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VOZES E VERSOS QUILOMBOLAS

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VOZES E VERSOS QUILOMBOLAS

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Universidade do Estado da Bahia - UNEB

José Bites de CarvalhoReitor

Marcelo Duarte Dantas de Ávila Vice-Reitor

Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEB

Sandra Regina SoaresDiretora

Conselho Editorial

TitularesAlan da Silva Sampaio

Antenor Rita GomesDarcy Ribeiro de Castro

Elizeu Clementino de SouzaGabriela Sousa Rêgo Pimentel

Hugo Saba Pereira CardosoJanaina de Jesus SantosLuiz Carlos dos Santos

Maria das Graças de Andrade LealReginaldo Conceição Cerqueira

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GEAN PAULO GONÇALVES SANTANA

VOZES E VERSOS QUILOMBOLASuma poética identitária e de

resistência em Helvécia

Salvador EDUNEB

2020

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© 2020 AutorDireitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia.

Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma.

Depósito Legal na Biblioteca Nacional.Impresso no Brasil em 2020.

Coordenação Editorial Fernanda de Jesus Cerqueira

Coordenação de Design Sidney Silva

Revisão textual e NormalizaçãoHenrique Torres | Tikinet

Capa e DiagramaçãoSidney Silva

Revisão textual de provaItana Nogueira Nunes

Revisão de diagramação de provaGeorge Luís Cruz Silva

FICHA CATALOGRÁFICA Bibliotecária: Fernanda de Jesus Cerqueira – CRB 162-5

Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEBRua Silveira Martins, 2555 – Cabula

41150-000 – Salvador – BA [email protected]

www.uneb.brEditora filiada à

978-65-88211-24-3 .

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AGRADECIMENTOS

Inspirado pelo som dos tambores angoma e caburé, movimento as energias necessárias, agradecido à Entidade-símbolo, águia a guiar meus caminhos nesse rito de passagem, uma ciência iniciatória que permanecerá comigo para além da academia, forjando a minha exis-tência humana. Salve Deus!

Salve, Lourdes e Tana, minhas avós, as mais velhas que conheci da família e que me embalaram com narrativas e canções; salve dona Minininha, mãinha, cuja força luminosa e arte de tecer fios e vida dá direção ao meu barco humano; à memória do alfaiate Valdomiro, meu Pai, que, nesta vida e noutra, cinge minhas fraquezas, e que se encantou, 12 dias antes de meu ingresso no doutorado. Salve minhas irmãs, meu irmão, meus cunhados, sobrinhos e amigos, caros ao meu coração.

À interlocução construtiva com os orientadores, professores do doutorado em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e membros das bancas que qualificaram o percurso e resultados da pesquisa. Ao mergulharem em meu dis-curso analítico sobre os cantos-poemas, aprofundaram meu olhar, enriquecendo-me com detalhes preciosos sobre a vida que se desdo-brava e multiplicava na poética quilombola de Helvécia.

Às mulheres negras cantadoras que, com suas experiências partilhadas, escandalosamente romperam meu pequeno mundo: Antônia Francisca (Toninha), Faustina Zacarias, Brasília Aleixo, Jucelina Florentina dos Santos (Dona Cheia), Fidelina Florentina dos Santos, Maria Dajuda dos Santos, Francisca Aleixo (Kadan), Maria da Conceição (Dona Cocota), Amelina dos Santos Constantino e

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Maria da Conceição dos Anjos. Agradeço a arte do olhar humano, dos saberes e das verdades em contínua construção: raiz, flor, fruto, sementes de luta e resistência identitária no extremo sul da Bahia.

À EDUNEB, pelo respeito e por todo o cuidado dedicado às nervuras dessa história do tempo vivido e do tempo contado, grati-dão. Ao se apropriar do meu canto-poema, possibilitou a escuta em outros territórios. Axé. Awêry. Paz e bem.

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PREFÁCIO .............................................................................................. 9

INTRODUÇÃO .................................................................................... 15

ANCESTRALIDADE, MEMÓRIA E RECONHECIMENTO QUILOMBOLA EM HELVÉCIA .................................................................................... 37

DO COURO DO TAMBOR AO CORO DAS MULHERES NEGRAS ................................................ 109

POR QUE CANTAM OS TAMBORES E AS MULHERES .................................................................................. 207

ÚLTIMO BATUQUE: ERGUENDO O TAMBOR DEITADO ........................................................................ 273

REPOSITÓRIO DE CANTOS-POEMAS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E ANCESTRALIDADE EM VERSOS ....................................................................................... 281

REFERÊNCIAS ................................................................................... 349

SUMÁRIO

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Utilize o QR CODE ou o LINK abaixo para ter acesso ao video- documentário elaborado através da pesquisa de campo.

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PREFÁCIO

Este livro de estreia do pesquisador Gean Paulo Gonçalves Santana é um importante registro da força política da mulher negra no Brasil, sustentada no canto, na dança, no tambor e na ação coletiva. Hoje temos consciência do protagonismo das mulheres em diversos mo-vimentos sociais, na promoção de transformações em benefício da comunidade, de modo que já não se concebem ações antirracistas sem que se considerem as questões relativas à mulher. Este livro se debruça sobre as ações de um grupo de mulheres negras de Helvécia, no sul da Bahia, em que poesia e política se mesclam, organizando a vida em sociedade a partir do canto dançado, em solidariedade. Trata-se de importante trabalho de pesquisa etnopoética que coloca em prática, na observação participativa e dialógica, conceitos da maior relevância para os estudos contemporâneos da poesia oral, como os de voz, vo-calidade e performance, que superam a abordagem da sonoridade e consideram as ações do corpo em seus cinco sentidos.

Conheci Gean Paulo Gonçalves Santana no I Seminário Internacional de Literatura Afrolatina (Siliafro), em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Encerrada a sessão, da qual participei com uma apresentação sobre cantos rituais da tradição oral afro-brasileira, ao sair do auditório para ver os pôsteres e a feira de livros, fui abordada por um rapaz alegre e sorridente que disse querer muito conhecer melhor e trocar informações sobre minha pesquisa com os cantos dos negros de Minas Gerais. Identificou-se como doutorando na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e do Ensino Médio. Naquele momento, como se pode depreender, ele se

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desdobrava entre uma formação teórico-metodológica no Programa de Pós-Graduação em Letras no sul do país e uma intensa pesqui-sa de campo no sul da Bahia, no Nordeste brasileiro. Na ocasião, perguntei-me como ainda encontrava disponibilidade e disposição para se deslocar até o Sudeste, no intuito de acompanhar as discus-sões sobre as manifestações literárias da chamada diáspora africana na América Latina. Foi assim: aquele rapaz me ofereceu um colar, que recebi como uma peça ritual, e prometemos um diálogo que se estende há mais de oito anos.

