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Hora Final Alerta de um cientista: o desastre ambiental ameaça o futuro da humanidade

Hora Final - Martin Rees - Revisado

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Martin Rees, cientista considerado, nos faz um relato sóbrio - porém muito sombrio - das inúmeras possibilidades que a humanidade tem hoje à sua disposição para perpetrar a própria auto-destruição. Um livro bem escrito e de leitura interessantíssima. Formatado para dispositivos móveis,

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Hora Final Alerta de um cientista: o desastre ambiental

ameaça o futuro da humanidade

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Prefácio A ciência está avançando mais depressa do quenunca, e numa frente mais ampla: bio, ciber enanotecnologia, todas oferecem perspectivasformidáveis; a exploração do espaço também.Mas há um lado obscuro: uma nova ciênciapode ter conseqüências involuntárias; ela dápoder a indivíduos para que perpetrem atos demegaterror; mesmo erros inocentes poderiamser catastróficos. O "lado mau" da tecnologiado século XXI poderia ser mais grave e maisintratável do que a ameaça de devastaçãonuclear que enfrentamos por décadas. Epressões causadas por humanos ao ambienteglobal podem engendrar riscos maiores do queas antigas ameaças de terremotos, erupções eimpactos de asteróides. Este livro, embora curto, é amplo. Os capítulospodem ser lidos de forma quase independente:eles lidam com a corrida armamentista, novastecnologias, crises ambientais, com o alcance eos limites da invenção científica e com asperspectivas da existência de vida além da

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Terra. Tirei proveito de discussões com muitosespecialistas; alguns deles, entretanto, acharãoque minha apresentação tem viés diferente desua percepção pessoal. Mas esses são temascontroversos, como são na verdade todas as"hipóteses" para o futuro a longo prazo. No mínimo, espero estimular uma discussãosobre como evitar (tanto quanto possível) ospiores riscos, enquanto se desenvolvem novosconhecimentos, de preferência para benefíciohumano. Cientistas e tecnólogos têmobrigações especiais. Essa perspectiva, noentanto, deveria reforçar a atenção de todos,em nosso mundo interligado, para concentrarmedidas públicas em comunidades que sesentem em desvantagem ou que são maisvulneráveis. Agradeço a John Brockman por me estimular aescrever o livro. Sou grato a ele e a ElizabethMaguire por serem tão pacientes, e a ChristineMarra e colegas por seus esforços eficientes ediligentes para pô-lo no prelo. .

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I. Prólogo O século XX nos trouxe a bomba, e a ameaçanuclear nunca nos deixará; a ameaça doterrorismo está em alta na agenda pública epolítica; desigualdades quanto à riqueza e aobem-estar se tornam ainda mais amplas. Meuobjetivo principal não é contribuir com aliteratura florescente sobre esses temasdesafiantes, mas concentrar-me em perigos doséculo XXI, no momento menos conhecidos,que poderiam ser uma ameaça ainda maisgrave à humanidade e ao meio ambienteglobal. Algumas dessas novas ameaças já estão sobrenós; outras são conjeturais. Populaçõespoderiam ser aniquiladas por vírus letais"projetados" espalhados pelo ar; o caráterhumano pode ser alterado por novas técnicasmuito mais precisas e efetivas do que oselixires e as drogas que conhecemos hoje; atépodemos um dia ser ameaçados pornanomáquinas incontroláveis que se replicam

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de forma catastrófica, ou por computadoressuperinteligentes. Outros novos riscos não podem ser de tododesconsiderados. Experimentos que fazem comque átomos colidam entre si com imensa forçapoderiam dar início a uma reação em cadeiacapaz de provocar uma erosão generalizada naTerra; os experimentos poderiam até rasgar atrama do próprio espaço, uma derradeiracatástrofe de "Juízo Final" cujos efeitos seespalham à velocidade da luz para engolir ouniverso inteiro. Uma hecatombe dessaenvergadura pode ser improvável, mas suscitaa questão de quem deveria decidir, e como,quanto a prosseguir com experimentos quetêm um propósito científico genuíno (epoderiam muito bem trazer benefíciospráticos), mas que impõem um minúsculorisco de gerar resultados absolutamentecalamitosos. Ainda vivemos, como todos os nossosancestrais, sob a ameaça de desastres quepoderiam causar a devastação global:

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supererupções vulcânicas e grandes impactosde asteróides, por exemplo. Felizmente, aocorrência de catástrofes naturais nessa escalaglobal são tão infreqüentes, e portanto tãoimprováveis, durante nossa vida, que nãopreocupam nossos pensamentos nem nosprovocam noites de insónia. Porém, elas vêmsendo ampliadas por outros riscos ambientaisque impomos a nós mesmos, riscos que nãopodem ser desconsiderados. Durante os anos da Guerra Fria, a ameaçaprincipal que recaía sobre nós era uma trocatermonuclear generalizada, desencadeada pelaconfrontação de superpoderes em escalada.Essa ameaça foi aparentemente afastada. Masmuitos especialistas — na verdade, algunsresponsáveis por controlar as medidas duranteaqueles anos — acreditavam que tivemos sorte;outros achavam que o risco cumulativo dearmagedom durante aquele período chegava a50%. O perigo imediato de guerra nucleargeneralizada retrocedeu. Há, porém, umaameaça crescente de que armas nucleares serão

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usadas mais cedo ou mais tarde em algumlugar do mundo. Armas nucleares podem ser desmanchadas,mas não desinventadas. A ameaça éinerradicável e poderia ressurgir no séculoXXI: não podemos excluir um realinhamentoque levaria a confrontos tão perigosos quanto arivalidade da Guerra Fria, com arsenais aindamaiores. E mesmo uma ameaça que ano apósano parece modesta pode aumentar casopersista por décadas. No entanto, a ameaçanuclear será encoberta por outras quepoderiam ser tão destrutivas quanto ela, emuito menos controláveis, as quais adviriamnão de governos nacionais, nem mesmo de"Estados problemáticos", e sim de indivíduosou pequenos grupos com acesso a umatecnologia cada vez mais avançada. Éalarmante a quantidade de formas sob as quaisos indivíduos serão capazes de desencadearcatástrofes. Os estrategistas da era nuclear formularamuma doutrina de dissuasão por "destruição

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mutuamente assegurada" (com o acrônimomais do que apropriado MAD ). Paraesclarecer esse conceito, doutores Fantásticoreais imaginaram uma "máquina do JuízoFinal" hipotética, um meio derradeiro deintimidação terrível demais para ser propostopor qualquer líder político com a cabeça nolugar. Mais adiante neste século, cientistaspoderiam criar uma verdadeira máquina doJuízo Final não nuclear. É concebível quecidadãos comuns possam ter o comando deuma capacidade destrutiva que no século XXera uma prerrogativa assustadora de umpunhado de indivíduos que detinham asrédeas do poder nos Estados que possuíamarmas nucleares. Se houvesse milhões dededos independentes no botão de umamáquina do Juízo Final, então um atoirracional, ou mesmo um erro cometido poruma pessoa, poderia acabar com todos nós. Uma situação assim extrema talvez seja tãoinstável que nunca possa ser alcançada, damesma forma que um castelo de cartas muito

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alto, embora factível na teoria, não pode serconstruído. Muito antes que se adquira umpotencial de "Juízo Final" — na verdade, quemsabe daqui a uma década —, alguns atingirão opoder de desencadear, em momentosimprevisíveis, eventos na escala dos pioresultrajes terroristas de hoje em dia. Uma redeorganizada de terroristas como os da Al-Qaedanão seria necessária: basta um fanático ou umdesajustado social com a mentalidade daquelesque produzem vírus de computador. Hápessoas com tais propensões em qualquer país— muito poucas, para ser cauteloso, mas as bioe as cibertecnologias se tornarão tão poderosasque uma única que seja já poderia ser demais. Em meados do século, sociedades e naçõespodem ter se realinhado drasticamente;pessoas podem levar vidas muito diferentes,viver até uma idade muito mais avançada edemonstrar atitudes diversas daquelas dopresente (talvez modificadas por medicação,implantes de chips, e assim por diante). Masuma coisa não deve mudar: indivíduos

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cometerão erros e haverá um risco de açõesmaléficas praticadas por solitáriosamargurados e grupos dissidentes. Novosinstrumentos para criar terror e devastaçãoserão fornecidos pela tecnologia avançada;comunicações universais instantâneasamplificarão seu impacto sobre a sociedade.Catástrofes poderiam ser provocadas — o queé ainda mais preocupante — simplesmente porinfortúnio técnico. Acidentes desastrosos (porexemplo, a criação ou a liberação involuntáriasde um patógeno nocivo de difusão rápida, ouum erro de software devastador) são possíveismesmo em instituições bem regulamentadas. Àmedida que as ameaças se agravam, e ospossíveis perpetradores ficam mais numerosos,a desordem pode tornar-se tão difundida que asociedade acabe por desgastar-se e regredir. Eno mais longo prazo o risco pode se estenderaté para a própria humanidade. A ciência enfaticamente não está, como algunstêm proclamado, perto de seu fim; ela marchaadiante em ritmo acelerado. Estamos ainda

