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História da província Santa Cruz

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Page 1: História da província Santa Cruz
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História da província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil

Versão: texto editado

Edição: M.C. Paixão de SousaRevisão: G. de Menezes

Fontes:

1. Digitalização fac-simile:

História da prouincia Sãcta Cruz que vulgarme[n]te chamamos Brasil/ feita por Pero Magalhäes de Gandauo. Em Lisboa: na officina de António Gonsaluez: vendense em casa de Ioão Lopez, 1576. 48 f.: 1 est. ; 4º (18 cm) - Assin: A-F//8. - Anselmo 709. - Faria - BN Rio de Janeiro p. 38. - B. MUseum 150 coln 204 [http://purl.pt/121]

2. Transcrição e Edição:

<http://www.ime.usp.br/~tycho/corpus/texts/xml/g_008.xml>

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[1] [frontispicio]

História da província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil; feita por Pero deMagalhães de Gandavo, dirigida ao muito sereníssimo Dom LionisPereira governador que foi da Malaca e das mais partesdo Sul na Índia.

[1v] [licenças] [autor: F. Gouvea, C. de Matos, L. Anriques]

[2][2v][3][3v][4] [prefácio] [autor: L.V. Camões]

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[4v]

AO MUITO ILUSTRE SENHORDOM LIONIS PEREIRA,Epístola de Pero de Magalhães.

[43] NESTE pequeno serviço(muito ilustre senhor) que ofereçoa Vossa Mercê das primícias de meu fracoentendimento, poderá nalgumamaneira conhecer os desejos quetenho de pagar com minha possibilidadealguma parte do muito que sedeve à ínclita fama de vosso heróiconome. [44] E isto assim pelo merecimentodo nobilíssimo sangue e claraprogênie donde traz sua origem,como pelos troféus das grandesvitórias, e casos bem afortunados que lhe hão sucedido nessas partesdo Oriente em que Deus o quis favorecer com tão larga mão,que não cuido ser toda minha vida bastante para satisfazer à menorparte de seus louvores. [45] E como todas estas razões me ponham emtanta obrigação, e eu entenda que outra nenhuma coisa deve sermais aceita a pessoas de altos ânimos que a lição das escrituras, porcujos meios se alcançam os segredos de todas as ciências, e os homensvem a ilustrar seus nomes e perpetuá-los na terra com fama imortal,determinei escolher a Vossa Mercê entre os mais senhores da terra,e dedicar-lhe esta breve história. [46] A qual espero que folgue dever com atenção e receber-ma benignamente debaixo de seu amparo:assim por ser coisa nova, e eu a escrever como testemunha de vista:como por saber quão particular afeição Vossa Mercê tem às coisasdo engenho, e que por esta causa lhe não será menos aceito o exercíciodas escrituras, que o das armas. [47] Por onde com muita razãofavorecido desta confiança possa seguramente sair a luz com esta pequenaempresa e divulgá-la pela terra sem nenhum receio, tendopor defensor dela a Vossa Mercê Cuja muito ilustre pessoanosso Senhor guarde e acrescente suavida e estado por longos efelizes anos.

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[5]

PROLOGO AO LEITOR.

[48] A CAUSA principal que me obrigou a lançarmão da presente história, e sair com ela a luzfoi por não haver até agora pessoa que a empreendesse,havendo já setenta e tantos anos que estaprovíncia é descoberta. [49] A qual história creioque mais esteve sepultada em tanto silêncio, pelo pouco caso queos Portugueses fizeram sempre da mesma província, que por faltaremna terra pessoas de engenho e curiosas, que por melhor estiloe mais copiosamente que eu a escrevessem. [50] Porém já queos estrangeiros a tem em outra estima, e sabem suas particularidadesmelhor e de mais raiz que nós (aos quais lançaram já os Portuguesesfora dela a força d´armas por muitas vezes) parece coisadecente e necessária, terem também os nossos naturais a mesmanotícia, especialmente para que todos aqueles que nestes Reinosvivem em pobreza não duvidem escolhê-la para seu amparo:porque a mesma terra é tal, e tão favorável aos que a vãobuscar, que a todos agasalha e convida com remédio por pobrese desamparados que sejam. [51] E também há nela coisas dignasde grande admiração, e tão notáveis, que parecera descuidoe pouca curiosidade nossa, não fazer menção delas em algumdiscurso, e dá-las a perpétua memória, como costumavam os Antigos:aos quais não escapava coisa alguma que por extenso nãoreduzissem a história, e fizessem menção em suas escriturasde coisas menores que estas, as quais hoje em dia vivem entre nóscomo sabemos, e viverão eternamente. [52] E se os antigos Portugueses

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[5v]

e ainda os modernos não foram tão pouco afeiçoadosà escritura como são, não se perderam tantas antiguidadesentre nós de que agora carecemos, nem houvera tão profundoesquecimento de muitas coisas, em cujo estudo tem muitos homensdoutos cansado, e revolvido grande cópia de livros sem as poderemdescobrir, nem recuperar da maneira que passaram. [53] Daquivinha aos Gregos e Romanos haverem todas as outras nações porbárbaras, e na verdade com razão lhes podiam dar este nome pois eramtão pouco solícitos e cobiçosos de honra que por uma mesmaculpa deixavam morrer aquelas coisas que lhes podiam dar nomee fazê-los imortais. [54] Como pois a escritura seja vida da memória,e a memória uma semelhança da imortalidade a que todosdevemos aspirar, pela parte que dela nos cabe, quis movido destasrazões, fazer esta breve história, para cujo ornamento não busqueiepítetos esquisitos, nem outra formosura de vocábulos de queos eloqüentes oradores costumam usar, para com artifício de palavrasengrandecerem suas obras. [55] Somente procurei escrever estana verdade, por um estilo fácil e chão, como meu fraco engenhome ajudou, desejoso de agradar a todos os que dela quiseremter notícia. [56] Pelo que devo ser desculpado das faltas que aquime podem notar: digo dos discreto, que com são zelo o costumamfazer, que dos idiotas e maldizentes bemsei que não hei de escapar, pois está certonão perdoarem aninguém.

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Capítulo Primeiro. De como se descobriuesta província, e a razão porque se devechamar Santa Cruz, e nãoBrasil.

[57] REINANDO aquele muito católicoe sereníssimo Príncipe el-Rei DomMANUEL, fez-se uma frota para a Índiade que ia por capitão mór Pedro ÁlvaresCabral: que foi a segunda navegaçãoque fizeram os Portugueses para aquelas partesdo Oriente. [58] A qual partiu da cidade de Lisboa anove de Março no ano de 1500. [59] E sendo já entreas ilhas do Cabo Verde (as quais iam demandar parafazer aí aguada) deu-lhes um temporal, que foi causade as não poderem tomar, e de se apartarem algunsnavios da companhia. [60] E depois de haver bonança juntaoutra vez a frota, empegaram-se ao mar, assim por fugiremdas calmarias de Guiné, que lhes podiam estorvarsua viagem, como por lhes ficar largo poderem dobraro cabo de Boa Esperança. [61] E havendo já um mês,que iam naquela volta navegando com vento próspero,foram dar na costa desta província: ao longoda qual cortaram todo aquele dia, parecendo atodos que era alguma grande ilha que ali estava, semhaver Piloto, nem outra pessoa alguma que tivesse

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[6v]

notícia dela, nem que presumisse que podia estar terrafirme para aquela parte Ocidental. [62] E no lugarque lhes pareceu dela mais acomodado, surgiram aquelatarde, onde logo tiveram vista da gente da terra:de cuja semelhança não ficaram pouco admirados,porque era diferente da de Guiné, e fora do comumparecer de toda outra que tinham visto. [63] Estando assimsurtos nesta parte que digo, saltou aquela noite comeles tanto tempo, que lhes foi forçado levarem as âncoras,e com aquele vento que lhes era largo por aquelerumo, foram correndo a costa até chegarem aum porto limpo e de bom surgidouro onde entraram:ao qual puseram então este nome, que hoje emdia tem de Porto seguro, por lhes dar colheita e osassegurar do perigo da tempestade que levavam. [64] Aooutro dia seguinte, saiu Pedro Álvares em terra coma maior parte da gente: na qual se disse logo Missa cantada,e houve pregação: e os Índios da terra que ali seajuntaram ouviam tudo com muita quietação, usandode todos os atos e cerimônias que viam fazer aosnossos. [65] E assim se punham de joelhos e batiam nos peitos,como se tiveram lume de Fé, ou que por algumavia lhes fora revelado aquele grande e inefável mistériodo Santíssimo Sacramento. [66] No que mostravamclaramente estarem dispostos para receberem a doutrina Cristãa todo tempo que lhes fosse denunciada como gente que nãotinha impedimento de ídolos, nem professava outra lei

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alguma que pudesse contradizer a esta nossa, como adiantese verá no capítulo que trata de seus costumes. [67] Entãodespediu logo Pedro Álvares um navio com a nova ael-Rei Dom Manuel, a qual foi dele recebida commuito prazer e contentamento: e daí por diante começoulogo de mandar alguns navios a estas partes, eassim se foi a terra descobrindo pouco a pouco e conhecendode cada vez mais, até que depois se veio toda a repartirem capitanias e a povoar da maneira que agoraestá. [68] E tornando a Pedro Álvares seu descobridor, passadosalguns dias que ali esteve fazendo sua aguada e esperandopor tempo que lhe servisse, antes de se partir, pordeixar nome aquela província, por ele novamente descoberta,mandou alçar uma Cruz no mais alto lugar deuma árvore, onde foi arvorada com grande solenidadee benções de Sacerdotes que levava em sua companhia,dando a terra este nome de Santa Cruz: cuja festacelebrava naquele mesmo dia a santa madre Igreja(que era aos três de Maio). [69] O que não parece carecerde mistério, porque assim como nestes Reinos de Portugaltrazem a Cruz no peito por insígnia da ordem ecavalaria de Cristo, assim prouve a ele que esta terrase descobrisse a tempo, que o tal nome lhe pudesse serdado neste santo dia, pois havia de ser possuída de Portugueses,e ficar por herança de patrimônio ao mestradoda mesma ordem de Cristo. [70] Por onde não parecerazão, que lhe neguemos este nome, nem que nos

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esqueçamos dele tão indevidamente por outro quelhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pau datinta começou de vir a estes Reinos. [71] Ao qual chamarambrasil por ser vermelho e ter semelhança de brasa,e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. [72] Maspara que nesta parte magoemos ao Demônio, que tantotrabalhou e trabalha por extinguir a memória daSanta Cruz, e desterrá-la dos corações dos homens (mediantea qual fomos redimidos e livrados do poder desua tirania) tornemos-lhe a restituir seu nome, e chamemos-lheprovíncia de Santa Cruz como em princípio(que assim o amoesta também aquele ilustre e famosoescritor João de Barros na sua primeira Década,tratando deste mesmo descobrimento). [73] Porque na verdademais é de estimar e melhor soa nos ouvidos da genteCristã o nome de um pau em que se obrou o mistériode nossa redenção, que o de outro que não servede mais que de tingir panos ou coisas semelhantes.

Capítulo 2. Em que se descreve o sítio e qualidadesdesta província.

[74] Esta província Santa Cruz está situada naquelagrande América, uma das quatro partesdo mundo. [75] Dista o seu princípio doisgraus da equinocial para a banda do Sul,e daí se vai estendendo para o mesmo Sul até quarentae cinco graus. [76] De maneira que parte dela fica

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situada debaixo da Zona Tórrida, e parte debaixo da temperada.[77] Está formada esta província à maneira de umaharpa: cuja costa pela banda do Norte corre do Orienteao Ocidente e está olhando direitamente a Equinocial.[78] E pela do Sul confina com outras provínciasda mesma América povoadas e possuídas de povogentílico com que ainda não temos comunicação.[79] E pela do Oriente confina com o mar Oceano Áfrico,e olha direitamente os Reinos de Congo e Angola atéo Cabo de boa esperança que é o seu oposto. [80] Epela do Ocidente confina com as altíssimas serras dosAndes e fraldas do Peru, as quais são tão soberbas emcima da terra, que se diz terem as aves trabalho em as passar.[81] E até hoje um só caminho lhe acharam os homensvindos do Peru à esta província, e este tão agro, que emo passar perecem algumas pessoas, caindo do estreito caminhoque trazem, e vão parar os corpos mortos tãolonge dos vivos que nunca os mais vem nem podemainda que queiram dar-lhes sepultura. [82] Destes e doutrosextremos semelhantes carece esta província Santa Cruz:porque com ser tão grande, não tem serras (ainda que muitas)nem desertos nem alagadiços, que com facilidade senão possam atravessar. [83] Além disto é esta província semcontradição a melhor para a vida do homem que cadauma das outras de América, por ser comummentede bons ares e fertilíssima, e em grande maneira deleitosae aprazível à vista humana.

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[8v]

[84] O ser ela tão salutífera e livre de enfermidades, procededos ventos que geralmente cursam nela: os quais sãoNordestes e Suis, e algumas vezes Lestes e Leste-oestes.[85] E como todos estes procedam da parte do mar, ventampuros e coados, que não somente não danam: masrecreiam e acrescentam a vida do homem. [86] A viraçãodestes ventos entra ao meio dia pouco mais ou menos,e dura até de madrugada: então cessa por causa dos vaporesda terra que o apagam. [87] E quando amanhece as maisdas vezes está o céu todo coberto de nuvens, e assim as maisdas manhãs chove nestas partes, e fica a terra toda cobertade névoa, por respeito de ter muitos arvoredos quechamam a si todos estes humores. [88] E neste intervalosopra um vento brando que na terra se gera, até que oSol com seus raios o acalma, e entrando o vento do maracostumado, torna o dia claro e sereno, e faz ficar a terralimpa e desempedida de todas estas exalações.

[89] Esta província é à vista muito deliciosa e fresca emgrande maneira; toda está vestida de muito alto e espessoarvoredo, regada com as águas de muitas e muito preciosasribeiras de que abundantemente participa todaterra: onde permanece sempre a verdura com aquelatemperança da primavera que cá nos oferece Abril eMaio. [90] E isto causa não haver lá frios, nem ruínas de invernoque ofendam a suas plantas, como cá ofendem àsnossas. [91] Enfim que assim se houve a Natureza com todasas coisas desta província, e de tal maneira se comediu

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na temperança dos ares, que nunca nela se sente frionem quentura excessiva.

[92] As fontes que há na terra, são infinitas, cujas águasfazem crescer a muitos e muito grandes rios que por estacosta, assim da banda do Norte, como do Oriente entramno mar Oceano. [93] Alguns deles nascem no interior do Sertão,os quais vem por longas e tortuosas vias a buscaro mesmo Oceano: onde suas correntes fazem afastar asmarinhas águas por força, e entram nele com tanto ímpeto,que com muita dificuldade e perigo se pode poreles navegar. [94] Um dos mais famosos e principais quehá nestas partes, é o Amazonas, o qual sai ao Nortemeio grau da equinocial para o Sul, e tem trinta léguasde boca pouco mais ou menos. [95] Este rio tem na entradamuitas ilhas que o dividem em diversas partes, enasce de uma lagoa que está cem léguas do mar do Sul aopé de umas serras do Quito província do Peru, donde partiramjá algumas embarcações de Castelhanos, e navegandopor ele abaixo, vieram sair em o mar Oceano meiograu da Equinocial, que será distância de 600 léguas porlinha direita, não contando as mais que se acrescentam nasvoltas que faz o mesmo rio.

