoimentos ricos em conceitos elaborados pelos entrevistados durante a militncia poltica. Esses depoimentos traduziram concepes polticas, vises de mundo, conflitos e consensos que s podem ser percebidos pela voz daqueles que viveram essa histria. Os depoimentos da segunda parte do livro so verses editadas das entrevistas, sem prejuzo do contedo original. Ambas as verses (integral e editada) foram submetidas aprovao dos entrevistados. O plano da obra Este livro estruturado em duas partes. A primeira narra a luta empreendida por essas pessoas para se tornarem agentes polticos e conquistar o reconhecimento da prpria cidadania. Buscou-se recuperar no texto, com base em ampla pesquisa documental, os caminhos percorridos pelas pessoas com deficincia no Brasil desde meados do sculo XIX at hoje. Maior nfase foi conferida ao perodo posterior a 1979, quando as pessoas com deficincia se mobilizaram politicamente em favor de suas reivindicaes e se tornaram agentes transformadores de aspectos da sociedade brasileira.

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Na segunda parte, o objetivo foi resgatar as memrias de lideranas histricas, militantes e personalidades do movimento das pessoas com deficincia por meio da metodologia de histria oral. A primeira parte do livro est dividida em seis captulos. No captulo 1, As Primeiras Aes e Organizaes Voltadas para as Pessoas com Deficincia, so apresentadas as iniciativas pioneiras do Estado brasileiro direcionadas s pessoas com deficincia, ainda no Perodo Imperial, assim como as primeiras aes empreendidas pela sociedade civil na primeira metade do sculo XX. Aborda-se, de forma panormica, a histria dos institutos direcionados educao de cegos e surdos criados no Rio de Janeiro pelo Imperador D. Pedro II, das sociedades Pestalozzi, da Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e dos centros de reabilitao fsica. Unidas por um sentimento de solidariedade, surgido no interior dessas primeiras instituies de atendimento, as pessoas com deficincia comearam a se associar. No captulo 2, O Associativismo das Pessoas com Deficincia, so expostas as motivaes que levaram cegos, surdos e deficientes fsicos a constituir grupos locais e informais, antes da dcada de 1970, no qual compartilhavam experincias e prestavam apoio mtuo. Foi nesses grupos que o embrio do movimento poltico que surgiria encontrou terreno frtil para se desenvolver. No captulo 3, O Movimento Poltico das Pessoas com Deficincia, narra-se a trajetria desse movimento poltico que, como outros, se formaram no contexto da redemocratizao brasileira aps o regime da ditadura militar. Destacam-se, nesse captulo, as estratgias adotadas e os caminhos escolhidos pelo movimento para se fortalecer politicamente, bem como a importncia do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, institudo pela ONU em 1981, como catalisador dessa organizao. A mobilizao da sociedade civil em torno da elaborao da Constituio de 1988 marcou a consolidao do processo de abertura poltica. No seio desse amplo debate, os diversos movimentos sociais brasileiros participaram ativamente para incorporar nova Constituio suas principais demandas. No captulo 4, O Movimento das Pessoas com Deficincia e a Assembleia Nacional Constituinte, recupera-se a histria da participao desse movimento, em particular, no processo constituinte, os consensos e dissensos, as vitrias e derrotas. As conquistas colhidas pelas pessoas com deficincia na dcada de 1980 ganharam fora de tal maneira que, mais do que direitos reconhecidos, conseguiram se inserir na estrutura do Estado. No captulo 5, A CORDE1 e o CONADE2 na Estrutura Administrativa do Estado Brasileiro, apresentada a trajetria dos principais rgos de representao dos anseios das pessoas com deficincia no Estado Brasileiro.

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O captulo 6, O Sculo XXI, encerra a primeira parte do livro recuperando a participao do movimento na elaborao da Conveno da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia, o primeiro tratado de Direitos Humanos do sculo XXI. Em seguida, discute-se o espao de participao poltica proporcionado pelas Conferncias Nacionais, assim como as perspectivas futuras do movimento. Por fim, apresenta-se a evoluo conceitual do movimento, nos ltimos trinta anos, que embasam o atual discurso da luta por direitos. Na segunda parte do livro, encontram-se os depoimentos de 25 pessoas que protagonizaram os caminhos trilhados por esse movimento, cada uma em seu tempo e lugar. As vozes dessas pessoas recontam a histria narrada na primeira parte do livro, mas com toda a riqueza prpria das memrias, que compreendem sentimentos, conflitos e esperanas, elementos que os registros convencionais jamais poderiam nos revelar. Os depoimentos so antecedidos por um Guia de Leituras, no qual os principais temas e embates so apontados aos leitores. No final uma homenagem in memoriam queles que dedicaram a vida luta pelos direitos das pessoas com deficincia, reconhecendo por meio deles os milhares de militantes, conhecidos ou annimos, que tambm contriburam, e ainda contribuem, para os avanos e conquistas.1 2

Coordenadoria Nacional para a Integrao da Pessoa Portadora de Deficincia Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficincia

Captulo 1 AS PRIMEIRAS AES E ORGANIZAES VOLTADAS PARA AS PESSOAS COM DEFICINCIA Durante o perodo colonial, usavam-se prticas isoladas de excluso - apesar de o Brasil no possuir grandes instituies de internao para pessoas com deficincia. As pessoas com deficincia eram confinadas pela famlia e, em caso de desordem pblica, recolhidas s Santas Casas ou s prises. As pessoas com hansenase eram isoladas em espaos de recluso, como o Hospital dos Lzaros, fundado em 1741. A pessoa atingida por hansenase era denominada leprosa, insuportvel ou morftica. A doena provocava horror pela aparncia fsica do doente no tratado eles possuam leses ulcerantes na pele e deformidades nas extremidades do corpo , que era lanado no isolamento dos leprosrios e na excluso do convvio social. A chegada da Corte portuguesa ao Brasil e o incio do perodo Imperial mudaram essa realidade. No sculo XIX tiveram incio as primeiras aes para atender as pessoas com deficincia, quando o Pas dava seus primeiros passos aps a independncia, forjava sua condio de Nao e esboava as linhas de sua identidade cultural. O contexto do Imprio (1822-1889), marcado pela sociedade aristocrtica, elitista, rural, escravocrata e com limitada participao poltica, era pouco propcio 19

assimilao das diferenas, principalmente as das pessoas com deficincia. O Decreto n 82, de 18 de julho de 1841, determinou a fundao do primeiro hospital destinado privativamente para o tratamento de alienados, o Hospcio Dom Pedro II, vinculado Santa Casa de Misericrdia, instalado no Rio de janeiro. O estabelecimento comeou a funcionar efetivamente em 9 de dezembro de 1852. Em 1854, foi fundado o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e, em 1856, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. 1 Durante o sculo XIX, apenas os cegos e os surdos eram contemplados com aes para a educao. importante destacar que a oferta de atendimento concentrava- se na capital do Imprio. Com o advento da Repblica, o Hospcio Dom Pedro II foi desanexado da Santa Casa de Misericrdia e passou a ser chamado de Hospcio Nacional de Alienados. Somente em 1904, foi instalado o primeiro espao destinado apenas a crianas com deficincia o Pavilho-Escola Bourneville. Na primeira metade do sculo XX, o Estado no promoveu novas aes para as pessoas com deficincia e apenas expandiu, de forma modesta e lenta, os institutos de cegos e surdos para outras cidades. As poucas iniciativas, alm de no terem a necessria distribuio espacial pelo territrio nacional e atenderem uma minoria, restringiam-se apenas aos cegos e surdos. Diante desse dficit de aes concretas do Estado, a sociedade civil criou organizaes voltadas para a assistncia nas reas de educao e sade, como as Sociedades Pestalozzi (1932) e as Associaes de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) (1954). Ainda na dcada de 50, o surto de poliomielite levou criao dos centros de reabilitao fsica.1