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embasbacados pela natureza maciça darealidade física e pelas complexidades da vida,do cérebro e do cosmos. Novas descobertas,iluminando todos esses mistérios, engendrarãoaplicações benéficas, mas também imporãonovos dilemas éticos e trarão novos perigos.Como poderemos equilibrar os diversosbenefícios potenciais da genética, da robóticaou da nanotecnologia contra o risco (emboramenor) de desencadear um desastre absoluto? Meu interesse específico em ciência é acosmologia: pesquisar nosso ambiente naperspectiva mais ampla que se possa imaginar.Pode parecer um ponto de vista incongruentepara quem quer concentrar-se em questõespráticas terrenas: nas palavras de GregoryBenford, um escritor de ficção que é tambémastrofísico, o estudo da "grande giração dosmundos [... ] imbui, e talvez aflija, astrônomoscom uma percepção de como somos parecidoscom as efeméridas". Mas são poucos oscientistas que se encaixam na descrição deBenford: uma preocupação com os espaços

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quase infinitos não torna os cosmólogosespecialmente "filosóficos" na lida com a vidadiária; eles tampouco são menos engajadoscom as questões com que somos confrontadosaqui no chão, hoje e amanhã. Minha atitudesubjetiva foi mais bem expressa pelomatemático e filósofo Frank Ramsey, membroda mesma faculdade em Cambridge (King'sCollege) à qual eu agora pertenço: Não me sinto nem um pouco humilde dianteda vastidão dos céus. As estrelas podem sergrandes, mas não podem pensar ou amar; eessas são qualidades que me impressionammuito mais do que tamanho. [...] Meu retratodo mundo é desenhado em perspectiva e nãocomo um modelo em escala. O primeiro planoestá ocupado por seres humanos, e as estrelassão pequenas como míseros pedacinhos. Uma perspectiva cósmica na verdade fortalecenossas preocupações sobre o que acontece aquie agora, porque fornece uma visão de como opotencial futuro da vida poderia serprodigioso. A biosfera da Terra é resultado de

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mais de 4 bilhões de anos de seleçãodarwiniana: as estupendas extensõestemporais do passado evolutivo são hoje parteda cultura comum. Mas o futuro da vidapoderia ser mais longo do que seu passado.Nos éons que jazem adiante poderia emergiruma diversidade ainda mais maravilhosa, naTerra e além dela. O desdobrar da inteligênciae da complexidade poderia estar próximo deseus princípios cósmicos. Uma fotografia memorável tirada do espaçonos mostrou "o nascimento da Terra" visto deuma nave que orbitava a Lua. Nosso habitat deterra, oceanos e nuvens se revelava como umverniz fino e delicado, sua beleza evulnerabilidade contrastando com a paisagemlunar desolada e estéril em que os astronautasdeixaram suas pegadas. Faz só quatro décadasque dispomos dessas imagens distantes daTerra inteira. Mas nosso planeta existe há umtempo 100 milhões de vezes maior do que esse.Por que transformações ele terá passadodurante essa extensão cósmica de tempo?

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Cerca de 4,5 bilhões de anos atrás o nosso Solse condensou a partir de uma nuvem cósmica;naquela ocasião ele era rodeado por um discode gás em redemoinho. Nesse disco seaglomerou poeira para formar um enxame depedras em órbita, que então coalesceram paraconstituir os planetas. Um deles veio a ser anossa Terra: a "terceira pedra a partir do Sol".A jovem Terra foi golpeada por colisões comoutros corpos, alguns quase tão grandesquanto os próprios planetas: um dessesimpactos arrancou pedra fundida suficientepara fazer a Lua. As condições se acalmaram ea Terra esfriou. As transformações seguintes,significativas o bastante para serem vistas porum observador longínquo, teriam sido muitograduais. Ao longo de uma extensão de tempoprolongada, mais de 1 bilhão de anos, oxigêniose acumulou na atmosfera terrestre,conseqüência da vida unicelular nascente. Daliem diante, lentas modificações se deram nabiosfera e na forma das massas de terra, àmedida que os continentes derivavam. A

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cobertura de gelo cresceu e voltou a baixar: éaté possível que em certos episódios a Terratenha se congelado inteira, ficando branca emvez de azulada. As únicas mudanças globais abruptas foramdesencadeadas por grandes impactos deasteróides ou por supererupções vulcânicas.Incidentes ocasionais como esses teriamdespejado tanto entulho na estratosfera quepor muitos anos, até que toda a poeira e osaerossóis tornassem a assentar, a Terrapareceria cinza-escuro em vez de branco-azulada, e nenhuma luz solar alcançava terraou oceano. Além desses breves traumas, nadafoi súbito: sucessões de novas espéciessurgiram, evoluíram e se extinguiram emescalas de tempo geológico de milhões de anos.Mas numa lasca minúscula da história da Terra— a última milionésima parte, alguns milharesde anos —, os padrões de vegetação sealteraram muito mais depressa do que antes.Isso marcou o início da agricultura: a marca deuma população humana sobre as terras, com o

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poder das ferramentas. O ritmo de mudança seacelerou à medida que as populaçõescresceram. Eram então visíveis transformaçõesbem diferentes, ainda mais abruptas. Emcinqüenta anos, pouco mais do que umcentésimo de milionésimo da idade da Terra, aquantidade de dióxido de carbono naatmosfera, que declinara lentamente pelamaior parte da história terrestre, começou aelevar-se com velocidade anormal. O planetase tornou um imenso emissor de ondas derádio, o produto de todas as transmissões detelevisão, telefone celular e radar. E outra coisa aconteceu, sem precedentes nos4,5 bilhões de anos da história da Terra: objetosmetálicos — embora muito pequenos, algumastoneladas no máximo — abandonaram asuperfície do planeta e escapuliramcompletamente da biosfera. Alguns forampropulsionados para órbitas em torno daTerra; outros viajaram para a Lua e os planetas;outros ainda chegaram a seguir uma trajetóriaque os conduziria às profundezas do espaço

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interestelar, deixando o sistema solar parasempre. Uma raça de extraterrestres comconhecimentos científicos avançados queobservasse nosso sistema solar poderia prevercom confiança que a Terra enfrentaria a ruínaem outros 6 bilhões de anos, momento em queo Sol, em seus estertores de morte, incharia atése transformar em um "gigante vermelho" quevaporizaria tudo o que restasse na superfíciedo nosso planeta. Mas será que eles poderiamprever tal espasmo sem precedentes antes dametade da vida da Terra — essas alteraçõesantrópicas que ao todo não representam nemum milionésimo do tempo de vida desteplaneta, e que pelo visto ocorrem comvelocidade desenfreada? Se esses alienígenas hipotéticos continuassem anos vigiar, o que testemunhariam nospróximos cem anos? Um grito final seguidopor silêncio? Ou o planeta em si seestabilizará? E será possível que alguns dessespequenos objetos metálicos lançados da Terra

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gerem novos oásis de vida noutra parte dosistema solar, estendendo enfim suasinfluências, em meio ávida exótica, máquinasou sinais sofisticados, muito além do sistemasolar, criando uma "esfera verde" em expansãoque terminaria por impregnar a galáxia inteira?Pode não ser uma hipérbole absurda — naverdade, pode nem mesmo ser exagero —afirmar que a localização mais crucial notempo e no espaço (a não ser o próprio BigBang) poderia ser aqui e agora. Acredito que aschances de nossa civilização na Terrasobreviver até o fim do século presente nãopassam de 50%. Nossas escolhas e nossas açõespoderiam assegurar o futuro perpétuo da vida(não só na Terra, como talvez muito alémdela). Ou em contraste, por maldade oudesventura, a tecnologia do século xxi poderiapôr em jogo o potencial da vida, acabando comseu futuro humano e pós-humano. O queacontecer aqui na Terra, neste século, podefazer a diferença entre uma quase-eternidaderepleta de formas de vida cada vez mais

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complexas e sutis, e uma eternidadeimpregnada de nada a não ser matéria-prima. 2. Choque Tecnológico A ciência do século XXI pode alterar ospróprios seres humanos não só seu modo devida. Uma máquina superinteligente poderiaser a última invenção humana. "No último século, houve mais mudanças doque nos mil anos anteriores. O novo séculoverá mudanças que deixarão no chineloaquelas do século anterior." Essa era umaopinião comumente ouvida nos anos 2000 e2001, na alvorada do novo milênio; mas sãopalavras que na verdade datam de mais decem anos e dizem respeito aos séculos XIX eXX, não ao XX e ao XXI. Elas foram proferidasem uma palestra de 1902 intitulada "Discoveryof the Future" [Descoberta do Futuro], cujaapresentação foi feita pelo jovem H. G. Wellsna Royal Institution em Londres. No final do século XIX, Darwin e os geólogosjá haviam delineado grosseiramente a evolução

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da Terra e de sua biosfera. A idade completado planeta ainda não fora reconhecida, masestimativas chegavam a centenas de milhõesde anos. O próprio Wells aprendera essasidéias, então novas e provocadoras, com omaior defensor e propagandista de Darwin, T.H. Huxley. A palestra de Wells tinha cunho sobretudovisionário. "A humanidade", disse ele, "seguiuum caminho, e a distância que percorremos éum prenúncio do caminho que devemosseguir. Todo o passado é senão o começo deum começo; tudo o que a mente humanarealizou não é mais do que o sonho antes dodespertar." Sua prosa um tanto rebuscadacontinua a ressoar cem anos mais tarde. Nossacompreensão científica — de átomos, vida ecosmos — desabrochou de uma forma quenem mesmo ele concebera: certamente Wellsestava certo em prever que o século XX veriamais mudanças do que os mil anos anteriores.Desdobramentos de novas descobertastransformaram nosso mundo e nossas vidas.

