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1 História e Memória: o “movimento dos sargentos” na Base Aérea de Fortaleza em defesa da democracia (1962-2000) FLÁVIO DA CONCEIÇÃO Um histórico de contestações: os praças em busca de direitos A memória na história do presente cumpre relevante papel em revelar histórias negligenciadas, quando o assunto compreende a ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, muitos debates ainda precisam ser realizados e novos objetos de pesquisa precisam ser desenvolvidos. O artigo objetiva problematizar o panorama histórico de atuação dos militares, o contexto do golpe e as consequências aos militares que se manifestaram contra a ditadura. Ao longo do início do século XX, é possível verificar na historiografia uma trajetória de agitações e articulações que permitem compreender as razões do posicionamento de alguns militares se contraporem ao golpe de 1964. Esse percurso histórico evidencia os envolvimentos dos militares de baixa patente com a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Ação Nacional Libertadora (ANL). Segundo a pesquisadora Vanda Costa, na AIB havia o aspecto da hierarquia militar com forte aproximação dos oficiais, somavam em torno de 2.000 do Exército ligados aos integralistas. Curiosamente, os sargentos, os cabos e os soldados eram mais familiarizados com a ANL. Vanda Costa argumenta que os praças, desertores das fileiras integralistas, não aceitavam as punições disciplinares, em virtude da AIB reproduz práticas dos quartéis, havendo uma vontade de desvinculação da estrutura disciplinadora das Forças Armadas. (COSTA, 1984: 22-23) Além da participação dos praças na ANL, a diretoria passou a refletir o peso político dos militares que passaram a compor a direção da entidade. Esses aspectos participativos revelam o grau de envolvimento de uma parcela de oficiais e praças nos debates dos anos Mestre em História junto ao Curso de Mestrado em História da Universidade Estadual do Ceará. Atualmente é professor do Ensino Fundamental nos municípios de Itaitinga e Fortaleza.

História e Memória: o defesa da democracia (1962-2000) · funcionamento da hierarquia militar, as consequências ao sargento, cabo e soldado que não ... eu me sentia engajado,

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História e Memória: o “movimento dos sargentos” na Base Aérea de Fortaleza em

defesa da democracia (1962-2000)

FLÁVIO DA CONCEIÇÃO

Um histórico de contestações: os praças em busca de direitos

A memória na história do presente cumpre relevante papel em revelar histórias

negligenciadas, quando o assunto compreende a ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985,

muitos debates ainda precisam ser realizados e novos objetos de pesquisa precisam ser

desenvolvidos. O artigo objetiva problematizar o panorama histórico de atuação dos militares,

o contexto do golpe e as consequências aos militares que se manifestaram contra a ditadura.

Ao longo do início do século XX, é possível verificar na historiografia uma trajetória

de agitações e articulações que permitem compreender as razões do posicionamento de alguns

militares se contraporem ao golpe de 1964. Esse percurso histórico evidencia os

envolvimentos dos militares de baixa patente com a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a

Ação Nacional Libertadora (ANL). Segundo a pesquisadora Vanda Costa, na AIB havia o

aspecto da hierarquia militar com forte aproximação dos oficiais, somavam em torno de 2.000

do Exército ligados aos integralistas. Curiosamente, os sargentos, os cabos e os soldados eram

mais familiarizados com a ANL. Vanda Costa argumenta que os praças, desertores das fileiras

integralistas, não aceitavam as punições disciplinares, em virtude da AIB reproduz práticas

dos quartéis, havendo uma vontade de desvinculação da estrutura disciplinadora das Forças

Armadas. (COSTA, 1984: 22-23)

Além da participação dos praças na ANL, a diretoria passou a refletir o peso político

dos militares que passaram a compor a direção da entidade. Esses aspectos participativos

revelam o grau de envolvimento de uma parcela de oficiais e praças nos debates dos anos

Mestre em História junto ao Curso de Mestrado em História da Universidade Estadual do Ceará. Atualmente é

professor do Ensino Fundamental nos municípios de Itaitinga e Fortaleza.

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1930, além disso, um protagonismo político. Getúlio Vargas, nesse contexto, estava atento aos

movimentos de oposição ao seu governo, sendo informado das infiltrações de esquerda nas

Forças Armadas. A tentativa de tomar o poder em novembro de 1935, por membros da ANL

em Recife, Natal e Rio de Janeiro, possibilitou ao Presidente Vargas perseguir os membros da

ANL e liquidar a organização.

