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História não é Ciência? por Marcos André Pizzolatto Sobre o autor* Na atividade do historiador se imbricam problemas que, em essência, questionam a própria cientificidade da prática historiográfica. Comumente a subjetividade do pesquisador, a utilidade do conhecimento histórico, a fugacidade do acontecimento e o limitado conceito de ciência constituem impedimentos à classificação da História como ciência, restando-lhe ser reduzida, na visão de determinados críticos, a mero discurso literário. O presente artigo não pretende fazer apologia a História-ciência, antes sim uma elucidação dos argumentos da promotoria e da defesa em relação ao réu: A historiografia. Comecemos pela pertinente definição de História que já carrega em si o cerne da discussão. A palavra história vem do grego ίστоρία, e era usada pelos jônios no século VI a.C. para significar a busca de conhecimentos no sentido mais amplo. Significa indagação, investigação e não narrativa. Não foi senão dois séculos mais tarde que o historikos, o recitador de estórias, substituiu o historeon, o que procura o conhecimento. Como nos esclarece Shotwell (1967, p.34):

História Não é Ciência

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Uma linha de pesquisa sobre historia e seus conceitos.

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História não é Ciência?

por Marcos André Pizzolatto

Sobre o autor*

 

Na atividade do historiador se imbricam problemas que, em

essência, questionam a própria cientificidade da prática historiográfica. Comumente

a subjetividade do pesquisador, a utilidade do conhecimento histórico, a fugacidade

do acontecimento e o limitado conceito de ciência constituem impedimentos à

classificação da História como ciência, restando-lhe ser reduzida, na visão de

determinados críticos, a mero discurso literário. O presente artigo não pretende

fazer apologia a História-ciência, antes sim uma elucidação dos argumentos da

promotoria e da defesa em relação ao réu: A historiografia.

Comecemos pela pertinente definição de História que já carrega

em si o cerne da discussão. A palavra história  vem do grego ίστоρία, e era usada

pelos jônios no século VI a.C. para significar a busca de conhecimentos no sentido

mais amplo. Significa indagação, investigação e não narrativa. Não foi senão dois

séculos mais tarde que o historikos, o recitador de estórias, substituiu o historeon, o

que procura o conhecimento. Como nos esclarece Shotwell (1967, p.34):

 

"A história começou como um ramo da pesquisa

científica — quase a mesma coisa a que os atenienses chamaram

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mais tarde de Filosofia. O próprio Heródoto foi tanto explorador

científico como recitador de narrativas, e a investigação de toda sua

vida foi historie no seu modo jônico de falar."

 

Assim para Shotwell (1967, p.34), “a história compreende duas

operações distintas, uma das quais, a investigação, está no campo da ciência,

enquanto a outra, a apresentação literária, está no campo da arte”.

A história moderna se propõe a responder duas questões básicas

“o que aconteceu” e “por que aconteceu?”. Para a primeira pergunta basta que se

reúnam os registros, as evidências, enfim, as provas objetivas. Já no segundo

questionamento nos deparamos com o fato de que “cada história é, em resumo,

uma explicação, e cada explicação é uma história”. Assim, analogicamente, em

nossas vidas cotidianas cada incidente é uma causa, e cada causa um incidente em

nossas biografias (SHOTWELL, 1967, p.8). O problema é que a história não é mera

sucessão de eventos, conforme Shotwell (1967, p.8-9), “é manifestação de vida e

por trás de cada acontecimento existe um esforço da mente e da vontade”.

Shotwell considera impossível, apesar dos esforços conjuntos das

disciplinas, chegar às causas finais ou primeiras. Somente Teólogos e Metafísicos se

“aventuram a tratar das causas e dos objetivos finais”, pois o “infinito está além da

experiência, e a experiência é o domínio da história”. Para o autor a função da

história é saber mais sobre as relações entre homens, situações e acontecimentos

(1967, p.9).

