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HISTÓRIAS DE LUTA E RESISTÊNCIA: MEDIAÇÕES QUILOMBOLAS E INDÍGENAS DO PATRIMÔNIO David William Aparecido Ribeiro Doutorando em História Social Universidade de São Paulo Bolsista Fapesp (Processo 2017/19781-3) [email protected] Resumo Emergidos enquanto sujeitos de direitos na Constituição Federal de 1988, quilombolas e indígenas compartilham da mesma luta pelo direito à terra e à autodeterminação. Tendo como ponto de partida as estratégias que quilombolas e indígenas desenvolveram para mediar o patrimônio socioambiental e as narrativas históricas que mobilizam, pretende- se nesta comunicação trazer para o debate historiográfico elementos para o diálogo entre a história da (resistência à) escravidão e a história indígena. Do mesmo modo, objetiva- se problematizar os usos da história e as políticas patrimoniais empreendidas regional, nacional e internacionalmente, sempre tendo em vista a participação dos sujeitos na gestão do patrimônio e na produção do conhecimento histórico. A hipótese até o momento considerada é a de que tanto indígenas quanto quilombolas compreendem as políticas culturais/patrimoniais como um espaço fundamental de luta pela efetivação dos direitos assegurados pela Carta de 1988. Além disso, nota-se que a concepção integral de patrimônio desses sujeitos extrapola os entendimentos muitas vezes limitadores das políticas culturais oficiais. A partir do estudo de duas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (sul paulista) e dos Guarani-Mbyá (região das Missões), tem se verificado que as mediações por eles realizada do patrimônio socioambiental natureza, expressões culturais, saberes, território etc. apresentam narrativas de luta e de liberdade cujo reconhecimento é fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente multicultural e democrática. Palavras-chave: quilombolas; indígenas; patrimônio Depois de mais de duas décadas de cidadania e liberdades restritas por mais uma ditadura, o país deu passos decisivos rumo à ampliação dos direitos sociais de sua população. Entre os anos de 1987 e 1988, um novo pacto social foi gestado e uma nova Constituição Federal foi promulgada. Apelidada de Cidadã, a Carta Magna incorporou conquistas da sociedade civil organizada e de movimentos sociais que, nos anos anteriores à sua promulgação, fizeram-se ouvir dentro e fora da Assembleia Nacional Constituinte. A plenitude de direitos, entretanto, não foi menos marcante para os sujeitos que até então

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HISTÓRIAS DE LUTA E RESISTÊNCIA:

MEDIAÇÕES QUILOMBOLAS E INDÍGENAS DO PATRIMÔNIO

David William Aparecido Ribeiro

Doutorando em História Social – Universidade de São Paulo

Bolsista Fapesp (Processo 2017/19781-3)

[email protected]

Resumo

Emergidos enquanto sujeitos de direitos na Constituição Federal de 1988, quilombolas e

indígenas compartilham da mesma luta pelo direito à terra e à autodeterminação. Tendo

como ponto de partida as estratégias que quilombolas e indígenas desenvolveram para

mediar o patrimônio socioambiental e as narrativas históricas que mobilizam, pretende-

se nesta comunicação trazer para o debate historiográfico elementos para o diálogo entre

a história da (resistência à) escravidão e a história indígena. Do mesmo modo, objetiva-

se problematizar os usos da história e as políticas patrimoniais empreendidas regional,

nacional e internacionalmente, sempre tendo em vista a participação dos sujeitos na

gestão do patrimônio e na produção do conhecimento histórico. A hipótese até o momento

considerada é a de que tanto indígenas quanto quilombolas compreendem as políticas

culturais/patrimoniais como um espaço fundamental de luta pela efetivação dos direitos

assegurados pela Carta de 1988. Além disso, nota-se que a concepção integral de

patrimônio desses sujeitos extrapola os entendimentos muitas vezes limitadores das

políticas culturais oficiais. A partir do estudo de duas comunidades quilombolas do Vale

do Ribeira (sul paulista) e dos Guarani-Mbyá (região das Missões), tem se verificado que

as mediações por eles realizada do patrimônio socioambiental — natureza, expressões

culturais, saberes, território etc. — apresentam narrativas de luta e de liberdade cujo

reconhecimento é fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente

multicultural e democrática.

Palavras-chave: quilombolas; indígenas; patrimônio

Depois de mais de duas décadas de cidadania e liberdades restritas por mais uma ditadura,

o país deu passos decisivos rumo à ampliação dos direitos sociais de sua população. Entre

os anos de 1987 e 1988, um novo pacto social foi gestado e uma nova Constituição

Federal foi promulgada. Apelidada de Cidadã, a Carta Magna incorporou conquistas da

sociedade civil organizada e de movimentos sociais que, nos anos anteriores à sua

promulgação, fizeram-se ouvir dentro e fora da Assembleia Nacional Constituinte. A

plenitude de direitos, entretanto, não foi menos marcante para os sujeitos que até então

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tinham cidadania parcial ou para os que eram invisíveis aos olhos do Estado: falo dos

indígenas e quilombolas, para os quais a Constituição de 1988 é um marco fundamental

de reconhecimento.

No contexto da Assembleia Nacional Constituinte, a Subcomissão dos Negros,

Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, subordinada à Comissão da

Ordem Social, foi incumbida de discutir e elaborar os artigos que deveriam assegurar as

condições de cidadania desses segmentos populacionais. De acordo com Natália Néris

dos Santos, cujo trabalho é pautado pela análise da interlocução entre o Movimento Negro

Unificado e os constituintes, esta subcomissão foi marcada pelo baixo quórum em suas

sessões e pela mobilização de agentes da militância e da academia1, instados a contribuir,

a partir dos debates em curso nesses meios, para a elucidação das condições negra e

indígena no país.

