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HISTÓRIAS

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três contos de Jorge Luís Borges

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HISTÓRIAS

Jorge Luís Borges

HISTÓRIAS

A Biblioteca de BabelPierre Menard, Autor do QuixoteExame da Obra de Herbet Quain

Publicado por:Silva Editora, Lda.Rua da Restauração, 3655099-023 Porto, Portugal

www.silvaeditora.pt

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.

Título: Histórias© 2013, Jorge Luís Borges

Revisão: Teresa SilvaPaginação: Teresa SilvaImpressão e acabamento: Norcópia, Lda.Depósito Legal n.º 325 530/11ISBN: 978-972-20-4632-9

índice

A Biblioteca de Babel 07

Exame da Obra de Herbert Quain 17

Pierre Menard, Autor do Quixote 27

A Biblioteca de Babel

By this art you may contemplate the variation of the 23 letters…The Anatomy of Melancholy, part. 2, sect. ii, mem. iv.

O universo (que outros chamam a Biblioteca) é constituído por um

número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação ao centro, cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: intermi-navelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, em cinco longas prateleiras por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário nor-mal. Uma das frentes livres leva a um saguão estreito, que desemboca noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; ou-tro, satisfazer as necessidades fecais. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva para o longe. No saguão há um espelho, que duplica as aparências fielmente. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para quê essa duplica-ção ilusória?); prefiro imaginar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito… A luz provém de algumas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transver-sais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.

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Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventu-de; peregrinei em busca de um livro, talvez o catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nas-ci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela varanda fora; a minha sepultura será o ar insondável: o meu corpo fundir-se-á dilatadamente, corromper-se-á e dissolver-se-á no vento originando pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma neces-sária do espaço absoluto ou, pelo menos, da nossa intuição do espa-ço. Alegam que uma sala triangular ou pentagonal é inconcebível. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que se segue a toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Para mim é suficiente, por ora, repetir o ditame clássico: A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível.

A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco pratelei-ras; cada prateleira encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam nem prefiguram o que dirão as páginas. Sei que essa inconexão, por vezes, parece misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar das suas trágicas projecções, é talvez o facto capital da história) quero rememorar alguns axiomas.

O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo coro-lário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoá-vel pode duvidar. O homem, o bibliotecário imperfeito, pode ser obra da sorte ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dotação de prateleiras, de tomos enigmáticos, de escadas infatigáveis para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode

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ser criação de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos que a minha mão falível garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.

O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco.1 Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhu-ma conjectura desvendara: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu no hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras M C V malevolamente repetidas da primeira linha até à última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a penúltima página diz Ó tempo tuas pirâmi-des. Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia justa, há léguas de cacofonias insensatas, de confusões verbais e de incoerências. (Sei de uma região agreste cujos bibliotecários repudiam o costume supersticio-so e vão de procurar sentido nos livros equiparando-o ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão… Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame, já veremos, não é completamente falso.)

Durante muito tempo, acreditou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas passadas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialectal e que noventa andares mais acima é incompreensí-vel. Tudo isso, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inal-

1 O manuscrito original não contém algarismos ou maiúsculas. A pontuação foi limi-tada à vírgula e ao ponto. Esses dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e cinco símbolos suficientes que enumera o desconhecido (N. do editor).

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teráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialectal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada letra podia influir na subsequente e que o valor de M CV na terceira linha da página 71 não era o que podia ter a mesma série noutra posição de outra página, mas essa tese vaga não medrou. Outros pensaram em criptografias; univer-salmente essa conjectura foi aceite, embora não no sentido em que a formularam os seus inventores.

Há quinhentos anos, ao chefe de um hexágono superior2 deparou-se um livro tão confuso como os demais, mas possuindo quase duas folhas de linhas homogéneas.

Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século, pode determinar-se o seu idioma: um dialecto sa-moiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se desvendou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos permi-tiram que um bibliotecário de génio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, possuem elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um facto que todos os viajantes confirmaram: Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos. Dessa in-controvertíveis premissas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas prateleiras registam todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da

2 Antes, em cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as enfermidades pul-monares destruíram essa proporção. Lembrança de melancolia indizível: às vezes, muitas noites viajei por corredores e escadas polidas sem encontrar um só bibliotecário.

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falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verda-deiro, o evangelho gnóstico de Basílides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse eveangelho, a relação verídica da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as intercalações de cada livro em todos os livros.

Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram proprietários de um tesouro intacto e secreto. Não havia pro-blema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo usurpou brusca-mente as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito da Vindicações: livros de apologia e de profecia, que vindicavam para sempre os actos de cada homem do universo e guardavam arcanos prodigiosos para o seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal precipitando-se escadas acima, movidos pelo oco propósito de encontrar a sua Vindicação. Esses romeiro disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, lançavam os enganosos livros no interior dos túneis, morriam despenhados pelos homens de regiões longínquas. Outros en-louqueciam… As Vindicações existem (observei duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias), mas os investiga-dores não se recordavam que a possibilidade de um homem encontrar a sua, ou uma pérfida variante da sua, é computável em zero.

Também se aguardou então o esclarecimento dos mistérios básicos da Humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que esses graves mistérios se possam explicar por palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Há já quatro séculos que os homens molestam os hexágonos… Existem in-vestigadores oficiais, inquisidores. Vi-os no desempenho da sua função: chegam cansados sempre; falam de uma escada sem degraus que quase

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os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; por vezes, tomam o livro mais próximo e folheiam-no, em busca de palavras infa-mes. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.

À desapoderada esperança, sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira nalgum hexágono encerra-va livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, afi-gurou-se quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até cons-truir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canónicos. As autoridade viram-se compelidas a promulgar ordens severas. A seita de-sapareceu mas na minha meninice vi anciãos que se ocultavam demora-damente nas latrinas, com uns discos de metal num covilhete proibido, e arremedavam debilmente e a divina desordem.

Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sem-pre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: ao seu furor higiénico, ascético, deve-se a perda insensata de milhões de livros. O nome deles é execrado, mas aqueles que deplo-ram os “tesouros” que o seu frenesi destruiu, negligenciam dois factos notórios. Um: a Biblioteca é tão imensa que toda a redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é único, insubsti-tuível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de mi-lhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas graças ao horror que esses fanáticos provocaram. Urgia-lhes o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de for-mato menor que os naturais; omnipotentes, ilustrados e mágicos.

Sabemos, igualmente, de outra superstição daquele tempo: a do Ho-mem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito

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de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus. Na linguagem desta zona persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram em busca d’Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o ve-nerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar do A; para localizar o livro B, consultar previamente o livro C, e assim até o infinito… Em aventuras dessas, prodigalizei e consumo os meus anos. Não me parece inverosímil que nalguma di-visão do universo haja um livro total;3 rogo aos deuses ignorados que um homem — um só, ainda que seja, há mil anos! o tenha examinado e lido. Se a honra, a sabedoria e a felicidade não são para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora o meu lugar seja o inferno. Que padeça eu de ultraje e aniquilação, mas que, num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique.

Asseguram os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa excep-ção. Falam (sei-o) de “a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de se transformarem noutros e que tudo afirmam, ne-gam e confundem como uma divindade que delira”. Essas palavras que não só denunciam a desordem mas que também a exemplificam, pro-vam, evidentemente o seu gosto péssimo e a sua desesperada ignorância.

Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos ortográficos, mas nem um só disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se intitula “Trono penteado”, e

3 Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é ao mesmo tempo uma escada, ainda que, sem dúvida, haja livros que discutam, neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.

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outro “A cãibra de gesso” e outro Axaxaxas mlö. Essas proposições, à primeira vista incoerentes, são sem dúvida passíveis de uma justifica-ção criptográfica ou alegórica; essa justificação é verbal e , ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar certos caracteres

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que a divina Biblioteca não tenha previsto e que, nalguma das suas línguas secretas, não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja, nalguma dessas linguagens, o nome poderoso de um deus.Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola vazia e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e também a sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis emprega o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblio-teca admite a correcta definição ubíquo e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Tu, que me lês, estás seguro de entender a minha linguagem?)

A escrita metódia distrai-me da presente condição dos homens. A er-teza de que tudo está escrito anula-nos ou fantasmagoriza-nos. Conhe-ço distritos em que os jovens se ajoelham diante dos livros e beijam selvaticamente as páginas, mas não sabem decifrar uma só letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que degeneram em bandoleirismo, dizimaram a povoação. Creio ter mencionado os suicí-dios, mais frequentes cada ano. Talvez a velhice e o medo me enganem, mas de que a espécie humana — a única — está para se extinguir e que a Biblioteca permanecerá: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.

Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse adjectivo por um cos-tume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infini-to. Aqueles que o julgam limitado, postulam que, em lugares remotos,

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os corredores, as escadas, os hexágonos podem cessar inconcebivel-mente — o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem lindes, esque-cem que os abrange o número possível de livros. Ouso insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajor a atravessasse em qualquer direcção, comprovaria, ao fim dos séculos, que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que reiterada, seria uma ordem: a Ordem). A minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.4

1941, Mar del Plata.

4 Letizia Alvarez de Toledo salientou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um só volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, composto de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri, em princípios do século xvii, disse que todo o corpo sólido é a justaposição de um número infinito de planos.) O manuseio desse vade mecum sedoso não seria cómodo: cada folha aparente desdobrar-se-ia em outras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.

Pierre Menard, Autor do Quixote

A Silvina Ocampo

A obra visível que deixou este romancista é de fácil e breve referên-cia. São, portanto, imperdoáveis as omissões e adições perpetradas por M.me Henri Bachelier num falaz catálogo que certo jornal, cuja tendên-cia protestante é manifesta, teve a desconsideração de inferir dos seus deploráveis leitores – embora estes sejam poucos e calvinistas, quando não mações e circuncisos. Os autênticos amigos de Menard viram esse catálogo com alarme e com certa tristeza. Dir-se-ia que ainda ontem nos reunimos diante do mármore final e entre os ciprestes infaustos e já o Erro trata de empanar a sua Memória… Decididamente, é inevi-tável de uma breve rectificação.

Estou ciente de que é muito fácil refutar a minha pobre autorida-de. No entanto, creio que não me proibirão de mencionar dois valiosos testemunhos. A Baronesa de Bacourt (em cujos vendredis inesquecíveis tive a honra de conhecer o pranteado poeta) houve por bem aprovar as linhas que seguem. A Condessa de Bagnoregio, um dos espíritos mais finos do principado de Mónaco (e agora de Pitsburgo, Pensilvânia, depois das suas recentes bodas com o filantropo internacional Simão Kautzsch, tão caluniado — ai! — pelas vítimas das suas desinteressadas manobras) sacrificou “à veracidade e à morte” (tais são as suas palavras) a senhoril reserva que a distingue, e, numa carta aberta publicada na

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revista Luxe, concede-me também o seu beneplácito. Esses créditos, penso, não são insuficientes.

Disse que a obra visível de Menard é facilmente referível. Examinan-do com esmero o seu arquivo particular, verifiquei que é constituída pelas seguintes peças:

a) Um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com variantes) na revista La conque (números de Março e Outubro de 1899).

b) Uma monografia sobre a possibilidade de construir um vocabu-lário poético de conceitos que não sejam sinónimos ou perífrases dos que informam a linguagem comum, “mas objectos ideais criados por uma convenção e essencialmente destinados às necessidades poéticas” (Nîmes, 1901).

c) Uma monografia sobre “certas conexões ou afinidades” do pensa-mento de Descartes, de Leibniz e de John Wilkins (Nîmes, 1903).

d) Uma monografia sobre a Characteristica universalis de Leibniz (Nî-mes, 1904).

e) Um artigo técnico sobre a possibilidade de enriquecer o xadrez eli-minando um dos peões de torre. Menard propõe, recomenda, polemiza e acaba por afastar essa inovação.

f ) Uma monografia sobre a Ars magna generalis de Ramón Lull ( Nî-mes, 1906).

g) Uma tradução com prólogo e notas do Livro da invenção liberal e arte do jogo de xadrez de Ruy López de Segura (Paris, 1907).

h) Os apontamentos de uma monografia sobre a lógica simbólica de George Boole.

i) Um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon (Revue des langues romanes, Montepe-llier, Outubro de 1909).

j) Uma réplica a Luc Durtain (que negara a existência de tais leis) ilustrada com exemplos de Luc Durtain (Revue des langues romanes, Montepellier, Dezembro de 1909).

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k) Uma tradução manuscrita da Aguja de navegar cultos, de Queve-do, intitulada La boussole de précieux.

j) Um prefácio para o catálogo da exposição de litografias de Carolus Hourcade (Nîmes, 1914).

m) A obra Les problèmes d’un problème (Paris, 1917) que discute em que ordem cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e a tartaruga. Vieram a lume até agora duas edições deste livro, a segunda traz como epígrafe o conselho de Leibniz “Ne craignez point, monsieur, la tortue”, e renova os capítulos dedicados a Russel e a Descartes.

n) Uma análise obstinada das “regras sintáticas” de Toulet (N. R. F., Março de 1921). Menard — lembro-me — declarava que censurar e elo-giar são operações sentimentais que nada têm a ver com a crítica.