No se usa mais o vocbulo mudo como complemento da identificao de surdos, j que, na maioria absoluta das vezes, o fato de no falar est relacionado ao no conhecimento dos sons e consequente impossibilidade de repeti-los, e no a uma doena que impea a fala. Os institutos no Imprio As questes relativas s pessoas cegas e surdas surgiram no cenrio poltico do Imprio em 1835, durante o Perodo Regencial, quando o conselheiro Cornlio Ferreira Frana, deputado da Assembleia Geral Legislativa, props que cada provncia tivesse um professor de primeiras letras para surdos e cegos. Todavia, a recm-formada Nao Brasileira, independente de Portugal h apenas 13 anos, enfrentava um momento poltico conturbado e a proposta do conselheiro Frana sequer foi discutida na Cmara dos Deputados. O tema s foi retomado na dcada de 1850. O Estado brasileiro foi pioneiro na Amrica Latina no atendimento s pessoas com deficincia, ao criar, em 1854, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atual Instituto Benjamin Constant - IBC), e, em 1856, o Imperial Instituto dos SurdosMudos (hoje Instituto Nacional de Educao de Surdos - INES). Essas instituies, que funcionavam como internatos, inspiravam-se nos preceitos do iderio iluminista e tinham como objetivo central inserir seus alunos na sociedade

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brasileira, ao fornecer-lhes o ensino das letras, das cincias, da religio e de alguns ofcios manuais. Apesar do pioneirismo, ambos os institutos ofertaram um nmero restrito de vagas durante todo o Perodo Imperial. O conceito dessas instituies se baseou na experincia europeia, mas diferentemente de seus pares estrangeiros, normalmente considerados entidades de caridade ou assistncia, tanto o Imperial Instituto dos Meninos Cegos quanto o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos encontravam-se, na estrutura administrativa do Imprio, alocados na rea de instruo pblica. Eram, portanto, classificados como instituies de ensino. A cegueira e a surdez foram, no Brasil do sculo XIX, as nicas deficincias reconhecidas pelo Estado como passveis de uma abordagem que visava superar as dificuldades que ambas as deficincias traziam, sobretudo na educao e no trabalho. Descrio da imagem:Fotografia 1.1: Vista da fachada do prdio do Instituto Benjamin Constant no Rio de Janeiro, de estilo neoclssico onde desde 1854 funciona o instituto.

O Imperial Instituto dos Meninos Cegos O Imperial Instituto dos Meninos Cegos foi criado pelo Imperador D. Pedro II, em 1854, para instruir as crianas cegas do Imprio. A instituio foi instalada no Rio de Janeiro e tinha como modelo o Instituto de Meninos Cegos de Paris, cujos mtodos de ensino eram considerados os mais avanados de seu tempo. Foi o discurso eloqente do jovem cego e ex-aluno do Instituto de Paris Jos lvares de Azevedo que convenceu o imperador a institu-lo, durante uma audincia intermediada pelo mdico da corte, ao Dr. Jos Francisco Xavier Siga e pelo Baro do Rio Bonito, o ento presidente da Provncia do Rio de Janeiro. Em seu primeiro ano de funcionamento, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos atendeu alunos de apenas duas provncias Rio de Janeiro e Cear. At o fim do regime monrquico, recebeu meninos e meninas de vrias outras provncias, tais como Alagoas, Bahia, Esprito Santo, Minas Gerais, Par, Piau, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e So Paulo. O ingresso dos alunos estava condicionado autorizao do ministro e secretrio de Estado dos Negcios do Imprio. Descrio das imagens:

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Fotografia 2.1: Da direita para a esquerda: Benjamim Constant e sua esposa. Fotografia 3.1: Vista de baixo para cima da fachada do Instituto Benjamim Contant. Fotografia 4.1: Vista da fachada do prdio do Instituto Nacional de Educao de Surdos, INES no Rio de Janeiro de estilo neoclssico onde, desde 1915, funciona o Instituto.

O Imperial Instituto dos Surdos-Mudos O Imperial Instituto dos Surdos-Mudos foi criado em 1856, por iniciativa particular do francs E. Huet, professor surdo e ex-diretor do Instituto de Surdos-Mudos de Bourges. A criao do Instituto e suas primeiras atividades foram financiadas por donativos at 1857, quando a lei oramentria destinou-lhe recursos pblicos e o transformou em instituio particular subvencionada (Lei n 939, de 26 de setembro de 1857), posteriormente assumida pelo Estado. Huet dirigiu a instituio por aproximadamente cinco anos e, depois de sua retirada, em 1861, o Instituto entrou em processo de desvirtuamento de seus objetivos. O Instituto atendeu apenas trs pessoas surdas em 1856. Com o tempo, esse atendimento se expandiu. A princpio, eram alunos provenientes do Rio de Janeiro, sobretudo da capital do Imprio, onde o Instituto estava instalado; posteriormente, vieram alunos de outras provncias: Alagoas, Bahia, Cear, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, So Paulo, Maranho, Minas Gerais, Paran, Pernambuco e Santa Catarina. A crise na instituio foi exposta em 1868, quando o chefe da Seo da Secretaria de Estado, Tobias Rabello Leite, realizou inspeo nas atividades e condies do Instituto. Em seu relatrio, apontou que o desvio seus propsitos originais, transformando-se em um verdadeiro asilo de surdos. Tobias Leite tornou-se diretor da Instituio at 1896 e deu-lhe o impulso definitivo como referncia na educao de surdos no Brasil. O currculo consistia no ensino elementar incorporado de algumas matrias do secundrio. O ensino profissionalizante focava-se em tcnicas agrcolas, j que a maioria dos alunos era proveniente de famlias pobres do meio rurual. Em meados da dcada de 1870, foram instaladas oficinas profissionalizantes de encadernao e sapataria. A Repblica e as primeiras iniciativas da sociedade civil Com a proclamao da Repblica, em 1889, os institutos tiveram a denominao alterada. Imediatamente aps a queda do regime monrquico, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos recebeu o nome de Instituto dos Meninos Cegos, alterado, em 1890, para Instituto Nacional dos Cegos e, em 1891, para Instituto Benjamin22