Construindo um quadro pormenorizado das demandas do MNU desde a sua

organização em 1978, Santos destaca o quanto este movimento esteve articulado a

movimentações internacionais como a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, a

Negritude afro-caribenha e as lutas anticoloniais e independentistas no continente

africano, além de dialogar diretamente com fortes movimentos de esquerda no contexto

da Ditadura Militar brasileira. Cabe destacar que, por essas articulações, o MNU era

malvisto aos olhos da ditadura civil-militar entre 1964 e 1985, uma vez que a rede

integrada por esse movimento social representava uma ameaça à “nacionalidade”. Para

os agentes do Estado autoritário, os comportamentos do MNU e demais grupos

antirracistas “incitavam ao ódio e discriminação racial”, bem como “visavam

desmoralizar o Estado brasileiro frente a comunidade internacional” (principalmente a

polícia mediante as denúncias dos casos de violência impetrada por agentes), sendo assim

uma ameaça à Segurança Nacional.2

1 De acordo com Natália Néris dos Santos, por iniciativa de alguns constituintes como José Carlos Saboia,

alguns intelectuais foram chamados para compor um painel sobre a temática do preconceito. São citados,

além do constituinte Florestan Fernandes, Peter Fry, Ruth Cardoso, Eunice Durham, Manuela Carneiro da

Cunha, Gilberto Velho e Décio Freitas. Ver: SANTOS, Natália N. A voz e a palavra do Movimento Negro

na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertação

(Mestrado em Direito), Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2015, p. 71. 2 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 43, grifos da autora. De acordo com a autora, em palestra proferida

no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc/SP (25 jun. 2018), o paradoxo enfrentado pelo Regime Militar

nessa questão era que a proibição ou perseguição ao MNU desmentiria o mito da “democracia racial”, ao

passo que deixa-lo falar daria condições para que a “democracia racial” fosse questionada e desmentida.

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No contexto da Constituinte e mesmo antes dela, os integrantes do MNU tomaram

parte das audiências públicas e de outras formas de participação. Dentre as diversas

demandas, teve espaço destacado como estratégia política de combate ao racismo

estrutural da sociedade brasileira a educação. Para tanto, advogava-se, entre outras coisas,

a necessidade de garantir a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-

brasileira e africana em todos os níveis de ensino. A proposta foi diluída em termos nada

específicos, tendo que esperar até o ano de 2003 para ser incorporada à legislação

brasileira por meio da Lei n. 10.639, sancionada em 9 de janeiro daquele ano.

Sobre esse aspecto, Lélia Gonzalez e Helena Theodoro, representantes do

Movimento Negro presentes no painel da audiência pública da Subcomissão referida,

mencionaram que a “construção de uma Nação ou da cidadania plena deste grupo

populacional [negros] seria possível tão somente por meio do conhecimento da história

do Brasil real, a partir da desconstrução do eurocentrismo e do mito da democracia

racial”. Para Gonzalez, os mecanismos que construíram a ideologia dominante alienaram

a população sobre si própria, com o recurso aos meios de comunicação, à escola, à teoria

e à prática pedagógica. Essa visão construiu um desconhecimento da história e da cultura

da América pré-colombiana e da África, além de ter estratificado racialmente o Brasil.3

Nota-se que a argumentação dialoga diretamente com os debates pós-coloniais que

estavam na ordem do dia. Chamo a atenção também para o olhar, recorrente na ocasião,

que não considera o Brasil ainda como uma nação, uma vez que a cidadania estava

distante de ser plena para todos.

Quanto ao caminho que assinalou a inscrição dos quilombos no texto

constitucional, retorno ao contexto pré-Constituinte, quando foram realizados diversos

eventos em todo o país para reivindicar a participação da sociedade no novo pacto. Um

desses eventos foi o I Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão em 1986,

com o tema O Negro e a Constituinte. Conforme as informações trazidas por Santos, o

evento foi realizado no interior do estado para que a população negra da zona rural tivesse

acesso ao debate e levasse as suas questões à Constituinte. Segundo a autora, foram os

Uma das formas mais recorrentes de sustentar a falácia foi, segundo comenta em seu trabalho e reiterou em

sua palestra, o patrocínio de expressões culturais como o carnaval. 3 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 82.

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ativistas do Maranhão e do Pará que tematizaram as terras de preto ou terras de

quilombos no seio do Movimento Negro e, consequentemente, na Constituinte.4

Entre os documentos levantados pela autora sobre as demandas apresentadas pelo

Movimento Negro, subscrito por diversas associações negras, a Convenção O Negro e a

Constituinte indicou os encaminhamentos em cada rubrica: educação, saúde, habitação,

trabalho, terra, entre outros. No quesito terra, a indicação foi pela garantia do “título de

propriedade da terra às comunidades negras remanescentes de quilombos, quer no meio

urbano ou rural”, assinalando não apenas o uso do termo “remanescentes” como também

demonstrando a existência dessas comunidades também no contexto urbano brasileiro.5

De modo geral, Natália Santos aponta para o quanto o enfoque sobre a raça e o

racismo tornava o Movimento Negro não somente “subversivo” como também o

compreendia como uma “ameaça” ou um “elemento desestabilizador” frente ao “projeto

de Nação vigente baseado nas ideias de ‘unidade’, de ‘harmonia’, principalmente”. Ao

longo de seu trabalho, a autora identificou a forma como o MNU entendeu a Constituição