[96] Outro muito grande cinqüentaléguas deste para Oriente sai também ao Norte,a que chamam rio do Maranhão. [97] Tem dentro muitasilhas, e uma no meio da barra que está povoada de gentio,ao longo da qual podem surgir quaisquer embarcações.[98] Terá este rio sete léguas de boca, pela qual entra tanta abundância

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de água salgada, que daí cinqüenta léguaspelo sertão dentro, é nem mais nem menos como umbraço de mar, até onde se pode navegar por entre as ilhassem nenhum impedimento. [99] Aqui se metem dois riosnele que vem do sertão, por um dos quais entraramalguns Portugueses quando foi do descobrimentoque foram fazer no ano de 35 e navegaram por eleacima duzentas e cinqüenta léguas, até que não puderamir mais por diante por causa da água ser pouca e orio se ir estreitando de maneira, que não podiam já porele caber as embarcações. [100] Do outro não descobriramcoisa alguma, e assim se não sabe até agora donde procedemambos. [101] Outro muito notável sai pela banda do Orienteao mesmo Oceano, a que chamam de são Francisco:cuja boca está em dez graus e um terço, e será meialégua de largo. [102] Este rio entra tão soberbo no mare com tanta fúria, que não chega a maré à boca somentefaz algum tanto represar suas águas, e daí três léguasao mar se acha água doce. [103] Corre-se da boca, do Sul parao Norte: dentro é muito fundo e limpo, e pode-se navegarpor ele até sessenta léguas como já se navegou. [104]E daí por diante se não pode passar por respeito de umacachoeira muito grande que há neste passo, onde cai o pesoda água de muito alto. [105] E acima desta cachoeira se meteo mesmo rio debaixo da terra e vem sair daí uma légua:e quando há cheias arrebenta por cima e arrasa toda aterra. [106] Este rio procede de um lago muito grande que está

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no íntimo da terra, onde afirmam que há muitas povoações,cujos moradores (segundo fama) possuem grandeshaveres de ouro e pedraria. [107] Outro rio muito grandee um dos mais espantosos do mundo, sai pela mesmabanda do Oriente em trinta e cinco graus, a quechamam rio da Prata, o qual entra no oceano com quarentaléguas de boca: e é tanto o ímpeto de água doceque traz de todas as vertentes do Peru, que os navegantesprimeiro no mar bebem suas águas, que vejama terra donde este bem lhes procede. [108] Duzentas e setentaléguas por ele acima, está edificada uma cidade povoadade Castelhanos, que se chama Ascenção. [109] Até aquise navega por ele, e ainda daí por diante muitas léguas.[110] Neste rio pela terra dentro se vem meter outro a que chamamParaguai, que também procede do mesmo lagocomo o de são Francisco que atrás fica.

[111] Além destes rios há outros muitos, que pela costa ficam,assim grandes como pequenos, e muitas enseadas,baías, e braços de mar, de que não quis fazer menção,porque meu intento não foi senão escolher as coisasmais notáveis e principais da terra, e tratá-las aqui somenteem particular, para que assim não fosse notado deprolixo e satisfizesse a todos com brevidade.

Capítulo 3. Das capitanias e povoaçõesde Portugueses que há nestaprovíncia.

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[112] TEM esta província assim como vai lançadada linha Equinocial para o Sul, oito capitaniaspovoadas de Portugueses, que contémcada uma em si, pouco mais ou menos,cinqüenta léguas de costa e demarcam-seumas das outras por uma linha lançada Leste Oeste:e assim ficam limitadas por estes termos entre o mar Oceano,e a linha da repartição geral dos reis de Portugale Castela. [113] As quais capitanias el-Rei Dom João o terceiro,desejoso de plantar nestas partes a Religião Cristã,ordenou em seu tempo, escolhendo para o governode cada uma delas vassalos seus de sangue e merecimento,em que cabia esta confiança. [114] Os quais edificaramsuas povoações ao longo da costa nos lugares maisconvenientes e acomodados, que lhes pareceu paraa vivenda dos moradores. [115] Todas estão já muito povoadasde gente, e nas partes mais importantes guarnecidasde muita e muito grossa artilharia que as defende e assegurados inimigos, assim da parte do mar como da terra.[116] Junto delas havia muitos Índios, quando os Portuguesescomeçaram de as povoar: mas porque os mesmosÍndios se levantavam contra eles e faziam-lhesmuitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nospouco a pouco e mataram muitos deles:outros fugiram para o sertão, e assim ficou a terra desocupadade gentio ao longo das povoações. [117] Algumas aldeiasdestes Índios ficaram todavia ao redor delas, que são

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de paz e amigos dos Portugueses que habitam estas capitanias.[118] E para que de todas no presente capítulo façamenção, não farei por ora mais que referir de caminhoos nomes dos primeiros capitães que as conquistaram,e tratar precisamente das povoações, sítios, e portosonde residem os Portugueses, nomeando cada umadelas em especial assim como vão do Norte para o Sul namaneira seguinte.

[119] A primeira e mais antiga se chama Tamaracá, a qualtomou este nome de uma ilha pequena, onde sua povoaçãoestá situada. [120] Pero Lopez de Sousa foi o primeiroque a conquistou e livrou dos Franceses, em cujo poderestava quando a foi povoar: esta ilha em que os moradoreshabitam divide da terra firme um braço de marque a rodeia onde também se ajuntam alguns rios que vemdo sertão. [121] E assim ficam duas barras lançadas cada uma parasua banda, e a ilha em meio: por uma das quais entramnavios grossos e de toda sorte, e vão ancorar juntoda povoação que está daí meia légua pouco maisou menos. [122] Também pela outra que fica da banda doNorte se servem algumas embarcações pequenas, a qualpor causa de ser baixa não sofre outras maiores. [123] Destailha para o Norte, tem esta capitania terras muito largas eviçosas, nas quais hoje em dia estiveram feitas grossas fazendas,e os moradores foram em muito mais crescimento,e floreceram tanto em prosperidade como em cadauma das outras, se o mesmo capitão Pero Lopez residira

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nela mais alguns anos, e não a desamparara no tempoque a começou de povoar.

[124] A segunda capitania que a diante se segue se chamaParanambuco: a qual conquistou Duarte Coelho, eedificou sua principal povoação em um alto à vista domar, que está cinco léguas desta ilha de Tamaracá, emaltura de oito graus. [125] Chama-se Olinda, é uma das maisnobres e populosas vilas que há nestas partes. [126] Cincoléguas pela terra dentro está outra povoação chamadaIgaroçú, que por outro nome se diz, a vila dosCosmos. [127] E além dos moradores que habitam estas vilashá outros muitos que pelos engenhos e fazendas estãoespalhados, assim nesta como nas outras capitanias de que aterra comarcã toda está povoada. [128] Esta é uma das melhoresterras, e que mais tem realçado os moradores quetodas as outras capitanias desta província: os quais foramsempre muito favorecidos e ajudados dos Índios daterra, de que alcançaram muitos infinitos escravos comque grangeiam suas fazendas. [129] E a causa principal de elair sempre tanto avante no crescimento da gente, foi porresidir continuamente nela o mesmo Capitão que a conquistou, e ser mais freqüentada de navios deste Reinopor estar mais perto dele que cada uma das outras quea diante se seguem. [130] Uma légua da povoação de Olindapara o Sul está um arrecife ou baixo de pedras, queé o porto onde entram as embarcações. [131] Tem a serventiapela praia, e também por um rio pequeno que passa

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por junto da mesma povoação.

[132] A terceira capitania que adiante se segue, é a da Bahiade todos os Santos, terra del-Rei nosso senhor: na qualresidem o Governador e Bispo, e Ouvidor geral detoda a costa. [133] O primeiro capitão que a conquistou eque a começou de povoar, foi Francisco Pereira Coutinho:ao qual desbarataram os Índios, com a força damuita guerra que lhe fizeram, a cujo ímpeto não poderesistir, pela multidão dos inimigos que então seconjuraram por todas aquelas partes contra os Portugueses.[134] Depois disso, tornou a ser restituída e outravez povoada por Thomé de Sousa o primeiro Governadorgeral que foi a estas partes. [135] E daqui por dianteforam sempre os moradores multiplicando com muitoacrescentamento de suas fazendas. [136] E assim uma das capitaniasque agora está mais povoada de Portuguesesde quantas há nesta província, é esta da Bahia de todosos Santos. [137] Tem três povoações muito nobres ede muitos vizinhos, as quais estão distantes das deParanambuco cem léguas, em altura de treze graus.[138] A principal onde residem os do governo da terra ea mais da gente nobre, é a cidade do Salvador. [139] Outraestá junto da barra, a qual chamam, vila velha, que foia primeira povoação que houve nesta capitania. [140] DepoisThomé de Sousa sendo governador edificou a cidade doSalvador mais a diante meia légua, por ser lugar mais

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decente e proveitoso para os moradores da terra. [141] Quatroléguas pela terra dentro está outra que se chama Paripeque também tem jurisdição sobre si como cada umadas outras. [142] Todas estas povoações estão situadas ao longode uma baía muito grande e formosa, onde podementrar seguramente quaisquer naus por grandes que sejam:a qual é três léguas de largo, e navega-se quinze por eladentro. [143] Tem dentro em si muitas ilhas de terras muitosingulares. [144] Divide-se em muitas partes, e tem muitosbraços e enseadas por onde os moradores se servem embarcos para suas fazendas.

[145] A quarta capitania, que é a dos Ilhéus se deu a Jorgede Figueiredo Correa, fidalgo da casa del-Rei nosso senhor:e por seu mandado a foi povoar um João Dalmeida,o qual edificou sua povoação trinta léguas daBahia de todos os Santos, em altura de quatorze grause dois terços. [146] Esta povoação é uma vila muito formosae de muitos vizinhos a qual está em cima de uma ladeiraà vista do mar, situada ao longo de um rio ondeentram os navios. [147] Este rio também se divide pela terradentro em muitas partes, junto do qual tem os moradoresda terra toda a grangeria de suas fazendas: para asquais se servem por ele em barcos e almádias como osda Bahia de todos os Santos.

[148] A quinta capitania a que chamam Porto Seguro, conquistouPero do Campo Tourinho. [149] Tem duas povoaçõesque estão distantes da dos Ilhéus trinta léguas

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em altura de dezesseis graus e meio: entre as quaisse mete um rio que faz um arrecife na boca comoenseada onde os navios entram. [150] A principal povoaçãoestá situada em dois lugares, convém a saberparte dela em um teso soberbo que fica sobre o rolodo mar, da banda do Norte, e parte em uma várzeaque fica pegada com o rio. [151] A outra povoaçãoa que chamam Santo Amaro, está uma légua desterio para o Sul. [152] Duas léguas deste mesmo arrecife,para o Norte, está outro, que é o porto, onde entroua frota quando esta província se descobriu. [153] Eporque então lhe foi posto este nome de Porto seguro,como atrás deixo declarado, ficou daí a capitaniacom o mesmo nome: e por isto se diz PortoSeguro.

[154] A sexta capitania é a do Espírito Santo, a qualconquistou Vasco Fernandes Coutinho. [155] Sua povoaçãoestá situada em uma ilha pequena, que fica distantedas povoações de Porto Seguro sessenta léguasem altura de vinte graus. [156] Esta ilha jaz dentro de umrio muito grande, de cuja barra dista uma légua pelosertão dentro: no qual se mata infinito peixe, e peloconseguinte na terra infinita caça, de que os moradorescontinuamente são muito abastados. [157] E assimé esta a mais fértil capitania e melhor provida detodos os mantimentos da terra que outra alguma quehaja na costa.

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[158] A sétima capitania, é a do Rio de Janeiro a qualconquistou Mem de Sá, e a força d´armas, oferecido amuito perigosos combates a livrou dos Franceses que aocupavam, sendo Governador geral destas partes.[159] Tem uma povoação a que chamam São Sebastiãocidade muito nobre e povoada de muitos vizinhos, aqual está distante do Espírito Santo setenta e cincoléguas em altura de vinte e três graus. [160] Esta povoaçãoestá junto da barra, edificada ao longo de um braço demar: o qual entra sete léguas pela terra dentro, e temcinco de travessa na parte mais larga, e na boca ondeé mais estreito haverá um terço de légua. [161] No meiodesta barra está uma lage que tem cinqüenta e seis braçasde comprido, e vinte e seis de largo: na qual se podefazer uma fortaleza para defensão da terra se cumprir.[162] Esta é uma das mais seguras e melhores barras que hánestas partes, pela qual podem quaisquer naus entrare sair a todo tempo sem temor de nenhum perigo. [163] Eassim as terras que há nesta capitania, também são as melhorese mais aparelhadas para enriquecerem os moradoresde todas quantas há nesta província: e os que láforem viver com esta esperança não creio que se acharãoenganados.

[164] A última capitania, é a de São Vicente, a qual conquistouMartim Afonso de Sousa: tem quatro povoações.[165] Duas delas estão situadas em uma ilha que

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divide um braço de mar da terra firme à maneira derio. [166] Estão estas povoações distantes do rio de Janeiroquarenta e cinco léguas, em altura de vinte e quatro.[167] Este braço de mar que cerca esta ilha temduas barras cada uma para sua parte. [168] Uma delas ébaixa, e não muito grande, por onde não podementrar senão embarcações pequenas: ao longoda qual está edificada a mais antiga povoação detodas a que chamam São Vicente. [169] Uma légua emeia da outra barra (que é a principal por ondeentram os navios grossos, e embarcações de todamaneira que vem a esta capitania) está a outra povoaçãochamada Santos, onde por respeito destasescalas, reside o capitão, ou seu logo tente com osoficiais do conselho e governo da terra. [170] Cinco léguaspara o Sul, há outra povoação a que chamamHitanhaém. [171] Outra está doze léguas pela terra dentrochamada São Paulo, que edificaram os Padres daCompanhia, onde há muitos vizinhos e a maiorparte deles são nascidos das Índias naturais da terra,e filhos de Portugueses. [172] Também está outrailha a par desta da banda do Norte, a qual divide daterra firme outro braço de mar que se vem ajuntarcom este: em cuja barra estão feitas duas fortalezas,cada uma de sua banda que defendem esta capitaniados Índios e corsários do mar com artilharia de que

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estão muito bem apercebidas. [173] Por esta barra se serviamantigamente, que é o lugar por onde costumavamos inimigos de fazer muito dano aos moradores.

[174] Outras muitas povoações há por todas estas capitanias,além destas de que tratei, onde residem muitosPortugueses: das quais não quis aqui fazer menção,por não ser meu intento dar notícia senão daquelasmais assinaladas, que são as que tem oficiaisde justiça, e jurisdição sobre si como qualquer vila oucidade destes Reinos.

Capítulo 4. Da governança que os moradoresdestas capitanias tem nestaspartes, e a maneira de comose hão em seu modode viver.