  

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A Posição do Historiador e o Problema da Subjetividade

 

A respeito do papel interpretativo do pesquisador vale citar Jürgen

Habermas para quem existe uma distinção entre “aqueles que dizem simplesmente

como as coisas se passam (tal é, entre outras, a atitude do cientista) com a atitude

performativa daqueles que procuram compreender o que lhes é dito (tal é, entre

outras, a atitude dos intérpretes)” (HABERMAS, 1989, P.42). Para Habermas (1989,

P.44) o fato é que “compreender o que é dito exige participação e não mera

observação”, em outras palavras, o Historiador enquanto interprete da realidade,

não é imparcial, pois “juízos de valor se insinuam nos discurso que constata fatos”

(HABERMAS, 1989, P. 44). Ou conforme Foucault (2004, P.30), “os historiadores

procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar

de onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam — o

incontrolável de sua paixão”. Habermas conclui ser impossível a construção de

linguagens axiologicamente neutras no domínio das ciências sociais:

 

"Em suma, toda ciência que admite as objetivações

de significado como parte de seu domínio de objetos tem que se

ocupar das conseqüências metodológicas do papel de participante

assumido pelo intérprete, que não “dá” significado às coisas

observadas, mas que tem, sim, que explicitar o significado “dado” de

objetivações que só podem ser compreendidas a partir de processos

de comunicação. Essas conseqüências ameaçam justamente aquela

independência do contexto e aquela neutralidade axiológica que

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parecem ser necessárias para a objetividade do saber teórico

(HABERMAS, 1989, p.44)."

 

Habermas (1989, p.45) vai além afirmando que os cientistas

sociais “renunciam tanto a pretensão de objetividade quanto a pretensão de um

saber explicativo”, conseqüentemente têm-se uma espécie de relativismo que

significa “que as distintas abordagens e orientações refletem unicamente distintas

orientações axiológicas”.

Sobre a pretensa imparcialidade do pesquisador, Beard (Apud

DRAY, 1969, p.37) afirma que “sejam quais forem os atos de purificação que um

historiador possa praticar, ele continuará humano, uma criatura de certo lugar,

tempo, circunstância, interesses, predileções, cultura”.

Conforme Ranke (Apud ELIAS, 2001, p.30), existe uma

sobreposição do contexto sobre o objeto, pois “a história está sempre sendo

reescrita... cada época, com sua orientação principal, apropria-se dela, impondo-lhe

seus pensamentos. Em seguida, o louvor e a censura são distribuídos. Assim, isso

vai até o ponto em que não mais é possível reconhecer a própria coisa . Nada mais

se pode fazer, neste caso, a não ser voltar a informação inicial. Mas será que a

estudariam sem o impulso do presente?... será possível uma história inteiramente

verdadeira.”

O problema, de acordo com Norbert Elias, não repousa sobre o

objeto pesquisado, mas sim sobre o resultado da pesquisa. “Aquilo sobre o que

escrevemos, o objeto de pesquisa, não é nem verdadeiro nem falso; apenas o que

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se escreve a respeito dele, o resultado da pesquisa pode ser , verdadeiro ou falso”.

O autor acredita que as fontes originais de informação, são a única coisa confiável

“tudo o mais que os pesquisadores da história tem a oferecer são, por assim dizer,

interpretações que se diferenciam no decorrer das diferentes gerações” (ELIAS,

2001, p.30-31).

Já para Ranke (Apud ELIAS, 2001, p.31) a raiz do problema está na

interpretação dada pelo pesquisador. O fato de o historiador não se restringir a

relatar o que está nos documentos, pois o historiador “avalia o que encontra;

distribui luz e sombra de acordo com critérios próprios”. Se concordarmos que

“história e interpretação são essencialmente uma coisa só, se entendermos por

História tudo o que tem acontecido, incluindo matéria e mente, enquanto estas se

relacionem com a ação” (SHOTWELL, 1967, p.11), e se aceitarmos que a

interpretação compromete o resultado da pesquisa, a História encontra-se diante de

mais uma dificuldade.

Para William H. Dray (1969, p.39-41), entretanto, independente da

intenção do pesquisador em atribuir valor, “a própria matéria da História está

carregada de valor” e o historiador está “condenado, queira ou não queira, a

valorar a matéria de que fala”. Em verdade, quando lemos um texto Histórico e

encontramos expressões como vitória, batalha sangrenta, nazismo ou guerracada

um de nós constrói mentalmente um arcabouço significativo que dá sentido às

expressões. Seria possível escrever, por exemplo, sobre religião sem emitir juízos

de valor? Ou então contar a História do medo ou da piedade sem que se

tais objetos tenham para o pesquisador algum significado? Enfim, “pode o

historiador escrever sobre seja lá o que for se não tiver condições para reconhecer-

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lhe a natureza; e como poderá ele apreender estes objetos de estudo sem atribuir-

lhes valor”?