Federal como campo de lutas fundamentais, indicados pela forma como os agentes

envolvidos se referiram ao processo em curso como “segunda abolição”, como “lei

complementar à Lei Áurea”, como “resgate de cidadania” da população negra. Em que

pesem as diversas negativas, expressas pelas sucessivas alterações do texto nos

dispositivos que tangeriam à isonomia, o campo da cultura passou incólume, tal como

passaram as terras dos quilombos. Para a autora, estes dois pontos não apresentavam

maiores problemas para o status quo, uma vez que a promoção da cultura afro-brasileira

(evidentemente compreendida de forma estetizada e folclorizada) fortalecia a ideia de

democracia racial e que, segundo acreditava-se à época, poucas seriam as terras de

quilombos existentes no país.6 Ademais, a efeméride do centenário da abolição da

escravidão estimulava a aprovação de dispositivos em tom comemorativo.

Com os seus direitos sendo debatidos na mesma subcomissão, os indígenas se

notabilizaram por suas ações político-performáticas no contexto da Constituinte, bem

como pelo racismo institucional representado pelo impedimento do ingresso destes com

suas vestimentas tradicionais no recinto do Congresso Nacional. De acordo com Natália

4 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 57. 5 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 134. 6 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 173-179.

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Santos, Manuela Carneiro da Cunha, então presidenta da Associação Brasileira de

Antropologia (ABA), refletiu sobre os direitos indígenas enquanto direitos históricos7

que, sistematicamente negados, colocam estes povos em situação de vulnerabilidade

social. A antropóloga critica o termo “minoria” presente no título da subcomissão,

lembrando que negros, indígenas, pessoas com deficiência e os outros segmentos

populacionais representados pelo grupo de trabalho constituinte são, na verdade

“maiorias populacionais que de fato são sócias minoritárias de um projeto de nação”.

Florestan Fernandes critica o termo minoria mais ou menos nos mesmos termos que

Cunha, ressaltando a restrição de cidadania subjacente ao termo.8

Segundo Júlio José de Araujo Júnior, a Constituição de 1988 foi inovadora ao

“consagrar o caráter plural da sociedade brasileira e afastar o paradigma assimilacionista

antes vigente, a nova ordem constitucional enfatiza a autonomia desses povos, com

respeito a seus modos de vida, costumes, tradições e mediante o reconhecimento das

terras que tradicionalmente ocupam”.9 Ao longo de seu texto, porém, o autor traz diversos

elementos para demonstrar o quanto as práticas estão distantes do texto constitucional.

Araujo Júnior discute largamente sobre o conceito de “multicultural” assumido pela

Constituição brasileira, semelhante à de outros Estados que se repensaram mais ou menos

na mesma época. Gostaria de chamar a atenção, nesse sentido, à ressalva que o autor faz

sobre este aspecto, uma vez que não se observa no caso brasileiro uma “internalização de

cosmovisões indígenas”, tal como se deu em outras constituições do mesmo contexto e

pautadas pelos mesmos referenciais legais. Entretanto, isso não impede que se

compreenda a Carta Magna brasileira a partir de uma “leitura intercultural”, tendo em

vista os seus “compromissos com a autonomia dos povos indígenas e o enfrentamento

das desigualdades, de modo a assegurar políticas de reconhecimento e de

redistribuição”.10

7 Manuela Carneiro da Cunha indica, em outras ocasiões, que o direito histórico originário às terras que

ocupam está presente em todas as constituições brasileiras desde 1934. Ao Estado cabe somente o

reconhecimento desse direito, anterior até mesmo à existência jurídico-política do Estado brasileiro. Ver:

CUNHA, Manuela C. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 260. 8 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 73. 9 ARAUJO JÚNIOR, Júlio J. A Constituição de 1988 e os direitos indígenas: uma prática assimilacionista?

In: CUNHA, Manuela C.; BARBOSA, Samuel. Diretos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Ed.

Unesp, 2018, p. 175. 10 ARAUJO JÚNIOR, Júlio J. Op. cit., 2018, p. 206.

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Em se tratando de um processo em aberto e em constante disputa, vide as

recorrentes tentativas de emendas restritivas ao reconhecimento de direitos a indígenas e

quilombolas, este assunto parece distante de pacificação. Entretanto, cabe lançar luz às

consequências diretas da promulgação da Constituição de 1988 e da inauguração de um

campo de lutas — o Judiciário — para esses sujeitos coletivos que são as comunidades

indígenas e quilombolas. Ao mesmo tempo, é importante retomar a “revolução cultural”

da qual falou a então constituinte Benedita da Silva. Para a parlamentar integrante da

Subcomissão de Negros, Indígenas, Pessoas com Deficiência e Minorias, a cultura

deveria ser colocada no centro de debate da luta contra as discriminações e o racismo e

pela promoção da identidade negra e indígena do país. Joel Rufino dos Santos, presente

nos trabalhos, endossou as palavras da constituinte.11 Em momento oportuno, discutirei

os percursos da discussão referente ao campo da cultura quando da Constituinte.

Nos anos que se seguiram à promulgação da Carta Magna, entraram em cena os esforços

necessários para fazer valer os dispositivos constitucionais. Como fruto do mesmo

processo, o texto da Lei fez saírem da invisibilidade milhares de comunidades de norte a

sul do Brasil, muitas das quais tomaram consciência de suas identidades a partir do

contato com grupos sociais semelhantes e da grande articulação que resultou das novas

arenas de disputa.