o) Uma transposição em alexandrinos do Cimetière marin de Paul Valéry (N. R. F., Janeiro de 1928).

p) Uma invectiva contra Paul Valéry, nas Folhas para a supressão da realidade de Jacques Reboul. (Essa invectiva, entre parênteses, é o re-verso da sua verdadeira opinião sobre Valéry. Este assim o entendeu, e a antiga amizade entre os dois não correu perigo.)

q) Uma “definição” da Condessa de Bagnoregio, no “vitorioso volu-me” — a locução é do outro colaborador, Gabriele d’ Annunzio — que anualmente publica esta dama para rectificar os falseios inevitáveis do jornalismo e apresentar “ao mundo e à Itália” uma autêntica efígie da sua pessoa, tão exposta (na razão directa da sua beleza e da sua actuação) a interpretações erróneas ou apressadas.

r) Um ciclo de sonetos admiráveis para a Baronesa de Bacourt (1934).s) Uma lista manuscrita de versos que devem a sua eficácia à pontuação.1

1 M.me Henri Bachelier enumera também uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da Introduction à la vie dévote de São Francisco de Sales. Na biblioteca de Pierre Menard não há vestígios de tal obra. Deve tratar-se de uma caçoada do nosso amigo, mal ouvida.

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Até aqui (omitindo somente alguns vagos sonetos circunstanciais para o hospitaleiro, ou ávido, álbum da M.me Henri Bachelier) a obra visível de Menard, por ordem cronológica. Passo agora à outra: a subter-rânea, a interminàvelmente heróica, a ímpar. Também, ai das possibili-dades do homem! — a incompleta! Essa obra, talvez a mais significativa do nosso tempo, compõe-se dos capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois. Sei que tal afirmação parece um disparate; justificar esse “dispara-te” é o objecto primordial desta nota.2

Dois textos de valor desigual inspiraram a empresa. Um é aquele fragmento filológico de Novalis — o que tem o número 2005 na edição de Dresden — que esboça o tema da total identificação com um deter-minado autor. Outro é um desses livros parasitários que situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebière ou Dom Quixote em Wall Street. Como todo o homem de bom-gosto, Menard detestava esses carnavais inúteis, somente aptos — dizia — para produzir o papel plebeu do ana-cronismo ou (o que é pior) para nos embelezar com a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são distintas. Mais inte-ressante, embora de execução contraditória e superficial, parecia-lhe o famoso objectivo de Daudet: conjugar em uma figura, que é Tartarim, o Engenhoso Fidalgo e o seu escudeiro… Aqueles que insinuaram que Menard dedicou a sua vida a escrever um Quixote contemporâneo, caluniam a sua límpida memória.

Não queria compor outro Quixote — o que é fácil — mas o Quixo-te. Inútil acrescentar que nunca visionou qualquer transcrição me-cânica do original; não se propunha a copiá-lo. A sua amável ambi-ção era produzir páginas que coincidissem — palavra por palavra e

2 Tive também o propósito secundário de bosquejar a imagem de Pierre Menard. Mas, como atrever-me a competir com as páginas áureas que, dizem-me, prepara a Baronesa de Bacourt ou com o lápis delicado e pontual de Carolus Hourcade?

21Pierra menard, autor do quixote

linha por linha — com as de Miguel de Cervantes.“O meu propósito é simplesmente assombroso”, escreveu-me em Se-

tembro de 1934, de Bayonne. “O termo final de uma demonstração teo-lógica ou metafísica — o mundo externo, Deus, a causalidade, as formas universais — não é menos anterior e comum que o meu divulgado roman-ce. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias do seu trabalho e eu decidi extraviá-los.” Com efeito, não resta um só apontamento que ateste essa faina de anos.

O método inicial que imagino era relativamente singelo. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos 1602 e 1918, ser Miguel de Cervantes. Pierre Menard estudou esse procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel do espanhol do século dezas-sete), mas afastou-o por fácil. Antes por impossível! — dirá o leitor. De acordo, porém a empresa era de antemão impossível, e, de todos os meios impossíveis para a levar a cabo, este era o menos interessante. Ser no século vinte um romancista popular do século dezanove pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de qualquer maneira, Cervantes e chegar ao Qui-xote, afigurou-se-lhe menos árduo — por conseguinte, menos interes-sante que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Pierre Menard. (Essa convicção, diga-se de passa-gem, fê-lo excluir o prólogo autobiográfico da segunda parte do Dom Quixote. Incluir esse prólogo teria sido criar outro personagem — Cer-vantes — mas também teria significado apresentar o Quixote em função desse personagem e não de Menard. Este, naturalmente, negou-se a essa concessão.) “A minha empresa não é essencialmente difícil”, leio nou-tro lugar da carta. “Bastar-me-ia ser imortal para a realizar.” Confessarei que costumo imaginar que a concluiu e que leio o Quixote — todo o Quixote — como se o tivesse pensado Menard? Noites atrás, ao folhear o capítulo xxvi — nunca por ele esboçado — reconheci o estilo do nosso amigo e como que a sua voz nesta frase excepcional: as ninfas dos rios,