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As extraordinárias inovações técnicas semdúvida o teriam entusiasmado, assim como asperspectivas para as próximas décadas. Mas Wells não era um otimista ingênuo. Suapalestra ressaltava o risco de desastre global:"É impossível demonstrar por que certas coisasnão deveriam destruir completamente a raça ea história humanas e pôr fim a elas; por que anoite não deveria cair neste momento e tornartodos os nossos sonhos e esforços vãos [...] algovindo do espaço, ou pestilência, ou algumadoença formidável da atmosfera, algumveneno cometário, alguma grande emanaçãode vapor do interior da Terra, ou novosanimais para predar-nos, ou alguma droga ouloucura devastadora na mente do homem".Nos últimos anos de sua vida, Wells se tornoumais pessimista, sobretudo em sua derradeiraobra, The Mind at the End of its Tether [AMente e o Fim de seu Âmbito]. É possível queseu quase desespero sobre o "lado mau" daciência se aprofundasse caso ele estivesseescrevendo hoje. Os humanos já dispõem dos

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meios para destruir sua civilização com guerranuclear: no novo século, eles estão adquirindoconhecimento biológico que poderia serigualmente letal; nossa sociedade integrada setornará mais vulnerável a ciberriscos, e pressãohumana sobre o meio ambiente se acumulacom perigo. As tensões entre osdesdobramentos benéficos e os nocivos dasnovas descobertas e as ameaças impostas pelopoder prometéico que a ciência nos confere sãode uma realidade perturbadora e cada vezmais gritante. A audiência de Wells na Royal Institution já oconhecia como o autor de A Máquina doTempo. Nesse clássico o crononauta empurroucom todo cuidado a alavanca de comando desua máquina: "A noite caiu como o apagar deuma luz, e no momento seguinte veio oamanhã". Enquanto ele tomava velocidade, "apalpitação de noite e dia se fundiu numcinzento contínuo. [...] Viajei, parando de vezem quando, em grandes passadas de mil anosou mais, atraído pelo mistério da sina da Terra,

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vendo com estranho fascínio o Sol tornar-semaior e mais apagado no céu a oeste, e a vidada velha Terra esvair-se". Ele encontra uma eraem que a espécie humana se dividiu em doisgrupos: os incapazes e infantis Elói e os brutossubterrâneos Morlock que os exploram. Apósadiantar-se 30 milhões de anos, num mundoem que todas as formas de vida conhecidas seextinguiram, ele retorna ao presente, trazendoestranhas plantas como evidência de suaviagem. Na história de Wells 800 mil anos se passamantes que os humanos se dividam em duassubespécies, um período que condiz com asidéias modernas sobre a quantidade de temporequerida para que a humanidade emergissepor meio da seleção natural. (As evidênciasdos nossos ancestrais humanóides mais antigosse estendem a 4 milhões de anos atrás; fazcerca de 40 mil anos que humanos "modernos"suplantaram os neandertais.) Mas no novoséculo, as mudanças nos corpos e nos cérebroshumanos não se restringirão ao ritmo da

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seleção darwiniana, nem mesmo ao decruzamentos artificiais. A engenharia genéticae a biotecnologia, se praticadasgeneralizadamente, poderiam transfigurar ofísico e a mente da humanidade muito maisdepressa do que Wells anteviu. De fato, LeeSilver, em seu livro De Volta ao Éden,conjetura que seriam necessárias umas poucasgerações para que a humanidade pudessedividir-se em duas espécies: se a tecnologia,permitindo que pais "projetem" criançasgeneticamente avantajadas, fosse disponível sópara os endinheirados, haveria umadivergência cada vez mais ampla entreos"GenRicos" e os "Naturais". Mudanças nãogenéticas poderiam ser ainda mais súbitas, aotransformarem o caráter mental dahumanidade em menos de uma geração, tãorápido quanto novas drogas possam serdesenvolvidas e comercializadas. Osfundamentos da humanidade, essencialmenteinalterados ao longo da história registrada,

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poderiam começar a ser transformadosdurante este século. Previsões Fracassadas Recentemente encontrei num sebo algumasrevistas de ciência da década de 1920, comrepresentações imaginativas do futuro. Osaeroplanos, então futuristas, tinham fileiras deasas uma acima da outra; o artista supuseraque, já que na época os biplanos pareciam umavanço sobre os monoplanos, seria ainda mais"avançado" empilhar as asas como umapersiana. Extrapolar pode ser algo enganoso.Além do mais, projeções diretas de tendênciaspresentes passarão ao largo de inovações maisrevolucionárias: as coisas qualitativamentenovas que com efeito transformam o mundo. Já quatrocentos anos atrás, Francis Baconenfatizava que os avanços mais importanteseram os menos previsíveis. Três descobertasantigas lhe causavam maior espanto: a pólvora,a seda e o sextante. Em Novum Organum eleescreve: "Essas coisas [...] não foram

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descobertas pela filosofia ou pelas artes darazão, e sim por acaso e ocasião", elas são"diferentes em tipo", então "nenhuma noçãopreconcebida poderia ter conduzido a suadescoberta". Bacon tinha a convicção de que"há ainda muitas coisas de excelente usoarmazenadas no seio da natureza sem nadanelas que seja afim ou paralelo ao que já estádescoberto [... ] que jazem bem longe docaminho da imaginação". Os raios X, descobertos em 1895, devem terparecido tão completamente mágicos paraWells quanto o sextante para Bacon. Emboraseus benefícios sejam evidentes, eles nãopoderiam ter sido planejados. Uma propostade pesquisa para deixar a carne transparentenão teria sido financiada e, mesmo que fosse, apesquisa certamente não teria levado ao raio X.E as grandes descobertas continuaram a nospegar de surpresa. Poucos conseguiram preveras invenções que transformaram o mundo nasegunda metade do século XX. Em 1937 a usNational Academy of Sciences organizou um

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estudo com o objetivo de prever inovações; seurelatório é leitura salutar para os previsorestecnológicos de hoje. Ele chegou a algumasavaliações sensatas sobre agricultura, sobre agasolina e a borracha sintéticas. Porém, maisdigno de nota é o que ele deixou passar. Nãohavia energia nuclear, nem antibióticos (adespeito de isso ter se dado oito anos depois deAlexander Fleming ter descoberto a penicilina),nem avião a jato, nem foguetes ou nenhum usodo espaço, tampouco computadores; comcerteza não havia transistores. A comissãodeixou passar as tecnologias que de fatodominaram a segunda metade do século XX.Muito menos previsíveis eram astransformações sociais e políticas queocorreram durante aquele período. Cientistas são com freqüência cegos até mesmopara as ramificações de suas própriasdescobertas. Ernest Rutherford, o maior físiconuclear de seu tempo, ganhou fama pordescartar como "balela" a relevância prática daenergia nuclear. Os pioneiros do rádio viam a

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transmissão sem fio como um substituto para otelégrafo, mais do que uma forma detransmissão de "um para muitos". Nem ogrande engenheiro de computação ematemático John von Neumann nem Thomas J.Watson, fundador da IBM, consideravamhaver necessidade para mais do que algumasmáquinas de computação no país inteiro. Oshoje ubíquos telefones celulares ecomputadores palmtop espantariam qualquerpessoa há um século; eles são exemplares damáxima de Arthur C. Clarke de que qualquertecnologia suficientemente avançada éindistinguível de magia. Então o que poderiaacontecer no novo século que seria "magia"para nós? De modo geral, os previsores têm falhadoterrivelmente na antevisão das mudançasdrásticas decorrentes de descobertasimprevisíveis. Em contraste, a mudançaincremental é com freqüência mais lenta doque se espera, com certeza muito mais lenta doque é tecnicamente possível. Poucos foram tão

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prescientes quanto Clarke, mas decertoteremos que esperar que muito tempo se passeapós o ano de 2001 antes que vejamos grandescolônias espaciais ou bases lunares. Atecnologia de aviação civil se estagnou, quasecomo aconteceu com o vôo espacial tripulado.Poderíamos ter aviões hipersônicos a estaaltura, mas — sobretudo por razõeseconômicas e ambientais — não temos:atravessamos o Atlântico em jatos cujodesempenho basicamente tem se mantidosimilar nos últimos 45 anos, e é provável queassim continue nos próximos vinte. O quemudou é o volume de tráfego. As viagensaéreas de longa distância foram transformadasem mercado acessível para as massas. É claroque houve melhoras técnicas, por exemplo ocontrole computadorizado e o posicionamentopreciso oferecido pelos satélites do sistema deposicionamento global (GPS); para ospassageiros, as mudanças que mais sedestacam são relativas à sofisticação dasengenhocas que fornecem entretenimento a

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bordo. Da mesma forma, dirigimos carros quesó melhoram ao longo das décadas. Atecnologia de transporte em geral sedesenvolveu com lentidão maior do quemuitos esperavam. Por outro lado, Clarke e muitos outros forampegos de surpresa pela velocidade com a qualos computadores pessoais proliferaram e seaperfeiçoaram, além de desdobramentos comoa internet. A densidade com que circuitos sãogravados em microchips de computadores temdobrado a cada dezoito meses por quase trintaanos de acordo com a famosa "lei" propostapor Gordon Moore, co-fundador da Intel. Emconseqüência, hoje em dia um console de jogoeletrônico tem muito mais capacidade deprocessamento do que os astronautas da Apolodispunham quando pousaram na Lua. Meucolega de Cambridge George Efstathiou, quesimula num computador como as galáxias seformam e evoluem, pode agora repetir, em seulaptop durante a hora do almoço, cálculos quelevavam meses para ser concluídos num dos