Segundo Arruti, apesar do Artigo 68 instituir o direito à titulação das terras, não

foram definidas, jurídica e institucionalmente, como estes seriam aplicados. Em função

disso, a mobilização social deste segmento foi fomentada e o “campo de estudos sobre

negros passa a ter de responder a novas demandas originadas da luta política, que o levam

a uma aliança forçada com perspectivas até então apartadas, impondo aos estudos

etnográficos sobre comunidades rurais negras a literatura histórica sobre quilombos e

vice-versa”. Ao mesmo tempo, exemplos e discussões encaminhados pelo autor dão conta

de apontar para as semelhanças entre índios e quilombolas no que tange à demanda pela

posse da terra frente ao Estado e aos fazendeiros. Como indica, inclusive, essa divisão

11 SANTOS, Natália N. Op. cit., 2015, p. 112.

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entre indígenas ou quilombolas parece não se amparar nas realidades observadas, uma

vez que há diversas comunidades formadas igualmente pelos dois grupos sociais.12

Uma aproximação entre os debates dos anos 1930 e o momento da Constituinte

contribui para compreender o uso do termo “remanescentes” como uma forma de nomear

e tornar aceitáveis ao senso comum (inclusive o acadêmico) os sujeitos que

aparentemente não poderiam se autodefinir (como índios, no contexto de 1930; como

quilombolas, em 1988) por “não possuírem mais” os “sinais externos” reconhecidos pela

ciência. São, do ponto de vista do autor, categorias atenuantes que permitiriam o acesso

a direitos sem “ofender os ‘sinais externos’ que indicavam o contrário”. O termo também

aponta para os laços com o passado e não com o futuro, reservando ou resgatando para

os grupos alguma positividade sem romper com a narrativa básica e linear. Para Arruti,

“esses pressupostos colocam no núcleo de definição daqueles grupos uma historicidade

que remete sempre ao par memória-direitos, em alternativa (...) ao par cultura-proteção”.

Seguindo este raciocínio, “o que está em jogo é a manutenção de um território

como reconhecimento do processo histórico de espoliação”. No caso das comunidades

negras rurais, o uso do termo tem funções semelhantes, à medida que busca “resolver a

difícil relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em que a

descendência não parece ser um laço suficiente”. O emprego do termo implica reconhecer

as comunidades atuais como atualização dos antigos quilombos. Nesse caso,

diferentemente dos índios, parece se reforçar a ideia de exótico, de isolado e de

“continuidade de uma carga cultural homogênea e autônoma”, Essa operação anda lado a

lado com a recuperação historiográfica dos quilombos a partir da perspectiva da “história

dos de baixo” e da “resistência”, entendendo-os, portanto, como símbolos de recusa ao

escravismo, às oligarquias e até do próprio capitalismo. Uma vez estas comunidades

identificadas como remanescentes de quilombos, elas se tornam símbolos de identidade

e cultura, bem como modelo de luta e militância negra. De todo modo, assumir essa

identidade implica a possibilidade de ocupar um novo lugar social na relação com a

sociedade envolvente e com o Estado, assim como diante do imaginário nacional e do

próprio imaginário.13

12 ARRUTI, José M. A emergência dos “remanescentes”: notas para o diálogo entre indígenas e

quilombolas. Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, out. 1997, p. 13-16. 13 ARRUTI, José M. Op. cit., 1997, p. 20-22. Grifos do autor.

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O autor conclui a sua reflexão indicando que se o extermínio sistemático de um

estilo de vida é chamado de etnocídio, “a construção fraternal de uma autoconsciência e

de uma identidade coletiva (de base racial e/ou histórica)” perante um Estado nacional

opressor, visando a ganhos políticos, deve ser chamada de etnogênese. O processo

posterior à promulgação da Constituição de 1988, para além da definição de novos

sujeitos de direitos, tornou possível a produção de novos sujeitos políticos que

mobilizaram “elementos de identidade comum e de caráter localizado que remetem a um

mesmo passado de escravidão e submissão”. Mobilizar elementos de identidade, memória

e cultura com finalidades objetivas como o reconhecimento de direitos, segundo Arruti,

“leva a uma nova relação com o passado”, num esforço de reconstrução de uma

continuidade.14 Seguindo por esse caminho, podemos chegar à conclusão de que as

políticas culturais instrumentalizam os grupos nessa tarefa de mobilização em múltiplos

aspectos, fortalecendo-os em suas demandas por direitos fundiários.

Em uma sociedade, especialmente naquelas formadas por grupos diversos, é evidente a

inexistência de uma concepção única e total de história. Do mesmo modo, seria

igualmente incompreensível existir um sentido único para aquilo que a sociedade e o

Estado que a representa definem como patrimônio. Entretanto, no caso brasileiro, a

diversidade era vista pelas práticas oficiais ora como empecilho à “identidade nacional”,

ora como um exotismo, visões estas coerentes com os longos períodos de autoritarismo

praticados pelo Estado. Como destacado, o novo pacto social brasileiro, com vistas à

construção de uma nação democrática e multicultural, fez constar na Carta (de intenções)

de 1988 uma série de compromissos de mudança. Ao assinalar o patrimônio imaterial

como objeto de atenção, a política cultural oficial incorporou ações que vinham se dando

no interior do então recém-criado Ministério da Cultura e, por que não dizer, orientações

que estavam previstas no anteprojeto de Mário de Andrade e que tinham sido postas de

lado ao longo dos cinquenta anos do Iphan.

O Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC),

publicado pelo Departamento de Informação e Documentação do Iphan no ano 2000

apresenta não apenas os pressupostos desta nova política oficial, instituída pelo Decreto

14 ARRUTI, José M. Op. cit., 1997, p. 27-28.

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n. 3.551/4 ago. 200015, como também traz um histórico fundamental sobre essa discussão

no bojo do Instituto desde a década de 1970. Maria Cecília Londres Fonseca remonta à

fundação do Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC) em 1975, cuja função foi

a de criar “um sistema referencial básico para a descrição e análise de dinâmica cultural

brasileira”. Segundo Fonseca, o redesenho das políticas patrimoniais, à época encabeçado

por Aloísio Magalhães, visava à superação da homogeneização da cultura, para quem

havia, de um lado, uma “cultura oficial”, morta por estar desassociada do público e, do

outro, uma absorção acrítica de valores abstratos e externos ao país, aludidos nas ideias

de modernização, tecnologia e mercado; seu objetivo era fazer cruzar esses dois mundos,

vistos como antagônicos naquele contexto e que coexistiam no Brasil: o mundo

“avançado da tecnologia e da indústria” e o “mundo das tradições populares, do fazer

artesanal”. O projeto do CNRC seria, com base no diálogo entre esses sistemas, o de

fornecer indicadores para um “desenvolvimento apropriado”. Tendo como base a noção

de referência cultural, a intenção era de que as novas políticas e práticas patrimoniais

brasileiras se orientassem pela aproximasse do ponto de vista dos sujeitos detentores de

um saber-fazer e que, a partir disso, os reconhecesse como detentores do destino de sua

própria cultura. De acordo com Fonseca, a experiência do Centro Nacional de Referências

Culturais foi incorporada à Fundação Nacional Pró-Memória, que entre 1979 e 1990

atuou junto ao Iphan no intuito de dinamizar as suas ações.16

Antonio Augusto Arantes Neto, o antropólogo responsável por formular o

instrumento e a metodologia do INRC, cita três tarefas essenciais para a execução do

trabalho: a primeira diz respeito à viabilização da identificação e da documentação de

conjuntos de referências ou de bens culturais que sejam significativos para grupos sociais

específicos; a segunda se refere à manutenção da associação desses bens aos sistemas e

contextos que lhes dão sentido e a terceira recomenda a recusa a produzir registros que

congelem “o processo social que forma esses bens, como se fossem a-históricos.17

15 O referido decreto, assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e subscrito por Francisco

Weffort, Ministro da Cultura, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem

o patrimônio cultural brasileiro e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. 16 FONSECA, Maria C. L. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio. In: IPHAN.

Inventário Nacional de Referências Culturais: Manual de Aplicação. Brasília: Iphan, 2000, p. 16-19. 17 ARANTES NETO, Antônio A. Introdução. In: IPHAN. Op. cit., 2000, p. 24

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Apesar dessa inovação, Paulo Marins aponta para as permanências nas ações do

Iphan que deram preferência, ainda, às mesmas matrizes lusas. Mesmo nos registros que

se referem a bens “mestiços”, é quase inexistente um olhar que supere a hegemonia

portuguesa/europeia nessa relação, ou, quando este existe, restringe as expressões a

regiões e grupos bastante específicos, como se expressões semelhantes não pudessem ser

vistas e reconhecidas em outros lugares do país. De acordo com o autor, isso faz com que,

grosso modo, referências à imigração europeia se restrinjam ao Sul, que referências

indígenas priorizem a Amazônia e referências afro-brasileiras sejam destacadas no

Nordeste. Apesar disso, Marins enfatiza que há uma tendência de transformação das

políticas de patrimônio, uma vez que as práticas federais têm sido repensadas a partir da

prática, preocupada em trazer à discussão os diversos agentes envolvidos, como preconiza

a própria Constituição de 1988.18

Colocar questões sobre as políticas de patrimônio brasileiras pode nos abrir

perspectivas para identificar e compreender as tensões entre a lógica do “Estado

ocidental”, lógica esta que informa as práticas de patrimonialização — suas fronteiras,

sua história oficial, seus referenciais estéticos, as interfaces entre “natureza” e “cultura”

— e os diversos sistemas de conhecimento, como por exemplo os do mundo ameríndio e

quilombola e a forma como estes olham para o que se denomina “patrimônio”. Buscando

as semelhanças que existem entre esses dois grupos sociais, e que se tornaram presentes

nos processos de inventário e registro de seus referenciais culturais como patrimônio

imaterial por parte do Iphan (ou por organizações que trabalharam de acordo com a

metodologia desse Instituto), cabe trazer a essa discussão reflexões suscitadas na

coletânea Políticas Culturais e Povos Indígenas, organizada por Manuela Carneiro da

Cunha e Pedro de Niemeyer Cesarino. Na introdução desse debate, a antropóloga aponta

para as diferenças entre políticas culturais feitas pelos índios daquelas feitas para os

índios, além daquelas que se valem dos índios: o interesse principal, de seu ponto de vista,

é o de compreender como estas três formas de políticas se conjugam para produzir efeitos.

Das políticas empreendidas para os índios, a autora destaca a escolarização

multicultural e a patrimonialização de elementos culturais tradicionais, lembrando que

18 MARINS, Paulo C. G. Novos patrimônios, um novo Brasil? Um balanço das políticas patrimoniais

federais após a década de 1980. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 57, 2016, p. 20; 26.