Nesse tempo, Gean Paulo visitou Minas Gerais mais de uma vez, participando ativamente das atividades do Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina, momento em que privilegiamos a di-versidade cultural, artística e religiosa dos índios e negros brasilei-ros. Conheceu mestres - reis, rainhas e capitães do Rosário, pajés Maxacali, músicos e dançantes da chula e cantadores de vissungos da região diamantina. Cantou e dançou com vários deles, seguiu o cortejo do boi, conheceu o toque dos tambores do candombe e do reinado mineiro. Comeu da comida mineira produzida numa oficina de culinária regional. Conheci então sua abertura para o outro, de corpo e alma.

Após pesquisa de campo realizada no mestrado, que o levou a viver por um tempo em Helvécia – comunidade majoritariamente afrodescendente – buscando entender a transformação de uma co-lônia suíço-alemã no século XIX em um território remanescente de quilombo no século XXI, em sua própria memória de pesquisador “sobressaíram os cantos das mulheres negras”. Esses cantos-poemas, como designados neste livro que ora se publica, tornaram-se objeto da pesquisa de doutorado de Gean Paulo, que focalizou a poesia oral manifestada nos tambores e cantos dançados das mulheres de Helvécia como forma de resistência cultural dos negros.

Ainda no início de nossa interlocução, sugeri que ele inves-tisse fortemente no registro em vídeo das diversas performances

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das mulheres de Helvécia. Busquei enfatizar o valor do documento para a preservar nossa memória e, em especial, a importância desse trabalho num país jovem como o Brasil, que investe pouquíssimo para preservar a nossa memória. Gean Paulo foi se revelando um excelente interlocutor, qualidade que pressupõe a habilidade da escuta, absolutamente necessária ao pesquisador das manifestações da voz. Encarou com profissionalismo a gravação e a edição em vídeo dos cantos e danças das mulheres de Helvécia e produziu um videodocumentário que garante independência em relação ao texto elaborado a partir das pesquisas de campo e bibliográfica. As letras dos cantos foram transcritas com cuidado e disponibilizadas na seção “Repositório de cantos-poemas: história, memória e ancestra-lidade”, permitindo que outros pesquisadores façam novas análises dessas poesias e que todos os interessados possam memorizar os cantos, assim como reproduzir o vídeo no aprendizado da dança. Sim, porque o trabalho desenvolvido não se limita à descrição e à interpretação. Vai além, interessando-se pela preservação e manu-tenção dos cantos e danças como tradição viva do povo brasileiro.

São muitas as circunstâncias e formas do canto-poema: embar-reiro, bate-barriga, ofícios em memória aos mortos da comunidade, celebração da vida daquele que morreu há um ano… As mulhe-res conduzem o pesquisador na trilha da memória coletiva. Dona Antônia Francisca, dona Faustina Zacarias Carvalho, dona Brasília Aleixo, as irmãs Jucelina e Fidelina dos Santos, dona Maria da Conceição dos Anjos, dona Amelina dos Santos Constantino, dona Virgínia Lourenço, dona Maria dos Santos… e aquelas chamadas pelo apelido: a Cocota, a Cucuta, a Kadan… elas contam histórias de outros tempos, tocam o tambor, cantam, dançam. O pesquisador escuta, filma, grava em sua memória e nos suportes materiais da memória, de modo a difundir e espalhar a força da resistência iden-titária concentrada na voz.

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Quanto ao texto, na trilha da escrita sobre a oralidade e a poesia, o pesquisador encontra grandes mestres que lhe fornecem conceitos inclusivos essenciais. Zumthor, poeta suíço-francês, pes-quisador, filólogo e teórico da literatura, que viajou para conhecer em vários lugares do mundo as diversas vozes, abre o campo da observação e conceituação da poesia –, ao incluir o público – e da obra, ao considerar seu aspecto performático:

É poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou, de uma forma geral, o texto literário), é sentido como a manifestação particular, em um dado tempo e em um dado lugar, de um amplo discurso consti-tuindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social. Muitas vezes alguns sinais o balizam ou o acompanham, revelando sua natureza figurativa: é o caso do canto em relação ao texto da canção. [...] a tensão a partir da qual esta “obra” se constitui delineia-se entre a palavra e a voz, e procede de uma contradição insolúvel no seio de sua inevitável colaboração; entre a finitude das normas de discurso e a infinidade da memória; entre a abstração da linguagem e a espacialidade do corpo. [...] A forma “pura” da obra poética oral é o que, da dimensão dada a seu espaço pelo gesto, subsiste em memória, depois que as palavras foram suprimidas. Tal é a experiência estética que constitui a performance. (ZUMTHOR, 2010, p. 39, 59, 232).

Em suas várias publicações, especialmente em seu grande livro Introdução à Poesia Oral (do qual extraio todos os trechos citados aqui), em que reivindica (e creio mesmo que elabora) uma ciência da voz, Zumthor distingue oralidade e vocalidade e propõe uma poética da voz:

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Falta-nos uma poética geral da oralidade que sirva de relê às pesquisas particulares e proponha noções ope-ratórias, aplicáveis ao fenômeno das transmissões da poesia pela voz e pela memória, à exclusão de qualquer outra coisa. [...] É estranho que, entre todas as nossas disciplinas instituídas, não haja ainda uma ciência da voz. Esperemos que ela se forme em breve: ela traria para o estudo da poesia oral uma base teórica que lhe falta. Abarcaria, para além de uma física e de uma fisiologia, uma lingüística, uma antropologia e uma história. [...] durante três milênios, o Ocidente “ouviu falar” na substância fônica. Entretanto, o que me faz insistir neste assunto é, sobretudo, a função extensa da vocalidade humana, de quem a palavra constitui certamente a manifestação principal, mas não a única, nem talvez a mais vital: eu reconheço o exercício de sua força fisiológica, sua faculdade de produzir a fonia, a ação de organizar essa substância. O phôné não se une imediatamente ao sentido, mas lhe prepara o meio em que ele se afirmará; como tal, contraria-mente à opinião de Aristóteles no De interpretatione, ele não produz símbolos. Nesta perspectiva, em que oralidade significa vocalidade, todo logocentrismo se desfaz. (ZUMTHOR, 2010, p. 7, 9, 25).

Nessa abertura de perspectiva para incluir no campo da poesia os cantos das mulheres negras de um território quilombola na Bahia, o pesquisador contou também com outro poeta, tradutor e ensaísta, o mineiro Edimilson de Almeida Pereira, em cuja obra escrita Gean Paulo encontrou o conceito de canto-poema, que sintetiza a força da poesia oral. Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga, entre outros, orientam o pesquisador em sua trajetória, oferecendo-lhe categorias estabelecidas a partir de um significativo repertório de manifesta-ções da poesia oral, registrado em anotações e gravações em viagens pelo Brasil.