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supercomputadores mais rápidos do mundodisponíveis em 1980, quando ele os fez pelaprimeira vez. Em breve não só teremostelefones celulares, como também comunicaçãoem banda larga com todo o mundo e acessoinstantâneo a todo o conhecimento registrado.E a revolução genômica — um assuntodominante no início do século XXI — está emaceleração: quando o grande projeto de mapearo genoma humano começou, poucosesperavam que ele poderia estar praticamentecompleto a esta altura. Francis Bacon contrastou suas três descobertas"mágicas" com a invenção da imprensa, em que"não há nada que não seja claro e de formageral óbvio [...] quando foi criada, pareciainacreditável que tivesse escapado à percepçãopor tanto tempo". A maior parte das invençõesemerge, como aconteceu com a imprensa, pelasegunda rota de Bacon: "Pela transferência,composição e aplicação de [coisas] jáconhecidas". Os artefatos e as engenhocasfamiliares na vida cotidiana costumam resultar

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de uma trilha contínua de melhoramentos. Masainda pode haver inovações revolucionárias,apesar da notada ausência de infra-estruturacientífica nos séculos anteriores. De fato, asfronteiras cada vez mais ampliadas doconhecimento aumentam a chance de algumassurpresas extraordinárias. Avanço mais rápido? Ao longo de um século inteiro não podemosimpor limites ao que a ciência pode realizar,então devíamos deixar nossas mentes abertas,ou pelo menos entreabertas, a conceitos que nomomento parecem estar nas margens maisselvagens do pensamento especulativo. Aconstrução de robôs super-humanos estáprevista para meados do século. Avançosainda mais espantosos poderiam afinal brotarde conceitos fundamentalmente novos emciência básica, que ainda não foramimaginados e que por enquanto não temosvocabulário para descrever. É impossível fazer

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projeções firmes quando elas envolvemimensas extrapolações do conhecimento atual. Ray Kurzweil, guru da "inteligência artificial" eautor de The Age of Spiritual Machines [A eradas máquinas espirituais], defende que oséculo XXI verá "20 mil anos de progresso ajulgar pelo ritmo atual". É claro que isso nãopassa de uma afirmação teórica, já que só sepode quantificar "progresso" dentro dedomínios limitados. Há limites físicos para o detalhe com quemicrochips de silício podem ser gravados comas técnicas atuais, pela mesma razão que hálimites para a nitidez das imagens quemicroscópios ou telescópios podem nos dar.Mas já estão sendo desenvolvidos novosmétodos capazes de imprimir circuitos emescala muito mais detalhada, de modo que a"lei de Moore" pode não atingir um máximo.Em não mais de dez anos, computadores dotamanho de relógios de pulso nos ligarão auma internet avançada e ao sistema deposicionamento global. Olhando mais adiante,

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técnicas bem diferentes — minúsculosquadriculados de raios ópticos, sem envolvernenhum circuito de chip — podem aumentarainda mais a capacidade computacional. A miniaturização, embora já se trate de algoespantoso, está de fato muito longe de seuslimites teóricos. Cada minúsculo elemento decircuito de um chip de silício contém bilhõesde átomos: tal circuito é extremamente grandee "grosseiro" se comparado aos circuitosmenores que poderiam em princípio existir.Estes teriam dimensões de somente umnanômetro — um bilionésimo de metro, emvez da escala mícron (milionésimo de metro)na qual os chips de hoje em dia são gravados.Uma esperança no longo prazo é montarnanoestruturas e circuitos "de baixo paracima", grudando entre si átomos e moléculasindividuais. É assim que organismos vivoscrescem e se desenvolvem. E é como os"computadores" da natureza são feitos: océrebro de um inseto tem mais ou menos a

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mesma capacidade de processamento que umpoderoso computador da atualidade. Os pregadores da nanotecnologia" imaginamum "montador" que pudesse pegar átomosindividuais, mudá-los de lugar e encaixá-losum por um em máquinas com componentesnão maiores do que moléculas. Essas técnicaspermitirão que os processadores decomputadores sejam mil vezes menores, e queo armazenamento de informação seja efetuadoem memórias 1 bilhão de vezes maiscompactas do que as melhores de quedispomos hoje. Até cérebros humanos podemser aumentados por implantes decomputadores. Nanomáquinas poderiam teruma estrutura molecular tão intrincada quantoos vírus e as células vivas e exibir maiordiversidade; poderiam desempenhar tarefas demanufatura; poderiam rastejar por nossoscorpos observando e tomando medidas, oumesmo fazendo microcirurgias. A nanotecnologia poderia prolongar a lei deMoore por trinta anos mais, altura em que os

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computadores teriam chegado à capacidade deprocessamento de um cérebro humano. Etodos os seres humanos poderiam então estarimersos num ciberespaço que permita acomunicação instantânea, não só por discursoe pela visão mas por intermédio de umaelaborada realidade virtual. O pioneiro da robótica Hans Moravec acreditaque máquinas atingirão a inteligência de nívelhumano e que podem até "assumir o controle".Para que isso aconteça, não basta capacidadede processamento: os computadores precisarãode sensores que lhes permitam ver e ouvir tãobem quanto nós, e do software para processare interpretar o que seus sensores lhes dizem.Os avanços em software têm sido muito maislentos do que em hardware: os computadoresainda não se constituem em páreo para afacilidade que até uma criança de três anos temem reconhecer e manipular objetos sólidos.Talvez seja possível ir mais longe com a"engenharia reversa" no cérebro humano, emvez de simplesmente acelerar e compactar

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processadores tradicionais. Se oscomputadores puderem observar e interpretarseu ambiente tão bem quanto nós fazemosatravés de nossos olhos e de outros órgãossensoriais, seu raciocínio e suas reações muitomais rápidos poderiam lhes dar vantagemsobre nós. Então eles serão de fato vistos comoseres inteligentes, com os quais (ou com quem)poderemos nos relacionar, pelo menos emalguns aspectos, como fazemos com outraspessoas. Surgirão questões éticas. Em geralaceitamos a obrigação de assegurar que outrosseres humanos (e na verdade algumas espéciesanimais) possam preencher seu potencial"natural". Teremos o mesmo dever em relaçãoa robôs sofisticados, nossas próprias criações?Deveríamos nos sentir obrigados a protegerseu bem-estar e culpados se eles estiveremfrustrados, entediados ou sendo subutilizados? Um Futuro Humano ou Pós-Humano? Essas projeções pressupõem que nossosdescendentes permaneçam distintivamente

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"humanos". Mas tanto o caráter como o físicohumanos serão em breve eles mesmosmaleáveis. Implantes em nosso cérebro (etalvez novas drogas também) poderiam realçarenormemente nossos poderes intelectuais:nossas habilidades lógicas e matemáticas, equem sabe até nossa criatividade. Talvezpossamos "conectar" alguma memóriaadicional ou aprender mediante entradasdiretas de informação no cérebro (injeção deum "ph.D. instantâneo"?). John Sulston, umdos coordenadores do Projeto GenomaHumano, especula sobre outras implicações:"Quanto equipamento não biológico podemosacoplar a um corpo humano e ainda chamá-lohumano? [... ] Um pouco mais de memória,talvez? Mais capacidade de processamento?Por que não? E, se for assim, talvez um novotipo de imortalidade esteja logo ali". Um passo além seria fazer engenharia reversanos cérebros humanos com detalhe suficientepara podermos baixar pensamentos ememórias num aparelho, ou reconstruí-los

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artificialmente. Assim, os humanos poderiamtranscender a biologia por meio da fusão comcomputadores, quem sabe perdendo suaindividualidade e evoluindo para umaconsciência comum. Se as tendências técnicasatuais avançassem sem restrições, nãodeveríamos desconsiderar a crença de Moravecde que algumas pessoas vivas hoje poderiamchegar à imortalidade — no sentido de ter umtempo de vida que não seja limitado por seucorpo atual. Aqueles que buscam esse tipo devida eterna terão que abandonar seus corpos eter seus cérebros descarregados emequipamento de silício. Numa linguagemespiritualista antiquada, eles "iriam para ooutro lado". Máquinas superinteligentes poderiam ser aúltima invenção que os humanos precisemfazer. Uma vez que tenham ultrapassado ainteligência humana, elas poderão projetar emontar por conta própria uma nova geração demáquinas ainda mais inteligentes. Isso poderiarepetir-se com a tecnologia buscando alcançar

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o auge, ou "singularidade", com a taxa deinovação escapando para o infinito. (Ofuturologista californiano Vernor Vinge" foi oprimeiro a usar o termo "singularidade" nestecontexto apocalíptico.) É impossível prevercomo o mundo seria após a ocorrência de tal"singularidade". Até mesmo as restrições quese baseiam em leis da física hoje conhecidaspodem não ser seguras. Alguns "destaques" daciência especulativa que desconcertam osfísicos — viagem no tempo, saltos no espaço eafins — podem ser dominados pelas novasmáquinas, transformando o mundo tambémfisicamente. É claro que Kurzweil e Vinge estão na (ou alémda) zona marginal visionária, onde prediçãocientífica se encontra com ficção científica. Crerna "singularidade" está para a futurologiacomo crer na esperança milenar de"Arrebatamento" — isto é, ser fisicamentelevado aos Céus num iminente Dia Final —está para a cristandade. .