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a dolorosa e húmida Eco. Essa conjunção eficaz de um adjectivo moral e outro físico trouxe-me à lembrança um verso de Shakespeare, que discutimos uma tarde:

Where a malignant and turbaned Turk…Por que precisamente o Quixote? — dirá o nosso leitor. Essa prefe-

rência, num espanhol, não seria inexplicável: mas é-o, sem dúvida, num simbolista de Nîmes, essencialmente devoto de Por, que gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé, que gerou Valéry, que gerou Edmond Teste. A precipitada carta elucida a questão. “O Quixote”, esclarece Menard, “interessa-me profundamente, mas não me parece — como direi? — inevitável. Não posso imaginar o universo sem a interjeição de Edgar Allan Poe:

Ah, bear in mind this garden was enchanted!ou sem o Bateau ivre ou o Ancient mariner, mas sei-me capaz de o

imaginar sem o Quixote. (Falo, naturalmente, da minha capacidade pessoal, não da ressonância histórica das obras.) O Quixote é um livro contingente, o Quixote é inecessário. Posso premeditar a sua escrita, posso escrevê-lo, sem incorrer numa tautologia. Aos doze ou treze anos li-o, talvez integralmente. Depois li com atenção alguns capítulos, aque-les que não intentarei por agora. Frequentei também os entremezes, as comédias, a “Galateia”, as novelas exemplares, os trabalhos sem dúvida laboriosos de Persiles e Sigismunda e a “Virgem do Parnaso” … A mi-nha lembrança geral do Quixote, simplificada pelo esquecimento e a indiferença, pode muito bem equivaler à imprecisa imagem anterior de um livro não feito. Postulada essa imagem (que ninguém por direito me pode negar) é indiscutível que o meu problema é bastante mais di-fícil do que o de Cervantes. O meu complacente precursor não recusou a colaboração do acaso: ia escrevendo a obra imortal um pouco à la diable, levado por inércias da linguagem e da invenção. Contraí o mis-terioso dever de reconstruir literalmente a sua obra espontânea. O meu solitário jogo é governado por duas leis polares. A primeira permite-me

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tentar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda obriga-me a sacrificá-las ao texto “original” e a raciocinar irrefutavelmente, sobre essa aniquilição… Convém somar outra, congénita, a essas travas arti-ficiais. Compor o Quixote no início do século dezassete era uma em-presa razoável, necessária, quem sabe se fatal; nos princípios do vinte, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos factos. Entre eles, para citar um apenas: o próprio Quixote.”

Apesar desses três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais subtil que o de Cervantes. Este, burlescamente, opõe às ficções cavaleirescas a pobre realidade provinciana do seu país; Menard elege como “realidade” a terra de Carmen durante o século de Lepanto e de Lope. Que espanholadas não teria esta escolha sugerido a Maurice Barrès ou ao Dr. Rodriguez Larreta! Menard, com toda a naturalidade, evita-as. Na sua obra não há ciganagens, nem conspiradores, nem mís-ticos, nem Filipe Segundo, nem autos-de-fé. Desatende ou proscreve a cor local. Esse desdém revela um sentido novo do romance históri-co. Esse desdém condena Salambô inapelavelmente.

Não menos assombroso é considerar capítulos isolados. Por exemplo, examinemos o xxxviii da primeira parte. “que trata do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas e as letras”. É sabido que Dom Quixote (como Quevedo na passagem análoga, e posterior, de “A hora de todos”) julga o pleito contra as letras e a favor das armas. Cervantes era um velho militar: a sua decisão explica-se. Mas que o Dom Qui-xote de Pierre Menard — homem contemporâneo de La trahison des clercs e de Bertrand Russell — reincida nesses nebulosos sofismas! M.me Bachelier viu neles a admirável e típica sujeição do autor à psicologia do herói; outros (nada perspicazmente), uma transcrição do Quixote; a Baronesa de Bacourt, a influência de Nietzsche. A essa terceira interpre-tação (que acho irrefutável) não sei se me atreverei a aditar uma carta, que muito condiz com a quase divina modéstia de Pierre Menard: o seu

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hábito resignado ou irónico de propagar ideias que eram o estrito rever-so das preferidas por ele. (Rememoremos outra vez a sua diatribe contra Paul Valéry na efémera folha surrealista de Jacques Reboul.) O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão os seus detratores; mas a ambiguidade é uma riqueza.)