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Seis anos depois daquele primeiro encontro no Siliafro, con-videi Gean Paulo a me acompanhar numa viagem de pesquisa ao Pacífico colombiano. Acompanhados de outro colega da UFMG, partimos com três projetos articulados, em busca de identificações e diferenças entre os cantos, danças, contos orais e poemas escritos do Brasil e da Colômbia, país onde vive a segunda maior população negra da América Latina. Curiosamente, de algum modo retoma-mos a proposta daquele seminário de 2012, de conhecer a literatura afro-latina. Gean Paulo pôde então comparar os cantos-poemas das mulheres de Helvécia, no extremo sul da Bahia, no Brasil, com os cantos-poemas de mulheres da costa pacífica e do vale do Cauca. Desembarcamos no fabuloso Festival Petronio Álvarez, em Cali, onde um público estimado em 300 mil pessoas vibrava ao som dos tambores, da marimba, das flautas, e dançava buscando acompanhar os ritmos envolventes, fazendo coro às vozes dos cantadores. A partir dali, conhecemos poetas, rezadeiras, músicos e cantadores. Ouvimos relatos sobre os tambores e outros instrumentos, sobre os rituais da tradição oral afro-colombiana. Além disso, assistimos a diversas sessões de poesia declamada e trocamos conhecimentos e emoções com tantas pessoas que se tornaram amigas. Gean Paulo fotografou e gravou em vídeo o que pôde, mas guardou na memória bem mais do que nos instrumentos. Mas isso já é o tema de uma outra publicação que, estou segura, está a caminho.

Sônia QueirozProfessora associada da Faculdade de Letras

da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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INTRODUÇÃO

Imersos nas beberagens da diáspora negra, apresentamos os cantos--poemas, expressão poética oral do quilombo de Helvécia, no extre-mo sul da Bahia. Construídos a partir de experiências intersubjetivas e vocalizados pelas negras cantadoras, compuseram o corpus da pes-quisa de doutorado (SANTANA, 2014).

A proposta do doutorado que originou este livro objetivou re-gistrar os cantos-poemas das mulheres negras de Helvécia, descrever e analisar sua construção a partir de suas expressões que lidam com a representação da herança africana, suas identidades, ressignificações e resistência. Além disso, pretendeu identificar tanto os operadores da enunciação como a própria composição poética de um imaginá-rio afrodescendente, provocada por momentos e movimentos histó-ricos, sociopolíticos, culturais e religiosos.

Diante desses recortes, verificamos em que medida as marcas de silenciamento apontam para fragmentos identitários do histórico afrodescendente na poética oral de Helvécia e, assim, identificamos os possíveis papéis dessa poética.

Com o percurso discursivo-metodológico que compõe o livro, intencionamos conferir visibilidade à produção oral e mostrar que

[...] a leitura literária carece de contextualização his-tórica, sociocultural, psicológica e até antropológica para que a crítica de obras concretas não resulte em mais um produto tradicionalmente voltado para a consolidação da hegemonia canônica do ocidente. (MATA, 2013, p. 39).

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Para delinearmos essa proposta é preciso rememorar um ca-minho percorrido. Através do caso de Helvécia (SANTANA, 2008), comunidade certificada1 remanescente de quilombo, tematizamos o estilo de vida de uma população que experimentou uma refundação territorial e que vem aprendendo a adaptar-se a um novo código, capaz de produzir outros significados elaborados em meio a cons-tantes negociações.

O percurso metodológico do estudo do caso Helvécia deman-dou a fixação de moradia no distrito e, para além das descrições e análises da etnopesquisa, acordou memórias de vozes, experiências da infância que haviam sido acumuladas durante muitos princípios de noite, através das histórias e cantorias de nossa mãe, de nosso pai e de nossas avós; essa realidade direcionou nosso olhar para outros es-paços e sujeitos de importância social e histórica para a comunidade.

Chegarmos a Helvécia e fixarmos moradia provocou ruídos internos passíveis de interpretações, os quais exigiram tempo para se configurar e estabelecer significados. Estarmos desprovidos da fa-mília e da rotina, a princípio, causou-nos medo e insegurança, mas, ao mesmo tempo, curiosidade de compreender os enigmas antes que eles nos devorassem.

Ao participarmos dos ofícios, em memória aos mortos da comunidade (ritual litúrgico que ocorre nas casas em vez da igreja, após sete dias, seis meses, um ano e sete anos de falecimento, ter-minando o ciclo), chamou-nos atenção a extrema concentração de alguns participantes que, em determinado momento, pareciam estar em êxtase espiritual. Também, o fato de, ao término de um ano de falecimento, sob o toque do tambor, celebrar-se a vida daquele que outrora fizera parte dos momentos e movimentos de reza, cantoria e danças.

1 A Fundação Cultural Palmares, órgão do Governo Federal, emite certificação de autodefi-nição das comunidades como remanescentes de quilombolas. (FUNDAÇÃO PALMARES, 2020).

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A divisão espacial da comunidade de Helvécia é outro ele-mento que inquieta as cegueiras socioespaciais. A leste, traços dos colonizadores são observados nos sobrenomes de origem suíço--alemã dos núcleos familiares: Krygsman, Meztkar, Sutz, Krull, os brancos (em itálico o termo brancos, pois as famílias descendentes dos colonizadores europeus constituíram matrimônio com outras descendências: negra e indígena) do espaço; todos voltados para o sol nascente. Nas demais partes do quadrante, a maioria das famílias é de afrodescendentes, termo apropriado do conceito elaborado por Souza, cujo intuito é “[...] pôr em evidência os vínculos com o conti-nente africano, seus descendentes e suas tradições culturais que não se perderam na diáspora.” (SOUZA, 2006, p. 20).

Como muitas famílias colonizadoras abandonaram as fazen-das de café após a abolição, os negros tomaram posse da terra que antes servia como mortalha ou para enriquecer os donos legais, assim constituídos pelas leis que regiam o Império e que se estenderam até 1888. Tais leis estigmatizaram o povo negro, de modo que ele chegou à atualidade com marcas forjadas pelo tempo, espaço e discursos do co-lonizador. No entanto, a partir do sol poente, apesar desses estigmas, as famílias negras se firmaram e resistiram no tempo-espaço, à espera do deslocamento, não só geográfico, mas humano, político e social.