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tais políticas são decorrentes da Constituição brasileira de 1988, resultado de diversos

movimentos das décadas anteriores que, além de outras demandas, tiveram também como

intuito a superação da linha oficial adotada pelo Estado de uma suposta “integração”, de

fato um outro nome para a assimilação cultural e o apagamento das diferenças. No que

diz respeito à memória, tanto pelos conteúdos que ela evoca e mobiliza quanto por suas

funções identitárias, Manuela Carneiro da Cunha lembra que esta é uma preocupação

tanto nas políticas formadas por índios quanto para índios. A autora e organizadora da

coletânea lembra também a necessidade deste aspecto levar à compreensão da

historicidade das culturas indígenas, rompendo com o recorrente olhar que as vê como

estáticas.19

A formulação de tais políticas, quando feitas externamente, também precisa levar

em conta os modos de conhecer indígenas e as suas características. Além de reconhecer

o seu caráter corpóreo — isto é, inscrito nos corpos —, é fundamental também não separar

o conhecimento dos seus detentores, isto é, os conhecedores. Da mesma forma, não se

pode deixar de lado o entendimento dos processos que transmitem e que colocam em

circulação esses conhecimentos. Ainda nesse sentido, a autora afirma, em relação ao

patrimônio imaterial, que o que importa “não é apenas preservar os conhecimentos

tradicionais, e sim se engajar em conservar vivos e dinâmicos esses sistemas ‘outros’ de

conhecimento”. Foi a valorização de outros sistemas de conhecimento, por exemplo, que

se abriram novas possibilidades nas discussões a respeito da conservação ambiental,

lembrando que em 2010 o Iphan reconheceu como patrimônio imaterial o Sistema

Agrícola Tradicional do Rio Negro.20 O passo adiante dessas políticas passaria,

necessariamente, pela relação de diálogo e incorporação verdadeiramente efetivas dos

conhecimentos indígenas pelos não indígenas.

A então superintendente do Iphan no Rio Grande do Sul, Ana Lúcia Goelzer Meira,

apresenta o inventário da Tava Miri, Sagrada Aldeia de Pedra — como os Guarani-Mbyá

reconhecem o que chamamos de ruínas de São Miguel Arcanjo — rememorando as ações

do instituto junto aos chamados Sete Povos das Missões, destacando que esta relação

19 CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (org.). Políticas culturais e povos

indígenas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, p. 9-12. 20 CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. cit., 2014, p. 15-16; 18-19.

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coincide com a própria organização do Sphan. Recorda ainda que na mesma ocasião foi

projetado o Museu das Missões que, ao abrigar a estatuária missioneira, “oferece um

testemunho silencioso do trabalho executado nas oficinas das reduções, por homens e

mulheres cujos nomes desconhecemos”. Não se restringindo ao sítio de São Miguel

Arcanjo, a superintendente menciona o tombamento, da década de 1970, das reduções de

São Lourenço Mártir, São João Batista e São Nicolau, quando a maior parte dos vestígios

arqueológicos das reduções de Santo Ângelo Custódio e São Luiz Gonzaga já tinham

desaparecido.

De acordo com a responsável pelo Iphan estadual,

A preservação dos remanescentes tem demandado exemplar

dedicação traduzida em obras de consolidação, prospecções

arqueológicas, educação patrimonial, projetos de sinalização e de

museografia, entre outras tantas ações. Ao longo de 70 anos, o

Iphan preocupou-se em valorizar e difundir o patrimônio

missioneiro, por seu inestimável valor artístico e arquitetônico.

A partir de suas palavras, nota-se que a criação de dois novos instrumentos de

preservação a partir de 2000 — o Registro dos Bens de Natureza Imaterial e o Inventário

Nacional de Referências Culturais — “ampliou as possibilidades de tratamento do

patrimônio cultural, viabilizando o reconhecimento de sua dimensão imaterial”. Para

Meira, as novas políticas e práticas patrimoniais abriram novos rumos, voltados para a

“valorização da diversidade cultural que nos caracteriza como nação e dos diferentes

grupos que a constituem”.

O INRC Comunidade Mbyá-Guarani, que teve início em São Miguel das Missões,

se estendeu posteriormente a outras aldeias e acampamentos mbyá em quatro municípios

gaúchos. De seu ponto de vista, o inventário permite “conhecer outros sentidos atribuídos

ao patrimônio missioneiro por aqueles que se entendem como parentes étnicos dos antigos

Guarani”:

Para eles, o valor dos remanescentes é vivenciado no tempo

presente, não como alegoria de utopias vencidas, mas como lugar

significativo de uma trajetória singular, em que sua identidade

como povo se construiu e se renova a cada dia. Mais que isso,

possibilita-nos conhecer aspectos do modo de ser Mbyá, que

propõe outras formas de convivência e uma visão distinta de

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passado e de futuro, ampliando nosso olhar para as ricas

possibilidades da experiência humana.21

De suas palavras, podemos notar o sentido representado por esse inventário, ao

buscar enxergar e ouvir dimensões e vozes sobre um bem cultural que até então era

compreendido de forma bastante limitada e parcial pelas políticas oficiais de patrimônio

brasileiras. Nesse sentido, a mobilização dos significados que essas pedras representam

para os Guarani-Mbyá abre a possibilidade de que outras narrativas venham à tona. Essa

questão também está presente nas palavras de Beatriz Muniz Freire, técnica em História

do Iphan/RS, que complementa a apresentação com informações sobre as condições de

produção do inventário que, segundo ela, é resultado de um duplo compromisso assumido

pelo Iphan local em

repensar seu modo de ver e de representar a experiência histórica

missioneira, da qual os remanescentes dos quatro povoados

reconhecidos como patrimônio nacional são importantes

testemunhos; e aproximar-se dos Guarani que hoje frequentam o

Sítio de São Miguel Arcanjo, buscando compreender os sentidos

de sua presença e as especificidades de sua identidade como um

povo que se mantém em relação com a sociedade nacional desde

sua formação, e que tem sido referência na idealização de uma

identidade regional missioneira.