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O Pano de Fundo Estável Os sistemas de informação e a biotecnologiapodem avançar com rapidez porque,diferentemente das formas tradicionais degeração de energia e infra-estrutura detransporte, por exemplo, não dependem deinstalações grandiosas que levam anos para serconstruídas e têm que ser operadas pordécadas. Mas nem tudo é tão mutável etransitório quanto o hardware eletrônico. Deixando de lado a possibilidade de destruiçãocalamitosa— a não ser que houvesse com efeitoum avanço tecnológico em direção a uma"singularidade", com o qual super-robôspoderiam transformar o mundo maisdrasticamente do que podemos conceber agora— há limites para a velocidade com que nossoambiente terrestre pode ser alterado. Aindateremos estradas e (provavelmente) ferrovias,mas elas serão suplementadas por novasformas de viagem (por exemplo, sistemas deGPS poderiam permitir jornadas automáticassem colisão por terra ou por ar). Numa

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perspectiva otimista, o mundo emdesenvolvimento poderia adquirir uma novainfra-estrutura própria do século XXI, livre doslegados do passado. Mas alguns limites sãoimpostos por energia e por recursos: é poucoprovável que as viagens supersônicas setornem rotineiras para a maior parte dapopulação do mundo, a não ser que sejainventado algum projeto ou motorradicalmente novo para aviões. Grande partedas viagens se tornará supérflua, superadasque serão pela telecomunicação e pelarealidade virtual. E a exploração do espaço (talvez usando novossistemas de propulsão)? A robótica e aminiaturização reduzem a necessidade prática,no curto prazo, de viagens espaciais tripuladas.Nas próximas décadas, enxames de satélitesminiaturizados orbitarão a Terra; sondas nãotripuladas com instrumentação elaboradarondarão e explorarão todo o sistema solar; efabricantes robóticos montarão grandesestruturas, talvez extraindo matéria-prima da

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Lua ou de asteróides. Dentro de cinqüentaanos, se até lá a nossa civilização escapar detropeços desastrosos, quem sabe haverá umprograma vibrante de exploração humana doespaço, liderado provavelmente porempreendedores e aventureiros, e não pelosgovernos. Mesmo que a presença humana se expanda noespaço, ela envolverá somente uma fraçãoínfima da humanidade. Nenhum lugar fora daTerra oferece um habitat que seja tão clementequanto a Antártica ou as profundezas dooceano; não obstante, o espaço pode ser o panode fundo para exploradores e pioneirosentusiásticos, que ao fim formariam grupossociais auto-sustentados fora da Terra. Porvolta do fim do século, é possível que taiscomunidades tenham sido estabelecidas — naLua, em Marte ou flutuando livremente noespaço — como refúgio ou motivadas por umespírito de exploração. Que isso aconteça, ecomo, poderia ser crucial para a evolução pós-humana, e na verdade para o destino da vida

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inteligente em séculos futuros. É bem verdadeque seria pouco consolador para aqueles naTerra, mas a vida teria "feito um túnel através"de sua era de máximo risco: nenhumacatástrofe terrestre poderia, dali em diante,deter o potencial cósmico da vida. O Mundo Real: Horizontes mais Longos Tecnoprevisores, com suas atitudes moldadaspelo ambiente social e político da Costa Oestedos Estados Unidos, onde se reúnem tantasdessas pessoas, tendem a imaginar que asmudanças avançam sem impedimentos numsistema social que apóia inovações e que asmotivações consumistas são dominadas poroutras ideologias. Tais presunções podem sertão injustificadas quanto menosprezar o papelda religião na política externa, ou prever que aÁfrica subsaariana conheceria progressoconstante desde os anos 1970 ao invés deregredir para uma penúria maior.Desenvolvimentos sociais e políticosimprevisíveis acrescentam novas dimensões de

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incerteza. De fato, um tema central deste livroé que os avanços técnicos tornarão a sociedademais vulnerável à perturbação. Mas, mesmo se a perturbação não fosse pior doque é hoje, essas previsões fazem pouco maisdo que definir os limites do que poderia serpossível: o fosso entre o que é tecnicamentepossível e o que decerto vai acontecer sealargará. Algumas inovações simplesmentenão atraem demanda econômica ou socialsuficiente: assim como o vôo supersônico e ovôo espacial tripulado se estagnaram depoisdos anos 1970, hoje (em 2002) aspotencialidades da tecnologia de banda larga(G3) avançam com bastante lentidão porquepoucas pessoas querem navegar na internet ouassistir a filmes em seus celulares. Em relação a biotecnologias, a inibição serámais ética do que econômica. Se não houvesseregulamentações para frear a aplicação detécnicas genéticas, tanto o aspecto físico comoo mental dos seres humanos poderiamtransformar-se em poucas gerações. Futuristas

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como Freeman Dyson especulam que empoucos séculos o Homo sapiens terá sediversificado em numerosas subespécies,adaptando-se a uma variedade de habitatsalém da Terra. Decisões econômicas em geral relegam àinsignificância o que pode vir a acontecerdaqui a mais de vinte anos: empreendimentoscomerciais não valem a pena a não ser que sepaguem muito antes disso, sobretudo quandoa obsolescência é rápida. Decisõesgovernamentais com freqüência não vão alémda eleição seguinte. Mas às vezes — empolíticas energéticas, por exemplo —, ohorizonte se estende a cinqüenta anos. Algunseconomistas estão tentando proporcionarincentivos para que os planejamentos sejamrealizados a mais longo prazo e comconservação prudente mediante a atribuição deum valor monetário aos recursos naturais deum país, o que torna explícito, no balanço deuma nação, o custo de esgotá-los. Os debates arespeito do aquecimento global que resultaram

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no Protocolo de Kyoto levaram em conta o quepoderia acontecer daqui a um ou dois séculos:o consenso é que os governos deveriam tomaratitudes preventivas agora, em nome dossupostos interesses dos nossos descendentesdo século XXII (embora não se saiba ainda comcerteza se essas ações serão mesmoimplementadas). Há um contexto no qual os programas públicosoficiais olham ainda mais adiante, não sócentenas mas milhares de anos: o descarte delixo radioativo das usinas nucleares. Partedesses dejetos permanecerá tóxica por muitosmilênios; tanto no Reino Unido como nosEstados Unidos, as especificações paradepósitos subterrâneos exigem que materiaisperigosos sejam mantidos isolados — semvazamento por lençóis freáticos ou por fissurasabertas por terremotos — por pelo menos 10mil anos. Essas exigências geológicas, impostaspela Environmental Protection Agency[Agência de Proteção Ambiental] norte-americana, foram fatores decisivos na escolha

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de uma localização em Nevada, emsubterrâneos profundos debaixo da montanhaYucca, para o lixão nacional dos EstadosUnidos. Os debates prolongados sobre lixo radioativoprovocaram pelo menos um benefício: elesgeraram interesse e preocupação sobre comonossas ações de hoje ressoarão daqui a váriosmilênios — extensões de tempo aindainfinitesimais, é claro, se comparadas ao futuroda Terra, mas mesmo assim muito além dohorizonte da maior parte dos demaisplanejadores e responsáveis pelas tomadas dedecisões. O Departamento de Energia dosEstados Unidos chegou a reunir um grupointerdisciplinar de acadêmicos para discutir amelhor forma de planejar uma mensagem quepoderia ser compreendida por seres humanos(se existir algum) daqui a vários milênios.Alertas categóricos e universais o bastante paravencer qualquer diferença cultural imaginávelpoderiam ser de suma importância paraadvertir nossos descendentes remotos a

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respeito de perigos ocultos como os depósitosde lixo radioativo. A Fundação Long Now, uma iniciativapromovida por Danny Hillis (mais conhecidocomo o inventor da"Connection Machine"[Máquina de Conexão], um computador antigoe imenso de processamento paralelo), tem porobjetivo promover esse pensamento a longoprazo com a construção de um grande relógioultradurável que registraria a passagem devários milênios. Stewart Brand, em seu livro Orelógio do longo agora, discute como otimizaro conteúdo de bibliotecas, cápsulas do tempo eoutros artefatos duradouros que poderiamajudar a erguer nosso olhar para horizontestemporais mais distantes. Mesmo que a mudança não seja mais rápida doque nos últimos séculos, sem dúvida haveráuma "rotatividade" em culturas e eminstituições políticas dentro de um únicomilênio. Um catastrófico colapso da civilizaçãopoderia destruir a continuidade, ao criar umfosso tão largo quanto o abismo cultural que

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enfrentaríamos no presente com uma triboamazônica remota. No romance de Walter M.Miller Jr., A Canticle for Leibowitz [UmCântico para Leibowitz], a América do Norteretorna a um estado medieval após umadevastadora guerra nuclear. A Igreja católica éa única instituição que sobrevive, e gerações depadres tentam, por vários séculos, reconstruiro conhecimento e a tecnologia pré-guerra apartir de registros fragmentados e de relíquias.James Lovelock (mais conhecido como ocriador do conceito "Gaia", que compara abiosfera a um organismo auto-regulador)insiste na compilação de um "manual inicial decivilização", cujas cópias deveriam serdispersas o suficiente para garantir quealgumas sobrevivam a quase qualquereventualidade: ele descreveria técnicas deagricultura, desde reprodução seletiva até agenética moderna, e de modo similar cobririaoutras metodologias. Ao nos conscientizar de horizontes temporaismais extensos, os proponentes da Long Now

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nos lembram que o bem-estar de gerações nofuturo distante não deveria ser posto em riscopor medidas imprudentes tomadas hoje. Mastalvez eles estejam menosprezando asconseqüências qualitativamente novas doscomputadores e da biotecnologia. Os otimistasacreditam que elas levarão às transformaçõesdiscutidas neste capítulo; e os realistas pensamque os avanços revelarão novos perigos. Asperspectivas são tão voláteis que ahumanidade poderia nem mesmo persistiralém de um século — muito menos de ummilênio —, a não ser que todas as naçõesadotem linhas de ação de baixo risco esustentáveis com base na tecnologia atual. Masisso demandaria um freio impossível de pôr anovas descobertas e invenções. Uma previsãomais realista é que a sobrevivência dasociedade na Terra será, neste século, exposta anovos desafios tão ameaçadores que o nível deradioatividade em Nevada daqui a milhares deanos parecerá extremamente irrelevante. Defato, o próximo capítulo sugere que tivemos