Constant (IBC), homenagem ao seu diretor mais ilustre. Pelo mesmo motivo, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos deixou de ostentar a alcunha de instituio imperial, mantendo o nome de Instituto dos Surdos-Mudos, at 1957, quando passou a se chamar Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES). A ao do Estado em relao s pessoas com deficincia mudou muito pouco com o advento da Repblica. Os Institutos permaneceram como tmidas iniciativas mesmo com o surgimento de congneres em outras regies do Brasil , tanto porque atendiam parcela diminuta da populao de pessoas com deficincia em face da demanda nacional, quanto por se destinarem a apenas dois tipos de deficincia: a cegueira e a surdez. Por exemplo, em 1926, foi fundado o Instituto So Rafael, em Belo Horizonte; em 1929, o Instituto de Cegos Padre Chico, em So Paulo; em 1959, o Instituto Londrinense de Educao de Surdos (ILES) em Londrina, todos ainda em funcionamento. No contexto histrico de industrializao e urbanizao brasileiras, processo iniciado na dcada de 1920 e aprofundado nas dcadas de 1940 e 1950, surgiram, por iniciativa da sociedade civil, novas organizaes voltadas para as pessoas com deficincia. Essas novas organizaes se destinavam a outros tipos de deficincia e com formas de trabalho diferenciadas, por no se restringirem educao e atuarem tambm na sade. Nesse perodo, os primeiros centros de reabilitao fsica surgiram motivados pelo surto de poliomielite. Com relao aos hansenianos, persistiu a prtica de isolamento em leprosrios, somente interrompida na dcada de 1980. Com o passar do tempo, os leprosrios tornaram-se verdadeiras cidades, praticamente autossuficientes, com prefeitura prpria, comrcio, escola, igreja, delegacia e cemitrio. As principais iniciativas para atender a deficincia intelectual desse perodo foram dos movimentos pestalozziano e apaeano. At a metade do sculo XIX, a deficincia Intelectual era considerada uma forma de loucura e era tratada em hospcios. Durante a Repblica, iniciaram-se as investigaes sobre a etiologia da deficincia intelectual, sendo que os primeiros estudos realizados no Brasil datam do comeo do sculo XX. A monografia sobre educao e tratamento mdico pedaggico dos idiotas, do mdico Carlos Eiras de 1900, o primeiro trabalho cientfico sobre a deficincia intelectual no Brasil. Aps a metade do sculo XX, dois trabalhos cientficos produzidos por psiquiatras tornaram-se referncias: a tese Introduo ao estudo da deficincia mental (oligofrenias), de Clvis de Faria Alvim, publicada em 1958, e o livro Deficincia mental, de Stanislau Krynski, publicado em 1969. A deficincia intelectual, poca denominada idiotia, passou a ser tratada na perspectiva educacional com tratamento diferenciado em relao aos hospcios do sculo XIX. Ao longo do tempo, a pessoa com deficincia intelectual j foi

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denominada de oligofrnica, cretina, imbecil, idiota, dbil mental, mongolide, retardada, excepcional e deficiente mental. A expresso deficincia intelectual significa que h um dficit no funcionamento do intelecto, mas no da mente. A expresso deficincia intelectual foi introduzida oficialmente em 1995, pela ONU, e consagrada, em 2004, no texto da Declarao de Montreal Sobre Deficincia Intelectual. Descrio das imagens: Fotografia 5.1: Senhora Helena Antipoff caminhando em uma estrada cercada por vegetao e segurando um ramalhete de flores. Movimento pestalozziano No Brasil, inspirado pelo pedagogo suo Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), foi criado, em 1926, o Instituto Pestalozzi de Canoas, no Rio Grande do Sul. A influncia do iderio de Pestalozzi, no entanto, ganhou impulso definitivo com Helena Antipoff, educadora e psicloga russa que, a convite do Governo do Estado de Minas Gerais, veio trabalhar na recm-criada Escola de Aperfeioamento de Belo Horizonte. Sua atuao marcou consideravelmente o campo da assistncia, da educao e da institucionalizao das pessoas com deficincia intelectual no Brasil. Foi Helena Antipoff quem introduziu o termo excepcional, no lugar das expresses deficincia mental e retardo mental, usadas na poca para designar as crianas com deficincia intelectual. Para ela, a origem da deficincia vinculava-se condio de excepcionalidade socioeconmica ou orgnica. Helena Antipoff criou, em 1932, a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte. Em 1945, foi fundada a Sociedade Pestalozzi do Brasil; em 1948, a Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro; e, em 1952, a Sociedade Pestalozzi de So Paulo. At 1970, data da fundao da Federao Nacional das Sociedades Pestalozzi (Fenasp), o movimento pestalozziano contava com oito organizaes em todo o Pas. A criao da federao, tambm por iniciativa de Helena Antipoff, fomentou o surgimento de vrias sociedades Pestalozzi pelo Brasil. Atualmente, so cerca de 150 sociedades Pestalozzi filiadas Fenasp. Descrio da Imagem: Fotografia 6.1: Casebre de estilo rococ onde foi fundada a Sede da Sociedade Pestalozzi em Niteri. Movimento apaeano A primeira Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) foi fundada em 1954, no Rio de Janeiro, por iniciativa da americana Beatrice Bemis, me de uma criana com deficincia intelectual. A reunio inaugural do Conselho Deliberativo da APAE do Rio de Janeiro ocorreu em maro de 1955, na sede da Sociedade de Pestalozzi do Brasil. Em 1962, havia 16 APAEs no Brasil, 12 das quais se reuniram