Ser morador, e não mais um visitante em Helvécia, despertou--nos um sentimento antigo e circunstanciado pela identificação histórica vivenciada nos movimentos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)2 e na vivência do terreiro da nossa tia. Ao longo desse caminho histórico, de Colônia Leopoldina ao distrito de Helvécia, à medida que nossos pés se fincavam no território, distanciavam-se as representações das autoridades e aproximavam-se as reconhecidas pela comunidade afrodescendente.

2 São núcleos da igreja católica que têm como fundamento a teologia da libertação de-fendida por Leonardo Boff, gradativamente substituída pelos movimentos pentecostais – carismática.

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Ao concluir a descrição e análise dos conflitos e tensões que emergiram do processo de reconhecimento quilombola, sobressaí-ram os cantos das mulheres negras em nossas memórias, a partir das experiências e relações intersubjetivas na comunidade de Helvécia. Em concordância com Zumthor (2010), essas vozes identificavam-se com o correr das águas, do sangue, do esperma, do labor histórico, religioso e cultural fecundado na vida dessa comunidade às margens da BR 418 e do rio Peruípe, no extremo sul da Bahia.

Retomar, na pesquisa do doutorado, as trilhas construídas durante o mestrado, cumpriu o desejo de desdobramento da disser-tação que há muito nos inquietava. Afinal, as narrativas das mulhe-res negras impulsionavam a continuidade de um olhar multiplicado sobre a história do distrito de Helvécia, suas lutas e cantorias. Para além das inquietações, pelo próprio contato estabelecido, as canto-rias ampliavam os percursos construídos anteriormente.

Em Helvécia, à noite, em diversas circunstâncias sociais e re-ligiosas, ouviam-se as cantorias das mulheres, acompanhadas pelo som de tambores. Segundo o grupo que iniciou o processo de reco-nhecimento, os cantos e as representações (embarreiro, dança bate--barriga e rituais religiosos de matriz africana) foram relevantes para que Helvécia fosse reconhecida como comunidade remanescente de quilombo, conforme documento enviado à Fundação Palmares. Esse dado nos inquietou.

Então, a partir de seus discursos e vozes sociais, que papel esses cantos poderiam revelar? E, o que permanece em silêncio em relação a Helvécia, sua história e sua gente? Pouco a pouco, essa pro-blemática corporificou-se em tema para o doutorado.

Conscientes dos trilhos que construímos com o mestrado, sabíamos da importância de outros que nos conduziriam a muitas bifurcações e espaços desconhecidos. Desse modo, os diálogos com as mulheres da Associação Quilombola de Helvécia (AQH) sobre a proposta de coleta dos cantos vocalizados em Helvécia, como o

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canto do galo, aproximaram e possibilitaram outros contatos que não possuíamos: com as mulheres cantadoras. Essa proximidade foi de suma importância à realização da pesquisa: os novos caminhos que já nos esperavam. Elas, na simplicidade de sua existência, acolheram com entusiasmo a proposta apresentada, conduzindo-nos com se-gurança, com as devidas provocações pertinentes à pesquisa, pelos labirintos das memórias partilhadas.

Dona Antônia Francisca e dona Faustina Zacarias Carvalho foram nossos primeiros contatos, imprescindíveis às idas e vindas por muitas veredas desconhecidas de eucaliptos, que nos levaram ao encontro de mulheres de grande sabedoria. Dona Brasília Aleixo, de memória formidável e, por isso, com o maior repertório de cantos; as irmãs Jucelina Florentina dos Santos, conhecida como Cheia e Fidelina Florentina dos Santos e Maria Dajuda dos Santos, que, a cada encontro, ampliavam e provocavam nosso olhar com suas perfor-mances e narrativas; Maria da Conceição dos Anjos, a mãe de santo, que não teve receio em abrir seu terreiro e partilhar a alegria dos encantados; Amelina dos Santos Constantino, sempre acompanhada do esposo, seu Manuel Sérvolo Constantino, com memórias exem-plares, cheias de ritmo, cantos e narrativas sobre Helvécia e sua gente. Junto dessas mulheres batemos à porta de muitas outras, tomamos café, sentamo-nos nas varandas, rimos, encabulamos e escutamos. Elas propiciaram muitas outras prosas com Maria da Conceição, conhecida como Cocota, Cecília Constantino (a Cucuta), Virgínia Lourenço, Maria dos Santos e dona Francisca Aleixo, a Kadan, seu Anildo Faustino dos Santos, e muitos outros.

Na casa dessas mulheres fomos acolhidos e nutridos com ali-mentos destinados ao corpo e às inquietações do pensamento, que se alargava a cada novo contato.

Chegamos e fincamos nossos pés em Helvécia. Sentimos que não éramos estrangeiros ao povo da comunidade, desses que, apenas fotografam, imobilizando as paisagens. Nosso desejo era o

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movimento da voz das negras cantadoras, inspirado na força social, política e cultural que diante de nós se apresentava a cada encontro.

Observamos que as mulheres negras resistiram ao silencia-mento identitário ancestral. Suas vozes poéticas, na forma de canto, em espaço que historicamente remete a um passado escravocrata3, serviram “[...] para unir o pensamento de modo mais compacto e permanente [...]” (ONG, 1998, p. 159), para não se esquecerem de como reler e manter a tradição. Com suas experiências do tempo vivido e do contado, elas, através de suas palavras cantadas, penetra-ram no ekos humano e imprimiram nos espaços familiares e sociais marcas de uma tradição há muito vivenciada.

Para ilustrar o sentido da voz em Helvécia, podemos dizer que esse som-elemento

[...] é querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos cósmicos que nos atravessam e capta seus sinais: ressonância infinita que faz cantar toda matéria [...]. (ZUMTHOR, 2010, p. 9).

Estudar a formação poética de Helvécia é relevante pois aponta para uma resistência e manutenção de identidades construídas ao longo das experiências, dos enfrentamentos identitários, através dos jogos de poder que, explícitos ou silenciados, revelam-se nos cantos--poemas enunciados em diversas situações sociais e religiosas na comunidade local.

Referendamos o termo canto-poema, utilizado para represen-tar a realidade da expressão poética oral no quilombo de Helvécia. Construído a partir de experiências, é uma resposta às circunstân-cias históricas, socioafetivas e aos confrontos da vida cotidiana. Com ele, os moradores de Helvécia e das regiões circunvizinhas são 3 Historicamente, Helvécia está relacionada à antiga Colônia Leopoldina (1818), uma sesma-

ria de posse suíço-alemã.

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convocados a rememorar, celebrar e tomar posse do passado e do presente, ressignificando-os. Os cantos-poemas acionam reminis-cências e evocam lembranças, cooperando para desconstruir as en-grenagens e estruturas do engenho – as quais persistem na memória coletiva e revelam o chicotear que dilacerou corpos e mentes que não se submeteram aos mecanismos de poder e aos construtos de escra-vidão; as palavras cantadas têm, entre o dito e o não dito, marcas de resistência, de poder e de magia, uma itinerância de morte e vida severa, contudo, libertária.