A agente patrimonial lembra que a sua aplicação da metodologia do INRC pode

gerar alterações no modelo. Segundo Freire, a qualidade dessa metodologia está na

participação dos grupos e comunidades diretamente relacionados com o referencial

inventariado em seu processo de identificação e documentação. Dessa forma, objetiva-se

que os resultados possam de fato ser representativos para o grupo ou comunidade. No

caso dos Mbyá-Guarani, Freire ressalta que a “determinação em divulgar aspectos de sua

cultura” apareceu “como forma de sensibilizar os não-indígenas para o reconhecimento

de seus direitos”. Segundo relata, a partir da apropriação da noção estatal de patrimônio,

“conduziram o trabalho de documentação por aldeias localizadas em cinco diferentes

municípios, como forma de representar a complexa rede étnica constituída de

comunidades distribuídas pelo litoral brasileiro, desde o Espírito Santo até o Sul, e por

terras na Argentina, Uruguai e Paraguai”. Nesse sentido, a própria elaboração do

21 MEIRA, Ana Lúcia G. Apresentação. In: SOUZA, José O. C. et al. Tava Miri São Miguel Arcanjo,

Sagrada Aldeia de Pedra: os Mbyá-Guarani nas Missões. Porto Alegre: Iphan/RS, 2007, p. 5.

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inventário refez os deslocamentos guarani-mbyá pelo estado, ao iniciar-se na Reserva

Inhacapetum, em São Miguel das Missões e chegar à Terra Indígena da Lomba do

Pinheiro, em Porto Alegre.

Ao longo do trabalho, iniciado em 2004, as comunidades mbyá-guarani

envolvidas no Inventário estabeleceram os parâmetros da definição de seus referenciais

culturais e elaboraram propostas para salvaguardá-las. Para Freire, esses parâmetros e

encaminhamentos demonstram de forma bastante visível os seus objetivos de vida e o

empenho em “se preservarem como povo que tem direito a um modo de vida diferenciado,

que não separa o sagrado do profano, [que] mantém os laços que ligam passado e futuro,

e [que] aposta no bem-viver como uma realidade possível”.22

O Inventário propriamente dito é organizado em três partes: a primeira dedicada

à Tava Miri São Miguel Arcanjo, apresentando a comunidade mbyá-guarani, seus

horizontes culturais, sua presença dentro e fora das Missões, bem como descrevendo a

aplicação do INRC junto ao Guarani-Mbyá em São Miguel das Missões; a segunda, que

diz respeito às referências culturais, e que relata as adequações do inventário, a

cosmologia e mito-filosofia mbyá, os conceitos básicos do modo de vida guarani-mbyá e

considera as aldeias envolvidas no processo de produção do inventário; e a terceira, cujo

objetivo é o de indicar os instrumentos de reconhecimento e valorização demandados

pelos Guarani-Mbyá. O volume acompanha um CD de áudio com nove faixas de músicas

guarani gravadas. A musicalidade mbyá-guarani é apresentada de modo paralelo ao

roteiro do livro com o intuito de ambientar o leitor com o universo local. A equipe

responsável pelo processo foi formada por cinco pessoas: os antropólogos José Otávio

Catafesto de Souza, Carlos Eduardo Neves de Moraes, Daniele de Menezes Pires e

Mônica de Andrade Arnt e o cacique mbyá José Cirilo Pires Morinico, Kuaray Nheery.

Dos encaminhamentos propostos como salvaguarda dos referenciais culturais

mbyá-guarani, mostraram-se necessárias as garantias à “conservação” do mbyá rekó, o

modo de ser/estar dessa sociedade, como a garantia à territorialidade livre, por exemplo.

De todo modo, as demandas apresentadas pelo grupo demonstram a necessidade de que

as políticas públicas de cultura sejam articuladas para atender às noções mais amplas de

cultura (e não compartimentadas) presentes entre sociedades indígenas. Ademais, faz-se

22 FREIRE, Beatriz M. Apresentação. In: SOUZA, José O. C. et al. Op. cit., 2007, p. 5.

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urgente que essas políticas interinstitucionais e de longo prazo contem com a participação

ativa dos Guarani-Mbyá.23

Entre os quilombolas do Vale do Ribeira, de acordo com Benedito da Silva24, liderança

da comunidade de Ivaporunduva (considerada a mais antiga do vale e a primeira a ser

titulada pelo Incra no estado de São Paulo), localizada no município paulista de Eldorado

— cuja região concentra parte bastante relevante dos remanescentes da Mata Atlântica e,

por isso, foi reconhecida como Patrimônio Natural da Humanidade em 1999 — o período

imediatamente posterior à Constituição de 1988 foi de organização e de assunção da

identidade quilombola, estimulada pelo texto da Carta Magna. Em vista da escassez de

documentos comprobatórios “em papel”, o processo do reconhecimento para posterior

titulação das terras baseou-se no “mostrar o que é” ser quilombola, contando eles próprios

a própria história. Isto indica que, nesse primeiro momento — ao longo da década de

1990 — frente à legislação brasileira e a direitos recém-conferidos, o caminho para o

reconhecimento se deu por meio da inter-relação entre os saberes antropológico e

quilombola e pela mobilização de elementos culturais, como saberes, práticas, modos de

fazer que viriam a ser entendidos posteriormente como patrimônio imaterial.