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em So Paulo para a realizao do 1 Encontro Nacional de Dirigentes Apaeanos, sob a coordenao do mdico psiquiatra Dr. Stanislau Krynski. Participaram dessa reunio as APAEs de Caxias do Sul, Curitiba, Jundia, Muria, Natal, Porto Alegre, So Leopoldo, So Paulo, Londrina, Rio de Janeiro, Recife e Volta Redonda. Durante a reunio decidiu-se pela criao da Federao Nacional das APAEs (Fenapaes). A Fenapaes foi oficialmente fundada em 10 de novembro de 1962. Funcionou inicialmente em So Paulo, no consultrio do Dr. Stanislau Krynski, at que uma sede prpria foi instalada em Braslia. Atualmente, a Fenapaes rene 23 federaes estaduais e mais de duas mil APAEs distribudas por todo o Pas. Essas organizaes constituem uma rede de atendimento pessoa com deficincia de expressiva capilaridade na sociedade, que presta servios de educao, sade e assistncia social. O atendimento voltado para as pessoas com deficincia intelectual e mltipla. Descrio da Imagem: Fotografia 7.1: Vista da fachada do prdio com arquitetura neoclssica da primeira sede da APAE no Rio de Janeiro. Os centros de reabilitao Em meados da dcada de 1950, estudantes de medicina e especialistas trouxeram da Europa e dos Estados Unidos os mtodos e paradigmas do modelo de reabilitao do ps-guerra, cuja finalidade era proporcionar ao paciente o retorno vida em sociedade. Os grandes centros de reabilitao europeus e norteamericanos, que recebiam predominantemente vtimas da Segunda Grande Guerra, desenvolveram tcnicas e inspiraram o surgimento de organizaes similares em todo o mundo. Isso ocorreu mesmo em pases como o Brasil, onde a principal causa da deficincia fsica no era a guerra. Nesse perodo, surgiram os primeiros centros brasileiros de reabilitao para atenderem as pessoas acometidas pelo grande surto de poliomielite. A poliomielite foi observada no incio do sculo XX, no Rio de Janeiro (1907-1911) e em So Paulo (1918). Porm, surtos de considervel magnitude ocorreram na dcada de 1930, em Porto Alegre (1935), Santos (1937), So Paulo e Rio de Janeiro (1939). A partir de 1950, foram descritos surtos em diversas cidades, com destaque para o de 1953, a maior epidemia j registrada no Brasil, que atingiu o coeficiente de 21,5 casos por 100 mil habitantes, no Rio de Janeiro. Um dos primeiros centros de reabilitao do Brasil foi a Associao Brasileira Beneficente de Reabilitao (ABBR), fundada em 1954. Idealizada pelo arquiteto Fernando Lemos, cujo filho possua sequelas de poliomielite, a ABBR contou com o apoio financeiro de grandes empresrios provenientes dos setores de comunicao, bancrio, de aviao, de seguros, dentre outros. Entre esses empresrios, estava Percy Charles Murray, vtima de poliomielite e primeiro presidente da associao.

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A primeira ao da ABBR foi criar a escola de reabilitao para formar fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, diante da carncia desses profissionais no Brasil. Os cursos de graduao em Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Escola da Reabilitao da ABBR tiveram incio em abril de 1956, de acordo com os moldes curriculares da Escola de Reabilitao da Columbia University. No ano seguinte, em setembro de 1957, o Centro de Reabilitao da ABBR foi inaugurado pelo Presidente da Repblica, Juscelino Kubitscheck. Outras organizaes filantrpicas surgiram no contexto da epidemia de poliomielite, como a Associao de Assistncia Criana Defeituosa (AACD) de So Paulo (hoje Associao de Assistncia Criana Deficiente), fundada em 1950. 1 O Instituto Bahiano de Reabilitao (IBR) de Salvador, criado em 1956; e a Associao Fluminense de Reabilitao (AFR) de Niteri, fundada em 1958. Alguns hospitais tornaram-se centros de referncia na reabilitao de pessoas com sequelas de poliomielite, a exemplo do Hospital da Baleia e do Hospital Arapiara, ambos em Belo Horizonte - MG. O perfil dos usurios dos centros de reabilitao modificou significativamente, no Brasil, a partir da dcada de 1960. A consolidao da urbanizao e da industrializao da sociedade e o xito das campanhas nacionais de vacinao provocaram dois efeitos: diminuram os casos de sequelas por poliomielite e aumentaram os casos de deficincia associados a causas violentas, principalmente acidentes automobilsticos (carro e moto), de mergulho e ferimentos ocasionados por armas de fogo. O surgimento da reabilitao fsica suscitou o modelo mdico da deficincia, concepo segundo a qual o problema era atribudo apenas ao indivduo. Nesse sentido, as dificuldades que tinham origem na deficincia poderiam ser superadas pela interveno dos especialistas (mdicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psiclogos, assistentes sociais e outros). No modelo mdico, o saber est nos profissionais, que so os principais protagonistas do tratamento, cabendo aos pacientes cooperarem com as prescries que lhes so estabelecidas. Embora esse modelo representasse avano no atendimento s pessoas com deficincia, ele se baseia em uma perspectiva exclusivamente clinicopatolgica da deficincia. Ou seja, a deficincia vista como a causa primordial da desigualdade e das desvantagens vivenciadas pelas pessoas. O modelo mdico ignora o papel das estruturas sociais na opresso e excluso das pessoas com deficincia, bem como desconhece as articulaes entre deficincia e fatores sociais, polticos e econmicos.1

embora a AACD tenha sido fundada antes da ABBR, seu centro de reabilitao comeou a atender o pblico somente em 1963.***

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Tanto os institutos do Imprio, voltados para a educao de cegos e surdos, quanto as organizaes surgidas na Repblica, direcionadas s pessoas com deficincia intelectual e reabilitao, embora no tivessem nenhum cunho poltico claramente definido, propiciaram, mesmo que para poucos, espaos de convvio com seus pares e discusso de questes comuns. Nesse sentido, contriburam para forjar uma identidade das pessoas com deficincia. Foram precursoras, naquele momento, da formulao do ser cego, surdo, deficiente intelectual e deficiente fsico no apenas na denominao, mas em sua identificao como grupo social. Todas as iniciativas, desde o Imprio at a dcada de 1970, so parte de uma histria na qual as pessoas com deficincia ainda no tinham autonomia para decidir o que fazer da prpria vida. Todavia, entre as pessoas com deficincia, esse foi um perodo de gestao da necessidade de organizao de movimentos afirmativos dispostos a lutar por seus direitos humanos e autonomia, dentre os quais se destaca a capacidade de decidirem sobre a prpria vida.

Captulo 2 O ASSOCIATIVISMO DAS PESSOAS COM DEFICINCIA A partir de meados do sculo XX, possvel observar o surgimento de organizaes criadas e geridas pelas prprias pessoas com deficincia. A motivao inicial a solidariedade entre pares nos seguintes grupos de deficincia: cegos, surdos e deficientes fsicos que, mesmo antes da dcada de 1970, j estavam reunidos em organizaes locais com abrangncia que raramente ultrapassava o bairro ou o municpio, em geral, sem sede prpria, estatuto ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que visavam ao auxlio mtuo e sobrevivncia, sem objetivo poltico prioritariamente definido. Essas organizaes, no entanto, constituram o embrio das iniciativas de cunho poltico que surgiriam no Brasil, sobretudo durante a dcada de 1970. O movimento associativista dos cegos A criao do sistema Braille, em 1829, inaugurou a era moderna da histria das pessoas cegas, promovendo uma verdadeira revoluo no processo de ensino e aprendizagem dos cegos. A partir de ento, a institucionalizao da educao e da profissionalizao dos cegos ganhou impulso, e o Braille se configurou como a forma mais efetiva de escrita e leitura para pessoas cegas. No entanto, a progressiva proliferao das instituies especializadas em educao de cegos em todo o mundo, por si s, no lhes garantiu integrao na sociedade, acesso a direitos, nem fim do preconceito e do estigma associado cegueira.