Apesar desse aspecto punitivo, muitas lideranças militares ocuparam, posteriormente,

posições de destaque no Partido Comunista Brasileiro (PCB), como os cabos Giocondo Dias e

Davi Capistrano e o sargento Gregório Bezerra. (PARUNKER, 2009: 78) Entretanto, o

movimento da ANL, em 1935, contribuiu para prolongar a trama da permanência de Getúlio

Vargas no poder, motivando a elaboração do Plano Cohen dois anos depois, mas

estrategicamente atribuído aos comunistas.

O contexto de “fermentação” política no meio militar a partir das décadas de 1920 e

1930 foi lembrado pela Constituição de 1937, proibindo o voto do militar na ativa e, do

mesmo modo, a Constituição de 1946, que mesmo permeada de ambiguidades deu

continuidade aos privilégios dos oficiais. Tal aspecto em benefício dos oficiais foi fator

preponderante para a necessidade de participação política dos militares subalternos. As

dificuldades de promoção, a alimentação inadequada, os salários baixos e o militarismo

exacerbado eram comuns na carreira militar, ao ponto de impedir que os praças chegassem à

patente de oficial.

A história oral e a memória contribuem de maneira salutar para desvendar o interior da

caserna, bem como os embates entre as diferentes patentes nos acontecimentos do golpe civil-

militar em 1964. A relevância da memória, como afirma Paul Ricoeur, é “(...) a palavra viva da

testemunha, transmutada em escrita, se funde na massa dos documentos de arquivos que

dependem de um novo paradigma, o paradigma “indiciário”, que engloba os rastros de toda

natureza”. (RICOEUR, 2007: 504) Com isso, Memória e História se coadunam na elucidação e

problematizações de fatos ainda pouco abordados, como é o caso dos militares na busca por

direitos e na defesa da democracia. A importância da memória pode ser esboçada nos relatos

3

do militar anistiado Francisco Aélio de Almeida Monteiro permitindo entender as razões

desencantado com a carreira militar:

Aí desisti de ser oficial e queria me formar e ser professor, embora o salário de

sargento fosse dez vezes melhor que o de professor. (...) Eu comecei a tomar

consciência das injustiças que eu era vítima. O sargento para você ter uma ideia o

regulamento... ele era um cagão, tinha medo do oficial. Era pra ter medo. (...)

Quanto mais antigo você ficava [na carreira militar] mais você dependia daquele

emprego e se um oficial cismasse com você e desse um conceito baixo não era

reengajado e você era dispensado sem receber um tostão.1

Francisco Aélio menciona as estratégias presente na carreira militar no sentido de

manter os inferiores hierárquicos dependentes e submissos aos suboficiais, bem como o

funcionamento da hierarquia militar, as consequências ao sargento, cabo e soldado que não

cumprirem os mandamentos das Forças Armadas.

Anos depois, em 1962, Francisco Aélio foi professor de Geografia e História e um dos

personagens ativos nas discussões sobre a estabilidade na carreira militar, a participação no

processo eleitoral e contra a ditadura. Segundo o militar essas discussões precisavam ser

fomentadas na época, no sentido de unir os sargentos.

Outro militar que presenciou esses acontecimentos foi o sargento Francisco Gomes

Soares que chegou a ser presidente e secretário do Centro Liceal Estudantil Cearense (CLEC),

do Liceu do Ceará, entre 1963 e 1964. O sargento nasceu em Fortaleza e ingressou na

Aeronáutica em 1956 ainda com 18 anos. No início dos anos 1960 era estudante do Liceu,

período que os estudantes “(...) estavam entre os mais ativos da época”, afirma o inquérito

instaurado na Base Aérea de Fortaleza. (FARIAS, 2007: 48) Levando em conta a condição de

militar e a sua atuação no movimento estudantil pode-se dizer que era uma demonstração de

coragem, pois, na época, esse tipo de atividade era condenada pelas Forças Armadas.2

1 Entrevista realizada com o militar anistiado Francisco Aélio Almeida Monteiro em 20 de dezembro de 2013 na

sua residência, em Fortaleza. 2 BNM; Processo 164, p.208.

4

Além desse tipo de participação, havia também entre os sargentos o envolvimento em

entidades que representavam uma arregimentação política e de força entre os membros da

categoria, como o Clube dos Sargento e a Casa do Sargento. Essas organizações foram

reforçadas nos anos 1960, período em que João Goulart assumiu o poder e passou a apoiar a

causa dos sargentos.