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sorte em sobreviver aos últimos cinqüenta anossem enfrentar nenhuma catástrofe. 3. O Relógio do Juízo Final: tivemos sorte emsobreviver até aqui? A querra fria nos expôs a riscos mais graves doque a maior parte de nós aceitaria por vontadeprópria. o perigo de devastação nuclearcontinua a rondar, mas as ameaças que brotamda nova ciência são ainda mais intratáveis... Durante a maior parte da história humana, ospiores desastres foram infligidos por forçasambientais — enchentes, terremotos, vulcões eciclones — e pela pestilência. Mas as maiorescatástrofes do século XX foram diretamentecausadas por ações humanas: uma estimativasugere que, juntando as duas guerras mundiaise os períodos susbseqüentes a elas, 187 milhõesde pessoas pereceram devido à guerra, amassacres, à perseguição ou à escassez dealimentos provocados por planos de ação. Oséculo XX talvez tenha sido o primeiro duranteo qual mais gente morreu em virtude de

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guerras e de regimes totalitários do que pordesastres naturais. As catástrofes causadaspelo homem, no entanto, tinham comodesculpa promover a melhoria do bem-estar,não só em países privilegiados, como tambémem boa parte do mundo em desenvolvimento,onde a esperança de vida ao nascimento quasedobrou e uma proporção menor de pessoasvive hoje em pobreza abjeta. A segunda metade do século XX foi assaltadapor uma ameaça muito mais grave do quequalquer uma das que até então haviam postonossa espécie em perigo: a ameaça de guerranuclear generalizada. Essa ameaça porenquanto está afastada, mas esteve sobrenossas cabeças por mais de quarenta anos. Opróprio presidente Kennedy disse durante acrise cubana dos mísseis que as probabilidadesde uma guerra nuclear estavam "entre 30% e50%". É claro que o risco foi se acumulando aolongo de várias décadas: a qualquer momentoa resposta a uma crise poderia ter saído decontrole; os superpoderes poderiam ter nos

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conduzido ao armagedom por causa deconfusão e erro de cálculo. O enfrentamento dos mísseis de Cuba, em1962, foi o evento que mais nos aproximou deuma troca nuclear premeditada. Segundo ohistoriador Arthur Schlesinger Jr., um dosassistentes de Kennedy na época: Esse não só foi o momento mais perigoso daGuerra Fria. Foi o momento mais perigoso dahistória humana. Nunca antes dois poderesrivais detiveram a capacidade técnica deexplodir o mundo. Felizmente, Kennedy eKruchev eram líderes comedidos e sóbrios;senão, provavelmente não estaríamos aquihoje. Robert McNamara era na época secretário deDefesa dos Estados Unidos, cargo que tambémexerceu durante a escalada para a Guerra doVietnã. Mais tarde ele escreveu: Mesmo que baixa, uma probabilidade decatástrofe é um grande risco e não creio quedevamos continuar a aceitá-la. [... ] Acreditoque essa tenha sido a mais bem administrada

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dentre as crises da Guerra Fria, mas chegamosa um fio de cabelo da guerra nuclear sem nosdar conta disso. Não foi graças a nós queescapamos à guerra nuclear — no mínimo,acabamos precisando de sorte além desabedoria. [...] Tornou-se muito claro paramim, como resultado da crise cubana dosmísseis, que a combinação indefinida defalibilidade humana (da qual nunca podemosnos livrar) e armas nucleares carrega consigo aprobabilidade muito alta de destruir nações. Fomos todos arrastados para esse jogoarriscado durante a Guerra Fria. É provávelque nem mesmo as avaliações mais pessimistaschegassem a um risco de guerra nuclear de50%. Então não deveria nos surpreender o fatode que nós e nossa sociedade tenhamossobrevivido; o mais provável era quesobrevivêssemos, e não o contrário. Nãoobstante, isso não quer necessariamente dizerque estávamos expostos a um risco prudente; etampouco justifica a política dos superpoderes

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por várias décadas: intimidação nuclear porameaça de retaliação maciça. O Risco Valeu a Pena? Suponha que você seja convidado a jogarroleta-russa (com uma bala num revólver deseis câmaras) e informado de que, casosobreviva, ganhará cinqüenta dólares. Oresultado mais provável (cinco para um a seufavor) é que você se sairá bem: vivo e comcinqüenta dólares no bolso. Mesmo assim, anão ser que sua vida valha realmente muitopouco para você, a aposta seria imprudente —na verdade espantosamente idiota. O lucroteria que ser muito grande para que umapessoa sensata arriscasse sua vida com essaschances: muitos poderiam ser tentados se oprêmio potencial fosse 5 milhões de dólares, enão apenas cinqüenta. Igualmente, se você seencontrasse numa condição médica comprognóstico muito ruim se não fosse operado,então — mas só então — poderia optar por

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uma cirurgia com uma chance em seis de matá-lo. A pergunta é: valeu a pena nos sujeitarmos aosriscos aos quais o planeta inteiro esteveexposto durante a Guerra Fria? A respostadepende, obviamente, de qual era aprobabilidade real de guerra nuclear, e nisso sóo que podemos fazer é aceitar as opiniõesautorizadas como a de McNamara, para quemela foi substancialmente maior do que umachance em seis. Mas a resposta tambémdepende da nossa avaliação do que teriaacontecido sem intimidação nuclear: quãoprovável teria sido a expansão soviética e se,de acordo com o velho slogan, para você, émelhor "ser comuna do que morto". Seriainteressante saber a que risco os outros líderesdurante aquele período acreditavam estar nosexpondo, e que riscos a maior parte doscidadãos teria aceitado se estivesse em posiçãode dar um consentimento consciente.Pessoalmente eu não teria escolhido arriscaruma chance em seis de um desastre que

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mataria centenas de milhões de pessoas e queestraçalharia o tecido físico de todas as nossascidades, a despeito de que a alternativa fosse acerteza da tomada soviética da Europaocidental. E é claro que as conseqüênciasdevastadoras de uma guerra nuclear teriam seespalhado muito além dos países queacreditavam defender-se contra uma ameaçagenuína, e cujos governos implicitamenteaceitaram essa aposta: á maior parte doTerceiro Mundo, já vulnerável a desastresnaturais, fora imposto esse perigo ainda maisgrave. Uma Corrida Armamentista Movida a Ciência O Bulletin of Atomic Scientists [Boletim dosCientistas Atômicos] foi fundado no final daSegunda Guerra Mundial por um grupo defísicos com base em Chicago, muitos dos quaistinham trabalhado em Los Alamos, no ProjetoManhattan, projetando e construindo asbombas atômicas que foram jogadas emHiroshima e em Nagasaki. Ele se manteve

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como um periódico próspero e influente, comfoco no controle de armas e na regulamentaçãonuclear. O "logotipo" presente na capa de cadaedição é um relógio, em que a proximidadedos ponteiros com a meia-noite indica quãoprecária é a situação mundial — ou pelo menosque o corpo editorial do Bulletin acredita ser. Acada poucos anos (às vezes com maisfreqüência), o ponteiro dos minutos é movidopara a frente ou para trás. Esses ajustes dorelógio, que se estendem desde 1947 até opresente, acompanharam as sucessivas crisesnas relações internacionais: agora está maispróximo da "meia-noite" do que esteve aolongo dos anos 1970. A era em que o relógio indicou perigo máximofoi na verdade a década de 1950: naquela épocaele exibia um período de tempo que equivalia adois ou três minutos para a meia-noite. Emretrospecto, essa avaliação parece correta.Tanto os Estados Unidos como a UniãoSoviética adquiriram bombas H duranteaqueles anos, assim como um número ainda

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maior de armas atômicas (de fissão). Tambémem retrospecto, a Europa teve sorte em escaparda devastação nuclear nos anos 1950. Amanutenção das bombas nucleares de batalha(uma delas conhecida como "Davy Crockett")era feita pelos batalhões; as salvaguardas erammenos sofisticadas do que se tornariam maistarde, e havia perigo real de uma guerranuclear explodir por erro de cálculo ou porinadvertência; uma vez desencadeada, elapoderia sair de controle. O mundo pareciaestar com um pavio ainda mais curto quandobombardeiros foram suplementados commísseis balísticos muito mais rápidos, capazesde atravessar o Atlântico em meia hora, dandoao outro lado somente uns poucos minutospara tomar a decisão fatídica de retaliar emmassa antes que seu próprio arsenal fossedestruído. Depois da crise cubana dos mísseis, o perigonuclear tomou maiores proporções na agendapolítica: havia mais ímpeto para assinartratados de controle de armas, a começar por

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uma proibição de testes nucleares naatmosfera, assinada em 1963. Porém, nãohouve folga na corrida para desenvolverarmamentos mais "avançados". McNamaracomentou que "virtualmente toda inovaçãotécnica na corrida armamentista veio dosEstados Unidos. Mas sempre foi equiparadacom rapidez pelo outro lado". Essa síndromeera exemplificada pelo forte desenvolvimentoque se deu ao final dos anos 1960. Nessa época,os engenheiros descobriram como transportarmúltiplas ogivas num único míssil, e apontá-las independentemente para alvos diferentes.Conhecido como MIR-Ving (o acrônimo é de"Multiple Independently Targeted ReentryVehicle" [veículo de reentrada múltiplo comalvos independentes]), ele foi concebido portecnólogos norte-americanos e depoisimplementado tanto por eles como por suascontrapartidas soviéticas. O resultado líquidodessa e de outras inovações foi tornar ambos oslados menos seguros. Cada um construía a"pior das hipóteses" sobre qualquer coisa que o

