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História Dos Feitos Recentemente Praticados Durante Oito Anos No Brasil
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Disciplina: FLH0232 – História Moderna II
Docente responsável: Prof. Dr. Henrique Soares Carneiro
Discente: Caroline da Silva Mariano Nº USP: 8576460
BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil. São Paulo: Edusp/itatiaia, 1974.
Publicada em 1657, a obra Rerum per octennium in Brasilia (História dos feitos
recentemente praticados durante oito anos no Brasil) foi encomendada por Maurício de
Nassau a Gaspar Barléu (1584-1648) com o objetivo de enaltecer os feitos de Nassau
durante o período em que governou a colônia holandesa no nordeste do Brasil, entre
1637 e 1644. Apesar de nunca ter estado em território brasileiro, Barléu conformou em
sua obra mapas, gravuras e relatórios produzidos por intelectuais neerlandeses como
Theodor Matham, George Marcgraf e Frans Post durante a experiência das Províncias
Unidas no Brasil. Segundo Fernanda Trindade Luciani,
a obra de Gaspar Barleus faz parte das inúmeras publicações sobre o Novo
Mundo que começaram a aparecer nas Províncias [República das
Províncias Unidas, atual Holanda] a partir do século XVI, início das
expedições neerlandesas ao redor do mundo. Quando da ocupação das
capitanias do Norte do Estado do Brasil – Pernambuco, Itamaracá, Paraíba
e Rio Grande – pela Companhia das Índias Ocidentais neerlandesa (WIC),
entre 1630 e 1654, a quantidade de publicações aumentou bastante no
mercado de livro. Mesmo antes da conquista, já circulavam por lá textos
sobre as terras brasileiras, em especial relacionados a sua lucrativa
produção açucareira. Diários e roteiros de viagem, crônicas e folhetos, às
vezes acompanhados de mapas e gravuras, formavam um conjunto de
informações geográficas, botânicas, zoológicas e étnicas sobre os trópicos.
No caso particular do Brasil, essas informações se avolumaram em especial
a partir da administração nassoviana.1
Para compreender a obra História dos feitos recentemente praticados durante oito
anos no Brasil é necessário inseri-la no contexto de sua publicação: o século XVII é
1 LUCIANI, Fernanda Trindade. Barleus: Oito anos de Nassau no Brasil. Disponível em: <http://www.bbm.usp.br/node/97>. Acesso em: 06 nov. 2015.
identificado com os conflitos relacionados à reestruturação de forças políticas e
econômicas na Europa que culminaram com a Guerra dos Trinta Anos. Nesse sentido,
esta guerra marca a transição hegemônica mundial dos países ibéricos, Espanha e
Portugal, para os Países Baixos.
Para Barléu, o elemento mais visível dos conflitos entre Espanha e Holanda é sua
amplitude, tanto geográfica, uma vez que “a extensão e violência da guerra envolveu não
só os Países Baixos, mas também a Alemanha, a França, a Espanha e alguns lugares
vizinhos, enfim a Europa quasi tôda, até que, aumentado o seu furor, desencadeou-se
nos confins da Ásia, nas costas da África e no Novo Mundo”2, quanto cronológica: de
acordo com o humanista, “desde os primeiros levantes, tem-se prolongado a luta até hoje,
sem esperança de fé ou de concórdia, a não ser que as tréguas dos doze anos tenham
concedido descanso às armas e às animosidades”3.
Para explicitar a trajetória histórica da Holanda durante as guerras hispano-
holandesas, o humanista propõe a divisão em três períodos. No primeiro, pautado pelo
domínio espanhol e pelas violentas represálias à influência do calvinismo nos Países
Baixos, “a situação da República foi de abatimento e de opressão, sob o despotismo do
Duque de Alba. Enviado com poderes tirânicos, sendo ele próprio um tirânico, proclamava
que tinha ordens do rei para encarniçar-se contra a vida e os bens da nobreza e da
burguesia”4. Já o segundo foi informado pelo início do conflito que ficou conhecido a
posteriori por Guerra dos Oitenta Anos, que culminou com a independência e a
proclamação da República Unida da Holanda; segundo Barléu, neste segundo período,
“ressurgia a nacionalidade e de novo se agitava sob o príncipe Guilherme de Orange”5.