O sargento anistiado Edson Gereba Farias sintetizou em sua memória o que os colegas

de categoria vivenciaram na época:

Naquele tempo, os sargentos começaram a ter visões políticas (...). Geralmente, a

gente participava de reuniões sobre o nosso direito, nós apoiávamos o Garcia Filho3.

Eu assisti uma reunião, eu me sentia engajado, sempre achei que quem sabe mais

tem que pensar nos mais fracos, sempre me condoeu a situação do Brasil. Eu sempre

gostei de ler. Lia coisas sobre a Petrobras (...). Lia as atividades do Arraes, das ligas

[camponesas] e achava mais do que justo a reforma dos lucros, as reformas de base.

Nunca fui de Partido.4

A entrevista do militar expressa uma preocupação com as demandas populares da

época e o nacionalismo presente em parte dos sargentos. Nos quartéis cearenses, desde 1962,

os sargentos participavam das discussões políticas relacionadas aos interesses da categoria,

evidenciando a consciência política sobre a época. O Inquérito Policial Militar (IPM),

intitulado Processo 164, instaurado para apurar o “Movimento dos Sargentos”, apresenta

aspectos elucidativos, mesmo estando permeado de contradições, permitindo reflexões e

3 Antônio Garcia Filho (1926- 1999) foi líder do Comando Nacional dos Sargentos e escolhido, em 1962, para

representar a categoria na Câmara Federal. Apoiado pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) teve sua

candidatura vetada pelo Tribunal Eleitoral, mas conseguiu se candidatar mediante mandado de segurança,

participando assim do pleito de outubro de 1962. O militar foi o único sargento eleito e empossado numa cadeira

legislativa, participou da luta de seus colegas de farda para garantirem os mandatos dos demais sargentos eleitos

e que tinham sido cassados pelos tribunais regionais eleitorais. Após a sua vitória Garcia Filho objetivou

arregimentar e fortalecer a categoria dos sargentos em diferentes estados brasileiros a partir de visitas em

diferentes unidades e Clubes dos Sargentos. Com o início do golpe, em 1964, teve seu mandato cassado e seus

direitos políticos suspensos por dez anos com base no Ato Institucional nº 1 (AI-1). Disponível em:

http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx>. Acesso em: 23 abr. 2017. 4 Entrevista realizada com o militar anistiado Edson Gereba Farias em 4 de setembro de 2014 na sua residência

no município de Guarulhos, São Paulo.

5

análises sobre as formas e maneiras de atuação dos golpistas, como será discutido nos tópicos

seguintes.5

História e Política no movimento dos sargentos da Base Aérea de Fortaleza

Durante o inquérito do sargento Francisco Aélio de Almeida Monteiro, o militar

afirmou, em outubro de 1962, que os sargentos da Base receberam convite do Exército para

uma reunião no Clube General Sampaio. A proposta era discutir a elegibilidade dos Sargentos

e a organização de uma comissão de três sargentos de cada Unidade dos quartéis cearenses

para que fossem ao Rio de Janeiro se familiarizar com as discussões sobre a participação dos

sargentos no processo eleitoral.

O debate demonstra as relações dos sargentos da Base Aérea de Fortaleza com a

categoria do Exército. As aproximações entre os sargentos das duas armas objetivavam

participação no processo eleitoral, visando “engajamentos” políticos em prol dos colegas

sargentos.

As discussões não se limitavam aos sargentos da Aeronáutica cearense, havia a

participação dos colegas do Exército, do Corpo de Bombeiros, da Polícia Militar e da

Marinha. O envolvimento no processo eleitoral exigia união entre os sargentos de diferentes

armas, objetivando força política no processo eleitoral. Essa aproximação e engajamento era

relevante aos sargentos na década de 1960, principalmente pelas perseguições sofridas por

parte do alto escalão das Forças Armadas. (PARUCKER, 2009: 58)

A maioria dos oficiais desaprovava os objetivos políticos da categoria dos sargentos

no processo eleitoral, em razão do destaque na sociedade e do apoio político que passavam a

receber dos demais praças, ou seja, dos cabos e dos soldados. Dessa forma, os oficiais temiam

5 A dissertação trabalha com os documentos do Arquivo Brasil Nunca Mais, especificamente o Processo 164 que

constitui o Inquérito instaurado para “investigar” os sargentos da Base Aérea de Fortaleza.

6

perder autoridade no corpo da tropa, em virtude do embate de poder travado com os

subordinados diante das conquistas políticas dos sargentos.