Constitui uma revelação cotejar o “Dom Quixote” de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (“D. Quixote”, primeira parte, nono capítulo):

… a verdade, cuja não é a história, émulo do tempo, depósito das acções, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

Redigida no século dezassete, redigida pela “engenho leigo”, Cervan-tes, essa enumeração é um mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve:

… a verdade, cuja mãe é a história, émulo do tempo, depósito das acções, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

A história, mãe da verdade; a ideia é espantosa. Menard, contempo-râneo de William James, não define a história como uma indagação da realidade, mas como a sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas finais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro — são descaradamente pragmáticas.

Vivido também é o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Me-nard — no fundo estrangeiro — padece de alguma afectação. Não assim o do precursor que com desenfado maneja o espanhol corrente da sua época.

Não há exercício intelectual que não resulte, ao fim, inútil. Uma doutrina filosófica é no princípio uma descrição verosímil do univer-so; os anos giram e é um simples capítulo — quando não um parágrafo ou um nome — da história da Filosofia. Na literatura, essa caducidade final é ainda mais notória. O Quixote — disse-me Menard — foi antes

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de tudo um livro agradável; agora é uma ocasião de brindes patrió-ticos, de soberba gramatical, de obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão e talvez a pior.

Essas comprovações niilistas nada têm de novo; o extraordinário é a decisão que Pierre Menard delas derivou. Resolveu adiantar-se à vai-dade que aguarda todas as fadigas do homem; empreendeu uma tarefa complexíssima e de antemão vazia. Dedicou os seus escrúpulos e vi-gílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou mil páginas manuscri-tas.3 Não permitiu a ninguém examiná-las e cuidou que não lhe sobre-vivessem. Em vão, procurou reconstruílas.

Reflecti que é lícito ver no Quixote “final” uma espécie de palimp-sesto, no qual devem transluzir os rastos — ténues, mas não indecifrá-veis — da escrita “prévia” do nosso amigo. Infelizmente, apenas um se-gundo Pierre Menard, invertendo o trabalho anterior, poderia exumar e ressuscitar essas Tróias…

“Pensar, analisar, inventar (escreveu-me também) não são actos anómalos, são a respiração normal da inteligência. Glorificar o ocasio-nal cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamen-tos, recordar com incrédulo estupor que o doctor universalis pensou, é confessar a nossa languidez ou a nossa barbárie. Todo o homem deve ser capaz de todas as ideias e acredito que no futuro o será.”

Menard (talvez sem querer) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacro-nismo deliberado e das atribuições erróneas. Essa técnica de aplicação infinita não leva a percorrer a Odisseia como se fora posterior à Eneida e o livro Le jardin du Centaure de M.me Henri Bachelier povoa de

3 Recordo os seus cadernos quadriculados, os seus negros borrões, os seus peculiares símbolos tipográficos e a sua letra de insecto. Ao fim da tarde gostava de caminhar pelos arrabalde de Nîmes; costumava levar consigo um caderno e fazer uma alegre fogueira.

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aventura os mais plácido livros. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é uma suficiente renovação dessas ténues advertências espirituais?

Nîmes, 1939.

Exame da Obra de Herbert Quain

Herbert Quain morreu em Roscommon; comprovei sem espanto que o Suplemento Literário do Times apenas lhe concedeu meia coluna de piedade necrológia, na qual não há epíteto laudatório que não esteja corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio. O Spectator, no seu número a respeito dele, é sem dúvida menos lacónico e talvez mais cordial, no entanto equipara o primeiro livro de Quain — The god of the labyrinth — a um da Sr.a Agatha Christie e outros aos de Gertru-de Stein: evocações que ninguém achará inevitáveis e que não teriam alegrado o defunto. Este, de resto, nunca de acreditou genial; nem se-quer nas noites peripatéticas de conversa literária, nas quais o homem que já fatigou os jornais, julga invariavelmente ser Monsieur Teste ou o Dr. Samuel Johnson… Percebia, com toda a lucidez, a condição ex-perimental dos seus livros; admiráveis talvez pela novidade e por certa probidade lacónica, mas não pelas virtudes da sua paixão. Sou como as odes de Cowley, escreveu-me de Longford, em 6 de Março de 1939. Não pertenço à arte, a não ser à mera história da arte. Não havia, para ele, disciplina inferior à história.