O termo canto-poema é uma apropriação de um conceito elaborado por Pereira (2002), que grafa cantopoema. Para o autor, a gênese dessa concepção foram pesquisas e análises realizadas sobre os textos do congado, o que o levou a considerá-los “[...] um corpus literário [...]” (PEREIRA, 2002, p. 38). O autor esclarece:

[...] em virtude da importância atribuída à letra e à melodia, acreditamos ser pertinente chamar de can-topoemas uma parte dos discursos que os devotos elaboram para o período específico das celebrações e que, mediante a aceitação do grupo, permeia também as suas vivências cotidianas [...]. (PEREIRA, 2002, p. 38).

Ademais, encontramos a grafia cantopoema na tese de dou-torado de Semedo (2010), intitulada As Mandjuandade: cantigas de mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura.

Ao observar os trajetos das pesquisas realizadas sobre Helvécia e diante do processo de reconhecimento engendrado pela articulação das mulheres negras e seus discursos, compreendemos a importân-cia dos cantos-poemas como instrumental de referência histórica. Trata-se de um primeiro registro, um caminho que se inicia para outros tantos viajantes da pesquisa-conhecimento.

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Na escrita, optamos por vezes em manter as longas falas das cantadoras, para melhor compreender a construção discursiva, suas conexões e a cadência própria da narrativa, tão cara à poética da oralidade. Não se pretende usar da prerrogativa de “dar voz às mu-lheres”, mas propiciar que essas vozes preencham as lacunas da nossa escrita e de outras historicamente constituídas.

Salientamos que, a título de critério de seleção, convidamos oito mulheres negras, oriundas de famílias sem relações de paren-tesco com as famílias colonizadoras da antiga Colônia Leopoldina, domiciliadas em Helvécia e/ou nas zonas rurais circunvizinhas ao povoado, a exemplo de Rio do Sul e de Volta Miúda. Além disso, elas transitavam entre a religião católica apostólica romana e o candomblé,4 religião de matriz africana. Duas das oito mulheres cantadoras foram responsáveis pela articulação, organização e envio da documentação necessária ao processo de reconhecimento de Helvécia como comunidade quilombola. As que se dispuseram a participar da pesquisa, seguindo os critérios de inclusão definidos, formalizaram a participação assinando o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). As colaboradoras do estudo puderam decidir sobre serem identificadas por seus nomes civis ou fictícios. Todas as participantes optaram pela identificação civil.

O registro fonográfico e de vídeo – algumas vezes individual, outras vezes em grupo – foi agendado previamente e realizado na residência das participantes ou em espaço por elas determinado. Por essa razão, a presença de outras pessoas nas cenas de registro – curio-sos ou membros da família – enriqueceram-no, pois em certos mo-mentos eles “assaltavam o turno” e se inseriam nas performances das mulheres, desejosos de expor também suas experiências. Esses regis-tros serviram para confeccionar um videodocumentário, homônimo 4 As mulheres se referem ao culto como ritual de candomblé. Entretanto, pelo observado nos

rituais e nos altares, ele se aproxima, segundo a literatura escrita religiosa, da umbanda. Ainda assim, em respeito aos discursos das mulheres, optamos por registrar candomblé e não umbanda.

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do livro, com cantos-poemas e depoimentos acessíveis mediante o que se encontra na seção “Repositório de cantos-poemas: história, memória e ancestralidade” que permite o acesso à plataforma digital.

O registro dos cantos-poemas das mulheres negras, do ponto de vista da cordialidade, foi conduzido com base na colaboração natural (MEIHY, 2005), de modo que as oito mulheres foram con-vidadas a cantar para que se criasse o registro ou nos convidaram quando se reuniam por iniciativa própria. A duração do registro foi previamente concebida no projeto: aproximadamente 60 minutos. Entretanto, com base na realidade observada, por se tratarem de conversas informais, optamos por deixar as mulheres colaboradoras à vontade em relação ao tempo.

A transcrição dos textos e das performances ganhou sentido e reuniu os fragmentos da memória, afeiçoando nosso olhar às marcas identitárias dos negros na comunidade de Helvécia. A coleta e transcrição dos cantos-poemas basearam-se nos trabalhos de Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga, Edison Carneiro, Sônia Queiroz, Jean Derrive, Paul Zumthor e Walter Ong. Ressaltamos que, para transcrever os cantos-poemas, recorremos à chave de transcrição utilizada pelo projeto “Quem conta um conto aumenta um ponto”, coordenado pela professora doutora Sônia Queiroz (Fale/UFMG- 1995-2006), com o objetivo de manter o mais fidedigno possível o registro das falas das mulheres cantadoras.

Optamos por organizar os cantos-poemas em três partes dis-tintas, de acordo com as perspectivas referendadas: história e me-mória ancestral: louvores, orações; reflexos do cotidiano: conflitos, amores e trabalho. Depois de agrupá-los, foi necessária nova subdi-visão a fim de evidenciar algumas particularidades que, mesmo não sendo objeto do estudo, integram o conjunto das composições. As dimensões temáticas por nós referendadas e que compõem o reposi-tório de cantos-poemas dizem respeito às representações da herança africana, suas identidades, ressignificações e resistência por meio da

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arte da palavra no quilombo de Helvécia. Cabe, no entanto, ressaltar que, dada a riqueza e multiplicidade de significados que a poética oral desta comunidade apresenta, não se podem excluir outras di-mensões temáticas pertinentes aos cantos-poemas. Divididos em seus respectivos grupos temáticos, estão na seção “Repositório de cantos-poemas: história, memória e ancestralidade”.

Escolher oito cantos-poemas visou representar as vozes poé-ticas das oito mulheres cantadoras, ativas nesse processo de registro. Consideramos também, de acordo com o dito popular, que esse número traduz o movimento, além de ser a metade dos búzios do jogo do Ifá, o qual está diretamente ligado ao conhecimento oral e simbólico ancestral africano. Utilizar a metade, e não a totalidade, visto que são 16 búzios, expressa “[...] o ato dessa tradução, dessa translatiostudii que é inevitavelmente o tempo da humanidade.” (ZUMTHOR, 2007, p. 107). Este, por estar em contínua construção, diálogo intersubjetivo e ressignificação, também não se apresenta em sua completude, assim como os cantos-poemas e a análise realizada.