Confrontando os documentos do Arquivo “Brasil Nunca Mais” e as notícias impressas

da época, denotam-se relações entre as entidades cearenses do Clube General Sampaio

(Exército) e o Ícaro Clube (Aeronáutica). Esses envolvimentos tinham objetivos políticos,

gerando esclarecimento da categoria.

Em entrevista, Francisco Aélio revelou que, na época, a “(...) comissão tinha uma certa

liderança e planejava eleger vereador, deputado estadual e deputado federal.”6 No entanto,

não era um processo fácil, ao ponto dos planos iniciais não seguirem adiante. Além disso, ao

militar era proibido fazer política nos quartéis. Contudo, a configuração histórica da década de

1960 levava oficiais, suboficiais e praças a participarem politicamente.

Apesar de não afrontarem diretamente a disciplina militar, a consciência dos sargentos

acerca do processo político vivido e as condições em que viviam fomentou na categoria a

organização de entidades, reuniões, atividades e debates em escala nacional nos anos 1960,

em função de uma longa trajetória de abusos nas Forças Armadas. A memória dos militares

Gereba Farias e Francisco Aélio evidenciam o quanto os sargentos estavam organizados e em

consonância com o chão histórico da época. Mesmo a cultura militar imposta pela unidade

militar objetivando uma instituição total para disciplinar o corpo da tropa, os acontecimentos

do período evidenciam um momento propício ao questionamento da opressora carreira militar

e um posicionamento histórico dos praças nos quarteis brasileiros. (GOFFMAN, 1975)

A notícia do início do golpe veiculada durante o dia 31 de março estava permeada de

indecisões. João Goulart confiava no “dispositivo militar”, mas foi informado do apoio norte-

americano aos golpistas. Em função da ditadura que se iniciava, os sargentos da Base Aérea

de Fortaleza decidiram demonstrar, enquanto categoria, um posicionamento contrário ao

golpe em curso.

6 Entrevista realizada com o militar anistiado Francisco Aélio Almeida Monteiro em 20 de dezembro de 2013 na

sua residência, em Fortaleza.

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Os sargentos da Aeronáutica cearense em defesa da democracia

No dia 1 de abril, às 19 horas, no Cassino dos Subtenentes e Sargentos, houve uma

manifestação nunca vista antes na Aeronáutica cearense. Um dos sargentos naquela noite

afirmou categoricamente: “Nós vamos ao comando. Precisamos saber de que lado está”.7

O ato dos sargentos foi interpretado pelos oficiais como “motim”, “rebelião” e

“subversão”. A proteção da democracia pelos sargentos pode ser evidenciada em uma

memória comum e um posicionamento que esteve presente em outros quartéis brasileiros. O

sargento cearense Jamiro Dias Oliveira, que servia na Vila Militar, Rio de Janeiro,

exemplifica a opinião política de muitos membros da categoria naquele contexto.

Lá o comandante praticamente pediu uma definição de quem estava contra ou a

favor. Eu e mais uma centena demos um passo em frente dizendo que nós estávamos

do lado do Presidente da República. Pronto, foi o suficiente para ele mandar prender

todo mundo, abrir um inquérito, o IPM, que era o Inquérito Policial Militar e antes

de concluir esse inquérito ele mandou todo mundo se apresentar ao Ministério da

Guerra, porque não queria nenhum subversivo lá, daí todo mundo se apresentou no

Ministério da Guerra e de lá espalharam... a mim coube ir para Salvador.8

A partir daí o militar foi preso e transferido para outra unidade e, em seguida, expulso

juntamente com os demais colegas que se posicionaram a favor da manutenção da

democracia. O testemunho do militar anistiado apresenta a forma como estavam agindo os

comandantes militares, assim, diante de qualquer discordância com a ditadura as prisões

foram realizadas para perseguir os militares dissidentes com o golpe.

Na Aeronáutica cearense, a indecisão do comandante da Unidade fomentou entre os

sargentos a coragem em demonstrar a posição da categoria diante da ditadura civil-militar.

7 BNM; Processo 164, p.35. 8 Entrevista realizada com o militar anistiado Exército Jamiro Dias Oliveira em 28 de junho de 2012 nas

dependências do Espaço Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza.