Os objetivistas dirão que o historiador não deve julgar e sim

apenas compreender os acontecimentos. Por que então se privilegiam as

atrocidades, as guerras, a história das religiões e as revoltas político-sociais?

Justamente por constituírem-se em acontecimentos de grande carga valorativa.

Conforme conclui Dray (1969, p.42), “é fácil perceber porque se considera que a

valoração está logicamente implícita na matéria de que se ocupa o historiador”.

A crítica de Norbert Elias (2001, p.31-32), por sua vez, exemplifica

que o papel do historiador é o mesmo do homem que ergue sua casa a partir de

ruínas de épocas anteriores, fazendo-a no estilo de sua própria época. “Cada

geração seleciona ruínas do passado e, juntando-as de acordo com seus próprios

ideais e valores, faz delas casas características de seu tempo.”

É preciso concordar, no entanto, que excessiva confiança é

depositada sobre o papel interpretativo do historiador ao que Boutry chama de

“hipertrofia do historiador” (1998, p.66-69).

Segundo Daniel Milo “o espaço antes ocupado pelo sujeito histórico

parece agora ocupado pelo sujeito historiador” (Apud BOUTRY, 1998, p.66) que

pode “dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas:o leitor

confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de

eventos” (VEYNE, 1995, p.18-19).

Para Philippe Boutry (1998 ,p.66) esta elevação de status do

pesquisador é o primeiro sinal de anomalia epistemológica da ciência histórica:

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"A posição elevada conferida ao historiador na

produção de saber constitui o primeiro e sem dúvida o principal

sintoma da crise intelectual que o manifesto da história experimental

traz a tona."

 

Segundo Daniel Milo “Experimentar é violentar o objeto” (Apud

BOUTRY, 1998, p.66).

Para Hartog (1998, p.) “o bom historiador seria, justamente, o

homem que se apagasse diante dela (a história): não aquele que, a exemplo de

Michelet, leva-a a falar, sobretudo nos seus silêncios, mas aquele que a deixa falar,

simplesmente”.

Nas palavras de Aron (Apud BOUTRY 1998, p.68), “se alguém

estima, como o faz meu colega e amigo Michel Foucault, que é preciso, de uma vez

por todas, se livrar da mitologia do verdadeiro e do falso, o lógico imediatamente

depõe suas armas” levando a emergência crescente do sujeito-historiador que

emite discurso.

A postura relativista do historiador “repousa na idéia de que

existem, segundo épocas ou segmentos variados, esquemas conceptuais ou de

pensamento, intraduzíveis no idioma de outro esquema, e que, por conseguinte,

não há referente único nos discursos em questão” (ENGEL, 1998, p.115). Esta

posição, além de criticada pela filosofia contemporânea, desconsidera que, embora

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de forma diferente, os discursos podem apontar para o mesmo referente. Engel

(1998, p.115) ilustra tal postura com um questionamento bastante didático:

“Quando Aristóteles falava da lua, designa por acaso algum astro diferente daquele

que nós falamos hoje?”

 

História : Uma Disciplina Humanista

 

A operação histórica consiste, após ter reunido, criticado e

dissecado o conjunto dos documentos disponíveis, em estabelecer encadeamentos

entre os diversos componentes do objeto estudado — de acordo com um método

adaptado a cada caso —e a construir um discurso atribuindo-lhes coerência e

sentido (BÉDARIDA, 1998, p.149).

Aliás, quando recorremos a um expert o que lhe pedimos senão

que “emita sua opinião sobre a base de dados objetiva, única fiadora de sua

credibilidade?” (BÉDARIDA, 1998, p.148).

Bédarida (1998, p.150) alerta para o fato de que ao analisarmos

eventos de grande porte e ele cita como exemplo o holocausto Judeu, “a história

deve ser o tão objetiva quanto possível — ainda que se trate neste caso de um voto

irrealizável”.

O que se procura primordialmente através do discurso, e

afortiori com a expertise do historiador,  são os sinais por meio dos quais uma

sociedade se pensa, se exprime e se historiciza. Mas assim como objetividade não

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se confunde com indiferença, a historicização não se confunde com o relativismo

absoluto à  moda pós-moderna (Bédarida, 1998, p.151).