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A partir da dcada de 1950, no Brasil, observa-se um novo modelo de organizao das pessoas com deficincia visual o modelo associativista. As primeiras associaes de cegos surgiram no Rio de Janeiro, resultado de interesses eminentemente econmicos. Os associados eram, em geral, vendedores ambulantes, artesos especializados no fabrico de vassouras, empalhamento de cadeiras, recondicionamento de escoves de enceradeiras e correlatos. Ao contrrio dos asilos, hospitais e mesmo das escolas especializadas, fruto da caridade e da filantropia ou de iniciativas governamentais, as novas associaes nasciam da vontade e da ao dos indivduos cegos que buscavam, no associativismo, mecanismos para a organizao de suas lutas e melhoria de sua posio no espao social. Evidncias do associativismo dos cegos podem ser encontradas em tempos remotos, mais precisamente no sculo XIX, em 1893, quando um grupo formado por ex-alunos e professores do Instituto Benjamin Constant (IBC) criou o Grmio Comemorativo Beneficente Dezessete de Setembro. Inspirado em associaes similares encontradas na Europa, o Grmio visava comemorar a data de fundao do Instituto, promover a educao do cego, apoiar ex-alunos em questes de empregabilidade e sensibilizar a sociedade em relao ao preconceito. Essas novas associaes so marcadas pela ambiguidade original porque esto situadas em uma cultura que legou aos cegos solues que apontavam ora para a excluso, ora para prticas de caridade e filantropia. Por conseguinte, as associaes reproduzem, em suas prticas e aes, um modo de agir que, ao mesmo tempo em que refora o estigma e a discriminao, combate frontalmente esses cdigos culturais. O modelo associativista dos cegos nasceu em um momento de transio de duas vises de mundo: do modelo mdico ao modelo social com base nos Direitos Humanos. Nessa poca de transio, houve aumento na impresso de livros em Braille, com a instalao da imprensa Braille na Fundao para o Livro do Cego no Brasil, criada em 1946 atualmente denominada Fundao Dorina Nowill para Cegos , para possibilitar a educao dos cegos e ampliar o acesso leitura. A Fundao foi criada por iniciativa de algumas normalistas do colgio Caetano de Campos, em So Paulo. Entre as normalistas estavam Neith Moura e Dorina Nowill que, durante o curso normal, criaram um grupo experimental de educao de cegos que desenvolvia metodologias de ensino e transcrevia manualmente livros para o Braille. O trabalho de transcrio para o Braille transformou-se, aps algum tempo, na Fundao para o Livro do Cego no Brasil. Na dcada de 1950, fato marcante foi o Conselho Nacional de Educao autorizar que estudantes cegos ingressassem nas faculdades de Filosofia.

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Novas organizaes associativistas surgiram no incio da dcada de 1960, quando as pessoas com deficincia visual fomentaram o debate contra a Campanha Nacional de Educao dos Cegos, e sobre o internamento de cegos em instituies. Essa prtica era questionada, considerada fator de excluso e de reforo discriminao. O debate contribuiu para o crescimento do nmero de associaes criadas por pessoas com deficincia visual. Essas novas associaes se diferenciavam de suas precedentes, surgidas na dcada de 1950, pois defendiam interesses amplos da pessoa com deficincia muito alm da questo econmica: lutavam por educao, profissionalizao, cultura e lazer. Ao lado do associativismo local, desenvolvia-se e consolidava-se o estatuto da representao nacional com o objetivo de organizar o movimento em todo o Pas, estabelecer uma ponte de dilogo entre as entidades locais, o governo e as instituies da sociedade civil, representar a coletividade cega brasileira e lutar em defesa de suas necessidades fundamentais. A primeira entidade nacional foi o Conselho Brasileiro para o Bem-Estar dos Cegos (CBEC), fundado no Rio de Janeiro, em 1954. O Conselho foi criado por iniciativa de Dorina Nowill e do diretor do IBC, Dr. Rogrio Vieira, que, aps se reunirem com representantes de outras organizaes, decidiram criar a entidade, que teve Dorina Nowill como primeira presidente. O Conselho era filiado ao Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos. O Conselho Mundial para o Bem-estar dos Cegos transformou-se na Unio Mundial dos Cegos (World Blind Union), que atualmente a principal organizao de cegos no mundo. A Unio Mundial dos Cegos foi criada em 1984, quando o Conselho Mundial e a Federao Internacional dos Cegos se fundiram no novo rgo. Descrio da Imagem: Impresso 1.2: Modelo de pgina impressa com o Alfabeto Braille. O movimento dos surdos: Lngua Brasileira de Sinais, cultura e identidade surda Com a instalao das escolas para surdos, surgiu tambm a disputa sobre o melhor mtodo de educao de surdos: a Lngua Brasileira de Sinais, o oralismo ou a mista. No final do sculo XIX, a Lngua de Sinais sofreu grande revs. Em 1880, no Congresso Internacional de Professores de Surdos, em Milo, Itlia, o mtodo oral foi escolhido como o melhor para a educao dos surdos. A Lngua de Sinais foi proibida oficialmente em diversos pases, sob a alegao de que destrua a habilidade de oralizao dos surdos. Tal proibio despertou o que alguns autores chamam de isolamento cultural do povo surdo, j que a proibio dessa lngua tem por consequncia a negao da cultura e da identidade surdas. Seguindo a orientao do Congresso de Milo, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos tambm proibiu a Lngua de Sinais. Como consequncia dessa proibio, observou-se o declnio do nmero de professores surdos nas escolas para surdos e o aumento dos professores ouvintes.

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Essa proibio criou o que alguns estudiosos contemporneos chamam de ouvintismo, que seria o conjunto de representaes dos ouvintes a partir do qual o surdo est obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. O termo uma analogia a colonialismo e colonialista. As prticas ouvintistas so um conjunto de estratgias e aes que podem ser tanto fsicas, visveis ao corpo do surdo como as prteses auditivas , quanto subjetivas, como as formas de disciplinar o surdo; as normas, os costumes, jeitos e trejeitos ouvintes que impem esses sujeitos ao ouvintismo, s prticas de normalizao que imprimem uma forma de ser surdo ouvintizado. Os alunos surdos eram proibidos de usar a Lngua de Sinais; assim, para impedirlhes o uso, foram adotadas medidas extremas tais como: forar os alunos a manter os braos cruzados, amarrar as mos, comparar quem usava a lngua de sinais com macacos. Os cdigos no foram eliminados, mas conduzidos ao mundo marginal. Os movimentos dos surdos passaram, ento, a constituir-se como uma resistncia s prticas ouvintistas. Esses movimentos se do em espaos como as associaes, as cooperativas e os clubes territrios livres do controle ouvinte , onde os surdos estabeleciam intercmbio cultural e lingustico e faziam uso da Lngua de Sinais. Grande parte das associaes de surdos surgiu exatamente nos perodos de maior nfase oralidade e negao da diferena, envolvendo o final do sculo XIX at aproximadamente as dcadas de 1960 e 1970. Ou seja, um dos principais fatores de reunio das pessoas surdas era, e ainda , o uso e a defesa da Lngua de Sinais. No Brasil, h registros de que, no final da dcada de 1930, um grupo de surdos exestudantes do Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES) fundou a Associao Brasileira de Surdos-Mudos no Rio de Janeiro. Uma segunda associao foi fundada em maio de 1953 com a ajuda de uma professora de surdos, Ivete Vasconcelos. Alm disso, os ex-estudantes do INES voltavam para suas cidades de origem e criavam associaes de surdos, tais como a Associao de Surdos-Mudos de So Paulo, fundada em maro de 1954, e a Associao de Surdos de Belo Horizonte, em 1956. A origem da organizao dos surdos brasileiros tambm tem fortes ligaes com o esporte, da ter sido fundada, em 1959, a Federao Desportiva de Surdos do Rio de Janeiro, com o nome de Federao Carioca de Surdos-Mudos. A Federao Carioca de Surdos-Mudos era liderada por Sentil Delatorre e reconhecida pelo Conselho Nacional de Desportos e pela Confederao Brasileira de Futebol. Posteriormente, filiou-se ao Comit Internacional de Esportes dos Surdos. Com o crescimento da prtica desportiva de surdos, Sentil Delatorre tomou a iniciativa de convocar uma assembleia geral que, em novembro de 1984, no auditrio do INES criou a Confederao Brasileira de Desporto para Surdos. O movimento internacional de surdos se articulou sob coordenao da Federao Mundial de Surdos (Word Federation of the Deaf WFD), criada em 1951 e com