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outro lado fizesse, superestimava a ameaça eexagerava na reação. Outra inovação — mísseis antimísseis paraproteger cidades e pontos estratégicos contratorpedos — foi barrada por um acordo entre ossuperpoderes, o Tratado Antibalístico deMísseis (ABM). Cientistas ajudaram aintermediá-lo com argumentos de quequalquer defesa desestabilizaria o "equilíbriodo terror" e levaria a contramedidas que aanulariam. No início dos anos 1980, o relógio do Bulletinestava perto da meia-noite outra vez. Naquelaépoca, novas armas nucleares de alcance médioforam introduzidas no Reino Unido e naAlemanha, supostamente para dar maiscredibilidade à ameaça de retaliação no caso deum ataque soviético à Europa ocidental. Osassuntos em pauta ainda envolviam a reduçãodo risco sempre presente de escalada emdireção a uma catastrófica guerra nuclear, fossepor avaria, por erro de cálculo ou porestratégia premeditada. O risco em um único

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ano podia ser pequeno, mas as probabilidadesse multiplicariam se as condições nãomudassem. O arsenal nuclear naquela década equivalia adez toneladas de TNT para cada pessoa naRússia, na Europa e na América. Carl Sagan eoutros lançaram um debate sobre a produção,por meio da troca nuclear generalizada, de uminverno nuclear: um bloqueio global do Solcom resultados, incluindo a extinção emmassa, similares aos que seriamdesencadeados pelo impacto de um asteróideou cometa gigantes. Por fim eles concluíramque nem mesmo a detonação de 10 milmegatoneladas causaria um blecaute globalprolongado, embora ainda haja incertezas arespeito da modelagem (em particular, quealtitude na estratosfera os dejetos atingiriam epor quanto tempo ficariam lá). Mas o cenáriode "inverno nuclear" levantava a perspectivainquietante de que as principais vítimas deuma guerra nuclear seriam as populações daÁsia meridional, da África e da América

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Latina, que em geral nada tinham a ver com aGuerra Fria. Aquele era o tempo da Iniciativa de DefesaEstratégica — Guerra nas estrelas —, que levoua uma nova discussão sobre a questão doTratado Antibalístico de Mísseis. Pareciatecnicamente impossível construir um "escudo"defensivo que fosse eficaz o suficiente paraatingir o objetivo declarado do presidenteReagan de tornar as armas nucleares"impotentes e obsoletas"; contramedidassempre deram vantagem à ofensiva. Essetratado está outra vez ameaçado pelos EstadosUnidos porque dificulta o desenvolvimento deum sistema de defesa antimísseis contraeventuais lançamentos de mísseis por "Estadosproblemáticos". A principal objeção ao tipo desistema defensivo em questão é que, mesmoque desse certo, a despeito de demandardispêndios e esforços significativos, elefracassaria em fazer frente ao mais básicoataque nuclear dos "Estados problemáticos": oenvio de uma bomba por navio ou por

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caminhão. Revogar aquele tratado tambémseria lamentável porque abriria caminho para a"armamentização" do espaço. Armas anti-satélites são completamente factíveis e atérelativamente fáceis de desenvolver.Comparado ao desafio de interceptar ummíssil, um objeto numa órbita previsível e delonga duração seria um alvo fácil: satélites decomunicação, navegação e vigilância poderiamser abatidos com facilidade. Outro risco é ooferecido por um "Estado problemático" queresolvesse neutralizar defesas antimísseisbaseadas em satélites poluindo o espaço comentulho em órbita, um estratagema queobstruiria qualquer uso do espaço por satélitesde baixa órbita. Solly Zuckerman, por muito tempo conselheirocientífico do governo do Reino Unido, foi (apóssua aposentadoria) tão eloqüente quantoRobert McNamara ao denunciar o perigosoabsurdo da cadeia de eventos que elevou osarsenais nucleares norte-americanos e

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soviéticos a tão grotesco nível de exagero.Segundo Zuckerman: A razão básica da irracionalidade do processotodo [era] o fato de que as idéias para um novosistema de armas não eram provenientes dasForças Armadas, mas de grupos diferentes decientistas e tecnologistas. [... ] Um novo futurocom suas ansiedades era moldado portecnologistas, não porque estivessempreocupados com alguma imagem visionáriade como o mundo deveria evoluir, massimplesmente porque era seu trabalho. [...] Emsua base, o impulso da corrida armamentista ésem dúvida fornecido pelos técnicos emlaboratórios governamentais e nas indústriasque produzem os armamentos. Aqueles profissionais que trabalhavam emlaboratórios de armas cujas habilidades secomprovassem acima da competênciarotineira, ou que dessem mostras de algumaoriginalidade, acrescentavam seu grão de areiaa essa tendência ameaçadora. Na opinião deZuckerman, os cientistas de armas se tornaram

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os alquimistas de nossos tempos, trabalhandode formas secretas que não podem serdivulgadas, lançando feitiços que nosenvolvem a todos. Eles podem nunca terestado na batalha, podem nunca terexperimentado a devastação da guerra; maseles sabem como projetar os meios dedestruição. Zuckerman escreveu isso nos anos 1980. Hoje,as inovações alcançadas até aqui teriamintensificado em muito a corrida nuclear se nãofosse a completa mudança que a agendasofreu. Após o fim da Guerra Fria, a ameaça deuma troca nuclear maciça não pairava mais deforma tão iminente sobre nós (embora milharesde mísseis ainda estejam posicionados nosEstados Unidos e na Rússia). No início dadécada de 1990, o relógio do Bulletin regrediuaté dezessete minutos para a meia-noite. Masdesde então ele tem avançado furtivamente:em 2002, estava em sete minutos para a meia-noite. Temos diante de nós a proliferação dearmas nucleares (na Índia e no Paquistão, por

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exemplo), além de novos riscos e incertezasdesconcertantes. Talvez eles não nos ameacemcom uma súbita catástrofe mundial — orelógio do Juízo Final não é uma metáfora tãoboa assim —, entretanto, em conjunto, sãoigualmente preocupantes e desafiantes. Parecehaver algo quase confortável, pelo menos emretrospecto, na paralítica mas relativamenteprevisível política da "era da estagnação" deLeonid Brejnev e da rivalidade dossuperpoderes. Arsenais nucleares imensos persistiram aolongo dos anos 1990, como na verdade aindapersistem. Acordos para reduzir o número dearmas nucleares posicionadas são bem-vindos,mas criam o problema de gerenciar e desfazer-se das 20 ou 30 mil bombas e mísseis quepermanecem espalhados. Os tratados exigemque a maior parte dessas ogivas sejadesativada. Como medida imediata, elaspodem ser postas num estado de menorprontidão ou alerta; programas de mira podemser revogados; ogivas podem ser retiradas de

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mísseis e armazenadas separadamente. É óbvioque isso põe tudo num pavio mais longo, e emcondições nas quais é preciso menos gente econhecimento para manter o arsenal comsegurança. Mas levará muito mais tempo — eserá um desafio técnico de porte — para afinalnos livrarmos de todas essas armas, e paraacondicionar com segurança seu urânio eplutónio. O urânio 235 altamente enriquecidose torna menos perigoso, embora aindautilizável em reatores nucleares pacíficos, semisturado a urânio 238. Em 1993, os EstadosUnidos concordaram em comprar da Rússia,ao longo de um período de vinte anos, atéquinhentas toneladas de urânio de qualidadearmamentista nessa forma diluída. Jogarplutónio fora é menos simples. Os russosrelutam em enxergar esse material obtido aduras penas como "lixo": no entanto, as usinasnucleares existentes não usam o tipo de reator"breeder", capaz de queimá-lo diretamente. Asmelhores opções são enterrá-lo ou inutilizá-lopara uso em armas, misturando-o com rejeitos

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radioativos ou queimando-o parcialmente emum reator nuclear. Segundo Richard Garwin eGeorges Charpak, "o total de materialexcedente na Rússia geraria algo como 10 milarmas de plutônio e 60 mil armas de urâniopara implosão. Proteger esse material é umatarefa realmente gigantesca". Até que esse descarte tenha sido feito, devem-se manter a segurança e um inventárioconfiável para todas as armas na antiga UniãoSoviética: senão, estaria em jogo muito mais doque o arsenal inteiro de poderes nucleares"menores". De fato, há inquietação real —apesar de não haver evidência palpável — deque, durante a turbulência da transição noinício dos anos 1990, grupos terroristas ourebeldes podem ter surrupiado tais armas. Construir um míssil de longo alcancecarregando uma ogiva compacta ainda estámuito além dos recursos que possuem osgrupos dissidentes. Mas até essa perspectiva setornou menos improvável e não pode serdescartada. Por exemplo, agora que os sinais

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de satélites de GPS estão ao alcance de todos,um míssil guiado poderia ser conduzido porum programa disponível no comércio. E ummíssil de vôo rasante seria mais difícil demonitorar do que um míssil balístico. Métodosque exigem conhecimentos técnicos em menorescala, e que também escapariam de defesasantimíssil, incluem a detonação de uma armatransportada num caminhão ou num navio e aconstrução de um mecanismo explosivosimples que pode ser montado, usando urânioenriquecido roubado, num apartamento nacidade. Ao contrário de uma bomba carregadapor um míssil, esta não deixaria rastros de suaproveniência. Fazendo Frente à Disseminação de Armas Em um aspecto, pelo menos, a cena nuclearpoderia ser muito pior. O número de potênciasnucleares cresceu, mas não tão rápido quantomuitos pânditas tinham previsto. Deve haveruns dez, contando proliferadores nãodeclarados como Israel; contudo, pelo menos