Mencionei uma modéstia de Herbert Quain; naturalmente, essa mo-déstia não esgota o seu pensamento. Flaubert e Henry James acostu-maram-se a supor que as obras de arte são infrequentes e de penosa realização; o século dezasseis (recordemos a Viagem do Parnaso, recorde-

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mos o destino de Shakespeare) não compartilhava dessa desconsolada opinião. Herbert Quain, tão pouco. Parecia-lhe que a boa literatura era bastante corriqueira e que se encontrava até no diálogo da rua. Parecia-lhe também que o facto estético não pode prescindir de certo elemento de assombro e que é difícil assombrar-se de memória. Deplorava com sorridente sinceridade “a servil e obstinada conservação” de livros pre-téritos… Ignoro se a sua vaga teoria é justificável; sei que os seus livros desejam em demasia o assombro.

Lamento ter emprestado a uma dama, irreversìvelmente, o primeiro que publicou. Declarei que se trata de um romance policial. The god of the labyrinth; posso acrescentar que o editor o pôs à venda nos últimos dias de Novembro de 1933. Em princípios de Dezembro, as agradáveis e árduas involuções do Siamese twin mystery atarefaram Londres e Nova Iorque; prefiro atribuir a essa coincidência ruinosa o fracasso do roman-ce do nosso amigo. Do mesmo modo (quero ser totalmente sincero) à sua elaboração deficiente e à vã e frígida pompa de certas descrições do mar. Ao cabo de sete anos, torna-se impossível para mim recuperar os pormenores da acção; está aqui o seu plano; tal como agora o empobre-ce (tal como agora o purifica) o meu esquecimento. Há um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermédias, uma solução nas últimas. Já esclareci o enigma, há um parágrafo longo e retrospectivo que contém esta frase: Todos acreditaram que o encontro dos jogadores de xadrez fora casual. Essa frase deixa entender que a solução é errónea. O leitor, inquieto, revê os capítulos concernentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detective.

Ainda mais heterodoxo é o “romance regressivo, ramificado” April March, cuja terceira (e única) parte é de 1936. Ninguém, ao julgar esse romance, se nega a descobrir que é um jogo: convém recordar que o au-tor nunca o considerou outra coisa. Eu reivindico para essa obra, ouviu-o dizer, as peculiaridades essenciais de todos os jogos, a simetria, as leis arbi-

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trárias, o tédio. Até o nome é um débil calembour: não significa Marcha de Abril, mas literalmente Abril Março. Alguém surpreendeu nas suas páginas um eco das doutrinas de Dunne; o prólogo de Quain prefere evocar aquele inverso mundo de Bradley, no qual a morte precede o nascimento, a cicatriz a ferida e a ferida o golpe (Appearance and reali-ty, 1897, página 215).1 Os mundos que April March propõe não são regressivos; mas sim a maneira de os historiar. Regressiva e ramificada, como já disse. Treze capítulos integram a obra. O primeiro narra o diá-logo ambíguo de uns desconhecidos numa gare. O segundo menciona os acontecimentos da véspera do primeiro. O terceiro, também retró-grado, conta os acontecimentos de outra possível véspera do primeiro; o quarto, os de outra. Cada uma dessas três vésperas (que rigorosamente se excluem) ramifica-se noutras três vésperas, de índole muito diver-sa. A obra total compõe-se, pois, de nove romances; cada romance, de três longos capítulos. (O primeiro é comum a todos eles, naturalmen-te.) Desses romances, um é de carácter simbólico; outro, sobrenatural; outro, policial; outro, psicológico; outro, comunista; outro, anticomu-nista, etc. Talvez um esquema ajude a compreender a estrutura.

1 Ai da erudição de Herbert Quain, ai da página 215 de um livro de 1897. Um inter-locutor do “Político”, de Platão, já descrevia uma regressão semelhante: a dos Filhos da

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Dessa estrutura cabe repetir o que declarou Schopenhauer das doze categorias kantianas: tudo o sacrifica a um furor simétrico. Previsivel-mente, um dos nove relatos é indigno de Quain; o melhor não é o que originariamente ideou, o x 4, é o de natureza fantástica, o x 9. Outros estão deformados por brincadeiras tolas e por pseudoprecisões inú-teis. Quem os lê em ordem cronológica (por exemplo: x 3, y 1, z) perde o sabor peculiar do estranho livro. Dois relatos — o x 7, o x 8 — carecem de valor individual; a justificação dá-lhes eficácia… Não sei se devo lembrar que, já publicado April March, Quain arrependeu-se da ordem ternária e predisse que os homens que o imitassem optariam pela bi-nária

e os demiurgos e os deuses pela infinita: infinitas histórias, infinitamen-te ramificadas.