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sede na Finlndia. Articulando-se com os organismos ligados s Naes Unidas, os lderes surdos procuraram, a partir da, interferir nas polticas e nas recomendaes apresentadas aos governos dos seus pases. A WFD teve influncia decisiva nas recomendaes da UNESCO, em 1984, no reconhecimento formal da Lngua de Sinais como lngua natural das pessoas surdas, garantindo que crianas surdas tivessem acesso a ela o mais precocemente possvel. A cultura surda e a Lngua de Sinais ganharam importantes argumentos em sua defesa quando, em meados de 1960, o linguista Willian Stokoe publicou o livro Language Structure: an outline of the visual communication system of the american deaf (Estrutura de Linguagem: uma abordagem do sistema de comunicao visual do surdo americano), no qual afirma que a lngua de sinais americana tinha todas as caractersticas da lngua oral. Ao se conferir status de lngua Lngua de Sinais, os surdos puderam reafirmar com mais fora e argumentao o seu pertencimento a uma comunidade lingustica que lhes prov uma cultura e uma identidade prprias. No h como negar a complexidade que existe nas relaes entre cultura, linguagem e identidade; mas tambm no se pode negar que o fato de pertencer a um mundo de experincia visual e no auditiva traz uma marca identitria significativa para essa parcela da populao, que reafirma sua diferena perante o mundo ouvinte e, assim, legitima sua luta por direitos e pela sua existncia como cidados. Descrio da Imagem: Fotografia: 1.2: Alfabeto em LIBRAS (imagens das mos onde cada configurao representa uma letra do alfabeto). Organizao dos deficientes fsicos Os deficientes fsicos tambm se associaram em entidades voltadas para a sobrevivncia e a prtica do esporte adaptado. Essas organizaes, que no tinham objetivos polticos definidos, foram os primeiros espaos em que as pessoas com deficincia fsica comearam a discutir os problemas comuns. So exemplos dessas organizaes: a Associao Brasileira de Deficientes Fsicos (Abradef) e o Clube do Otimismo, ambos do Rio de Janeiro; o Clube dos Paraplgicos de So Paulo; e a Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes (FCDD), atualmente Fraternidade Crist de Pessoas com Deficincia do Brasil (FCD-BR), presente em vrias cidades do Brasil. Muitas dessas associaes foram criadas com o intuito de viabilizar formas de obter recursos financeiros para a sobrevivncia de seus filiados. Nesse sentido, organizavam, por exemplo, translado para que os grupos de deficientes fsicos fossem at locais de grande circulao de pessoas vender balas,

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quitandas ou outras mercadorias de pequeno valor. possvel perceber um apelo caridade para que os consumidores comprassem as mercadorias. As associaes esportivas Outras formas de associao de deficientes fsicos comuns nesse perodo foram as organizaes voltadas para a prtica de esporte. O desenvolvimento do esporte adaptado no mundo ocorreu, sobretudo, aps a Segunda Guerra Mundial. A partir de 1946, comearam a surgir, nos Estados Unidos e na Inglaterra, os primeiros movimentos organizados de esporte para pessoas com deficincia. Na dcada de 1950, o esporte adaptado se popularizou em todo o mundo. No Brasil, os primeiros clubes foram fundados em 1958: Clube dos Paraplgicos de So Paulo e Clube do Otimismo do Rio de Janeiro. Ambos os clubes foram fundados por atletas que ficaram com leso medular em certo momento da vida e que tiveram a oportunidade de se tratar nos Estados Unidos, onde conheceram o esporte adaptado. Em So Paulo, o fundador foi Srgio Del Grande e, no Rio de Janeiro, Robson Sampaio. Essas iniciativas tiveram como efeito secundrio o incio da percepo, pelas pessoas com deficincia, da necessidade de discutirem sua insero poltica na sociedade. As prprias dificuldades enfrentadas tanto para a prtica do esporte quanto no trabalho precrio, como a venda de mercadorias de pequeno valor estimularam o incio de reivindicaes, sobretudo no que se refere mobilidade. Com o passar do tempo, assumiram cunho cada vez mais poltico. Isso ensejou, no final da dcada de 1970, no contexto da redemocratizao do Brasil, o surgimento de organizaes de pessoas com deficincia, com carter claramente definido e com o objetivo de conquistar espao na sociedade, direitos e autonomia para conduzirem a prpria vida.

Captulo 3 O movimento poltico das Pessoas com Deficincia O associativismo mencionado no captulo anterior foi uma etapa no caminho de organizao das pessoas com deficincia, antes restritas caridade e a polticas de assistncia, em direo s conquistas no universo da poltica e da luta por seus direitos. Esse processo de associaes criou o ambiente para a formalizao da conscincia que resultaria no movimento poltico das pessoas com deficincia na dcada de 1970. Nessa poca, surgiram as primeiras organizaes compostas e dirigidas por pessoas com deficincia contrapondo-se s associaes que prestavam servios a este pblico. Esta dicotomia, que mais adiante ser abordada neste captulo, permanece como modelo at os dias atuais. As primeiras organizaes associativistas de pessoas com deficincia no tinham sede prpria, estatuto ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que visavam o auxlio mtuo e no33