8

Edson Gereba Farias, Presidente do Clube dos Sargentos e Suboficias, após a reunião

realizada pela categoria ficou encarregado de expressar o desacordo com o golpe. Por isso, a

maioria dos sargentos marcharem em direção a sede do comandante da Base Aérea de

Fortaleza e Farias expressou o pensamento da categoria ao comandante interino Ivan Teixeira

Leite:

Havíamos tido uma reunião (...) onde ficou resolvido que os sargentos iriam ao

Comando da Base pedir informações a respeito da situação do país, pois todos

estavam muito apreensivos; que iriam disciplinados e em ordem e que a ida dos

sargentos ao Comando não seria uma insinuação; que os suboficiais e sargentos não

pretendiam apoiar nenhum movimento golpista, mas que eram constitucionalistas e

patriotas verde-amarelo; que iriam ao Comando sem nenhuma intenção de danos

materiais ou de vida; que eram patriotas de verdade.9

Conforme ficou combinado no Cassino, Edson Farias apresentou o posicionamento

dos sargentos diante dos acontecimentos dos últimos dias, frisando que a tropa não objetivava

“(...) nenhuma intenção de danos materiais ou de vida”.

Segundo consta na documentação e conforme verificou-se em algumas entrevistas

realizadas, muitos sargentos não notaram a aproximação de um grupo armado que objetivava

intimidar e cercar as tropas de sargentos.10 Apesar disso, houve aqueles que perceberam tal

pressão, por isso um sargento exclamou: “Provocação!” Em razão dessa afronta, um oficial

tentou identificar o autor da indignação, mas não conseguiu encontrá-lo e exclamou: “É um

covarde que se esconde no anonimato da multidão”.11 Como se evidencia nos relatos do

processo e nas memórias, os fatos apresentam embates históricos frente aos oficiais que aos

poucos avançavam no regime de exceção, no entanto encontraram pelo caminhos oposição

nas unidades militares. O posicionamento dos sargentos naquela noite não foi uma decisão

contrária ao dever do militar, mas sim a defesa da democracia e do juramento realizado por

9BNM; Processo 164, pp.76, 82, 90, 179. 10 Ibid., pp.676, 677. 11 Ibid., pp.76,109, 110, 111.

9

todo militar ao ingressar na carreira, ou seja, dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria, sua

integridade e defende-la inclusive com o sacrifício da própria vida.

Esse tipo de juramento realizado pelos sargentos Jamiro Oliveira, Edson Farias e

muitos outros legitimaram suas ações na proteção da democracia que estava ameaçada após o

golpe. O comandante Ivan Teixeira Leite mostrou-se calmo e complacente com as

preocupações dos sargentos e afirmou que a situação política e militar não era motivo para

desespero, por isso, deu ordem aos sargentos para irem assistir a um filme. Entretanto, essa

compreensão do coronel não era uma realidade, a unidade de prontidão passou a preocupar-se

com as possíveis reações dos praças, sendo necessário vigiá-los e coagi-los diante da

possibilidade de uma nova reivindicação.

Isso pode ser exemplificado nos primeiros dias do golpe quando alguns sargentos

foram presos e transferidos para o Rio de Janeiro. Os testemunhos dos sargentos revelam as

condições em que os indiciados eram submetidos, o modo como ocorreram as perseguições e

os fatos silenciadas no Processo 164. Nesse debate: “A memória é um bem comum, um dever

(...) e uma necessidade jurídica, moral e política.” (SARLO, 2007: 47) Sobretudo quando

muitos aspectos históricos acerca da ditadura necessitam ser esclarecidos, um deles foi a

participação dos sargentos como opositores do golpe e uma das primeiras vítimas ao

defenderam a bandeira da legalidade constitucional e as autoridades constituídas.

Expulsão, Anistia e o recomeço da vida civil

Os acontecimentos surgidos nas casernas não eram esperados pelo alto escalão militar,

apesar deles acompanharem os envolvimentos e articulações dos militares mais politizados

nas unidades brasileiras. Nesse contexto de opressão e legitimação das prisões pela ditadura

em curso, os oficiais responsáveis pelos inquéritos instaurados incluíram os militares com

quem tinham desavenças e outros suspeitos de envolvimento político e também aqueles que

apresentavam “(...) comportamento pouco másculo”.12 Objetivando afastar da vida militar

12 Ibid., p.192.

10

padrões de comportamento inadequados com a carreira militar, com isso, militares foram

expulsos pela sua opção sexual e outros defenderem os interesses políticos da categoria dos

sargentos. Os oficiais temiam perder o poder sobre os subordinados, retirando das fileiras das

Forças Armadas todos os praças que ameaçavam a cadeia de comando.