Por sua vez, o terceiro período se insere nos conflitos na medida em que ocorre uma
expansão marítima sob o governo de Maurício de Nassau e Frederico Henrique. De
acordo com Barléu,
dilatando por toda a parte o nosso território, como por um fluxo crescente da
fortuna, expulsando exércitos, ferindo prosperamente tantas batalhas, tolerando
heroicamente tantos cercos, pondo outros mais heroicamente ainda, já livres dos
temores domésticos, levamos nossa bandeira e nossas esquadras à Espanha, à
África, ao Ocidente e a um mundo ignorado dos antigos, e, desta sorte, revidamos
ao rei a guerra que nos fizera.6
2 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. São Paulo: Edusp/itatiaia, 1974, p. 1-2.3 Ibid., p. 2.4 Ibid., p. 2-3.5 Ibid., p. 3.6 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. São Paulo: Edusp/itatiaia, 1974, p. 3.
Em 1579, foi proclamada a República Unida da Holanda, mas os conflitos entre
holandeses e espanhóis continuaram até 1648. As invasões holandesas no Brasil,
período relatado por Gaspar Barléu em História dos feitos recentemente praticados
durante oito anos no Brasil, eram parte desses conflitos, devido a União Ibérica (1580-
1640). A partir deste processo, até o final do século XVII, a Holanda se afirma enquanto
potência marítima, comercial e referência de país capitalista, uma vez que, ao contrário
das monarquias absolutistas europeias, o capital se encontrava concentrado nas mãos
dos comerciantes organizados nas companhias privilegiadas de comércio. Nesse sentido,
importância do capital privado para a construção histórica holandesa é crucial, levando
Barléu a relatar que “entre nós, o comerciante não só mantém o Estado, mas ainda
participa do governo. (...) Não vivemos em uma monarquia, mas numa república
aristocrática, onde, por serem menos numerosos os nobres, assumem a governança os
cidadãos mais honrados, muitos dos quais dados à vida comercial”7.
Basilar para a argumentação de Bárleu é sua inserção nos debates sobre a
liberdade de navegação e comercial, contemporâneos à publicação de História dos feitos
recentemente praticados durante oito anos no Brasil, principalmente no que se refere à
expansão para o Ocidente. Por um lado, os defensores pautavam-se nos pretextos
que as costas do Brasil estavam abertas e sem proteção contra o inimigo externo;
que, apartadas das outras terras e atemorizadas com a fama dos nossos
guerreiros, poderiam devastar-se com a improvisa chegada de nossas armadas;
que as naus do rei, conduzindo no Pacífico os tesouros do Peru, bem como as da
Nova Espanha e da Terra Firme, seriam do primeiro que delas se apoderasse. Que
as guerras européias eram feitas pelos espanhóis com essas riquezas, e por isso,
espoliados delas, se tornariam aplacáveis e menos terríveis. (...) Insistiram em que
as Províncias-Unidas se sustentavam com o comércio, fazendo-se, pois, mister
alargar para todos os lados, em favor dos mercadores, as áreas onde pudessem
granjear os seus proventos. (...) Nenhum outro feito daria maior glória e renome às
Províncias-Unidas que o terem ligado o Velho e o Novo Mundo pelos laços do
comércio e da navegação. (...) Os mais religiosos pediam suas razões à religião e à