O Instituto Socioambiental (ISA), responsável técnico pelo Inventário Cultural

dos Quilombos do Vale do Ribeira, é uma organização que foi fundada em 1994 por

pessoas cuja atuação diz respeito à luta por direitos sociais e ambientais. Apresenta-se

como uma instituição promotora da sustentabilidade socioambiental, indicando assim um

entendimento amplo da inter-relação entre natureza e cultura. Dentre os programas

implementados pelo ISA está o Vale do Ribeira, responsável por assessorar as

comunidades quilombolas desta bacia hidrográfica em diversas frentes.

O Inventário foi elaborado ao longo de três anos de trabalho de campo em 16

comunidades quilombolas. De acordo com os editores,

a proposta de fazer o levantamento dos bens culturais nasce[u]

dos próprios quilombolas, preocupados pela falta de

conhecimento e reconhecimento por parte do Estado e da

sociedade brasileira em relação aos seus direitos territoriais e 23 SOUZA, José O. C. et al. Op. cit., 2007, p. 42. 24 Informações orais proferidas em palestra no evento Turismo e Resistência: justiça e autonomia de

comunidades, organizado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Serviço Social do Comércio de São

Paulo, em 16 dez. 2016.

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pela ameaça permanente dos grandes projetos de infraestrutura

na região, entre eles, os de barragens no Rio Ribeira de Iguape,

com grande potencial de impacto para a região e diretamente

sobre alguns territórios quilombolas.25

Além da iniciativa quilombola, destaca-se a justificativa destes para se valer deste

instrumento: a busca pelo conhecimento e reconhecimento, ou seja, que a sociedade e

Estado brasileiros não apenas tomassem conhecimento de sua existência como também

reconhecessem o seu valor. Estes seriam pontos de partida para o reconhecimento de

direitos territoriais e, novamente, mobilizariam aliados contra as ameaças reais à

existência das comunidades quilombolas. O levantamento identificou 180 bens.

Corroborando o ponto de vista das comunidades, a intenção dos editores é a de que o

inventário fosse um material a auxiliar gestores públicos na formulação e implementação

de políticas de salvaguarda de bens culturais quilombolas.26

Ao construir um panorama do patrimônio cultural quilombola no Vale do Ribeira,

os editores chamaram a atenção para o fato de que grande parte dos bens inventariados

são Lugares — assim como foi no caso de São Miguel —, o que reforça o sentido de

território vivido como fundante da identidade quilombola (e que pode ser pensado

também para as comunidades indígenas). Além de apresentar dados sobre os bens,

demonstrando a sua situação de acordo com as classificações do Iphan (íntegro, ruína ou

memória), levanta-se a questão do acesso aos lugares e das condições de reprodução de

práticas e modos de fazer como determinantes para essas situações em que se encontram

esses bens. Por fim, “a equipe de trabalho juntamente com os agentes culturais e a partir

das reuniões de validações e seminário final, concluiu que os encaminhamentos

relacionados à urgência da salvaguarda do patrimônio imaterial quilombola passa pela

proteção do sistema agrícola”.27

A reunião destas esferas que constituem a dinâmica sociocultural

quilombola evidencia que o valor é maior de que a sua função de

“matar a fome”. A roça faz parte da identidade cultural dos

quilombos do Vale do Ribeira e alimenta não só o corpo físico,

mas também o imaginário, o valor de estar junto e compartilhar,

25 ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilto (ed.). Inventário cultural de quilombos do Vale do Ribeira. São

Paulo: Instituto Socioambiental, 2013, p. 7. Grifos meus. 26 ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilto (ed.). Op. cit., 2013, p. 9. 27 ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilto (ed.). Op. cit., 2013, p. 30-32. Grifos meus.

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a percepção dos ciclos da natureza, o pertencimento a um lugar,

o legado deixado pelos mais velhos.28

Sendo assim, a percepção dos quilombolas do declínio da atividade agrícola,

atestado pela redução da diversidade de produtos cultivados, de pessoas envolvidas na

atividade, do tamanho das roças atesta o risco para os conhecimentos tradicionais. Muitos

são os fatores que são apresentados pelos quilombolas para esse declínio: uma legislação

ambiental que desconsidera suas relações com o ambiente; as alternativas mais atrativas

aos mais jovens fora das comunidades; a falta de assistência técnica rural e as dificuldades

de comercializar os excedentes.29

A reflexão sobre os bens tangíveis e intangíveis das comunidades de Mandira e

Ivaporunduva foi resultado de um processo lento, desafiador e que possibilitou não

somente a preocupação com a conservação e salvaguarda de práticas, saberes, edificações

e expressões como também levou as comunidades a tomarem consciência de que estes

elementos permitem-nas ser o que são e, além disso, instrumentalizam-nas em suas

diversas lutas, o que também se verifica entre os Guarani-Mbyá. Ademais, são esses

elementos que, mobilizados pelas diversas estratégias de mediação, comunicam ao

público externo o sentido da identidade quilombola e do mbyá rekó. Nesse sentido,

patrimonializar — ou rememorar os sentidos atribuídos aos bens que expressam a cultura

quilombola e indígena — foi e é um importante caminho para sair da invisibilidade, para

construir a autoestima, para reivindicar direitos e assistência. Comunicar o patrimônio é

falar de si em primeira pessoa (no caso, na primeira do plural, como frequentemente

ressaltam): são essas as histórias que busco escutar.

Bibliografia

ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilto (ed.). Inventário cultural de quilombos do Vale

do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.

28 ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilto (ed.). Op. cit., 2013, p. 36. 29 ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilto (ed.). Op. cit., 2013, p. 36.

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