[175] DEPOIS que esta província SantaCruz se começou de povoar de Portugueses,sempre esteve instituída em uma governança,na qual assistia governador geralpor el-Rei nosso senhor com alçada sobreos outros capitães que residem em cada capitania. [176] Mas

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porque de umas a outras há muita distância, e a gentevai em muito crescimento, repartiu-se agora em duas governações,convém a saber, da capitania de Porto seguropara o Norte fica uma, e da do Espírito Santo para oSul fica outra: e em cada uma delas assiste seu governadorcom a mesma alçada. [177] O da banda do norte residena Bahia de todos os Santos, e o da banda do Sul noRio de Janeiro. [178] E assim fica cada um em meio de suasjurisdições, para desta maneira poderem os moradoresda terra ser melhor governados e à custa de menos trabalho.[179] E vindo ao que toca ao governo de vida e sustentaçãodestes moradores, quanto às casas em que vivemde cada vez se vão fazendo mais custosas e de melhoresedifícios: porque em princípio não havia outrasna terra se não de taipa e térreas, cobertas somente compalma. [180] E agora há já muitas assobradadas e de pedra ecal, telhadas e forradas como as deste Reino, das quaishá ruas muito compridas e formosas nas mais das povoaçõesde que fiz menção. [181] E assim antes de muito tempo(segundo a gente vai crescendo) se espera que haja outrosmuitos edifícios e templos muito suntuosos com quede todo se acabe nesta parte a terra de enobrecer. [182] Osmais dos moradores que por estas capitanias estão espalhadosou quase todos, tem suas terras de sesmaria dadase repartidas pelos capitães e governadores da terra.[183] E a primeira coisa que pretendem adquirir, são escravospara nelas lhes fazem suas fazendas: e se uma

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pessoa chega na terra a alcançar dois pares, ou meia dúziadeles (ainda que outra coisa não tenha de seu) logotem remédio para poder honradamente sustentar suafamília: porque um lhe pesca, e outro lhe caça, os outroslhe cultivam e grangeiam roças, e desta maneiranão fazem os homens despesa em mantimentos comseus escravos, nem com suas pessoas. [184] Pois daqui se podeinferir quanto mais serão acrescentadas as fazendas daquelesque tiverem duzentos, trezentos escravos, comohá muitos moradores na terra que não tem menos destaquantia e daí para cima. [185] Estes moradores todos pelamaior parte se tratam muito bem, e folgam de ajudaruns aos outros com seus escravos e favorecem muitoos pobres que começam a viver na terra. [186] Isto geralmentese costuma nestas partes, e fazem outras muitasobras pias, por onde todos tem remédio de vida enenhum pobre anda pelas portas a mendigar como nestesReinos.

Capítulo 5. Das plantas, mantimentos, e frutasque há nesta província

[187] SÃO tantas e tão diversas as plantas, frutase ervas que há nesta província, de quese podiam notar muitas particularidades,que seria coisa infinita escrevê-las aqui todase dar notícia dos efeitos de cada uma miudamente.[188] E por isso não farei agora menção, senão de algumas em

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particular, principalmente daquelas, de cuja virtude e frutoparticipam os Portugueses. [189] Primeiramente tratarei daplanta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentosque lá comem em lugar de pão. [190] A raiz se chama Mandioca,e a planta de que se gera é da altura de um homempouco mais ou menos. [191] Esta planta não é muitogrossa e tem muitos nós: quando a querem plantar em algumaroça, cortam-na e fazem-na em pedaços, os quais metemdebaixo da terra, depois de cultivada como estacas e daítornam a arrebentar outras plantas de novo: e cada estacadestas cria três ou quatro raízes e daí para cima(segundo a virtude da terra em que se planta) as quais põemnove ou dez meses em se criar: salvo em São Vicente quepõem três anos por causa da terra ser mais fria. [192] Estasraízes a cabo deste tempo se fazem muito grandes à maneira deInhames de São Thomé, ainda que as mais delas são compridas,e revoltas da feição de corno de boi. [193] E depoisde criadas desta maneira, se logo as não querem arrancarpara comer, cortam-lhe a planta pelo pé, e assim estão estas raízescinco, seis meses debaixo da terra em sua perfeiçãosem se danarem: e em São Vicente se conservam vinte, trintaanos da mesma maneira. [194] E tanto que as arrancam, põem-nasa curtir em água três quatro dias, e depois de curtidas,pisam-nas muito bem. [195] Feito isto metem aquelamassa em umas mangas compridas e estreiras que fazemde umas vergas delgadas, tecidas à maneira de cesto: e alia espremem daquele sumo, de maneira que não fique dele

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nenhuma coisa por esgotar: porque é tão peçonhento,e em tanto extremo venenoso, que se uma pessoa,ou qualquer outro animal o beber, logo naquele instantemorrerá. [196] E depois de assim a terem curada destamaneira põem um alguidar sobre o fogo em que a lançam,a qual está mexendo uma Índia até que o mesmofogo lhe acabe de gastar aquela umidade e fique enxutae disposta para se poder comer, que será por espaçode meia hora pouco mais ou menos. [197] Este é o mantimentoa que chamam farinha de pau, com que os moradorese gentio desta província se mantém. [198] Há todaviafarinha de duas maneiras: uma se chama de guerra,e outra fresca. [199] A de guerra se faz desta mesma raiz, edepois de feita fica muito seca, e torrada de maneira quedura mais de um ano sem se danar. [200] A fresca é maismimosa e de melhor gosto mas não dura mais que doisou três dias, e como passa deles, logo se corrompe.[201] Desta mesma Mandioca, fazem outra maneira de mantimentosque se chamam beijus, os quais são de feiçãode obreas, mas mais grossos e alvos, e alguns deles estendidosda feição de filhós. [202] Destes usam muito osmoradores da terra (principalmente os da Bahia de todosos Santos) porque são mais saborosos e de melhordigestão que a farinha.

[203] Também há outra casta de Mandioca que tem diferentepropriedade desta, a que por outro nome chamamAipim, da qual fazem uns bolos em algumas capitanias,

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que parecem no sabor que excedem a pão fresco desteReino. [204] O sumo desta raiz não é peçonhento, comoo que sai da outra, nem faz mal a nenhuma coisa aindaque se beba. [205] Também se come a mesma raiz assada comobatata ou inhame: porque de toda maneira se achanela muito gosto [206] Além deste mantimento, há na terramuito milho zaburro de que se faz pão muito alvo,e muito arroz, e muitas favas de diferentes castas, eoutros muitos legumes que abastam muito a terra.

[207] Uma planta se dá tambem nesta província, que foi dailha de São Thomé, com a fruta da qual se ajudammuitas pessoas a sustentar na terra. [208] Esta planta é muitotenra e não muito alta, não tem ramos senão umasfolhas que serão seis ou sete palmos de comprido. [209] A frutadela se chama bananas: parecem-se na feição com pepinos,e criam-se em cachos: alguns deles há tão grandesque tem de cento e cinqüenta bananas para cima.[210] E muitas vezes é tamanho o peso delas, que acontecequebrar a planta pelo meio. [211] Como são de vez colhemestes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. [212] Depoisde colhidos, cortam esta planta, porque não frutificamais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer delauns filhos que brotam do mesmo pé, de que se fazemoutros semelhantes. [213] Esta fruta é muito saborosa e dasboas que há na terra: tem uma pele como de figo (ainda quemais dura) a qual lhe lançam fora quando a queremcomer: mas faz dano à saúde e causa febre a quem se

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desmanda nela.

[214] Umas árvores há também nestas partes muito altas a quechamam Sapucaias: nas quais se criam uns vasos tamanhoscomo grandes cocos, quase da feição de jarras daÍndia. [215] Estes vasos são muito duros em grande maneira,e estão cheios de umas castanhas muito doces e saborosasem extremo: e tem as bocas para baixo cobertas comumas sapadoiras, que parece realmente não serem assimcriadas da natureza, senão feitas por artifício de indústriahumana. [216] E tanto que as tais castanhas são maduras,caem estas sapadoiras, e dali começam as mesmascastanhas também a cair pouco a pouco até não ficarnenhuma dentro dos vasos.

[217] Outra fruta há nesta terra muito melhor, e mais prezadados moradores de todas, que se cria em uma plantahumilde junto do chão: a qual planta tem umas pencascomo de erva babosa. [218] A esta fruta chamam Ananázese nascem como alcachofres, os quais parecem naturalmentepinhas, e são do mesmo tamanho e alguns maiores.[219] Depois que são maduros, tem um cheiro muitosuave, e comem-se aparados feitos em talhadas. [220] São tãosaborosos, que a juízo de todos, não há fruta neste Reinoque no gosto lhes faça vantagem. [221] E assim fazem os moradorespor eles mais, e os tem em maior estima, queoutro nenhum pomo que haja na terra.

[222] Há outra fruta que nasce pelo mato em umas árvorestamanhas como pereiras, ou macieiras: a qual é da feição

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de peros repinaldos, e muito amarela. [223] A esta frutachamam Cajús: tem muito sumo, e come-se pela calmapara refrescar, porque é ela de sua natureza muitofria, e de maravilha faz mal, ainda que se desmandemnela. [224] Na ponta de cada pomo destes se cria um caroçotamanho como castanha da feição de fava: o qualnasce primeiro, e vem diante da mesma fruta comoflor. [225] A casca dele é muito amargosa em extremo, e omiolo assado é muito quente de sua propriedade, emais gostoso que amêndoa.

[226] Outras muitas frutas há nesta província de diversasqualidades comuns a todos, e são tantas, que já se acharampela terra dentro algumas pessoas, as quais se sustentaramcom elas muitos dias sem outro mantimentoalgum. [227] Estas que aqui escrevo, são as que osPortugueses tem entre si em mais estima, e as melhoresda terra. [228] Algumas deste Reino se dão também nestaspartes, convém a saber, muitos melões, pepinos,romãs, e figos de muitas castas: muitas parreirasque dão uvas duas três vezes no ano, e de toda outrafruta da terra há sempre a mesma abundância,por causa de não haver lá (como digo) frios, que lhesfaçam nenhum prejuízo. [229] De cidras, limões, e laranjas,há muita infinidade, porque se dão muitona terra estas árvores de espinho e multiplicam maisque as outras.

[230] Além das plantas que produzem de si estas frutas, e

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mantimentos que na terra se comem: há outras de queos moradores fazem suas fazendas, convém a saber,muitas canas de açúcar e algodões, que é a principal fazendaque há nestas partes, de que todos se ajudam efazem muito proveito em cada uma destas capitanias, especialmentena de Paranambuco, que são feitos perto detrinta engenhos, e na da Bahia do Salvador quase outrostantos, donde se tira cada um ano grande quantidadede açúcares, e se dá infinito algodão, e mais semcomparação que em nenhuma das outras. [231] Também há muitopau brasil nestas capitanias de que os mesmos moradoresalcançam grande proveito: o qual pau se mostraclaro, ser produzido da quentura do Sol, e criado coma influência de seus raios, porque não se acha se nãodebaixo da Tórrida zona: e assim quanto mais perto estáda linha Equinocial, tanto é mais fino e de melhor tinta.[232] E esta é a causa porque o não há na capitania de SãoVicente, nem daí para o Sul.

[233] Um certo gênero de árvores há também pelo matodentro na capitania de Paranambuco a que chamam Copahíbasde que se tira bálsamo muito salutífero e proveitosoem extremo para enfermidades de muitas maneiras,principalmente nas que procedem de frialdade causagrandes efeitos e tira todas as dores por graves que sejamem muito breve espaço. [234] Para feridas ou quaisqueroutras chagas, tem a mesma virtude: as quais tanto quecom ele lhe acodem, saram muito depressa, e tira os sinais

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de maneira, que de maravilha se enxerga onde estiveram,e nisto faz vantagem a todas as outras medicinas.[235] Este óleo não se acha todo ano perfeitamentenestas árvores, nem procuram ir buscá-lo, senão no estio,que é o tempo em que assinaladamente o criam. [236] Equando querem tirá-lo, dão certos golpes ou furos notronco delas, pelos quais pouco a pouco estão estilandodo âmago este licor precioso. [237] Porém não se acha emtodas estas árvores, senão em algumas a que por este respeitodão nome de fêmeas: e as outras que carecem delechamam machos, e nisto somente se conhece a diferençadestes dois gêneros: que na proporção e semelhançanão diferem nada umas das outras. [238] As mais delas se achamroçadas dos animais que por instinto natural quandosentem feridos, ou mordidos de alguma fera, as vãobuscar para remédio de suas enfermidades.

[239] Outras árvores diferentes destas, há na capitania dosilhéus, e na do Espírito Santo a que chamam Caborahíbas,de que também se tira outro bálsamo: o qual sai da cascada mesma árvore, e cheira suavíssimamente [240] Tambémaproveita para as mesmas enfermidades, e aqueles queo alcançam têm-no em grande estima e vendem-no por muitopreço: porque além de as tais árvores serem poucas, corremmuito risco as pessoas que o vão buscar por causa dos inimigosque andam sempre naquela parte emboscados pelomato, e não perdoam a quantos acham.

[241] Também há uma certa árvore na capitania de São Vicente

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que se diz pela língua dos Índios Obiráparamaçaci, quequer dizer pau para enfermidades: com o leite da qual somentecom três gotas, purga uma pessoa por baixo e por cimagrandemente. [242] E se tomar quantidade de uma casca denoz, morrerá sem nenhuma remissão.

[243] Doutras plantas e ervas que não dão fruto, nem sesabe o para que prestam se podia escrever muitas coisasde que aqui não faço menção, porque meu intento, nãofoi senão dar notícia (como já disse) destas de cujo frutose aproveitam os moradores da terra. [244] Somente tratareide uma muito notável, cuja qualidade sabida creioque em toda parte causará grande espanto. [245] Chama-se ervaviva, e tem alguma semelhança de silvam macho. [246] Quandoalguém lhe toca com as mãos, ou com qualquer outracoisa que seja, naquele momento se encolhe e murchade maneira, que parece criatura sensitiva que se enojae recebe escândalo com aquele tocamento. [247] E depoisque assossega, como coisa já esquecida deste agravo, tornalogo pouco a pouco a estender-se, até ficar outra veztão robusta e verde como dantes. [248] Esta planta deve teralguma virtude muito grande a nós encoberta, cujo efeitonão será pela ventura de menos admiração. [249] Porque sabemosde todas as ervas que Deus criou, ter cada umaparticular virtude com que fizessem diversas operaçõesnaquelas coisas para cuja utilidade foram criadas: quantomais esta a que a natureza nisto tanto quis assinalar, dando-lheum tão estranho ser, e diferente de todas as outras.

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Capítulo 6. Dos animais e bichos venenososque há nesta província.

[250]Como esta província seja tão grande, e amaior parte dela inabitada e cheia de altíssimosarvoredos e espessos matos, nãoé de espantar que haja nela muita diversidade de animais, e bichos muito feros e venenosos:pois cá entre nós, com ser a terra já tão cultivadae possuída de tanta gente, ainda se criam em brenhascobras muito grandes de que se contam coisas muito notáveis,e outros bichos e animais muito danosos, esparzidospor charnecas e matos, a que os homens com seremtantos e matarem sempre neles, não podem acabarde dar fim como sabemos. [251] Quanto mais nesta província,onde os climas e qualidades dos ares terrestres,não são menos dispostos para os gerarem, do que a terraos criar. [252] Porém de quanta imundíce e variedade deanimais por ela espalhou a natureza, não havia lá nenhunsdomésticos, quando começaram os Portuguesesde a povoar. [253] Mas depois que a terra foi deles conhecida,e vieram a entender o proveito da criaçãoque nesta parte podiam alcançar, começaram-lhe alevar da ilha do Cabo Verde cavalos e éguas, deque agora há, já grande criação em todas as capitaniasdesta província. [254] E assim há também grande cópia

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de gado que da mesma ilha foi levado a estas partes, principalmentedo vacum há muita abundância: o qual pelospastos serem muitos, vai sempre em grande crescimento.[255] Os outros animais que na terra se acharam, todossão bravos de natureza, e alguns estranhos nunca vistosem outras partes: dos quais darei aqui logo notíciacomeçando primeiramente por aqueles que na terra secomem, de cuja carne os moradores são muito abastadosem todas as capitanias.

[256] Há muitos veados; e muita soma de porcos de diversascastas, convém a saber, há monteses como os destaterra: e outros mais pequenos que tem o umbigo nascostas, de que se mata na terra grande quantidade. [257] E outrosque comem e criam em terra, e andam debaixo d´águao tempo que querem: aos quais, como corram poucopor causa de terem os pés compridos, e as mãos curtas,proveu a natureza de maneira, que pudessem conservara vida debaixo da mesma água, aonde logo se lançamde mergulho, tanto que vem gente, ou qualquer outracoisa de que se temam. [258] E assim a carne destes como ados outros, é muito saborosa e tão sadia que se mandadar aos enfermos, porque para qualquer doença éproveitosa e não faz mal a nenhuma pessoa.