Para o grupo temático de história e memória ancestral, consi-deramos, respectivamente, os tambores angoma e caburê, referências às línguas africana e indígena, instrumentos imprescindíveis às per-formances que vocalizam os cantos-poemas. Nesse grupo temático, agrupamos composições cujos vocábulos indicavam proximidade com as representações – mesmo em suas corruptelas – da África e da escravidão, assim como dos povos indígenas. Essas, mesmo não sendo analisadas, foram referidas algumas vezes para que se indicas-se a proximidade, o diálogo e a troca entre negros e indígenas desde a Colônia Leopoldina.

O grupo temático de louvores e orações também foi subdivi-dido. Primeiro, agrupamos os cantos-poemas cujos vocábulos indi-cavam uma religiosidade de matriz africana. Depois, os que diziam respeito aos santos católicos. Num terceiro momento, aqueles que se referiam aos pretos-velhos, caboclos e boiadeiros. Desse grupo,

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escolhemos analisar as composições que continham vocábulos e/ou referências às entidades-símbolos do candomblé ou santos do de-vocionário católico, cuja representação tornou-se sincrética para os afrodescendentes.

No terceiro grupo temático, a exemplo dos anteriores, aborda-mos os reflexos do cotidiano e agrupamos os cantos-poemas a partir de três tipos de representação temática: os que revelavam conflitos pessoais ou de natureza social; aqueles que focavam as relações amo-rosas; e os que estabeleciam representações laborais.

Mesmo que tenhamos subdividido os cantos-poemas para analisá-los, elos estruturais e de significação mantêm sua unidade. Movimentados pelos tambores, explicitam, ora uma resposta, ora um questionamento sobre a vida em sua inteireza, razão pela qual reiteramos a importância da totalidade dos registros no repositório.

Os relatos orais e escritos sobre a história de Helvécia reme-tem a 1818, à antiga Colônia Leopoldina, sesmaria situada ao longo do rio Peruípe, formada por 38 fazendas particulares de posse suíço--alemã, cujos responsáveis eram o Cônsul de Hamburgo, Pedro Peyckr, e os naturalistas Freyreiss e Morhardt.5 A colônia era um espaço de grande movimentação por causa do transporte de grãos de café e de escravos repatriados de origens jêje, cabinda, manjolo, benguela e nagô. Este último grupo compunha a maior parte da po-pulação local, de acordo com a lista de inventário Mantandon, de 1858 (SANTANA, 2008).

Na jurisdição da Colônia Leopoldina havia 1.267 escravos e 130 brancos que trabalhavam nas plantações de café, além de 40 pro-prietários, perfazendo um total de 1.437 pessoas. Naquele período, das 130 mil arrobas de café que a província da Bahia exportava, 65

5 Georg W. Freyreiss acompanhou como naturalista o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, do Rio de Janeiro ao sul da Bahia. Em 1818, com Pedro Peyckr e o também na-turalista Morhardt, tomou posse das terras cedidas pelo governo do Reino, constituindo a colônia Leopoldina no sul da Bahia (OLIVEIRA, 2007).

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mil provinham dos cafezais da Colônia Leopoldina. Diante desses números, observamos que tanto a produção de café quanto o negó-cio de escravos eram recorrentes na colônia. Em 1858, a população aumenta significativamente (57,86%), perfazendo um total de 2000 escravos (LYRA, 1982; BARICKMAN, 2003) e sugerindo a ineficiên-cia da Lei Queiroz, de 1850, que proibia o tráfico de escravos.

Antes desse período, na fazenda de João Martinus Flach – um dos proprietários do conjunto de fazendas que fazia parte da Colônia Leopoldina – a proporção de escravos e homens livres era de 24 para um, no montante de 108 (registrados). De acordo com a relação dos lavradores da colônia, o proprietário possuía em sua fazenda cerca de 145 mil pés de café (CARMO, 2010). Conforme relato dos mora-dores, tratava-se de um lugar de grande atrocidade contra a vida dos escravos. João Martinus Flach, por ser de origem suíça, cognominou sua fazenda de Helvethia, a qual, posteriormente, agregou escravos e colonos de outras fazendas, tornando-se um vilarejo. Atualmente o distrito de Helvécia fica no município de Nova Viçosa, extremo sul da Bahia (SANTANA, 2008).

No Censo de 2000, segundo informações prestadas pelos residentes do distrito de Helvécia sobre a cor,6 cerca de 43,4% dos moradores eram pardos, 39,5% pretos, 14,9% brancos e 0,6% indíge-nas. No conjunto, a população parda e preta (negra) perfazia 82,9% do total, proporção superior à média estadual, de 73,2%. Os dados revelam forte presença negra e indícios de um período que guarda nos rituais religiosos e culturais marcas da ancestralidade africana. Ainda de acordo com o Censo 2000, a taxa de analfabetismo funcio-nal em Helvécia é de 62,6 % (SANTANA, 2008).

É inconteste que, no decurso da história, pretos e mestiços tiveram menos acesso à escolarização, sofrendo mais o efeito das 6 A investigação de cor ou etnia ocorreu de acordo com a autoclassificação: branca; preta;

amarela – para quem se enquadrou nas origens japonesa, chinesa, coreana etc.; parda – para quem se enquadrou como parda ou se declarou mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça; ou indígena quem se declarou como indígena ou índia (IBGE, 2002).

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desigualdades regionais e da inexistência de políticas nacionais que equalizassem o acesso à educação. Os poucos que usufruíram desse privilégio receberam uma educação essencialmente ilustrativa, ser-vindo mais para reafirmar os rituais de poder e legitimar a ordem social senhorial hegemônica (MATTA, 2002). Pretensiosamente, esse processo ideológico, ainda hoje, sustenta os mecanismos exclu-dentes, dissolvidos nas práticas educativas que persuadem as catego-rias sociais minoritárias a um constante processo de fragilidade em relação à vivência da cidadania. O histórico dos afrodescendentes é permeado por segregações espaciais e sociais (SANTANA, 2008).

Quanto ao usufruto da terra, observamos arbitrariedade na primeira Lei de Terras, escrita e lavrada no Brasil, em 1850. O teor dessa lei excluía os africanos e seus descendentes do direito à terra, pois não os considerava brasileiros, categorizando-os como libertos. Destarte, à margem do sistema, os afrodescendentes paulatinamente foram expulsos ou segregados em muitos espaços e, mesmo com a permanente resistência, tiveram que lidar com atos normativos, re-pressões policiais e sociais, além de “[...] questionamentos sobre a legitimidade de apropriarem-se de um lugar, cujo espaço pudesse ser organizado conforme suas condições, valores e práticas culturais.” (LEITE, 2000, p. 334). É notória, a partir do histórico do Estado bra-sileiro, a inoperância em relação à igualdade de condições e oportu-nidades aos afrodescendentes no sistema político e estrutural.7

Ao longo do processo de formação social, o traçado fronteiri-ço étnico-cultural brasileiro configurou

[...] um sistema disfarçadamente hierarquizado pela cor e onde a cor passou a instruir níveis de acesso, principalmente à escola e à compreensão do valor da

7 Essa reflexão amplia-se a partir do pensamento de Cândido Grzybowski, que diz ser impor-tante e urgente reinventar-se e mudar o país, pois, no Brasil, o Estado se formou antes da cidadania e quase sempre contra ela (GRZYBOWSKI, 1997).