Antes da Sindicância ser iniciada, em 13 de abril de 1964, sargentos estavam sendo

presos e transferidos da Base Aérea de Fortaleza. Tais constrangimentos e prisões não foram

relatadas nos documentos do processo, demonstrando o caráter revelador da fonte oral. Por

isso, o testemunho oral é elucidativo e esclarecedor, sobretudo em aspectos omitidos pelas

fontes oficiais elaboradas pelos órgãos repressores.

As consequências geradas pelo “Movimento dos Sargentos” foram irremediáveis

diante de um regime repressor, cujos agentes da ditadura tinham a função na Aeronáutica

cearense de imputar aspectos políticos e “subversivos” para comprometer os militares que

defendiam a legalidade constitucional. Os oficiais da Base Aérea de Fortaleza, na ânsia de

punir, produziram na Sindicância e no IPM uma documentação carregada de contradições e

aspectos subjetivos que contribuíram para o indiciamento de oficiais, suboficiais e praças.

Dessa forma, aumentaram os números de acusados, ao ponto de todos os envolvidos serem

enquadrados nos Atos Institucionais e nos decretos administrativos elaborados pela ditadura

durante os primeiros dias de abril de 1964.

Nesse sentido, os propósitos dos oficiais da Aeronáutica alinhavam-se ao regime

repressor, cuja prática processual era vincular os indiciados às diferentes tendências políticas

da época. Isso pode ser evidenciado pela permanência dos mesmos oficiais na Sindicância, no

IPM e no Conselho Permanente de Justiça junto à Auditoria da 10ª RM.

A habilidade dos advogados de defesa, diante de um processo eivado de contradições,

permitiu demonstrar que naquela noite os sargentos agiram democraticamente. Em outubro de

1965 durante o final do processo julgou-se: “(...) improcedente a denúncia oferecida pela

Promotoria Militar contra os acusados”.13 Apesar da absolvição pela Auditoria da 10ª RM, os

13 Ibid., pp.947, 948.

11

praças e oficiais não conseguiram retornar à vida militar. Aos vinte e seis militares afastados14

havia necessidade de recomeçar a vida civil e adequarem-se aos empregos possíveis, pois suas

especialidades estavam atreladas às necessidades das carreiras que haviam escolhido para

ingressar na Força Aérea Brasileira. Os militares expulsos e licenciados recorreram ao

trabalho no comércio como forma imediata de sobrevivência, havendo entre eles uma rede de

solidariedade e ajuda mútua. Alguns não conseguiram trabalho em função da continuidade das

perseguições, restando uma migração forçada para outras regiões do Brasil.

A Anistia de 1979 não beneficiou os militares que continuaram cassados, restando aos

membros da categoria organizaram-se no início dos anos 1980. Efetivamente, a anistia aos

militares de baixa patente ocorreu somente em 2002, quando foram reparados judicialmente e

alguns reincorporados as Forças Armadas.

Referências Bibliográficas

COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Com rancor e com afeto: rebeliões militares na década de

30. (Trabalho apresentado à Oitava Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação

em Ciências Sociais-Anpocs, Águas de São Paulo, 1984).

FARIAS, Airton de. Além das armas: guerrilheiros de esquerda no Ceará durante a ditadura

militar (1968-1972). Fortaleza: Livro Técnico, 2007.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva,

1975.

14 Clovis Holanda de Vasconcelos, Darcy Gonçalves Villas Bôas, Edson Gereba Farias, Ernande Correia

Ferreira, Eródoto José Rodrigues, Ezequias Esteves de Morais, Francisco Aélio Almeida Monteiro, Francisco

das Chagas Feitosa Feijó, Francisco Gomes Soares, Gustavo Rodrigues, Jamil Motta Vasconcelos, João da

Silveira Leite, João Vicente Rodrigues, João Xerez Frota, José Alencar Paiva, José Antônio Cavalcante, José

Arribamar de Oliveira Souza, José Tabosa, Leônidas Saraiva de Oliveira, Luiz Gonzaga R. Bandeira, Nilton

Bezerra da Silva, Pedro Laborne, Reino Pecala Rae, Salviano de Souza Leite, Paulo Fernandes, Rubens Gomes

Colares.

12

PARUNKER, Paulo Eduardo Castello. Praças em pé de Guerra: o movimento político dos

subalternos militares no Brasil (1961-1964) e a Revolta dos Sargentos de Brasília. São Paulo:

Editora Expressão Popular, 2009.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas (SP): Editora da

Unicamp, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:

Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.