possuam objetivo poltico definido, mas criaram espaos de convivncia entre os pares, onde as dificuldades comuns poderiam ser reconhecidas e debatidas. Essa aproximao desencadeou um processo da ao poltica em prol de seus direitos humanos. No final dos anos 1970, o movimento ganhou visibilidade, e, a partir da, as pessoas com deficincia tornaram-se ativos agentes polticos na busca por transformao da sociedade. O desejo de serem protagonistas polticos motivou uma mobilizao nacional. Essa histria alimentou-se da conjuntura da poca: o regime militar, o processo de redemocratizao brasileira e a promulgao, pela ONU, em 1981, do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD). A ditadura militar no Brasil teve incio em 1964 e terminou em 1985, com a eleio, ainda que indireta, de Tancredo Neves, o 1 presidente civil aps 21 anos de autoritarismo. Durante os chamados anos de chumbo, o exerccio da cidadania foi limitada em todas as suas dimenses: direitos civis e polticos eram cerceados e os direitos sociais, embora existissem legalmente, no eram desfrutados. Prevalecia a censura e a falta de liberdade. Com o processo de enfraquecimento e declnio do regime militar, , a partir de meados da dcada de 1970, iniciou-se um processo de abertura poltica lenta, gradual e segura. A redemocratizao desenrolou-se em contexto especialmente frtil, em termos de demandas sociais, com uma participao poltica ampla. Esse perodo foi marcado pela ativa participao da sociedade civil, que resultou no fortalecimento dos sindicatos, na reorganizao de movimentos sociais e na emergncia das demandas populares em geral. Era o Brasil, novamente, rumo democracia. Os movimentos sociais, antes silenciados pelo autoritarismo, ressurgiram como foras polticas. Vrios setores da sociedade gritaram com sede e com fome de participao: negros, mulheres, ndios, trabalhadores, sem-teto, sem-terra e, tambm, as pessoas com deficincia. Esse processo se reflete na Constituio Federal promulgada em 1988. A Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), envolvida no esprito dos novos movimentos sociais, foi a mais democrtica da histria do Brasil, com canais abertos e legtimos de participao popular. Os novos movimentos sociais, dentre os quais o movimento poltico das pessoas com deficincia, saram do anonimato e, na esteira da abertura poltica, uniram esforos, formaram novas organizaes, articularam-se nacionalmente, criaram estratgias de luta para reivindicar igualdade de oportunidades e garantias de direitos. Outro fator relevante foi a deciso da ONU de proclamar 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), sob o tema Participao Plena e Igualdade. O advento do AIPD colocou as pessoas com deficincia no centro das discusses, no mundo e tambm no Brasil.

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Tanto o AIPD quanto o processo de redemocratizao atuaram como catalisadores do movimento que, no primeiro momento, procurou construir e consolidar sua unidade. A criao da Coalizo Pr-Federao Nacional foi a materializao do esforo unificador, consubstanciado por trs encontros nacionais, realizados entre 1980 e 1983, buscando elaborar uma agenda nica de reivindicaes e estratgias de luta, bem como fundar a Federao Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. O amadurecimento das discusses resultou em um rearranjo poltico no qual a federao nica foi substituda por federaes nacionais por tipo de deficincia. Descrio da Imagem: Impresso 1.3: Capa do relatrio do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981). A Coalizo Pr-Federao Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes A Coalizo Pr-Federao Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes foi criada em 1979, quando, pela primeira vez, organizaes de diferentes Estados e tipos de deficincia se reuniram para traar estratgias de luta por direitos. Lia Crespo, jornalista e militante paulista, destaca o momento poltico basilar do movimento das pessoas com deficincia na luta por cidadania: Sustento que o movimento comeou no final de 1979 e comeo de 1980, quando novas organizaes e novos grupos informais foram criados com o objetivo expresso de mudar a realidade existente, a partir da mobilizao e conscientizao no apenas das prprias pessoas deficientes, mas, tambm, da sociedade como um todo. (Lia Crespo. Depoimento oral, 16 de fevereiro de 2009) O eixo principal das novas formas de organizao e aes das pessoas com deficincia, surgidas no final da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980, era politicamente contrrio ao carter de caridade que marcou historicamente as aes voltadas para esse pblico. Estava em jogo a necessidade, por muito tempo reprimida, de as pessoas com deficincia serem protagonistas na conduo das prprias vidas. Cndido Pinto de Melo, bioengenheiro e militante em So Paulo, expressou com clareza e propriedade o que eles desejavam naquele momento: tornarem-se agentes da prpria histria e poderem falar eles mesmos de seus problemas sem intermedirios, nem tutelas. Foram realizadas reunies entre entidades de alguns Estados, sobretudo no Rio de Janeiro, em So Paulo e em Braslia, com o objetivo de estabelecer metas nacionais para o movimento. Os contatos eram por telefone e, muitas vezes, por cartas, de maneira informal e pessoal. Na poca, os meios de comunicao eram restritos e precrios. A estratgia de convocao dos novos colaboradores foi o relacionamento social, estabelecido por contatos pessoais entre os envolvidos. A primeira reunio aconteceu no Rio de Janeiro, em outubro de 1979. Nessa ocasio, nasceu a ideia de uma organizao nacional que congregasse pessoas com

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diferentes tipos de deficincia, com o objetivo de garantir representatividade de carter nacional. Para tanto, era necessrio envolver no processo o maior nmero possvel de organizaes e pessoas. A criao da Coalizo Pr-Federao Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes foi a estratgia escolhida. A Coalizo afirmava a necessidade de articulao nacional do movimento para o amadurecimento das suas demandas e, sobretudo, para aumentar o potencial de reivindicao. O objetivo era organizar uma federao nacional de entidades de pessoas com deficincia que se ocupasse de articular o movimento nacionalmente. A Coalizo surgiu para encaminhar esses debates e articular as organizaes de todo o pas. Sua primeira providncia foi promover a reunio de junho de 1980, em Braslia, organizada por Bencio Tavares da Cunha Mello e Jos Roberto Furquim, da Associao dos Deficientes Fsicos de Braslia (ADFB). Participaram dessa reunio os representantes de Braslia e de nove Estados brasileiros: Amazonas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Paran, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e So Paulo. Dois assuntos dominaram a pauta: a formao da federao e os preparativos para o 1 Encontro Nacional, previsto para o ms de outubro, em Braslia. A ideia era preparar propostas que deveriam ser submetidas ao plenrio durante o encontro. Nesse sentido, foi formada uma comisso para centralizar o encaminhamento das propostas, constituda por Bencio Tavares da Cunha Mello, de Braslia; Romeu Kazumi Sassaki, de So Paulo; Crsio Dantas Alves, da Bahia; e Paulo Roberto Guimares, do Rio de Janeiro. A Coalizo promoveu a ltima reunio preparatria para o 1 Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes nos dias 9 e 10 de agosto de 1980, em So Paulo. Realizada no Departamento de Educao Fsica e Esporte da Secretaria de Esportes e Turismo do Estado de So Paulo, a reunio contou com a participao de delegados do Paran, So Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Essas reunies foram o primeiro passo para a organizao nacional das pessoas com deficincia. Simultaneamente, ocorreram encontros e manifestaes pblicas regionais, como o 2 Congresso Brasileiro de Reintegrao Social, em julho de 1980, em So Paulo. Esse congresso contou com a participao das pessoas com deficincia e profissionais de reabilitao, que debateram e afirmaram a importncia da participao da pessoa com deficincia no trabalho, educao, lazer e em todas as atividades da sociedade, mas sem paternalismos. O congresso, dentre outros aspectos, ensejou o ato pblico convocado pela Associao Brasileira de Deficientes Fsicos (Abradef), realizado em 21 de julho de 1980, na Praa da S, em So Paulo, para protestar contra a discriminao das pessoas com deficincia. Uma das organizaes participantes do ato, o Ncleo de Integrao de Deficientes (NID), distribuiu uma carta aberta populao na qual exps uma das principais bandeiras do movimento, a busca pela igualdade:

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No reivindicamos privilgios, apenas meios para que possamos exercer os direitos comuns a todos os seres humanos. Como pode uma pessoa deficiente exercer o seu direito de voto se ela impedida de faz-lo porque sua seo possui escadas? Como pode uma pessoa deficiente exercer o seu direito de utilizar o transporte coletivo se os degraus do nibus so altos demais? O tema era recorrente e alimentava o movimento poltico que vivia momento positivo para despontar na histria. As pessoas com deficincia, munidas da experincia de vida e conhecedoras de suas necessidades, comearam a agir politicamente contra a tutela e em busca de serem protagonistas. O que essas pessoas buscavam era se colocar frente das decises, sem que se interpusessem mediadores. nesse momento que se evidencia a necessidade de criao de uma identidade prpria e positiva para esse grupo social. Descrio das Imagens: Impresso 2.3: Reproduo do informativo Pessoa Deficiente, editado pela coaliso. (Acervo Romeu Kazumi Sassaki). Fotografia 1.3: Cindo imagens de uma das primeiras reunies da coaliso, realizada no colgio Anchietanum em So Paulo, 5 de abril de 1980. (Acervo Romeu Kazumi Sassaki). Fotografia 2.3: Reunio da coaliso realizada no departamento de educao fsica e esporte da Secretaria de Esportes e turismo de So Paulo, entre 9 e 10 de agosto de 1980. (Acervo Romeu Kazumi Sassaki). [Fotografia 3.3: Manifestao de Pessoas com Deficiencia na Praa da S, So Paulo, em 21 de julho de 1980. (Folha de So Paulo, 27 de julho de 1980). Fotografia 4.3: Platia do primeiro Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. Braslia, 1980. (Acervo Antnio Campos de Abreu). Fotografia 5.3: Mesa Diretora do primeiro Encontro. Braslia, 1980. (Acervo Antnio Campos de Abreu). Tabela 1.3 - 1 Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes ORGANIZAO Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Associao dos Deficientes Fsicos do Amazonas (ADEFA) Associao Baiana de Deficientes Fsicos (Abadef) Associao dos Deficientes Motores do Cear (ADM) Associao dos Deficientes Fsicos de Braslia (ADFB) UF AL AM BA CE DF Responsvel Laura G. Nogueira Manoel Maral de Arajo Crsio A. D. Alves Joo A. Furtado Bencio Tavares Cunha Mello37

Grupo Capixaba de Pessoas com Deficincia (GCPD) Unio dos Paraplgicos de Belo Horizonte (Unipabe) Associao Mineira de Paraplgicos (AMP) Associao dos Surdos de Minas Gerais (ASMG) Federao Brasileira dos Surdos (FBS) Associao dos Cegos de Uberlndia (ACU) Associao dos Paraplgicos de Uberlndia (APARU) Associao dos Deficientes Fsicos do Mato Grosso do Sul (ADFMS) Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Associao dos Deficientes Motores de Pernambuco (ADM) Centro de Recuperao Humana (CRH) Unio Auxiliadora de Cegos de Recife (UACR) Instituto Paranaense dos Cegos (IPC) Associao dos Deficientes Fsicos do Paran (ADFP) Associao dos Deficientes Fsicos do Estado do Rio de Janeiro (ADEFERJ) dos Deficientes Fsicos (SADEF) Sociedade Amigos Clube dos Amigos da Associao Brasileira Beneficente de Reabilitao (CLAM/ABBR) Rio de Janeiro (CPRJ) Clube dos Paraplgicos do Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Sociedade dos Deficientes Visuais no Brasil (SODEVIBRA) Associao Riograndense de Paraplgicos e Amputados (ARPA-RS) Organizao Nacional de Reabilitao e Assistncia ao Excepcional (ONRAE)Louis Braille (SELB) Sociedade Esportiva Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Associao Brasileira dos Deficientes Fsicos e Sensoriais (ABRADEFS) Deficientes de Bauru (SDB) Sociedade dos Associao de Integrao de Deficientes Fsicos (AIDE) Associao Brasileira de Deficientes Fsicos (Abradef) Ncleo de Integrao de Deficientes (NID) Unio Nacional de Deficientes Fsicos (Unadef) Fraternidade Crist de Doentes e Deficientes Fsicos (FCD) Associao de Assistncia ao Deficiente Fsico (AADF)

ES MG MG MG MG MG MG MS PB PE PE PE PE PR PR RJ RJ RJ RJ RJ RJ RS RS RS RS SC SC SP SP SP SP SP SP SP

Daniel F. Matos Gilberto T. Silva Jurandir S. e Silva Antnio Campos de Abreu Padre Vicente Burnier Lzado O. Silva Arnaldo S. Carvalho Paulo M. Metelloi Antnio M. Limeira Messias Tavares de Souza Ednaldo F. Batista Jeferson A. Tenrio Gilberto M. de Souza Almeri Siqueira Roberto Madlener Flvio Wolff Maruf Aride Jefferson Caputo Roberto S. Ramos Nice Mello Benedito de Paula Silva Carlos Burle Cardoso Manoelito Florentino Wenceslau A. Padilha Altair G. Fernandes Arnoldo C. Rodrigues Aldo Linhares Sobrinho Shiro Tokuno Leila B. Jorge David P. Bastos Ana Maria Morales Crespo Adir R. do Amaral Maria de Lourdes Guarda Fbio C. de Oliveira

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O 1 Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes aconteceu em Braslia, de 22 a 25 de outubro de 1980. O objetivo do encontro foi criar diretrizes para a organizao do movimento no Brasil, estabelecer uma pauta comum de reivindicaes e, ainda, definir critrios para as entidades que poderiam ser reconhecidas como integrantes da Coalizo. A preocupao em favorecer a participao de pessoas com deficincia em detrimento de militantes sem deficincia importante para entender a lgica do movimento poca, quando foi demarcada a dicotomia de versus para. De forma geral, as organizaes de pessoas com deficincia so aquelas criadas, geridas e integradas por pessoas com deficincia, seno na integralidade de seu quadro, pelo menos na maioria dele. Receberam a denominao de organizaes de pessoas com deficincia que surgiram no final da dcada de 1970 com o propsito de buscar o protagonismo e a autonomia e a luta pela cidadania. Recebiam a denominao de organizao para pessoas com deficincia as entidades cujas aes se voltavam para as pessoas com deficincia que no participavam da tomada de deciso. A docitomia de versus para corresponde relao conflituosa estabelecida, por um lado, entre o protagonismo e a autonomia que as pessoas com deficincia buscavam e, por outro