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terra, passou mesmo a ser valor embutido no negócio [...]. (LEITE, 2000, p. 335).

Processos históricos de expropriação e de segregação refor-çaram a desigualdade, possibilitando identificar, atualmente, os ga-nhadores e os perdedores e quem, arbitrariamente, não raro, com violência física e simbólica, exerceu e controlou regras que definiram os direitos de acesso aos bens materiais e simbólicos. Assim, a res-semantização da palavra quilombo e os processos de acesso à nova categorização, inquirida pelos afrodescendentes, “[...] na atualidade, significa para esta parcela da sociedade brasileira, sobretudo, um direito a ser reconhecido e não propriamente e apenas um passado a ser rememorado.” (LEITE, 2000, p. 335).

É relevante pensar sobre isso, pois, segundo Rosa (2001, p. 30), “[...] a vida é também para ser lida. Não literalmente, mas em seu suprasenso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas [...]”, talvez porque, de acordo com Chartier,

[...] a leitura implica sempre um sentido. Não é so-mente uma operação abstrata de intelecção, é também pôr em jogo o corpo que é inscrição num espaço, rela-ção consigo e com o outro. (CHARTIER, 1994, p. 16).

Tal pensamento vai ao encontro das reflexões Para uma Filosofia do Ato Responsável, de Bakhtin (2010b), cuja abrangência tem por princípio a relação dialógica, um delinear participativo e não indiferente que substancia a “arquitetônica da alteridade” (BAKHTIN, 2010b, p. 33).

Além disso, aproximando as reflexões de Chartier (1994) e das mulheres negras, para as quais o movimento de luta é um processo de reconhecimento do espaço, do outro e de si mesmas, pode-se dizer que, ao descobrirem e assumirem a cultura negra, elas avançam sua consciência de serem quilombolas, pois reivindicam direitos

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de cidadania, visto que, historicamente, apenas deveres lhes foram atribuídos. A identidade quilombola foi uma descoberta que serviu como rito de passagem diante da sociedade excludente.

Em Helvécia, o rótulo quilombola ampliou a extensão material e imaterial na configuração do espaço em processo de territorializa-ção, fato também observado na comunidade rural à margem do São Francisco, no Sergipe. Nessas comunidades

[...] o rótulo atribuía o estatuto de “cultura” ao que até então era a simples cor da pele e um simples samba de coco. Da mesma forma, atribuía o estatuto de “descendência” ao que era uma origem brumosa, um passado informe e sem relevância. (ARRUTI, 2006, p. 289).

Também, é importante ressaltarmos:

A ressemantização do termo “quilombo” pelos pró-prios movimentos sociais, como resultado de um longo processo de luta que veio traduzir os princípios de liberdade e cidadania negados aos afrodescenden-tes, correspondendo a cada um deles os respectivos dispositivos legais: 1 – Quilombo como direito à terra, como suporte de residência e sustentabilidade há muito almejadas nas diversas unidades de agregação das famílias e dos núcleos populacionais compostos majoritariamente, mas não exclusivamente de afro-descendentes. 2 – Quilombo como um conjunto de ações em políticas públicas e ampliação de cidadania, entendidas em suas várias dimensões. 3 – Quilombo como um conjunto de ações de proteção às manifesta-ções culturais específicas. (LEITE, 2000, p. 335).

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Diante da realidade sócio-histórica das comunidades que reivindicam o estatuto de descendência e de quilombo, é pertinente evocar a abordagem de Benjamin sobre o conceito de história:

[...] articular historicamente o passado não significa “conhecê-lo” como de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (BENJAMIN, 2011b, p. 224).

Ao relacionarmos as reflexões de Benjamin à luta das comu-nidades autonomeadas quilombolas, compreendemos que estão em risco tanto a existência da tradição como a dos que a recebem, pois a elas se dirige um olhar folclorizado ou segregador. Desse modo, “[...] é preciso arrancar a tradição do conformismo que quer apoderar-se dela [...] (BENJAMIN, 2011b, p. 224). Na luta pelo reconhecimento, as mulheres negras despertam as centelhas da esperança do passa-do, convencidas de que os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer, porque “[...] o inimigo não tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, 2011b, p. 225) muitas batalhas, mas não todas, confor-me observamos no histórico de lutas afro-brasileiras.

A luta pelo reconhecimento identitário não é um fator social superficial, mas um movimento tenso e conflituoso, pois aciona processos de reconstrução de solidariedade, de contextualização e recontextualização de identidades culturais. A luta por cidadania e solidariedade, reparação histórica e social, é uma contravenção aos mecanismos de racismo e centrocentrismo, cujos atos arbitrários de pilhagem política e religiosa impuseram o monopólio regulador das consciências, dispensando a intervenção transformadora dos contextos, da negociação e do diálogo (SANTOS, 2006). De modo semelhante, Silva (2004), no relatório de pesquisa sobre as comuni-dades rurais de Rio das Rãs, na região do médio São Francisco, na Bahia, esclarece:

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Hoje, a construção da cidadania entre o povo negro e entre todos os povos vítimas da subordinação está a depender da construção/reconstrução da solidarie-dade entre eles, da desconstrução dos estereótipos, clichês e representações que recalcam sua aparência física, sua cultura e sua história e que os afastam dos seus assemelhados étnicos, raciais, de gênero e de classe. A solidariedade negra pode vir a ser uma arma contra o racismo, contra a exclusão e contra o extermínio perpetuado contra o povo negro no Brasil. (SILVA, 2004).

Diante desse contexto, nota-se que o processo de resseman-tização do termo quilombo desvincula-se significativamente de uma recuperação utópica do passado ou da sua projeção folclórica. Em vez disso, configura-se a partir de um quadro político de lutas por direitos iguais, travadas ao longo do tempo: pela Frente Negra Brasileira, nos anos 1930; nos anos 1970 e 1980 pelo Movimento Negro Unificado. Também reverbera na Constituição Federal de 1988, especificamente no artigo 68:

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (BRASIL, 1988).

Este, mesmo votado como parte das disposições transitórias, e não como obrigação permanente do Estado, introduz “[...] um novo campo dos direitos étnicos, até então inexistente.” (LEITE, 2000, p. 345). A esse quadro, somam-se as críticas quanto à visão estática do termo quilombo, através do parecer sobre a “Regulamentação de terras de negros no Brasil”, expedido pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, acrescido das críticas dos movimentos sociais e debates acadêmicos e políticos que se instauraram no Brasil, desde a década de 1930.