Bédarida (1998, p.151) afirma ainda que embora os conceitos base

do procedimento histórico como memória, testemunho, liberdade e representações,

sejam, em essência, relativos e parciais, “essas verdades contingentes e

instrumentais perturbam, sem dúvida, uma história frágil e falível, mas que se quer

acesso à verdade e busca de sentido”. O autor questiona se diante da crise da

objetividade histórica “um dos remédios não estaria numa reabilitação elevada e

firme do princípio de verdade?” (1998, p.151).

Devemos considerar, no entanto, como nos conta Martinez (2001,

p.41-42) que embora a “proposição genuína mostra e diz algo, tem sentido e

condições de verdade”, somente “existe um tipo peculiar de proposições” cuja

verdade e falsidade conhecemos sem necessidade de verificação porque “são

independentes da realidade”: A “tautologia é incondicionalmente verdadeira e a

contradição incondicionalmente falsa”. O que torna tais proposições “carentes de

sentido”, mas ainda assim, “não  são (...) contra-sensos”. Certamente a

historiografia não está baseada em simples tautologias e contradições.

Então, na medida em que toda busca de verdade está ligada a

corpos de valores, existe uma conexão óbvia entre história e ética. Tanto mais

quanto o objeto histórico está fundamentalmente ligado à vida humana, seu

precípuo objeto histórico. Como questiona Bédarida (1998, p.151) “como poderia o

discurso histórico, observando o rigor e a sobriedade de praxe, permanecer

impessoal e gélido? Queira-se ou não, a história é, e deve continuar sendo, uma

disciplina humanista”.

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Como nos afirma Hours (1979, p.87):

 

 "Por outras palavras, a história, levada pelo

movimento geral de todas as disciplinas humanas, reconhece a

originalidade irredutível do homem em relação ao mundo que o

rodeia e a impossibilidade de o compreender doutra forma a não ser

de dentro, por esforço de imaginação e de sensibilidade. Fazer a

história duma época é, em suma, pôr-se no lugar daqueles que a

viveram."

 

A História como Ciência

 

De acordo com Paul Veyne (1995, p.18) “todo leitor dotado de

espírito crítico e para maior parte dos profissionais, um livro de História não é, na

realidade, o que aparenta ser, assim ele não trata do Império Romano, mas daquilo

que ainda podemos saber sobre esse império”.

Ainda de acordo com o autor o debate em tornou da cientificidade

histórica não é em vão, pois “ciência não é uma palavra sagrada, mas um termo

preciso, e a experiência mostra que a indiferença pela discussão sobre termos é,

frequentemente acompanhada por uma confusão de idéias sobre a própria coisa”.

No entanto, Veyne é incisivo ao afirmar que a história “não tem um método” que

possa servir para caracterizá-la como ciência, além de que “não explica coisa

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alguma”, os historiadores “narram fatos reais que têm o homem como autor; a

história é um romance real” (VEYNE, 1995, p.7-8).

Para o positivista Burckhardt (Apud LOWITH, 1991, p.33), a história

“não foi uma ciência objetiva respeitante a fatos neutros, mas o registro de fatos

que uma época considera extraordinária noutra”.

Marrou (Apud HOURS, 1979, p.71) também afirma que “não existe

uma ciência histórica, mas uma série de pontos de vista divergentes e irredutíveis

sobre o passado”. É forçoso admitir, como nos diz Veyne (1995, p.25), que o objeto

histórico “escapa por entre os dedos” por sua subjetividade e que seu historicismo

é a “projeção de nossos valores e a resposta às perguntas que achamos por bem

fazer-lhe”.

Em verdade, o que está em debate é o próprio conceito de ciência

galileana, seu programa e seu ideal, como ilustremente definido por Castoriadis

(1997, p.202):

 

"O programa de um saber constituindo seu objeto

como processo em si, independente do sujeito, reconhecível num

referencial espaço-temporal válido para todos e privado de mistério,

determinável em categorias indiscutíveis e unívocas (identidade,

substância, causalidade), exprimível, enfim, numa linguagem

matemática de poder ilimitado (...)"

 

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Castoriadis (1997, p.249) afirma ainda que a separação das

disciplinas ditas antropológicas torna-se um problema pois a própria “unidade do

objeto desafia imediatamente a dissecação científica” e ainda devemos nos

perguntar “se a distinção que fazemos entre disciplinas diferentes tem sentido para

sociedades outras que não a nossa”.