[259] Também há uns animais na terra, a que chamam Antasque são da feição de mulas, mas não tão grandes, etem o focinho mais delgado e um beiço comprido à maneirade tromba. [260] As orelhas são redondas e o rabo não

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muito comprido: e são cinzentas pelo corpo, e brancaspela barriga. [261] Estas Antas não saem a pastar senão denoite, e tanto que amanhece, metem-se em alguns brejos,ou na parte mais secreta que acham, e ali estão o dia todo,escondidas como aves noturnas a que a luz do diaé odiosa, até que anoitecendo, tornam outra vez a saire a pastar por onde querem como é seu costume. [262] A carne destes animais, tem o sabor como de vaca, da qualparece que se não diferencia coisa alguma.

[263] Outros animais há a que chamam Cotias, que são dotamanho de lebres: e quase tem a mesma semelhança, esabor. [264] Estas Cotias são ruivas, e tem as orelhas pequenas,e o rabo tão curto que quase se não enxerga.

[265] Há também outros maiores, a que chamam Pacas, quetem o focinho redondo, e quase da feição de gato, e orabo como o da Cotia. [266] São pardas e malhadas de pintasbrancas por todo corpo. [267] Quando querem guisá-laspara comer, pelam-nas como leitão, e não as esfolam,porque tem um couro muito tenro e saboroso, e a carnetambém é muito gostosa, e das melhores que há na terra.

[268] Outros há também nestas partes muito para notar, emais fora da comum semelhança dos outros animais (ameu juízo) que quantos até agora se tem visto. [269] Chamam-lhesTatus, e são quase tamanhos como leitões: tem umcasco como de cágado, o qual é repartido em muitas juntascomo lâminas e proporcionado de maneira, que parecetotalmente um cavalo armado. [270] Tem um rabo comprido

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todo coberto do mesmo casco: o focinho é como deleitão, ainda que mais delgado algum tanto, e não botamais fora do casco que a cabeça. [271] Tem as pernas baixas,e criam-se em covas como coelhos. [272] A carne destesanimais é a melhor e a mais estimada que há nesta terra,e tem o sabor quase como de galinha.

[273] Há também coelhos como os de cá da nossa pátria, decujo parecer não diferem coisa alguma.

[274] Finalmente que desta e de toda a mais caça de que acimatratei, participam (como digo) todos os moradores,e mata-se muita dela à custa de pouco trabalho emtoda a parte que querem: porque não há lá impedimentode coutadas como nestes Reinos, e um só Índio basta(se é bom caçador) a sustentar uma casa de carne domato: ao qual não escapa um dia por outro, que nãomate porco ou veado, ou qualquer outro animal destesde que fiz menção.

[275] Outros animais há nesta província muito feros, e prejudiciaisa toda esta caça, e ao gado dos moradores; aosquais chamam Tigres, ainda que na terra a mais da genteos nomeia por Onças: mas algumas pessoas que os conheceme os viram em outras partes, afirmam que são Tigres.[276] Estes animais parecem-se naturalmente com gatos, enão diferem deles em outra coisa salvo na grandezado corpo, porque alguns são tamanhos como bezerros,e outros mais pequenos. [277] Tem o cabelo dividido emvarias e distintas cores, convém a saber, em pintas brancas,

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pardas, e pretas. [278] Como se acham famintos entram nos currais do gado, e matam muitas vitelas e novilhos quevão comer ao mato, e o mesmo fazem a todo animalque podem alcançar. [279] E pelo conseguinte quando se vem perseguidosda fome, também cometem aos homens: e nestaparte são tão ousados, que já aconteceu trepar-se umÍndio a uma árvore por se livrar de um destes animais, queo ia seguindo, e por-se o mesmo Tigre ao pé da árvore,não bastando a espantá-lo alguma gente que acudiu dapovoação aos gritos do Índio, antes a todos os medos,se deixou estar muito seguro guardando sua presa, até quesendo noite se tornaram outra vez, sem ousarem de lhefazer nenhuma ofensa, dizendo ao Índio que se deixasseestar, que ele se enfadaria de o esperar. [280] E quando veio pelamanhã (ou porque o Índio se quis descer parecendo-lheque o Tigre era já ido, ou por acertar de cair por algumdesastre, ou pela via que fosse) não se achou aí mais deleque os ossos. [281] Porém pelo contrário, quando estão fartos,são muito covardes, e tão pusilânimes, que qualquercão que remete a eles, basta a fazê-los fugir: e algumas vezesacossados do medo, se trepam a uma árvore, e ali sedeixam matar às flechadas sem nenhuma resistência. [282] Enfimque a fartura supérflua, não somente apaga a prudência,a fortaleza do ânimo, e a viveza do engenho ao homem:mas ainda aos brutos animais inabilita e faz incapazesde usarem de suas forças naturais, posto que tenhamnecessidade de as exercitarem para defensão de sua vida.

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[283] Outro gênero de animais há na terra, a que chamam Cerigoês,que são pardos e quase tamanhos como raposas:os quais têm uma abertura na barriga ao comprido de maneiraque de cada banda lhes fica um bolso, onde trazem osfilhos metidos. [284] E cada filho tem sua teta pegada na boca,da qual a tiram nunca até que se acabam de criar.[285] Destes animais se afirma que não concebem nem geramos filhos dentro da barriga senão em aqueles bolsos,porque nunca de quantos se tomaram se achou algumprenhe. [286] E além disto há outras conjecturas muitoprováveis, por onde se tem por impossível parirem os taisfilhos, como todos os outros animais (segundo ordemde natureza) parem os seus.

[287] Um certo animal se acha também nestas partes, a quechamam Preguiça (que é pouco mais, ou menos do tamanhodestes) o qual tem um rosto feio, e umas unhas muitocompridas quase como dedos. [288] Tem uma gadelha grandeno toutiço que lhe cobre o pescoço, e anda sempre coma barriga lançada pelo chão, sem nunca se levantar em pécomo os outros animais: e assim se move com passos tãovagarosos, que ainda que ande quinze dias aturado, nãovencerá distância de um tiro de pedra. [289] O seu mantimento,é folhas de árvores e em cima delas anda o mais dotempo: aonde pelo menos há mister dois dias para subir,e dois para descer. [290] E posto que o matem com pancadas, nem que o persigamoutros animais, não se meneia uma hora mais que outra.

[291] Outro gênero de animais há na terra a que chamam

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Tamanduás, que serão tamanhos como carneiros: os quaissão pardos, e tem um focinho muito comprido e delgadopara baixo: a boca não tem rasgada como a dosoutros animais, e é tão pequena, que escassamentecaberão por ela dois dedos. [292] Tem uma língua muitoestreita e quase de três palmos em comprido. [293] As fêmeastem duas tetas no peito como de mulher, e o ubre lançadoem cima do pescoço entre as pás, donde lhes desceo leite às mesmas tetas com que criam os filhos. [294] E assimtem mais cada um deles duas unhas em cada mão tãocompridas como grandes dedos, largas à maneira de escóuparo. [295] Também pelo conseguinte tem um rabo muitocheio de sedas e quase tão compridas como as de umcavalo. [296] Todos estes extremos que se acham nestes animais,são necessários para conservação de sua vida: porquenão comem outra coisa senão formigas. [297] E comoisto assim seja, vão-se com aquelas unhas a arranhar nos formigueirosonde as há: e tanto que as tem agravadas, lançama língua fora, e põem-na ali naquela parte onde arranharam,a qual como se enche delas, recolhem para dentroda boca, e tantas vezes fazem isto, até que se acabamde fartar. [298] E quando se querem agasalhar, ou esconder dealguma coisa, levantam aquele rabo, e lançam-no por cimade si, debaixo de cujas sedas ficam todos cobertossem se enxergar deles coisa alguma.

[299] Bugios há na terra muitos e de muitas castas como jáse sabe: e por serem tão conhecidos em toda a parte,

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não particularizarei aqui suas propriedades tanto porextenso. [300] Somente tratarei em breves palavras algumacoisa destes de que particularmente entre os outros sepode fazer menção.

[301] Há uns ruivos não muito grandes que derramam desi um cheiro muito suave a toda pessoa que a eles se chega,e se os tratam com as mãos, ou se acertam de suar ficammuito mais odoríferos e alcança o cheiro a todosos circunstantes. [302] Destes há muito poucos na terra, e nãose acham senão pelo sertão dentro muito longe.

[303] Outros há perto maiores que estes, que tem barbacomo homem: os quais são tão atrevidos, que muitasvezes acontecem flecharemos Índios alguns, e eles tiraremas flechas do corpo com suas próprias mãos, e tornarema arremessá-las a quem lhes atirou. [304] Estes são muitobravos de sua natureza e mais esquivos de todos quantoshá nestas partes.

[305] Há também uns pequeninos pela costa de duas castaspouco maiores que doninhas, a que comummente chamamSagüis, convém a saber, há uns louros, e outrospardos. [306] Os louros tem um cabelo muito fino, e nasemelhança do vulto e feição do corpo quase se queremparecer com leão: são muito formosos, e não os há senãono rio de Janeiro. [307] Os pardos se acham daí para oNorte em todas as mais capitanias. [308] Também são muitoaprazíveis: mas não tão alegres à vista como estes.[309] E assim uns como outros, são tão mimosos e delicadosde sua natureza, que como os tiram da pátria e os embarcam

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para este Reino, tanto que chegam a outros aresmais frios quase todos morrem no mar, e não escapa senãoalgum de grande maravilha.

[310] Há também pelo mato dentro cobras muito grandes, e demuitas castas, a que os Índios dão diversos nomes conformea suas propriedades. [311] Umas há na terra tão disformesde grandes, que engolem um veado, ou qualquer outro animalsemelhante, todo inteiro. [312] E isto não é muito para espantar,pois vemos que nesta nossa pátria há hoje em dia cobrasbem pequenas que engolem uma lebre ou coelho da mesmamaneira, tendo um colo que à vista parece pouco mais grossoque um dedo: e quando vem a engolir estes animais, alarga-se,e dá de si de maneira, que passam por ele inteiros, eassim os estão sorvendo até os acabarem de meter no bucho,como entre nós é notório. [313] Quanto mais estoutras de quetrato, que por razão de sua grandeza fica parecendo a quemas viu menos dificultoso, engolirem qualquer animalda terra por grande que seja

[314] Outras há doutra casta diferente, não tão grandes comoestas: mas mais venenosas: as quais tem na ponta do rabouma coisa que soa quase como cascavel, e por onde quer quevão sempre andam rugindo, e os que as ouvem tem cuidadode se guardarem delas. [315] Além destas há outras muitasna terra de outras castas diversas (que aqui não refiro porescusar prolixidade) as quais pela maior parte são tãonocivas e peçonhentas (especialmente umas a que chamam Jararacas)que se acertam de morder alguma pessoa de maravilhaescapa, e o mais que dura são vinte e quatro horas.

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[316] Também há lagartos muito grandes pelas lagoas e riosde água doce, cujos testículos cheiram melhor que almíscar:e a qualquer roupa que os chegam fica o cheiropegado por muitos dias.

[317] Outros muitos animais e bichos venenosos há nestaprovíncia de que não trato, os quais são tantos em tantaabundância, que seria história muito comprida nomeá-losaqui todos, e tratar particularmente da natureza decada um, havendo (como digo) infinidade deles nestaspartes: aonde pela disposição da terra e dos climasque a senhoreiam, não pode deixar de os haver. [318] Porquecomo os ventos que procedem da mesma terra, se torneminfeccionados das podridões das ervas, matos e alagadiços,geram-se com a influência do Sol que nisto concorremuitos e muito peçonhentos, que por toda a terraestão esparzidos: e a esta causa se criam e acham nas partesmarítimas, e pelo sertão dentro infinitos da maneiraque digo.

Capítulo 7. Das aves que hánesta província.

[319] Entre todas as coisas de que na presente históriase pode fazer menção, a que mais aprazívele formosa se oferece à vista humana,é a grande variedade das finas e alegrescores das muitas aves que nesta província se criam

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as quais por serem tão diversas em tanta quantidade,não tratarei senão somente daquelas de que se podenotar alguma coisa, e que na terra são mais estimadas dosPortugueses e Índios que habitam estas partes.

[320] Há nesta província muitas aves de rapina muito formosase de várias castas, convém a saber, Águias, Açores, eGaviões, e outras doutros gêneros diversos e cores diferentes,que também tem a mesma propriedade. [321] AsÁguias são muito grandes e forçosas: e assim remetem comtanta fúria a qualquer ave, ou animal que querem prear,que às vezes acontece nestas partes virem algumas tãodesatinadas seguindo a presa, que marram nas casas dosmoradores, e ali caem à vista da gente sem mais se poderem levantar. [322] Os Índios da terra as costumam tomarem seus ninhos quando são pequenas, e criam-nas emumas sorças, para depois de grandes se aproveitarem daspenas em suas galantarias acostumadas. [323] Os Açores sãocomo os de cá, ainda que há um certo gênero deles quetem os pés todos velosos, e tão cobertos de pena queescassamente se lhes enxergam as unhas. [324] Estes são muitoligeiros e de maravilha lhe escapa ave, ou qualqueroutra caça a que remetam. [325] Os Gaviões também são muitodestros e forçosos: especialmente uns pequenos comoesmerilhões em sua quantidade o são tanto, que remetema uma perdiz e a levam nas unhas para onde querem.[326] E juntamente são tão atrevidos, que muitas vezes acontecedesferirem a qualquer ave e apanhá-la dentre a

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gente sem se quererem retirar nem largá-la por muito queos espantem. [327] As outras aves que na terra se comem, ede que os moradores se aproveitam são as seguintes.

[328] Há um certo gênero delas, a que chamam Macucagoás,que são pretas e maiores que galinhas: as quaistem três ordens de titelas, são muito gordas e tenras, eassim os moradores as tem em muita estima: porque sãoelas muito saborosas e mais que outras algumas que entrenós se comam.

[329] Também há outras quase tamanhas como estas, a quechamam Jacús, e nós lhe chamamos galinhas do mato.[330] São pardas e pretas, e tem um círculo branco na cabeçae o pescoço vermelho. [331] Matam-se na terra muitasdelas, e pelo conseguinte são muito saborosas e das melhoresque há no mato. [332] há também na terra muitas perdizes,pombas, e rolas como as deste Reino, e muitospatos e adens bravas pelas lagoas e rios desta costa: e outrasmuitas aves de diferentes castas, que não são menossaborosas e sadias, que as melhores que cá entre nósse comem, e se tem em mais estima.