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A exemplo de muitas comunidades rurais que reivindicam o direito de serem reconhecidas como remanescentes de quilombo, e sobretudo o direito à existência cultural diferenciada, à participação social e à visibilidade cultural, a luta de Helvécia por reconhecimen-to identitário ocorreu a partir do processo de (auto)descoberta e recriação identitária, mediante um conjunto de fenômenos objetivos e subjetivos implicados na adoção do rótulo étnico e de seus condi-cionamentos e efeitos, a partir dos recursos/impactos semânticos e retóricos do artigo 68 da Constituição – fato que se assemelha ao ocorrido na comunidade rural Mocambo, descrito por Arruti (2006).

Ressaltamos que nessas comunidades,

O ato de aquilombar-se, ou seja, de organizar-se contra qualquer atitude ou sistema opressivo, passa a ser, portanto, nos dias atuais, a chama reacesa para, na condição contemporânea, dar sentido, estimular, fortalecer a luta contra a discriminação e seus efeitos. Vem, agora, iluminar uma parte do passado, aquele que salta aos olhos pela enfática referência contida nas estatísticas onde os negros são a maioria dos so-cialmente excluídos. Quilombo vem a ser, portanto, o mote principal para se discutir uma parte da cidada-nia negada. (LEITE, 2000, p. 349).

Não obstante, as mulheres negras em Helvécia, com suas “chamas reacesas”, “[...] partiram para a batalha com os olhos grávi-dos de novos sonhos e novas decisões [...]” (MELO, 1989, p. 63). Ao se apropriarem da instrumentalização legal conferida pelo Estado, explicitam as lutas por cidadania desencadeadas pelos afrodescen-dentes, um direito ainda por se resolver e por se definir efetivamente no Estado brasileiro (LEITE, 2000). Essas lutas, desde o período colonial, representam levantes e “[...] inúmeras formas de associa-ções, não evidentemente sem conflitos, mas gestadas pelo desejo de mudança [...]” (LEITE, 2000, p.  349), lutas que historicamente

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foram contidas pelo próprio Estado através de políticas de embran-quecimento, democracia racial e segregação social. O Estado sempre favoreceu, em suas instâncias legais

[...] um processo que transformou africanos em escra-vos e em seguida em negros, grupos que têm ocupado os piores lugares no processo de expansão do capita-lismo no Brasil. (LEITE, 1991, p. 39).

Trata-se de um Estado que, para disfarçar a discriminação, usou o argumento do ser exótico, folclorizando os territórios de ocu-pação afrodescendente.

Se os termos quilombo-quilombola nem sempre tiveram ca-ráter relativo, em função das necessidades vitais e sociais do grupo, na contemporaneidade essa relatividade adquire outra proporção e o faz, sobretudo, em vista do Decreto 4887/2003, assinado pelo presi-dente Luís Inácio Lula da Silva, que concede às comunidades negras o direito à autoatribuição como único critério para identificação das comunidades quilombolas, fundamentado na convenção 169/1989 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o di-reito de autodeterminação dos povos indígenas e tribais. O decreto regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por rema-nescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ARRUTI, 2006).

Se, por um lado, os sentidos do termo quilombo revelam o processo de marginalização, por outro, além de outras sociabilidades materiais e simbólicas, evidenciam

[...] a força simbólica demonstrada no seu persistente poder aglutinador, vindo a configurar ou a expressar uma identidade social e a nortear inclusive políticas de grupos. (LEITE, 2000, p. 342-343).

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Esta obra se estrutura a partir do movimento das mulheres negras cantadoras, descendentes das mulheres escravizadas na Colônia Leopoldina, as quais, na contemporaneidade, representam marcas de luta e resistência.

Assim, a seção “Ancestralidade, memória e reconhecimento quilombola em Helvécia” apresenta o contexto histórico de Helvécia, lugar e referência das ações e dos cantos das mulheres negras. Demonstra, além disso, o papel que elas, atentas ao presente e, em diálogo com o passado, desempenham em prol do reconhecimento identitário quilombola através de sua voz, de suas narrativas e de suas experiências ancestrais manifestas pela memória, projetando o espaço e a si mesmas, de modo que ambos passam da invisibilidade ao reconhecimento.

A seção “Do couro do tambor ao coro das mulheres negras” organiza-se em torno dos mapeamentos elaborados por Andrade (1959), sobre as Danças dramáticas do Brasil, e de Alvarenga (1960), Música popular brasileira, e nas reflexões de Edison Carneiro (1982), em Folguedos tradicionais, priorizando o diálogo com as performan-ces do quilombo de Helvécia. Contudo, não se pretende primeiro buscar semelhanças ou examinar os diversos estilos e seus signifi-cados. Tenciona-se uma incursão no tempo a fim de apresentar ele-mentos e percursos de criação e experimentação da poética da voz, protagonizada pelos afrodescendentes. Nesse contexto, estão inseri-das as performances da dança do bate-barriga, do embarreiro e dos ofícios religiosos, como manifestações características e gênese dos cantos-poemas corporificados pelas negras cantadoras de Helvécia, ritmados pelo tambor antropomorfizado.

A seção “Por que cantam os tambores e as mulheres” é estru-turada em torno das palavras tecidas pelas negras cantadoras que, ao manterem a tradição viva, tornaram-se artesãs e agri-cultoras de palavras. Baseia-se, além disso, em três fios norteadores: histó-ria e memória ancestral; louvores, orações; reflexos do cotidiano:

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conflitos, amores e trabalho. O subtópico história e memória an-cestral trata dos tambores angoma e caburê, respectivamente, refe-rência às línguas africana e indígena, instrumentos imprescindíveis às performances que vocalizam os cantos-poemas. No subtópico louvores e orações, primeiramente, agrupam-se os cantos-poemas com vocábulos que os enquadrasse na religiosidade de matriz afri-cana. Posteriormente, os cantos-poemas relacionados aos santos católicos e, num terceiro momento, os que se referiam aos preto--velhos, caboclos e boiadeiros. Já no subtópico sobre os reflexos do cotidiano, os cantos-poemas foram agrupados em três subgrupos: aqueles cujas representações temáticas indicavam conflitos pes-soais ou de natureza social; os que focavam as relações amorosas e os que tratavam de representações laborais.

Por fim, apresentamos o “Repositório de Cantos-poemas: histórias, memórias e ancestralidades”, no qual constam os cantos--poemas referidos neste livro.

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Figura 1 – Mulheres ritualizam a dança bate-barriga

Fonte: Desenho de Gean Paulo Gonçalves Santana.