Muito diversa, mas igualmente retrospectiva, é a comédia heróica em dois actos The secret mirror. Nas obras já descritas, a complexidade for-mal havia entorpecido a imaginação do autor; aqui, a sua evolução é mais livre. O primeiro acto (o mais extenso) ocorre na casa de campo do gen. Thrale, C. I. E., perto de Melton Mowbray. O centro invisível do enredo é a menina Ulrica Thrale, a filha mais velha do general. Através

Terra ou Autóctones que, submetidos ao influxo de uma rotação inversa do cosmos, passaram da velhice à maturidade, da maturidade à infância, da infância a desaparição e ao nada. Também Teopompo, na sua “Filípica”, fala de certas frutas boreais que originam em quem as come o mesmo processo retrógrado… Mais interessante é imaginar uma inversão do Tempo; um estado no qual recordássemos o futuro e ignorássemos, ou apenas pressentíssemos, o passado. Conforme o canto décimo do “Inferno”, versos 97-102, onde são comparadas a visão profética e a presbitia.

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de certo diálogo a entrevemos, amazona e altiva; suspeitamos de que não costuma frequentar a literatura; os jornais anunciam o seu noiva-do com o Duque de Rutland; os jornais desmentem o noivado. Um autor dramático, Wilfred Quarles, adora-a; certa vez, ela concedeu-lhe um distraído beijo. Os personagens são de imensa fortuna e de família tradicional; os afectos, nobres, ainda que veementes; o diálogo parece vacilar entre a mera vaniloquência de Bulwer-Lytton e os epigramas de Wilde ou do Sr. Philip Guedalla. Há um rouxinol e uma noite; há um duelo secreto num terraço. (Quase totalmente perceptíveis, há cer-ta contradição curiosa, há pormenores sórdidos.) Os personagens do primeiro acto reaparecem no segundo — com outros nomes. O “autor dramático” Wilfred Quarles é um comissário de Liverpool; o seu ver-dadeiro nome, John William Quigley. A Menina Thrale existe; Quigley nunca a conheceu pessoalmente; todavia, de forma mórbida, colecciona as suas fotografias do Tatler ou do Sketch. Quigley é autor do primeiro acto. A incrível ou impossível “casa de campo” é a pensão judaico-ir-landesa em que vive, por ele transfigurada e glorificada… A trama dos actos é paralela, mas no segundo tudo é repentinamente horrível, tudo se posterga ou se frustra. Quando The secret mirror se estreou, a crítica pronunciou os nomes de Freud e de Julian Green. A citação do primei-ro parece-me totalmente injustificada.

A fama divulgou que The Secret mirror era uma comédia freudia-na; essa interpretação propícia (e falaz) determinou o seu êxito. Infe-lizmente, Quain já completara os quarenta anos; estava aclimatado ao fracasso e não se resignava docemente a uma mudança de regime. Re-solveu recuperar o perdido. Em fins de 1939, publicou Statements, talvez o mais original dos seus livros, sem dúvida o menos elogiado e o mais misterioso. Quain costumava argumentar que os leitores eram uma espécie já extinta. Não há europeu (suscitava) que não seja um escri-tor, em potência ou em acto. Também afirmava que das diversas felicida-des que a literatura podia ministrar, a mais alta era a invenção. Já que

exame da obra de herbet quain

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nem todos são capazes dessa felicidade, muitos terão de se contentar com simulacros. Para esses “escritores imperfeitos”, cujo nome é legião, Quain redigiu as oito narrativas do livro Statements. Cada uma delas prefigura ou promete um bom argumento, frustrado voluntariamente pelo autor. Uma — não a melhor — insinua dois argumentos. O leitor, distraído pela vaidade, acredita tê-las inventado. Da terceira, The rose of yesterday, cometi a ingenuidade de extrair As ruínas circulares, que é um dos contos do livro O jardim de caminhos que se bifurcam.

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Histórias está composto em Adobe Garamond Pro, interpretação do tipo originalmente desenho por Claude Garamond e modificado por

Robert Slimbach para a Adobe.