[333] Papagaios há nestas partes muitos de diversas castas,e muito formosos, como cá se vêem alguns por experiência.[334] Os melhores de todos, e que mais raramente se acham naterra, são uns grandes, maiores que açores, a que chamamAnapurús. [335] Estes papagaios são variados de muitas cores,e criam-se muito longe pelo sertão dentro: e depoisque os tomam vêm a ser tão domésticos que põem ovos em

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casa e acomodam-se mais à conversação da gente que outraqualquer ave que haja, por mais doméstica e mansaque seja. [336] E por isso são tidos na terra em tanta estima, quevale cada um entre os Índios dois três escravos: e assimos Portugueses que os alcançam os tem na mesma estima:porque são eles além disso muito belos, e vestidoscomo digo de cores muito alegres e tão finas, que excedemna formosura a todas quantas aves há nestas partes.[337] Há outros quase do tamanho destes a que chamam Canindésque são todos azuis: salvo nas asas que tem algumaspenas amarelas. [338] Também são muito formosose estimados em grande preço de toda pessoa que os alcança.[339] Também se acham outros do mesmo tamanhopelo sertão dentro, a que chamam Araras, os quais sãovermelhos, semeados de algumas penas amarelas, etem as asas azuis e um rabo muito comprido e formoso.[340] Os outros mais pequenos, que mais facilmentefalam e melhor de todos, são aqueles a que na terracomummente chamam papagaios verdadeiros.[341] Os quais trazem os Índios do sertão a vender aos Portuguesesa troco de resgates. [342] Estes são pouco maisou menos do tamanho de pombas, verde claros, etem a cabeça quase toda amarela, e os encontrosdas asas vermelhas. [343] Outro gênero deles há pela costaentre os Portugueses do tamanho destes, a quechamam Corícas: os quais são vestidos de umapena verde escura, e tem a cabeça azul de cor

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de rosmaninho. [344] Destes papagaios há na terra mais quantidadedo que cá entre nós há de gralhas, ou de estorninhos,e não são tão estimados como os outos, porque gazeiammuito, e além disso falam dificultosamente e àcusta de muita indústria. [345] Mas quando vem a falar, passampelos outros e fazem-lhes nesta parte muita vantagem.[346] E por isso os Índios da terra costumam depenar algunsenquanto são novos, e tingi-los com o sangue deumas certas rãs, com outras misturas que lhe ajuntam:e depois que se tornam a cobrir de pena ficam nem maisnem menos da cor dos verdadeiros: e assim acontece muitasvezes enganarem com eles a algumas pessoas vendendo-lhospor tais. [347] há também uns pequeninos que vem dosertão, pouco maiores que pardais, a que chamam Tuins:aos quais vestiu a natureza de uma pena verde muitofina sem outra nenhuma mistura, e têm o bico e as pernasbrancas, e um rabo muito comprido. [348] Estes tambémfalam e são muito formosos e aprazíveis em extremo.[349] Outros há pela costa tamanhos como melros, a quechamam Maracanãs: os quais tem a cabeça grande e umbico muito grosso: também são verdes e falam comocada um dos outros.

[350] Algumas aves notáveis há também nestas partes aforaestas que tenho referido, de que também farei menção,e em especial tratarei logo de umas marítimas a que chamamGuarás: as quais serão pouco mais ou menos dotamanho de gaivotas. [351] A primeira pena de que a natureza

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as veste, é branca sem nenhuma mistura, e muito finaem extremo. [352] E por espaço de dois anos pouco maisou menos a mudam, e torna-lhes a nascer outra parda tambémmuito fina sem outra nenhuma mistura. [353] E pelo mesmotempo a diante a tornam a mudar, e ficam vestidasde uma muito preta distinta de toda outra cor. [354] Depoisdaí a certo tempo pelo conseguinte a mudam, e tornam-sea cobrir doutra muito vermelha, e tanto, como omais fino e puro carmesim que no mundo se pode ver:e nesta acabam seus dias.

[355] Umas certas aves se acham também na capitania de Pernambucopela terra dentro maiores duas vezes que galosdo Peru: as quais são pardas, e tem na cabeça acimado bico, um esporão muito agudo como corno,variado de branco e pardo escuro, quase do comprimentode um palmo, e três semelhantes a este em cada asa,algum tanto mais pequenos, convém a saber, uns nosencontros, outros nas juntas do meio, outos nas pontasdas mesmas asas. [356] estas aves tem o bico como de Águia,e os pés grossos e muito compridos. [357] Nos joelhostem uns calos tamanhos como grande punhos. [358] Quandopelejam com outras aves viram-se de costas, e assim se ajudamde todas estas armas que a natureza lhes deu parasua defensão.

[359] Outras aves há também nestas partes cujo nome a todoscá é notório: as quais ainda que tenham mais ofíciode animais terrestres, que de aves pela razão que

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logo direi, todavia por serem realmente aves de que se podeescrever, e terem a mesma semelhança, não deixareide fazer menção delas como de cada uma das outras.[360] Chamam-se Emas, as quais terão tanta carne comoum grande carneiro, e tem as pernas tão grandes quesão quase até os encontros das asas da altura de um homem.[361] O pescoço é muito comprido em extremo, e tem a cabeçanem mais nem menos como de pata: são pardas, brancase pretas, e variadas pelo corpo de umas penas muitoformosas que cá entre nós costumam servir nas gorras echapéus de pessoas galantes e que professam a arte militar.[362] Estas aves pastam ervas como qualquer outro animaldo campo, e nunca se levantam da terra, nemvoam como as outras, somente abrem as asas e com elasvão ferindo o ar ao longo da mesma terra: e assim nuncaandam senão em campinas onde se achem desempedidasde matos e arvoredos, para juntamente poderemcorrer e voar da maneira que digo.

[363] Doutras infinitas aves que há nestas partes, a que a naturezavestiu de muitas e muito finas cores, pudera tambémaqui fazer menção: mas como meu intento principal,não foi na presente história senão ser breve, efugir de coisas em que pudesse ser notado de prolixodos poucos curiosos (como já tenho dito) quis somenteparticularizar estas mais notáveis, e passar com silênciopor todas as outras, de que se deve fazer menoscaso.

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Capítulo 8. De alguns peixes notáveis, baleias eâmbar que há nestas partes.

[364] É tão grande a cópia do saboroso e sadiopescado que se mata, assim no mar alto,como nos rios e baías desta provínciade que geralmente os moradores sãoparticipantes em todas as capitanias, que estasó fertilidade bastara a sustentá-los abundantíssimamente,ainda que não houvera carnes nemoutro gênero de caça na terra de que se prouveram comoatrás fica declarado. [365] E deixando a parte a muita variedadedaqueles peixes que comummente não diferemna semelhança de cá, tratarei logo em especial de umcerto gênero deles que há nestas partes, a que chamam peixesbois: os quais são tão grandes, que os maiores pesam quarentacinqüenta arrobas. [366] Tem o focinho como de boi, e doiscotos com que nadam à maneira de braços. [367] As fêmeas tem duastetas com o leite das quais se criam os filhos. [368] O rabo é largorombo e não muito comprido. [369] Não tem feição alguma de nenhumpeixe somente na pele quer-se parecer com tuninha. [370] Estespeixes pela maior parte se acham em alguns rios, ou baíasdesta costa, principalmente onde algum ribeiro, ou regatose mete na água salgada são mais certos: porque botam ofocinho fora, e pastam as ervas que se criam em semelhantespartes, e também comem as folhas de umas árvores a quechamam Mangues, de que há grande quantidade ao longodos mesmos rios. [371] Os moradores da terra os matam comarpões, e também em pesqueiras costumam tomar alguns, porque

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vem com a enchente da maré aos tais lugares, e com avazante se tornam a ir para o mar donde vieram. [372] Estepeixe é muito gostoso em grande maneira, e totalmenteparece carne, assim na semelhança de lombo de porco.[373] Também se coze com couves e guisa-se como carne, eassim não há pessoa que o coma, que o julgue por peixe:salvo se o conhecer primeiro.

[374] Outros peixes há, a que chamam Camboropíns, quesão quase tamanhos como Atuns. [375] Estes tem umas escamasmuito duras, e maiores que os outros peixes: tambémse matam com arpões, e quando querem pescá-los, põem-seem alguma ponta ou pedra, ou em outro qualquer postoacomodado a esta pescaria. [376] E o que é bom pescador(para que não faça tiro em vão) quando os vê virdeixa-os primeiro passar, e espera até que fiquem a jeitoque possa arpoá-los por detrás de maneira, que o arpãoentre no peixe sem as escamas o impedirem, porque são(como digo) tão duras que se acerta de dar nelas de maravilhaas pode penetrar. [377] Este é um dos melhores peixesque há nestas partes, porque além de ser muito gostoso,é também muito sadio, e mais enxuto de sua propriedadeque outro algum que na terra se coma.

[378] Também há outra casta deles a que chamam Tamoatás, quesão pouco mais ou menos do tamanho de sardinhas, enão se criam senão em água doce. [379] Estes peixes são todoscobertos de umas conchas, distintas naturalmente como

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lâminas, com as quais andam armados da maneira dosTatus de que atrás fiz menção, e são muito saborosose os moradores da terra os tem em muita estima.

[380] Há também um certo gênero de peixes pequeninos, dafeição de xarrocos, a que chamam Baiacús: os quais sãomuito peçonhentos por extremo, especialmente a pele o étanto, que se uma pessoa gostar um só bocado dela, logo naquelamesma hora dará fim a sua vida: porque não há, nem sesabe nenhum remédio na terra, que possa apagar nem deterpor algum espaço o ímpeto deste mortífero veneno. [381] AlgunsÍndios da terra se aventuram a comê-los depois quelhe tiram a pele, e lhe lançam força por baixo toda aquelaparte onde dizem que tem a força da peçonha. [382] Mas sem embargodisso, não deixam de morrer algumas vezes. [383] Estespeixes tanto que saem fora da água incham de maneira, queparecem uma bexiga cheia de vento: e além de terem esta qualidade,são tão mansos que os podem tomar às mãos sem nenhumtrabalho: e muitas vezes andam à borda d'água tãoquietos, que não os verá pessoa que se não convide a tomá-los,e ainda a comê-los se não tiver conhecimento deles[384] Outros peixes não sinto nestas partes de que possa fazer aquiparticular menção: porque em todos os demais, nãohá (como digo) muita diferença dos de cá, e a maiorparte deles são da mesma casta: mas muito mais saborosos,e tão sadios, que não se vedam nem fazem mal aos doentese para quaisquer enfermidades são muito leves: e de todamaneira que os comam não ofendem a saúde.

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[385] Não me pareceu também coisa fora de propósito, tratar aquialguma coisa das Baleias e do âmbar que dizem que procededelas. [386] E o que acerca disto sei, que há muitas nestas partesas quais costumam vir da arribação a esta costa, em uns temposmais que outros, que são aqueles em que assinaladamete saio âmbar que o mar de si lança fora em diversas partes destaprovíncia. [387] E daqui vem a muitos terem para si que não é outracoisa este âmbar, senão esterco de Baleias: e assim lhochamam os Índios da terra pela sua língua, sem lhe saberemdar outro nome. [388] Outros querem dizer, que é sem nenhumafalta a esperma da mesma Baleia: mas o que se tem por certo(deixando estas e outras erradas opiniões a parte) é que nasceeste licor no fundo do mar, não geralmente em todo: masem algumas partes dele, que a natureza acha dispostas para ocriar. [389] E como o tal licor seja manjar das Baleias, afirma-seque comem tanto dele, até se embebedarem, e que este que sai naspraias, é o sobejo que elas arremessam. [390] E se isto assim nãofora desta maneira, e ele procedera das mesmas Baleiaspor qualquer das outras vias que acima fica dito, de crer é, quetambém o houvera da mesma maneira em qualquer outra costadestes Reinos, pois em toda parte do mar são gerais.[391] Quanto mais que nesta província de que trato, se fez já experiênciaem muitas delas que saíram à costa, e dentro das tripas dealgumas, acharam muito âmbar, cuja virtude iam já digerindo,por haver algum espaço que o tinham comido. [392] E noutraslhe acharam no bucho outro ainda fresco e em sua perfeição,que parece que o acabaram de comer naquela hora antes que morressem. [393] Pois o esterco naquela parte onde a natureza

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o despede, não tem nenhuma semelhança de âmbar, nem se enxerganele ser menos digesto que o dos outros animais.[394] Por onde se mostra claro, que a primeira opinião não fica verdadeira,nem a segunda tampouco o pode ser: porque a espermadestas Baleias, é aquilo a que chamam bálsamo, de que há por essemar grande quantidade, o qual dizem que aproveita para feridase por tal é conhecido de toda a pessoa que navega.

[395] Este âmbar todo quando logo sai, vem solto como sabão equase sem nenhum cheiro: mas daí a poucos dias se endurece,e depois disso fica tão odorífero como todos sabemos. [396] Hátodavia âmbar de duas castas [397].s. um pardo a que chamam grisoutro preto: o pardo é muito fino e estimado em grandepreço em todas as partes do mundo: o preto é mais baixonos quilates do cheiro, e presta para muito pouco segundoo que dele se tem alcançado: mas de um e do outro, há saídomuito nesta província, e sai hoje em dia, de que alguns moradoresenriqueceram e enriquecem cada hora como é notório.[398] Finalmente que como Deus tenha de muito longe estaterra dedicada à Cristandade, e o interesse seja o que maisleva os homens trás si que outra nenhuma coisa que haja na vida,parece manifesto querer entretê-los na terra com esta riquezado mar, até chegarem a descobrir aquelas grandes minasque a mesma terra promete, para que assim desta maneiratragam ainda toda aquela cega e bárbara gente que habita nestaspartes ao lume e conhecimento da nossa santa Fécatólica, que será descobrir-lhe outras minas maiores nocéu: o qual nosso Senhor permita que assim seja, para glóriasua, e salvação de tantas almas.

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Capítulo 9. Do Monstro marinho que se matouna capitania de São Vicente noano de 1564

[399] FOI coisa nova, e tão desusada aosolhos humanos, a semelhança daquele feroe espantoso monstro marinho que nestaprovíncia se matou no ano de 1564 queainda que por muitas partes do mundo setenha já notícia dele, não deixarei todavia de a dar aquioutra vez de novo, relatando por extenso tudo o queacerca disto passou. [400] Porque na verdade a maior partedos retratos, ou quase todos, em que querem mostrara semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados,e além disso, conta-se o sucesso de sua morte pordiferentes maneiras, sendo a verdade uma só, a qual éa seguinte. [401] Na capitania de São Vicente, sendo já altanoite a horas em que todos começavam de se entregarao sono, acertou de sair fora de casa uma Índia escravado capitão: a qual lançando os olhos a uma várzea queestá pegada com o mar, e com a povoação da mesmacapitania, viu andar nela este monstro, movendo-se deuma parte para outra, com passos e meneios desusados,e dando alguns urros de quando em quando tão feios,que como pasmada e quase fora de si, se veio ao filho domesmo capitão, cujo nome era Baltesar Ferreira, e lhedeu conta do que vira, parecendo-lhe que era alguma visão

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diabólica. [402] Mas como ele fosse homem não menos sisudoque esforçado, e esta gente da terra seja digna de poucocrédito, não lho deu logo muito a suas palavras, edeixando-se estar na cama, a tornou outra vez a mandarfora dizendo-lhe que se afirmasse bem no que era. [403] E obedecendoa Índia a seu mandado foi: e tornou mais espantada,afirmando-lhe e repetindo-lhe uma vez e outra,que andava ali uma coisa tão feia, que não podia sersenão o demônio. [404] Então se levantou ele muito depressa,e lançou mão a uma espada que tinha junto de si, coma qual botou somente em camisa pela porta fora, tendopara si (quando muito) que seria algum Tigre, ou outroanimal da terra conhecido com a vista do qual se desenganassedo que a Índia lhe queria persuadir. [405] E pondoos olhos naquela parte que ela lhe assinalou, viu confusamenteo vulto do monstro ao longo da praia, sempoder divisar o que eram por causa da noite lho impedire o monstro também ser coisa não vista, e fora do parecerde todos os outros animais. [406] E chegando-se umpouco mais a ele para que melhor se pudesse ajudar da vista,foi sentindo do mesmo monstro: o qual em levantando acabeça, tanto que o viu, começou de caminhar para o mardonde viera. [407] Nisto conheceu o mancebo que era aquilocoisa do mar, e antes que nele se metesse, acodiu commuita presteza a tomar-lhe a dianteira. [408] E vendo o monstroque ele lhe embargava o caminho, levantou-se direitopara cima como um homem, fincado sobre as barbatanas

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do rabo, e estando assim a par com ele, deu-lhe umaestocada pela barriga, e dando-lha no mesmo instantese desviou para uma parte com tanta velocidade, que nãopode o Monstro levá-lo debaixo de si: porém não poucoafrontado, porque o grande torno de sangue que saiuda ferida, lhe deu no rosto com tanta força que quase ficousem nenhuma vista. [409] E tanto que o Monstro se lançouem terra deixa o caminho que levava, e assim ferido urrandocom a boca aberta sem nenhum medo, remeteua ele e indo para o tragar a unhas e a dentes, deu-lhe nacabeça uma cutilada muito grande: com a qual ficou já muitodébil, e deixando sua vã porfia, tornou então a caminharoutra vez para o mar. [410] Neste tempo acodiram algunsescravos aos gritos da Índia que estava em vela: echegando a ele o tomaram todos já quase morto, e dalio levaram dentro à povoação, onde esteve o dia seguinteà vista de toda gente da terra. [411] E com este mancebo sehaver mostrado neste caso tão animoso como se mostroue ser tido na terra por muito esforçado, saiu todaviadesta batalha tão sem alento, e com a visão deste medonhoanimal ficou tão perturbado e suspenso, que perguntando-lheo pai, que era o que lhe havia sucedido, nãolhe pode responder: e assim esteve como assombrado semfalar coisa alguma por um grande espaço. [412] O retrato desteMonstro, é este que no fim do presente capítulo se mostra,tirado pelo natural. [413] Era quinze palmos de compridoe semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha

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umas sedas muito grandes como bigodes. [414] Os Índios da terralhe chamam em sua língua Hipupiára, que quer dizerdemônio d'água. [415] Alguns como este se viram já nestas partes:mas acham-se raramente. [416] E assim também deve de haveroutros muitos monstros de diversos pareceres, que noabismo desse largo e espantoso mar se escondem, de nãomenos estranheza e admiração: e tudo se pode crerpor difícil que pareça: porque os segredos da naturezanão foram revelados todos ao homem, para que comrazão possa negar, e ter por impossível as coisas que nãoviu, nem de que nunca teve notícia.