Dada a dimensão desconcertante dos argumentos detratores

parece-nos, conforme Lowith (1991, p.193), que “o problema da história não tem

resposta dentro de sua própria perspectiva. Os processos históricos como tal não

evidenciam a menor prova de um sentido total e derradeiro”.

O pragmatismo e certo endeusamento da prática reconhecida

como cientifica alçou às ciências ditas legítimas ou experimetais (química, física,

etc...) ao nível do inquestionável. Segundo Habermas em sua obra Técnica e ciência

como Ideologia (Apud AYRES, 1995), a racionalidade elevou as práticas científicas

ao status de voz  legítima:

 

"Organizou-se toda uma racionalidade que, com

conseqüências práticas de modo algum negligenciáveis, foi

imprimindo às ciências uma forma metódica restrita e exclusivista,

que acabou por se tornar a única reconhecidamente capaz de

produzir um conhecimento objetivo do mundo. Ao mesmo tempo, o

que é mais relevante, esta racionalidade tem feito das ciências

algumas das mais respeitadas vozes na legitimação dos projetos

sociais constitutivos da modernidade."

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Costuma-se, partindo desta pretensa legitimidade, desmerecer a

ciência histórica comparando-a com as demais ciências tradicionais, principalmente

as ditas naturais, como se estas já tivessem alcançado a sabedoria última:

 

"Em Física ou Química ampliamos nossas idéias

relativamente aos fenômenos, observando como eles decorrem,

quais suas afinidades, como se associam ou como reagem. Mas todas

estas propriedades são apenas diferentes aspectos da mesma coisa,

e nosso conhecimento dela é a soma total de nossas análises.

Ninguém pergunta o que é um elemento — exceto em termos de

outros elementos. Seu significado tem mudado, na medida que se

amplia nosso conhecimento, de um montão de lama para um

composto de elementos. (SHOTWELL, 1967, p.10)"

 

Os que negam a cientificidade da História se esquecem que as

ciências não compartilham procedimentos e espaços. Conforme nos

esclareceShotwell (1967, p.10):

 

 "A interpretação de fenômenos físicos, portanto, é a

sua descrição em termos de suas propriedades mesmas. O mesmo

acontece com a História, mas em vez da descrição temos a narrativa.

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Pois a História difere das ciências naturais neste fato fundamental:

enquanto as ciências naturais consideram os fenômenos do ponto de

vista do espaço, a História encara-os do ponto de vista do tempo."

 

Poderíamos inclusive utilizar Bergson para afirmar “que os

processos racionais de nosso intelecto não podem compreender a realidade” e esta

limitação da razão pertenceria a todas as ciências, sem exceção. Obviamente, a

essência desta afirmação de Bergson é que o pensamento não pode compreender a

vida em sua totalidade. “As ciências Matemáticas e Físicas são ciências no mais

completo sentido da palavra”, a vida, no entanto, extrapola as categorias da

compreensão. “As relações de espaço são quantitativas, e com elas o intelecto

pode lidar;” mas o tempo, elemento da ciência Histórica, “fornece mudanças

qualitativas que iludem eternamente o investigador”. Assim, a vida, “tão

completamente ligada ao tempo, escapa assim a explicação, porque está sempre a

se tornar diferente” (Apud SHOTWELL, 1967, p.145). Mais que uma crítica a

arrogância dos cientistas físicos e matemáticos, este parágrafo serve para valorizar

a atividade hercúlea do historiador que se vê diante de um objeto não explícito e

em um constante vir a ser.

Para Fustel de Coulanges (Apud HOURS, 1979, p.60-61) não há

dúvidas sobre a cientificidade da História:

 

"A História, escreve, é uma ciência; ela não imagina,

ela vê...ela consiste como qualquer outra ciência em constatar fatos,

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em analisa-los, em aproximá-los, em descobrir-lhes o

encadeamento...o historiador...procura e atinge os fatos pela

observação minuciosa dos textos como o químico encontra os seus

em experiências cuidadosamente conduzidas."

 

Devemos salientar, no entanto, que assim como o biólogo tem a

célula que vai ao microscópio e o químico tem o tubo de ensaio onde reproduz

isoladamente a experiência, para Fustel a história tinha também seu objeto

definido: “A História faz-se com documentos” (Apud HOURS, 1979, p.61).