convivência de se propagar uma doutrina mais pura, alegando se deveria acender o
facho da fé para guiar os povos que tateavam no reino das trevas; que não se
deveria estender só o império humano, senão também o de Cristo; que era
necessário e possível associar às vantagens dos comerciantes o cuidado de se
salvarem tantas nações; que assim os negócios seriam pios, e a piedade útil.8
7 Ibid., p. 9.8 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. São Paulo: Edusp/itatiaia, 1974, p. 10-11.
Por outro lado, os opositores levantavam razões dissuasórias:
que a companhia ia ser de guerra e não de comércio; que o interior do
Ocidente, invencível por causa de seus fortes e guarnições, desdenharia do
inimigo externo; que o litoral brasileiro poderia ser conquistado, mas
defendido nem tanto, à conta da multidão dos selvagens e da continuidade
da terra; que não havia ali ilhas para se expugnarem, como no Oriente,
protegidas pelo mar circunjacente, e sim um continente exposto às
incursões dos habitantes do sertão; que os bárbaros, havia mais de um
século, tinham aceitado a conveniência, os costumes e a religião dos
portugueses, e por isso mostrariam ânimo hostil contra nós; que tais
empreendimentos seriam danosos à Companhia das Índias Orientais,
dispersando os seus marinheiros e armamentos por várias esquadras e
partes do mundo; que entre uma e outra Companhia seriam fáceis as
rivalidades, suscitadas pela inveja dos lucros, e bem assim por algumas
mercadorias comuns e por idênticas necessidades da guerra e do tráfico, a
saber, armas, soldados, petrechos náuticos e marujos; que do Ocidente não
se poderiam esperar réditos bastantes para proteger-se militarmente a boa
fortuna, ainda quando ela se alcançasse; que não convinha irritar com mais
lutas o poder de rei tão forte, nem era tão prudente mostrar os pontos em
que somos desiguais; que semelhantes tentames, feitos pelos ingleses,
tinham tido êxito mais de temer que de desejar.9
Nesse sentido, já que “a liberdade comercial foi sempre o baluarte de uma grande
potência”10, o humanista defende a autonomia comercial e o fim do monopólio dos mares.
À vista disto, o principal tópos da argumentação de Barléu se constrói a partir da
instrumentalização da história, idealizando um contexto histórico para legitimar o discurso
de liberdade marítima e comercial:
consta de narrações verídicas que, por causa da interdição dos portos e do
comércio, surgiram guerras entre israelitas e amoreus, gregos e misos, megarenses
e atenienses, bolonheses e venezianos, cristãos e sarracenos. E quase a mesma
razão, isto é, serem privados do uso comum dos portos e das costas, tiveram os
próprios castelhanos de atacar à mão armada os habitantes da Índia Ocidental.
Injusta não é a censura de Tácito aos romanos, dizendo que eles estorvavam o
intercâmbio das nações e de certo modo impediam a utilização das ondas e dos
ventos, franca a todos. Já se pode, pois, admirar essa casta de homens aos quais
apraz o bárbaro costume de proibir aos estrangeiros a hospitalidade das praias.
Mas, por um revés, por uma contravolta da fortuna, acontece que, reclamando só
9 Ibid., p. 11-12.10 Ibid., p. 5.
para si a terra e a água, são privados de ambas, porque se irrita a ousadia dos
menos poderosos com a ambição de mando dos mais poderosos. Nem tolera o
Criador do universo que um só povo desfrute e poucos potentados repartam entre
si as águas criadas para o bem de todos e destinadas à utilidade geral.11
Outro importante recurso retórico da História dos feitos recentemente praticados
durante oito anos no Brasil é a constante referência à suposta heroicidade e bravura dos
neerlandeses, a qual Barléu constrói por meio da exaltação da trajetória histórica da
Holanda e da confirmação de uma ideologia em seu discurso:
demos um exemplo mais eloqüente que os dos antigos e enumerado entre
as maravilhas da nossa época: um povo envolvido em tantas guerras,
apenas com o dinheiro de alguns particulares, como que cotizados para a
ruína do inimigo comum, vexar e abater um rei poderosíssimo numa guerra
dupla, em partes do mundo separadas por todo um hemisfério, para igualar
hoje a extensão do império holandês quase com a redondeza da Terra.
Poderia, sem dúvida, a nossa bravura cingir-se à necessidade de se
defender, contentando-se com os limites costumados do oceano. Entretanto,
vedada por ordens régias a navegação dos nossos compatriotas para a
Espanha e, depois, para o Oriente, começou ela a estender-se mais. E esta
raça criada entre as águas, como se partisse o freio imposto à sua ambição,
demandou as plagas longínquas do orbe, ainda mesmo usurpando vias que
a Natureza negou ao homem.12
A obra de Barléu, além de ser utilizada desde o século XIX como fonte
historiográfica e documental tanto para o domínio holandês no Brasil quanto para os
conflitos hispano-holandeses inscritos no contexto de transição de hegemonia mercantil
da Espanha para as Províncias Unidas, é paradigmática na medida em que afirmou as
bases de uma literatura européia preocupada com a questão da alteridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil. São Paulo: Edusp/itatiaia, 1974.
11 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. São Paulo: Edusp/itatiaia, 1974, p. 6.12 Ibid., p. 4.
LUCIANI, Fernanda Trindade. Barleus: Oito anos de Nassau no Brasil. Disponível em:
<http://www.bbm.usp.br/node/97>. Acesso em: 06 nov. 2015.