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Capítulo. 10. Do gentio que há nesta província, dacondição e costume dele, e de como segovernam na paz.

[417] JÁ que tratamos da terra, e das coisas quenela foram criadas para o homem, razãoparece que demos aqui a notícia dos naturaisdela: a qual posto que não seja de todosem geral, será especialmente daqueles quehabitam pela costa, e em parte pelo sertão dentro muitasléguas com que temos comunicação. [418] Os quais aindaque estejam divisos, e haja entre eles diversos nomes denações, todavia na semelhança, condição, costumes,e ritos gentílicos todos são uns. [419] E se nalguma maneiradiferem nesta parte, é tão pouco, que se não pode fazercaso disso, nem particularizar coisas semelhantes, entreoutras mais notáveis, que todos geralmente seguemcomo logo adiante direi.

[420] Estes Índios são de cor baça e cabelo corredio: tem orosto amassado e algumas feições dele à maneira deChins. [421] Pela maior parte são bem dispostos, rijos e deboa estatura: gente muito esforçada e que estima poucomorrer, temerária na guerra e de muito pouca consideração.[422] São desagradecidos em grande maneira, e muitodesumanos e cruéis, inclinados a pelejar, e vingativospor extremo. [423] Vivem todos muito descansados sem teremoutros pensamentos, senão de comer, beber, e matar

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gente, e por isso engordam muito: mas com qualquer desgostopelo conseguinte tornam a emagrecer. [424] E muitasvezes pode neles tanto a imaginação, que se algum desejaa morte, ou alguém lhes mete em cabeça que há de morrertal dia, ou tal noite, não passa daquele termo que não morra.[425] São muito inconstantes e mutáveis: crêem de ligeiro tudoaquilo que lhe persuadem por dificultoso e impossívelque seja, e com qualquer disuasão facilmente o tornamlogo a negar. [426] São muito desonestos e dados à sensualidade,e assim se entregam aos vícios como se neles nãohouvera razão de homens: ainda que todavia em seu ajuntamentoos machos com as fêmeas tem o devido resguardo,e nisto mostram ter alguma vergonha.

[427] A língua de que usam, toda pela costa é uma: ainda queem certos vocábulos difere nalgumas partes: mas não demaneira que se deixem uns aos outros de entender: e istoaté altura de vinte e sete graus, que daí por diante, háoutra gentilidade de que nós não temos tanta notícia,que falam já outra língua diferente. [428] Esta de que trato que égeral pela costa, é muito branda, e a qualquer nação fácilde tomar. [429] Alguns vocábulos há nela de que não usam senãoas fêmeas: e outros que não servem senam para osmachos. [430] Carece de três letras, convém a saber, não se achanela, f, nem, l, nem, R, coisa digna de espanto, porque assimnão tem Fé, nem Lei, nem Rei: e desta maneira vivemdesordenadamente sem terem além disto conta, nempeso, nem medido. [431] Não adoram a coisa alguma, nem tem

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para si que há depois da morte glória para os bons, e penapara os maus [432] E o que sentem da imortalidade da alma nãoé mais que terem para si que seus defuntos andam na outravida feridos, despedaçados, ou de qualquer maneira que acabaramnesta. [433] E quando algum morre, costumam enterrá-loem uma cova assentado sobre os pés com sua rede às costasque em vida lhe servia de cama. [434] E logo pelos primeiros diaspõem-lhe seus parentes de comer em cima da cova, e tambémalguns lho costumam a meter dentro quando o enterram, e totalmentecuidam que comem, e dormem na rede que têm consigo namesma cova. [435] Esta gente não tem entre si nenhum Rei nem outrogênero de justiça, senão um principal em cada aldeia, que écomo capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força.[436] Quando este morre fica seu filho no mesmo lugar porsucessão, e não serve de outra coisa senão de ir com elesà guerra, e aconselhá-los como se hão de haver na peleja: masnão castiga seus erros, nem manda sobre eles coisa alguma contrasuas vontades. [437] E assim a guerra que agora têm uns contra outros,não se levantou na terra por serem diferentes em leis nem emcostumes, n por cobiça alguma de interesse: mas porque antigamenteẽse algum acertava de matar outro, como aindaagora algumas vezes acontece (como eles sejam vingativos evivam como digo absolutamente sem terem superior algum a quemobedeçam nem temam) os parentes do morto se conjuravam contrao matador e sua geração e se perseguiam com tão mortal ódiouns a outros, que daqui veio dividirem-se em diversos bandos, eficarem inimigos da maneira que agora estão. [438] E porque estas

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dissensões não fossem tanto por diante, determinaramatalhar a isto usando do remédio seguinte, para por estavia se poderem melhor conservar na paz e se fazerem maisfortes contra seus inimigos. [439] E é que quando o tal caso acontecede um matar a outro, os mesmos parentes do matadorfazem justiça dele, e logo à vista de todos o afogam.[440] E com isto os da parte do morto ficam satisfeitos, e uns eoutros permanecem em suas amizades como dantes. [441] Porémcomo esta lei seja voluntária e executada sem rigor, nemobrigação de justiça alguma, não querem alguns estar porela, e daqui vêm logo pelo mesmo caso a dividirem-se, elevantarem-se de parte a parte uns contra os outros comojá disse.

[442] As povoações destes Índios, são aldeias: cada uma delastem sete oito casas, as quais são muito compridas, feitasà maneira de cordoarias ou tarracenas, fabricadas somentede madeira, e cobertas com palma ou com outras ervasdo mato semelhantes: estão todas cheias de gente de umaparte e doutra, e cada um por si, tem a sua estância e suarede armada em que dorme: e assim estão uns juntos dos outrospor ordem, e pelo meio da casa fica um caminho abertopor onde todos se servem como dormitório, ou coxiade galé. [443] Em cada casa destas vivem todos muito conformes,sem haver nunca entre eles nenhumas diferenças:antes são tão amigos uns dos outros, que o que é de um éde todos, e sempre de qualquer coisa que um coma por pequenaque seja todos os circunstantes hão de participar dela.

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[35] nota à margem: 35

[444] Quando alguém os vai visitar a suas aldeias, depois quese assenta, costumam chegarem-se a ele algumas moças escabeladas,e recebem-no com grande pranto derramandomuitas lágrimas, perguntando-lhe (se é seu natural) ondeandou, que trabalhos foram os que passou depois que daíse foi: trazendo-lhe à memória muitos desastres que lhe puderamacontecer: buscando enfim para isto as mais tristese sentidas palavras que podem achar, para provocarema choro. [445] E se é Português, maldizem a pouca dita de seusdefuntos pois foram tão mal afortunados que não alcançaramver gente tão valorosa e luzida como são osPortugueses, de cuja terra todas as boas coisas lhe vemnomeando algumas que eles tem em muita estima. [446] Esterecebimento que digo é tão usado entre eles, que nuncaou de maravilha deixam de o fazer: salvo quando reinamalguma malícia contra os que os vão visitar, e lhes queremfazer alguma traição.

[447] As invenções e galantarias de que usam, são trazerem algunso beiço de baixo furado, e uma pedra comprida metidano buraco. [448] Outros há que trazem o rosto todo cheio de buracose de pedras, e assim parecem muito feios e disformes: eisto lhes fazem enquanto são meninos. [449] Também costumamtodos arrancarem a barba, e não consentem nenhum cabeloem parte alguma do seu corpo: salvo na cabeça, aindaque ao redor dela por baixo tudo arrancam. [450] As fêmeasprezam-se muito de seus cabelos, e trazem-nos muito compridos,limpos e penteados, e as mais delas enastrados.

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[451] E assim também machos como fêmeas costumam tingir-sealgumas vezes com o sumo de um certo pomo que se chamaJenipapo, que é verde quando se pisa, e depois que o põem nocorpo e se enxuga, fica muito negro, e por muito que se lave,não se tira senão aos nove dias.

[452] As mulheres com que costumam casar, são suas sobrinhas filhasde seus irmãos, ou irmãs: estas tem por legítimas everdadeiras mulheres, e não lhas podem negar seus pais,nem outra pessoa alguma pode casar com elas, senão os tios.[453] Não fazem nenhumas cerimônias em seus casamentos, nem usamde mais neste ato, que levar cada um sua mulher para sicomo chega a uma certa idade por que esperam, o que serão entãode quatorze ou quinze anos pouco mais ou menos.[454] Alguns deles têm três quatro mulheres, a primeira têm em muitaestima e fazem dela mais caso que das outras. [455] E isto pelamaior parte se acha nos principais, que o têm por estado e porhonra, e prezam-se muito de se diferenciarem nisto dos outros.

[456] Algumas Índias há também entre eles que determinam deser castas: as quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade,nem o consentirão ainda que por isso as matem. [457] Estasdeixam todo o exercício de mulheres e imitam os homense seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas.[458] Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos,e vão à guerra com seus arcos e flechas e à caça perseverandosempre na companhia dos homens, e cada umatem mulher que a serve com que diz que é casada, e assim secomunicam e conversam como marido e mulher.

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[459] Todas as outras Índias quando parem, a primeira coisa quefazem depois do parto, lavam-se todas em uma ribeira, e ficamtão bem dispostas como se não pariram, e o mesmofazem à criança que parem. [460] Em lugar delas se deitamseus maridos nas redes, e assim os visitam e curam como seeles fossem as mesmas paridas. [461] Isto nasce de elas teremem muita conta os pais de seus filhos e desejarem emextremo depois que parem deles de em tudo lhes comprazer.

[462] Todos criam seus filhos viciosamente sem nenhuma maneirade castigo, e mamam até idade de sete oito anos, se asmães até então não acertam de parir outros que os tirem dasvezes. [463] Não há entre eles nenhumas boas artes a que se dêem, nem seocupam noutro exercício, senão em granjear com seuspais o que hão de comer, debaixo de cujo amparo estãoagasalhados até que cada um por si é capaz de buscar suavida sem mais esperarem heranças deles, nem legítimasde que enriqueçam, somente lhe pagam com aquela criaçãoem que a natureza foi universal a todos os outrosanimais que não participam da razão. [464] Mas a vida que buscam,e granjearia de que todos vivem, é à custa de poucotrabalho, e muito mais descansada que a nossa: porquenão possuem nenhuma fazenda, nem procuram adquiri-la comoos outros homens, e assim vivem livres de toda cobiçae desejo desordenado de riquezas, de que as outras naçõesnão carecem: e tanto, que ouro nem prata nempedras preciosas tem entre eles nenhuma valia, nempara seu uso tem necessidade de nenhuma coisa destas ;

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nem doutras semelhantes. [465] Todos andam nus e descalçosassim machos como fêmeas, e não cobrem parte algumade seu corpo. [466] As camas em que dormem, são umas redes defio de algodão que as Índias tecem num tear feito à sua arte:as quais têm nove dez palmos de comprido, e apanham-nas comuns cordéis que lhe rematam nos cabos em que lhes fazem umasaselhas de cada banda por onde as penduram de uma partee doutra, e assim ficam dois palmos, pouco mais oumenos suspendidas do chão, de maneira que lhes possamfazer fogo debaixo para se aquentarem de noite, ou quandolhes for necessário. [467] Os mantimentos que plantam emsuas roças com que se sustentam, são aqueles de que atrás fiz menção.s. mandioca e milho zaburro. [468] Além disto ajudam-seda carne de muitos animais que matam, assim com flechas comopor indústria de seus laços e fojos, onde costumamcaçar a maior parte delles. [469] Também se sustentam do muitomarisco e peixes que vão pescar pela costa em jangadas,que são uns três ou quatro paus pegados nos outros e juntosde modo que ficam à maneira dos dedos de uma mãoestendida, sobre os quais podem ir duas ou três pessoas, oumais se mais forem os paus, porque são muito leves e sofremmuito peso em cima d´água. [470] Tem quatorze, ou quinzepalmos de comprimento, e de grossura ao redor ocuparãodois pouco mais ou menos. [471] Desta maneira vivemtodos estes Índios sem mais terem outras fazendas entresi, nem granjearias em que se desvelem: nem tampoucoestados nem opiniões de honra, nem pompas para que as hajam

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mister: porque todos (como digo) são iguais, e emtudo tão conformes nas condições, que ainda nesta partevivem justamente e conforme à lei de natureza.

Capítulo 11. Das guerras que tem uns com outros ea maneira de como se hão nelas

[472] Estes Índios tem sempre grande guerras unscontra outros e assim nunca se acha nelespaz, nem será possível (segundo são vingativose odiosos) vedarem-se entre eles estasdiscórdias por outra nenhuma via, se não for por meios dadoutrina Cristã com que os Padres da companhia pouco apouco os vão amansando como adiante direi. [473] As armascom que pelejam, são arcos e flechas, nas quais andam tão exercitadosque de maravilha erram a coisa que apontem por difícilque seja de acertar. [474] E no despedir delas são muito ligeirosem extremo, e sobretudo muito arriscados nos perigose atrevidos em grande maneira contra seus adversários.[475] Quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória,e que nenhum de sua companhia há de morrer, e assim empartindo, dizem, vamos matar sem mais outro discursonem consideração: e não cuidam que também podem ser vencidos.[476] E somente com esta sede de vingança, sem esperanças dedespojos, nem doutro algum interesse que a isso os mova, vãomuitas vezes buscar seus inimigos muito longe caminhandopor serras, matos e desertos e caminhos muito ásperos.[477] Outros costumam ir por mar de umas terras para outras

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em umas embarcações a que chamam Canoas quando queremfazer alguns saltos ao longo da costa. [478] Estas Canoas são feitasà maneira de lançadeiras de tear de um só pau, em cadauma das quais vão vinte trinta remeiros. [479] Além destashá outras que são da casca de um pau do mesmo tamanho,que se acomodam muito às ondas, e são muito ligeiras,ainda que menos seguras: porque se se alagam vão-se ao fundoo que não tem as de pau, que de qualquer maneira sempreandam em cima d'água. [480] E quando acontece alagar-se algumaos mesmos Índios, se lançam ao mar, e a sustentam até quea acabam de esgotar, e outra vez se embarcam nela e tornama fazer sua viagem.