Certamente a autoridade de Fustel como defensor da história-ciência fica

comprometida ao ignorar as demais fontes históricas e ele mesmo, na afamada

obra,  Cidade Antiga, antes de ser cientista, “mostra-se primeiramente como

grande letrado” (HOURS, 1979, p.62).

 

O Engano do Fato e da Experimentação

 

Fustel acreditava também que os “fatos existem por eles próprios,

fora de nós e que nada há mais simples do que descrevê-los” (HOURS, 1979, p.62).

Pois é justamente Hours (1979, p.73) quem nos dá a medida da impossibilidade da

história tratar o fato:

 

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"Sabemos hoje que no mundo visto pela História não

existem fatos se nós entendermos por isso uma série de fenômenos

ligados estreitamente uns aos outros na sua sucessão, a ponto de

formar uma unidade inseparável para o nosso espírito e que nós

pudéssemos isolar facilmente pelo pensamento do estado do mundo

no qual se produziram. Talvez tais fatos existam na física onde nós

podemos, com efeitos, discernir os conjuntos dos fenômenos tão bem

ligados que nos é possível reproduzi-los idênticos a eles próprios, não

importa em que momento do tempo e em que o nome de fatos possa

convir a tais reuniões. Não há nada de semelhante e História, na

medida em que ela é para nós o conhecimento do passado humano."

 

Em História não há experimentação, pois “não se pode reproduzir

o acontecimento que se quer estudar porque não se pode isolá-lo de tudo que o

rodeia” e não se pode esperar que o evento se repita para traçar comparações

porque “não há repetição por causa da irreversibilidade da duração, há, pelo

contrário, uma renovação incessante” (HOURS, 1979, p.74).

É novamente Hours (1979, p.90) quem esclarece a dimensão do

trabalho do pesquisador histórico:

 

"Querendo conhecer o passado e não podendo trazê-

lo para a vida, deseja pelo menos ter uma representação dele e quer

que ela seja o mais próxima possível da inacessível realidade. Essa

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representação é um conjunto. Nela vêm tomar lugar e comporem-se,

pouco a pouco, os múltiplos pormenores que lhe trazem as suas

fontes. E é incompleta, evidentemente, porque, dos inúmeros

acontecimentos que num dado momento foram a vida da

humanidade, só uma parte ínfima chega até nós nos documentos de

que dispomos e, todavia, essa parte ínfima excede muitas vezes a

possibilidade que o historiador teria de os conhecer. Ela não pode

reproduzir na sua complexidade a realidade de outrora. Um jornal

diário não consegue, senão com grande esforço, dar-nos uma pálida

idéia da realidade atual e a coleção dos nossos jornais não seria em

nenhum grau essa representação que o historiador procura." 

 

A História não pode, portanto, dar-nos uma explicação do todo,

pois ele não é acessível, mas sim de partes deste todo e tais partes guardariam

traços essenciais, reconhecíveis e, por sua fugacidade, perigosamente singulares:

 

"Há sem dúvida entre situações políticas ou sociais

que o decurso dos acontecimentos nos apresenta numerosas

analogias, mas são sempre parciais ou fugitivas. Nada mais perigoso

que prolongá-las ou generalizá-las e o cuidado que se tenha em

utilizá-las é a grande qualidade dos homens de ação.(HOURS, 1979,

p.111)"

 

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Nas observações de Paul Veyne essa hierarquia dos fatos

estabelecida pela pretensamente pelo historiador é um engano porque os fatos em

si não possuem uma grandeza absoluta:

 

"No interior da clareira que as concepções ou as

convenções de cada época recortam no campo da historicidade, não

existe hierarquia constante entre as províncias (...) Quando muito,

pode-se pensar que certos fatos são mais importantes que outros,

mas mesmo essa importância depende, totalmente, dos critérios

escolhidos por cada historiador e não tem uma grandeza absoluta (...)

permanece a impressão de que a guerra de 1914 é, ainda assim, um

acontecimento mais importante do que o incêndio do Bazar da

Caridade (...) a Guerra é História o resto é notícia de jornal. Isso não

passa de ilusão, que resulta de termos confundindo a série de cada

um desses acontecimentos e a sua dimensão relativa na série

(VEYNE, 1995, p.20)."