[481] Todos em seus combates são determinados, e pelejammuito animosamente sem nenhumas armas defensivas: e assimparece coisa estranha ver dois três mil homens nus de partea parte flechar uns aos outros com grandes assobios e grita,meneando-se todos com grande ligeireza, de uma partepara outra, para que não possam os inimigos apontarnem fazer tiro em pessoa certa. [482] Porém pelejam desordenadamente,e desmandam-se muito uns e outros em semelhantesbrigas, porque não têm capitão que os governe, nemoutros oficiais de guerra, a que hajam de obedecer nos taistempos. [483] Mas ainda que desta ordenança careçam, todavia poroutra parte, dão-se a grande manha em seus cometimentos,e são muito cautos no escolher do tempo em que hãode fazer seus assaltos nas aldeias dos inimigos: sobre os quaiscostumam dar de noite a hora que os achem mais descuidados.[484] E quando acontece não poderem logo entrá-los por alguma

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cerca de madeira lhes ser impedimento que eles têm ao redorda aldeia para sua defensão, fazem outra semelhante algumtanto separada da mesma aldeia: e assim a vão chegandocada noite dez doze passos até que um dia amanhece pegadacom a dos contrários, onde muitas vezes se acham tão vizinhosque vem a quebrar as cabeças, com paus que arremessamuns aos outros. [485] Mas pela maior parte os que estão na aldeiaficam melhorados da peleja, e as mais das vezes se tornamos cometedores desbaratados para suas terras sem conseguiremvitória, nem triunfarem de seus inimigos, comopretendiam: e isto assim por não terem armas defensivasnem outros apercebimentos necessários para se entreteremnos cercos, e fortificarem contra seus inimigos, comotambém por seguirem muito agouros, e qualquer coisaque se lhes antolha ser bastante a retirá-los de seu intento,e tão inconstantes e pusilânimes são nesta parte, que muitasvezes com partirem de suas terras muito determinados:e desejosos de exercitarem sua crueldade, se acontece encontraruma certa ave, ou qualquer outra coisa semelhante queeles tenham por ruim prognóstico, não vão mais por diante comsua determinação, e dali consultam tornar-se outra vez semhaver algum da companhia que seja contra este parecer. [486] Assim que comqualquer abusam destas a todo tempo se abalam muito facilmente,ainda que estejam muito perto de alcançar vitória: porquejá aconteceu terem uma aldeia quase rendida, e por um papagaioque havia nela falar umas certas palavras que lhe eles tinham ensinado,levantaram o cerco e fugiram sem esperarem o bom sucesso

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que o tempo lhes prometia, crendo sem dúvida que se assim o nãofizeram, morreram todos a mão de seus inimigos. [487] Masafora esta pusilanimidade a que estão sujeitos, são muitoatrevidos (como digo) e tão confiados em sua valentia,que não há forças de contrários tão poderosas que os assombrem,nem que os façam desviar de suas bárbaras e vingativastenções. [488] A este propósito contarei alguns casos notáveisque aconteceram entre eles, deixando outros muitosa parte de que eu pudera fazer um grande volume, se minhatenção fora escrevê-los em particular como cada umdos seguintes.

[489] Na capitania de São Vicente sendo capitão Jorge Ferreira,aconteceu darem os contrários em uma aldeia que estava nãomuito longe dos Portugueses, e neste assalto matarem um filhodo Principal da mesma aldeia. [490] E porque ele era bem quistoe amado de todos, não havia pessoa nela que o não pranteasse,mostrando com lágrimas e palavras magoadas o sentimentode sua morte. [491] Mas o pai como corrido e afrontadode não haver ainda neste caso tomado vingança, pediu atodos com eficácia que se o amavam dissimulassem a perda deseu filho, e que por nenhuma via o quisessem chorar. [492] Passados trêsou quatro meses depois da morte do filho, mandou apercebersua gente como convinha, por lhe parecer aqueletempo mais favorável e acomodado a seu propósito:o que todos logo puseram em efeito. [493] E dali a poucosdias deram consigo na terra dos contrários (que seria distênciade três jornadas pouco mais ou menos) onde fizeram suas

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ciladas junto da aldeia em parte que mais pudessem ofendera seus inimigos: e tanto que anoiteceu, o mesmo Principalse apartou da companhia com dez ou doze flecheirosescolhidos de que ele mais se confiava, e com eles entrouna mesma aldeia dos inimigos, que o haviam ofendido: edeixando-os a parte só sem outra pessoa o seguir, começoude rodear uma casa e outra espreitando com muita cautelade maneira que não fosse sentido: e da prática que elestinham uns com outros veio a conhecer pela notíciado nome qual era, e onde estava o que havia morto seufilho, e para se acabar de satisfazer, chegou-se da banda defora a sua estância, e como foi bem certificado de ele seraquele, deixou-se ali estar lançado em terra esperando que seaquietasse a gente. [494] E tanto que viu horas acomodadaspara fazer a sua, rompeu a palma muito mansamente, de quea casa estava coberta, e entrando foi-se direito ao matador,ao qual cortou logo a cabeça em breve espaço comum cutelo que para isso levava. [495] Feito isso tomou-a nasmãos e saiu-se fora a seu salvo. [496] Os inimigos que neste tempoacordaram ao reboliço e estrondo do morto, conhecendoserem contrários, começaram de os seguir. [497] Mascomo seus companheiros que ele havia deixado em guardaestavam prontos, ao sair da casa mataram muitosdeles, e assim se foram defendendo até chegarem as ciladas,donde todos saíram com grande ímpeto contra os queos seguiam, e ali mataram muitos mais. [498] E com esta vitóriase vieram recolhendo para sua terra com muito prazer e contentamento.

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[499] E o Principal que consigo trazia a cabeçado inimigo, chegando a sua aldeia a primeira coisa que fezfoi-se ao meio do terreiro da mesma aldeia, e ali a fixounum pau à vista de todos dizendo estas palavras. [500] Agora companheirose amigos meus que eu tenho vingada a mortede meu filho, e trazida a cabeça do que o matou diantevossos olhos, vos dou licença que o choreis muito embora:que dantes com mais razão me podereis a mim chorar,enquanto vos parecia que por algum descuido dilatavaesta vingança, ou que por ventura esquecido detão grande ofensa já não pretendia tomá-la, sendo euaquele a quem mais devia tocar o sentimento de suamorte. [501] Dali por diante foi sempre este Principal muitotemido, e ficou seu nome afamado por toda aquelaterra.

[502] Outro caso de não menos admiração aconteceu entrePorto Seguro e o Espírito Santo, naquelas guerrasonde mataram Fernão de Sá filho de Mem de Sá, que entãoera Governador geral destas partes. [503] E foi que tendoos Portugueses rendida uma aldeia com favor de alguns Índiosnossos amigos que tinham de sua parte, chegarama uma casa para fazerem presa nos inimigos como já tinhamfeito em cada uma das outras. [504] Mas eles deliberados amorrer, não consentiram que nenhum entrasse dentro;e os de fora vendo sua determinação, e que pornenhuma via se queriam entregar, disseram-lhes que se logoa hora o não faziam, lhes haviam de por fogo à casa

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sem nenhuma remissão. [505] E vendo os nossos que com elesnão aproveitava este desengano, antes se punham dedentro em determinação de matar quantos pudessem,lhes puseram fogo: e estando a casa assim ardendo, o Principaldeles vendo que já não tinham nenhum remédiode salvação nem de vingança, e que todos começavamde arder remeteu de dentro com grande fúria a outroPrincipal dos contrários que passava por defronte da portada banda de fora, e de tal maneira o abarcou, que semse poder livrar de suas mãos, o meteu consigo em casa,e no mesmo instante se lançou com ele na fogueira,onde arderam ambos com os mais que lá estavam semescapar nenhum.

[506] Neste mesmo tempo e lugar deu um Português umatão grande cutilada a um Índio, que quase o cortoupelo meio: o qual caindo no chão já como morto, antesque acabasse de expirar, lançou a mão a uma palhaque achou diante de si, e atirou com ela ao que o matara,como que se dissera. [507] Recebe-me a vontade que tenão posso mais fazer que isto que te faço em sinal devingança. [508] Donde verdadeiramente se pode inferir quenenhuma coisa os atormenta mais na hora de suamorte que a mágoa que levam de se nãopoderem vingar de seusinimigos.

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Capítulo 12. Da morte que dão aos cativose crueldade que usam com eles.

[509] UMA das coisas em que estes Índios maisrepugnam o ser da natureza humana, e emque totalmente parece que se extremamdos outros homens, é nas grandes e excessivascrueldades que executam em qualquerpessoa que podem haver às mãos, como não seja de seurebanho. [510] Porque não tão somente lhe dão cruel morteem tempo que mais livres e desempedidos estão de toda apaixão: mas ainda depois disso, por se acabarem de satisfazerlhe comem todos a carne, usando nesta parte decruezas tão diabólicas, que ainda nela se excedem aosbrutos animais que não tem uso de razão, nem foramnascidos para obrar clemência.

[511] Primeiramente quando tomam algum contrário, se logonaquele flagrante o não matam, levam-no a suas terraspara que mais a seu sabor se possam todos vingar dele.

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[512] E tanto que a gente da aldeia tem notícia que eles trazemo tal cativo, daí lhe vão fazendo um caminho até obrade meia légua pouco mais ou menos onde o esperam.[513] Ao qual em chegando, recebem todos com grande afrontase vitupérios, tangendo-lhe umas flautas que costumam fazerdas canas das pernas doutros contrários semelhantesque matam da mesma maneira. [514] E como entram na aldeiadepois de assim andarem com ele triunfando de uma partepara outra, lançam-lhe ao pescoço uma corda de algodãoque para isso tem feita, a qual é muito grossa, quantonaquela parte que o abrange, e tecida ou enlaçada de maneira,que ninguém a pode abrir nem cerrar, senão é o mesmooficial que a faz. [515] Esta corda tem duas pontas compridaspor onde o atam de noite para não fugir. [516] Dali o metemnuma casa, e junto da estância daquele que o cativoulhe armam uma rede, e tanto que nela se lança, cessam todosos agravos sem haver mais pessoa que lhe faça nenhuma ofensa.[517] E a primeira coisa que logo lhe apresentam, éuma moça a mais formosa e honrada que há na aldeia, aqual lhe dão por mulher: e daí por diante ela tem cargode lhe dar de comer e de o guardar, e assim não vainunca para parte que o não acompanhe. [518] E depois de oterem desta maneira muito regalado um ano, ou o tempoque querem, determinam de o matar, e aqueles últimosdias antes de sua morte, por festejarem a execuçãodesta vingança, aparelham muita louça nova, e fazemmuitos vinhos do sumo de uma planta, que se chama Aipim,

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de que atrás fiz menção. [519] Neste mesmo tempo lheordenam uma casa nova onde o metem. [520] E o dia que há de padecer,pela manhã muito cedo antes que o sol saia, o tiramdela, e com grandes cantares e folias, o levam a banhara uma ribeira. [521] E tanto que o tornam a trazer vão-secom ele a um terreiro que está no meio da aldeia e ali lhemudam aquela corda do pescoço à cinta, passando-lheuma ponta para trás outra para diante: e em cada uma delaspegados dois três Índios. [522] As mãos lhe deixam soltasporque folgam de o ver defender com elas: e ali lhe chegamuns pomos duros que tem entre si à maneira de laranjascom que possa atirar e ofender a quem quiser. [523] Eaquele que está deputado para o matar, é um dos maisvalentes e honrados da terra, a quem por favor e preeminênciade honra concedem este ofício. [524] O qual se empenaprimeiro por todo o corpo com penas de papagaiose de outras aves de várias cores. [525] E assim sai desta maneiracom um Índio que lhe traz a espada sobre um alguidar,a qual é de um pau muito duro e pesado, feita àmaneira de uma maça, ainda que na ponta tem alguma semelhançade pá. [526] E chegando ao padecente a toma nasmãos, e lha passa por baixo das pernas e dos braços meneando-ade uma parte para outra. [527] Feitas estas cerimôniasafasta-se algum tanto dele, e começa de lhe fazer uma falaa modo de pregação: dizendo-lhe que se mostre muitoesforçado em defender sua pessoa, para que o não deshonre,nem digam que matou um homem fraco, afeminado

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e de pouco ânimo, e que se lembre que dos valentes émorrerem daquela maneira em mãos de seus inimigos,e não em suas redes como mulheres fracas, que não foramnascidas para com suas mortes ganharem semelhanteshonras. [528] E se o padecente é homem animoso, e nãoestá desmaiado naquele passo (como acontece a alguns)responde-lhe com muita soberba e ousadia, que o matemuito embora, porque o mesmo tem ele feito a muitosseus parentes e amigos. [529] Porém que lhe lembre que assimcomo tomam de suas mortes vingança nele, que assim tambémos seus o hão de vingar como valentes homens, e haveremse ainda com ele e com toda sua geração daquela mesmamaneira. [530] Ditas estas e outras palavras semelhantes,que eles costumam arrezoar nos tais tempos, remeteo matador a ele com a espada levantada nas mãos,em postura de o matar, e com ela o ameaça muitas vezes,fingindo que lhe quer dar. [531] O miserável padecenteque sobre si vê a cruel espada entregue naquelas violentase rigorosas mãos do capital inimigo, com os olhos e sentidosprontos nela, em vão se defende quanto pode. [532] Eandando assim nestes cometimentos, acontece algumas vezesvirem a braços, e o padecente tratar mal ao matadorcom a mesma espada. [533] Mas isto raramente, porqueacodem logo com muita presteza os circunstantes a livrá-lode suas mãos. [534] E tanto que o matador vê tempooportuno, tal pancada lhe dá na cabeça, que logolha faz em pedaços. [535] Está uma Índia velha prestes

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com um cabaço grande na mão, e como ele cai, acodemuito depressa a meter-lho na cabeça para tomar neleos miolos e o sangue. [536] E como desta maneira o acabamde matar, fazem-no em pedaços, e cada principal que aí seacha, leva seu quinhão para convidar a gente de sua aldeia.[537] Tudo enfim assam e cozem, e não fica dele coisa quenão comam todos quantos há na terra. [538] Salvo aquele queo matou não come dele nada, e além disso manda-se sarjarpor todo o corpo, porque tem por certo que logo morrerá,se não derramar de si aquele sangue tanto que acabade fazer seu ofício. [539] Algum braço ou perna, ou outro qualquerpedaço de carne costumam assar no fumo, e tê-loguardado alguns meses, para depois quando o quiserem comer,fazerem novas festas, e com as mesmas cerimônicastornarem a renovar outra vez o gosto desta vingança comono dia em que o mataram. [540] E depois que assim chegam a comera carne de seus contrários, ficam os ódios confirmadosperpetuamente, porque sentem muito esta injúria, epor isso andam sempre a vingar-se uns dos outros comojá tenho dito. [541] E se a mulher que foi do cativo acerta de ficarprenhe, aquela criança que pare, depois de criada, matam-nae comem-na sem haver entre eles pessoa alguma que se compadeçade tão injusta morte. [542] Antes seus próprios avós(a quem mais devia chegar esta mágoa) são aqueles quecom maior gosto o ajudam a comer, e dizem que como filhode seu pai se vingam dele: tendo para si que em tal casonão toma esta criatura nada da mãe, nem crêem que aquela

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inimiga semente pode ter mistura com seu sangue. [543] E poreste respeito somente lhe dão esta mulher com que converse:porque na verdade são eles tais, que não se haveriamde todo ainda por vingados do pai, se no inocentefilho não executassem esta crueldade. [544] Mas porque a mãesabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quandose sente prenhe, mata-a dentro da barriga, e faz comque não venha a luz. [545] Também acontece algumas vezes afeiçoar-setanto ao marido, que chega a fugir com ele parasua terra para o livrar da morte. [546] E assim alguns Portuguesesdesta maneira escaparam, que ainda hoje em dia vivem.[547] Porém o que por esta via se não salva, ou por outra qualquermanha oculta, será coisa impossível escapar de suasmãos com vida: porque não costumam dá-la a nenhumcativo, nem desistirão da vingança que esperam tomardele por nenhuma riqueza do mundo, quer seja machoquer fêmea. [548] Salvo se o Principal, ou outro qualquer daaldeia acerta de casar com alguma escrava sua contrária (comomuitas vezes acontece) pelo mesmo caso fica libertada,e assentam em não pretenderem vingança dela,por comprazerem àquele que a tomou por mulher.[549] Mas tanto que morre de sua morte natural, por cumpriremas leis de sua crueldade (havendo que já nisto nãoofendem ao marido) costumam quebrar-lhe a cabeça,ainda que isto raras vezes, porque se tem filhos não deixamchegar ninguém a ela, e estão guardando seu corpoaté que o dêem à sepultura.

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[550] Outros Índios doutra nação diferente, se acham nestaspartes, ainda mais ferozes e de menos razão que estes.[551] Chamam-se Aimorés, os quais andam por esta costa comosalteadores, e habitam da capitania dos Ilhéus até ade Porto Seguro, aonde vieram ter do sertão no ano de55, pouco mais ou menos. [552] A causa de residirem nesta partemais que nas outras, é por serem aqui as terras maisacomodadas a seu propósito, assim pelos grandes matosque tem onde sempre andam emboscados, como pelamuita caça que há nelas, que é o seu principal mantimentode que se sustentam. [553] Estes Aimorés são mais alvose de maior estatura que os outros Índios da terra,com a língua dos quais não tem a destes nenhuma semelhançanem parentesco. [554] Vivem todos entre os matos comobrutos animais, sem terem povoaçõe nem casas em quese recolham. [555] São muito forçosos em extremo, e trazemuns arcos muito compridos e grossos conformes a suas forças,e as flechas da mesma maneira. [556] Estes Aimorés temfeito muito dano nestas capitanias depois que descerama esta costa, e mortos alguns Portugueses e escravos, porquesão muito bárbaros, e toda a gente da terra lhes éodiosa. [557] Não pelejam em campo, nem tem ânimo paraisso: põem-se entre o mato junto de algum caminho, e tantoque alguém passa, atiram-lhe ao coração, ou a parte ondeo matem, e não despedem flecha que não a empreguem.[558] As mulheres trazem uns paus grossos à maneira

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de maças com que os ajudam a matar algumas pessoasquando se oferece ocasião. [559] Até agora não se pode acharnenhum remédio para destruir esta pérfida gente: porquetanto que vem tempo oportuno, fazem seus saltos, e logose recolhem ao mato muito depressa, onde são tão ligeirose manhosos, que quando cuidamos que vão fugindoante quem os persegue, então ficam atrás escondidosatirando aos que passam descuidados: e desta maneiramatam muita gente. [560] Pela qual razão todos quantosPortugueses e Índios há na terra os temem muito: e assimonde os há, nenhum morador vai a sua fazenda por terra,que não leve consigo quinze vinte escravos de arcos eflechas para sua defensão. [561] O mais do tempo andam derramadospor diversas partes, e quando se querem ajuntarassobiam como pássaros, ou como bugios, de maneiraque uns aos outros se entendem e conhecem, sem seremda outra gente conhecidos. [562] Não dão vida uma sóhora a ninguém, porque são muito repentinos e aceleradosno tomar de suas vinganças: e tanto, que muitasvezes estando a pessoa viva, lhe cortam a carne, elha estão assando e comendo à vista de seus olhos. [563] Sãofinalmente estes Selvagens tão ásperos e cruéis, que nãose pode com palavras encarecer sua dureza. [564] Alguns deleshouveram já os Portugueses às mãos: mas como sejam tãobravos e de condição tão esquiva nunca os puderam amansar

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nem submeter a nenhuma servidão, como os outros Índiosda terra que não recusam como estes a sujeiçãodo cativeiro.

[565] Também há uns certos Índios junto do rio do Maranhão,da banda do Oriente em altura de dois graus, poucomais ou menos, que se chamam Tapuias, os quais dizemque são da mesma nação destes Aimorés, ou pelomenos irmãos em armas, porque ainda que se encontramnão ofendem uns aos outros. [566] Estes Tapuias nãocomem a carne de nenhuns contrários, antes são inimigoscapitais daqueles que a costumam comer, e os perseguemcom mortal ódio. [567] Porém pelo contrário tem outro ritomuito mais feio e diabólico, contra natureza, e dignode maior espanto. [568] E é, que quando algum chega aestar doente de maneira que se desconfie de sua vida, seupai ou mãe, irmãos, ou irmãs, ou quaisquer outros parentesmais chegados, o acabam de matar com suas própriasmãos, havendo que usam assim com ele de mais piedade,que consentirem que a morte o esteja senhoreandoe consumindo por termos tão vagarosos. [569] E o pior queé, que depois disto o assam e cozem e lhe comem todaa carne, e dizem que não hão de sofrer que coisa tãobaixa e vil, como é a terra, lhes coma o corpo de quemeles tanto amam, e que pois é seu parente, e entre eleshá tanta razão de amor, que sepultura mais honrada lhepodem dar que metê-lo dentro em si e agasalhá-lo parasempre em suas entranhas.

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[570] E porque meu intento principal não foi tratar aquisenão daqueles Índios que são gerais pela costa, com que osPortugueses tem comunicação, não me quis mais deterem particularizar alguns ritos desta e de outras nações diferentesque há nesta província, por me parecer que seriatemeridade e falta de consideração escrever em históriatão verdadeira, coisas em que por ventura podia haverfalsas informações, pela pouca notícia que ainda temosda mais gentilidade que habita pela terra dentro.

Capítulo 13. Do fruto que fazem nestas partes osPadres da Companhia com sua doutrina.

[571] Por todas as Capitanias desta província estãoedificados mosteiros dos Padres dacompanhia de Jesus, e feitas em algumaspartes algumas Igrejas entre os Índios que sãode paz, onde residem alguns Padres para os doutrinar e fazerCristãos: o que todos aceitam facilmente sem contradiçãoalguma. [572] Porque como eles não tenham nenhumalei, nem coisa entre si a que adorem, é-lhes muito fáciltomar esta nossa. [573] E assim também com a mesma facilidade,por qualquer coisa leve a tornarão a deixar, e muitosfogem para o sertão, depois de batizados e instruídosna doutrina Cristã. [574] E porque os Padres vêem a inconstânciaque há neles, e a pouca capacidade de que tempara observarem os Mandamentos da lei de Deus (principalmente

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os mais antigos, que são aqueles em que menosfrutifica a semente de sua doutrina) procuram emespecial plantá-la em seus filhos, os quais levam de meninosinstruídos nela. [575] E desta maneira se tem esperança(mediante a divina graça) que pelo tempo a diantese vá edificando a religião Cristã por toda esta província,e que ainda nela floresça universalmente a nossasanta Fé católica, como noutra qualquer parte daCristandade. [576] E para que o fruto desta doutrina se nãoperdesse, antes de cada vez fosse em mais crescimento, determinaramos mesmos Padres de a talhar todas as ocasiõesque lhe podiam da nossa parte ser impedimento,causa de escândalo, e prejuízo às consciências dos moradoresda terra. [577] Porque como estes Índios cobiçam muitoalgumas coisas que vão deste Reino, comvém a saber,camisas, pelotes, ferramentas, e outras peças semelhantes,vendiam-se a troco delas uns ao outros aos Portugueses:os quais a voltas disto salteavam quantos queriam,e faziam-lhes muitos agravos sem ninguém lhes ir àmão. [578] Mas já agora não há esta desordem na terra, nemresgates como soía. [579] Porque depois que os Padres virama sem razão que com eles se usava, e o pouco serviçode Deus que daqui se seguia, prouveram neste negócioe vedaram (como digo) muitos saltos que faziam osmesmos Portugueses por esta costa: os quais encarregavammuito finas suas consciências com cativarem muitos Índioscontra direito, e moverem-lhes guerras injustas. [580] E

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para evitar tudo isto, ordenaram os Padres, e fizeramcom os Governadores e Capitães da terra, que nãohouvessem mais resgates daquela maneira, nem consentissemque fosse nenhum Português a suas aldeias sem licençado seu mesmo Capitão. [581] E se algum faz o contrário,ou os agrava por qualquer via que seja, ainda que vácom licença, pelo mesmo caso é muito bem castigado, conformea sua culpa. [582] Além disto, para que nesta parte hajamais desengano, quantos escravos agora vem novamentedo sertão, ou de umas capitanias para outras, todos levamprimeiro à alfândega, e ali os examinam e lhes fazemperguntas, quem os vendeu, ou como foram resgatados:porque ninguém os pode vender senão seus pais(se for ainda com extrema necessidade) ou aquelesque em justa guerra os cativam: e os que acham maladquiridos põem-nos em sua liberdade. [583] E desta maneiraquantos Índios se compram são bem resgatados, e osmoradores da terra não deixam por isso de ir muito avantecom suas fazendas.

[584] Outros muitos benefícios e obras pias, têm feito estes Padrese fazem hoje em dia nestas partes, a que com verdade se nãopode negar muito louvor. [585] E porque elas são tais que por sise apregoam pela terra, não me quis intermeter a tratá-las aquimais por extenso: basta sabermos quão aprovadas sãoem toda parte suas obras por santas e boas, e que sua intençãonão é outra senão dedicá-las a nosso Senhor, de quemsomente esperam a gratificação e prêmios de suas virtudes.

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Capítulo 14. Das grandes riquezas que se esperamda terra do sertão.

[586] Esta província Santa Cruz, além de ser tãofértil como digo, e abastada de todos osmantimentos necessários para a vida do homem,é certo ser também muito rica, e havernela muito ouro e pedrarias, de que se tem grandesesperanças. [587] E a maneira de como isto se veio a denunciare ter por coisa averiguada, foi por via dos Índiosda terra. [588] Os quais como não tenham fazendas que osdetenham em suas pátrias, e seu intento não seja outrosenão buscar sempre terras novas, afim de lhes parecerque acharam nelas imortalidade e descanso perpétuo,aconteceu levantarem-se uns poucos de suas terras,e meterem-se pelo sertão dentro: onde depois de terementrado algumas jornadas, foram dar com outros Índiosseus contrários, e ali tiveram com eles grande guerra.[589] E por serem muitos e lhe darem nas costas, não se puderamtornar outra vez a suas terras: por onde lhes foiforçado entrar pela terra dentro muitas léguas. [590] E pelotrabalho e má vida que neste caminho passaram, morrerammuitos deles: e os que escaparam foram dar em umaterra onde havia algumas povoações muito grandes e de muitosvizinhos, os quais possuíam tanta riqueza que afirmaram haverruas muito compridas entre eles: nas quais se não fazia outracoisa senão lavrar peças de ouro e pedraria. [591] Aqui se detiveramalguns dias com estes moradores: os quais vendo-lhes algumas

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ferramentas que eles levavam consigo, perguntaram-lhesde quem as haviam, ou porque meios lhes vinham ter àsmãos. [592] Responderam-lhes que uma certa gente habitava aolongo da costa da banda do Oriente, que tinha barba e outroparecer diferente, de que as alcançavam, que são osPortugueses. [593] Os mesmos sinais lhes deram estoutrosdos Castelhanos do Peru, dizendo-lhes, que também da outrabanda tinham notícia, haver gente semelhante, entãolhes deram certas rodelas todas chapadas de ouro, e esmaltadasde esmeraldas: e lhes pediram que as levassem, paraque se acaso fossem ter com eles a suas terras, lhes dissessem,que se a troco daquelas peças e outras semelhanteslhe queriam levar ferramentas e ter comunicaçãocom eles, o fizessem que estavam prestes para o receberemcom muito boa vontade. [594] Depois disto partiram-se daí eforam dar o rio das Amazonas, onde se embarcaramem algumas Canoas que fizeram: e a cabo de terem navegadopor ele acima dois anos, chagaram à provínciado Quito, terra do Peru povoada de Castelhanos. [595] Os quaisvendo esta nova gente, espantaram-se muito, e não sabiamdeterminar donde eram, nem a que vinham. [596] Mas logoforam conhecidos por gentio, da província santa Cruzde alguns Portugueses que então na mesma terra se acharam.[597] E perguntado por eles a cause de sua vinda contaram-lheso caso miudamente, fazendo-os sabedores de tudoo que lhes havia sucedido. [598] E isto veio-nos à notícia, assimpor via dos Castelhanos do Peru, onde estas rodelas foram

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vendidas por grande preço, como pela dos mesmosPortugueses que lá estavam quando isto aconteceu: com osquais falaram alguns homens deste Reino, pessoas de autoridade,e dignas de crédito, que testificam ouvirem-lhesafirmar tudo isto por extenso da maneira que digo. [599] E sabe-sede certo que está toda esta riqueza nas terras da conquistadel-Rei de Portugal, e mais perto sem comparaçãodas povoações dos Portugueses que dos Castelhanos. [600] Istose mostra claramente no pouco tempo que puseram estesÍndios em chegar a ela, e no muito que dispenderamem passarem daí ao Peru, que foram dois anos como jádisse. [601] Além da certeza que por esta via temos, há outrosmuitos Índios na terra, que também afirmam haver nosertão muito ouro: os quais posto que são gente de poucafé e verdade, dá-se lhes crédito nesta parte, por que acercadisto os mais deles são contestes, e falam em diversaspartes por uma boca. [602] Principalmente é pública famaentre eles, que há uma lagoa muito grande no interiorda terra, donde procede o rio são Franscisco, de que játratei: dentro da qual dizem haver algumas ilhas, e nelasedificadas muitas povoações, e outras ao redor delamuito grandes, onde também há muito ouro, e mais quantidade(segundo se afirma) que em nenhuma outra partedesta província. [603] Também pela terra dentro, não muitolonge do rio da Prata descobriram os Castelhanosuma mina de metal, da qual se tem levado ouro ao Peru, e decada quintal dele dizem que se tirou quinhentos e setenta

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cruzados, e de outro trezentos e tantos: o demaisque dela se tira é cobre infinito. [604] Também descobriramoutras minas de umas certas pedras brancas e verdes, ede outras cores diversas: as quais são todas de cinco seis quinascada uma à maneira de diamantes, e também lavradasda natureza, como se por indústria humana o foram. [605] Estaspedras nascem em um vaso como coco, o qual é todooco com mais de quatrocentas pedras ao redor, todas enxeridasna pedreira com as pontas para fora. [606] Alguns destespedernais se acham ainda imperfeitos: porque dizemque quando são de vez que por si arrebentam, comtanto estrondo, como se disparasse um exército de arcabuzes:e assim acharam muitas, que com a fúria (segundodizem) se metem pela terra um e dois estádios. [607] Dopreço delas não trato aqui, porque ao presente o nãopude saber: mas sei que assim destas como de outras há nestaprovíncia muitas e muito finas, e muitos metais, dondese pode conseguir infinita riqueza. [608] A qual permitiráDeus, que ainda em nossos dias se descubra toda, paraque com ela se aumente muito a coroa destes Reinos:aos quais desta maneira esperamos (mediante o favordivino) ver muito cedo postos em tão feliz epróspero estado, que mais se nãopossa desejar.[609] Fim.

[610] Impresso em Lisboa, na oficina de AntonioGonçalves. [611] Ano de 1576.