 

De fato, se a série ou campo estudado for a História da

Criminalidade, o incêndio no Bazar de Caridade recebe elevada importância, ainda

assim, para a História Geral a Guerra parece ser de suma importância e o incêndio

algo sequer mencionado.

Para Furet o problema é que “em certo sentido, todos os dados

históricos (tirando aqueles que constituem os vestígios da vida material do

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homem), são subjetivos” e ainda porque existem “conceitos que não têm respostas

claras” e mesmo as questões que, em princípio, tem respostas claras, no entanto,

não podem ser resolvidas por falta de dados, “quer pela sua natureza — seja pelo

caráter ambíguo dos indicadores ou pelo fato de estes não serem suscetíveis de

procedimentos de análise rigorosos”. Para o autor a História centra seus resultados

na interpretação do pesquisador que por definição “consiste em ultrapassar o nível

dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade histórica”,

exigindo desta forma dados que nem sempre estão disponíveis e nem forçosamente

claros isso “geralmente acarreta hipóteses não verificadas ou não verificáveis”.

Assim, conforme Furet, diante da utilização de modernos e rigorosos procedimentos

científicos de demonstração, o problema, em verdade, não é saber se a História

pode tornar-se ciência: “dada a indeterminação do seu objeto, a resposta a esta

pergunta é indubitavelmente negativa”. O verdadeiro problema “está em conhecer

os limites no interior dos quais esses procedimentos podem ser úteis a uma

disciplina que fundamentalmente não é cientifica” (FURET, [s.d.], p.94-98).

  

Legitimação do Conhecimento Histórico

 

Poderíamos simplificar o título acima com a célebre introdução de

Marc Bloch em Apologia da História: para que serve a História? Conforme nos

afirma José Carlos Reis (1996 ,p.88) “para a sociedade moderna, um conhecimento

é valido por sua utilidade. Portanto a História, para valer seu investimento, teria

necessidade de servir à previsão e à ação”.

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De que maneira a História pode ajudar os homens a viver melhor?

O simples conhecimento do passado parece inútil, pois o atual não repete o

acontecido.

Para Reis (1996, p.89) a história estabelece um diálogo entre os

homens do passado e os do presente e esta seria a incalculável utilidade do

conhecimento histórico. “Este diálogo entre presente e passado aumenta, no

presente, o número de participantes no debate e das capacidades inventivas, pela

introdução dos homens e das criações passadas”. Portanto, “a História impede que

o atual seja vivido solitária e silenciosamente em estado de amnésia”.

Exceto o acaso, e mesmo ele está sujeito a condições anteriores,

não existem invenções humanas. Todas são frutos de conhecimento acumulado, de

experiências passadas e, no máximo, são revoluções estruturais que, por definição,

também são resultado do acúmulo de condições. Imaginemos que tudo que a

humanidade constrói fosse esquecido na manhã seguinte? Este seria o mundo sem

História.

Bloch considera que o conhecimento Histórico é legítimo porque,

entre outras coisas, o “conhecimento histórico é um prazer, o prazer do

conhecimento do outro, a curiosidade de conhecer situações que ele viveu, e que

conhecer por conhecer o que o rodeia e a ele mesmo”. Desta posição de Bloch,

discorda Paul Veyne. Para este a história não pode ser uma “atividade intelectual

gratuita”, pois “é uma atividade de conhecimento e não uma arte de viver” (Apud

REIS, 1996, p.89-91).

Page 21: História Não é Ciência

O que se pode concluir, apesar das divergências entre os teóricos,

é que a História é um conhecimento legítimo e possui utilidade.

Legítimo porque “o homem é um objeto de conhecimento como

qualquer outro, que exige uma problematização, hipóteses, conceitos, documentos,

reflexão e pesquisa”. E se o homem existe e se sua existência se faz no tempo, “um

conhecimento racional deste objeto deveria se constituir: é a História” (REIS, 1996,

p.92).

Possui utilidade porque permite o debate “entre os homens

passados, cuja presença se torna viva, e os homens presentes, que se sentem

menos solitários e desprotegidos”. Este diálogo permite aos homens do presente

“uma interlocução, um conforto, uma melhor localização de si no tempo, o sentido

específico da diferença, da alteridade e da identidade” (REIS, 1996, p.92).

 

 

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