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vinte países poderiam ter superado o limiartécnico se quisessem, mas renunciaram aqualquer papel nuclear: Japão, Alemanha eBrasil, por exemplo. A África do Suldesenvolveu seis armas nucleares, porém já asdesmontou. Quando começou a ser aplicado, em 1967, oTratado de Não- Proliferação (TNP) admitiu acondição especial das cinco potências que,àquela época, já possuíam armas nucleares:Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia eChina. Para tornar tal "discriminação" menosimpalatável para outras nações, o tratadoafirmava que essas potências nuclearesdeveriam "buscar negociar de boa-fé medidasefetivas com relação à cessação da corridaarmamentista [...] e à descontinuação de todasas explosões-teste de armas nucleares paratodo o sempre". O TNP teria melhores ventos atrás de si seessas cinco nações, como era sua parte noacordo, reduzissem os próprios arsenais demaneira mais drástica. Segundo os tratados

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atuais, serão necessários mais dez anos até queo posicionamento de tropas dos EstadosUnidos diminua, nem que seja para 2 milogivas; além disso, as ogivas desativadas nãoseriam irreversivelmente destruídas, e simarmazenadas. Os poderes nucleares não têm seesforçado para promover a proibiçãogeneralizada de testes, medida que restringiriao desenvolvimento de armas ainda maissofisticadas. Os Estados Unidos se recusaram aratificar esse tratado. A realização ocasional detestes é supostamente necessária a fim deverificar que armas existentes no arsenalpermanecem "confiáveis" — em outraspalavras, prontas para explodir quando for ocaso. Continua o debate sobre até que pontoseria possível assegurar confiabilidade com arealização de testes separados doscomponentes, por simulações de computador,por exemplo. De todo jeito, não há muitacerteza a respeito de quão importante essaconfiança é, a não ser para um agressor queplaneje dar o primeiro golpe: um míssil nuclear

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se mantém como um instrumento deintimidação mesmo que a chance de sua cargaexplodir não passe de 50%. Também se afirmaque os testes são necessários para garantir a"segurança" das armas — que não vão explodirou soltar radioatividade perigosa caso sejammanuseadas erroneamente. Outro argumentocontra uma proibição generalizada dos testes éque é impossível verificar com confiança se elaestá sendo respeitada. Não obstante os testessubterrâneos com mais que poucasquilotoneladas tenham uma assinatura sísmicainconfundível, aqueles com menos de umaquilotonelada podem ser mascarados pelonúmero maior de pequenos terremotos, eportanto abafados desde que conduzidos emgrandes cavidades. Debate-se a quantidade deestações sísmicas que seriam necessárias paratal verificação, bem como a possibilidade de aevidência sísmica ser suplementada cominteligência ou vigilância por satélite. Em umrelatório da National Academy of Sciences dosEstados Unidos argumenta-se que testes não

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detectáveis não seriam factíveis e que édesnecessário realizá-los para manter arsenaisexistentes, somente para desenvolver novasarmas "avançadas". Uma proibição generalizada a testes nãoestancaria por si a proliferação porque épossível fazer uma bomba de fissão deprimeira geração respeitável sem um teste.Mas uma proibição inibiria os poderesnucleares existentes (sobretudo dos EstadosUnidos) de desenvolver novos tipos de bombae melhoraria o clima para o Tratado de Não-Proliferação, que os intima a reduzir seusarsenais. Para fazer frente à proliferação, muitomais crucial é ampliar o papel da AgênciaInternacional de Energia Atômica demonitoramento de material nuclear novo eefetuar inspeções in loco. Essa, claro, foi aquestão que desencadeou a crise sobre oIraque. Mas o que realmente importa são os incentivosque as nações podem ver em juntar-se ao clubenuclear. As potências nucleares existentes

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poderiam ajudar minimizando o papel dasarmas nucleares em suas posturas defensivas.Declarações recentes dos Estados Unidos, e atédo Reino Unido, sobre o uso possível de armasnucleares de baixa potência para atacaresconderijos subterrâneos são, nesse aspecto,um verdadeiro retrocesso. Elas turvam o limiarnuclear e tornam o uso de armas nuclearesmenos impensável, além de aumentar oincentivo para que outros países arranjem suaspróprias bombas, um estímulo que já está maisforte porque não parece haver outra forma dedeter ou de enfrentar pressões indesejadas porparte dos norte-americanos, cuja vantagem nosarmamentos convencionais "modernos" é tãoesmagadora que esse superpoder pode imporsua vontade sobre as outras nações com umcusto humano mínimo para si. Cientistas Preocupados Os cientistas atômicos de Chicago não foram osúnicos de fora do governo a tentar influenciaro debate político sobre a ameaça nuclear que se

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instalou após o fim da Segunda GuerraMundial. Outro grupo preparou uma série deconferências que recebeu o nome do vilarejoPugwash, na Nova Escócia, onde a primeiradessas conferências foi realizada com o apoiodo milionário canadense Cyrus Eaton, alinascido. Os participantes nas primeirasconferências Pugwash eram provenientes tantoda União Soviética como do Ocidente e emgeral participaram ativamente daquele eventobélico, trabalharam no projeto da bomba ou node radar e mantiveram uma inquietação arespeito desde então. Sobretudo durante asdécadas de 1960 e 1970, as conferênciasPugwash forneceram um contato informalprecioso entre os Estados Unidos e a UniãoSoviética quando havia poucos canais formais. Restam ainda alguns sobreviventesformidáveis dessa geração. O mais velho éHans Bethe, nascido em 1906 em Estrasburgo,na Alsácia-Lorena. Nos anos 1930 ele já era umeminente físico nuclear. Bethe saiu daAlemanha para ocupar um posto acadêmico

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nos Estados Unidos e durante a SegundaGuerra Mundial se tornou chefe da divisãoteórica em Los Alamos. Mais tarde, ele voltoupara a Universidade Cornell, onde mesmo nonovo século continuou a atuar ativamentetanto na promoção do controle de armas comona pesquisa (seu mais recente interesse é ateoria da explosão de estrelas e supernovas).De todos os físicos vivos, Bethe deve ser umdos mais universalmente respeitados,aclamado não só por sua ciência, comotambém pela persistente preocupação e peloenvolvimento com suas conseqüências. Talvezele seja o único entre os físicos a ter publicadotrabalhos de qualidade por mais de 75 anos.Em 1999, sua atitude em relação à pesquisamilitar endureceu e ele instou os cientistas a"cessar e desistir do trabalho de criação,desenvolvimento, melhoramento e manufaturade armas nucleares e de outras armas depotencial destruição em massa", com oargumento de que isso dava força à corridaarmamentista.

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Outro veterano de Los Alamos que tive oprivilégio de conhecer é Joseph Rotblat. Doisanos mais novo que Bethe, em sua infânciapolonesa ele passou pelas dificuldades daPrimeira Guerra Mundial e começou suacarreira como cientista pesquisador em seupaís natal. Em 1939, seguiu como refugiadopara a Inglaterra para trabalhar com oeminente físico nuclear James Chadwick emLiverpool; sua mulher nunca pôde juntar-se aele e faleceu num campo de concentração.Rotblat entrou para o Projeto Manhattan emLos Alamos como parte do pequenocontingente britânico. Mas decidiu partirprematuramente quando ficou claro que aderrota alemã estava próxima, porque em suamente o projeto da bomba só se justificariacomo contrapeso a uma possível arma nuclearnas mãos de Hitler. Na verdade, ele se lembrade ter ficado desiludido ao ouvir o generalGroves, chefe do projeto, anunciar já em marçode 1944 que o propósito principal da bombaera "subjugar os russos".

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Rotblat voltou à Inglaterra, onde se tornouprofessor em física médica e pioneiro napesquisa dos efeitos da exposição à radiação.Em 1955, ele estimulou Bertrand Russell apreparar um manifesto ressaltando a urgênciade reduzir o perigo nuclear. Um dos últimosatos de Einstein foi concordar em ser co-signatário. Foi esse eloqüente manifesto, cujosautores declaravam "falar nesta ocasião nãocomo membros desta ou daquela nação,continente ou credo, mas como seres humanos,membros da espécie Homem, cuja existênciacontinuada está em jogo", que provocou arealização das conferências Pugwash em 1957;desde então, Rotblat tem sido seu "principalagitador" e incansável inspiração. Taisconferências foram reconhecidas pelo prêmioNobel da Paz de 1995, portanto era mais doque apropriado que metade do valor doprêmio fosse destinada à organização Pugwashe que a outra metade fosse entregue a Rotblatem pessoa. Agora com 94 anos, Rotblat aindaprossegue, com o dinamismo de um homem

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com a metade da sua idade, sua infatigávelcampanha para livrar o mundo completamentedas armas nucleares. Esse objetivo é comfreqüência considerado irreal, abraçadosomente por grupos marginais e idealistastruculentos e não pensantes. Rotblatpermanece um idealista, mas sem ilusões apropósito do abismo entre esperança eexpectativa, e sua defesa da causa contribuipara aumentar o apoio a ela. "A sugestão de que armas nucleares possamser perpetuamente retidas sem que nuncasejam usadas — acidentalmente ou por decisão— desafia a credibilidade." Essa firmedeclaração está registrada em um relatório de1997 preparado por um grupo internacionalreunido pelo governo australiano e conhecidocomo a Comissão de Camberra. Entre seusmembros incluíam-se não só Rotblat, comotambém Michel Rocard, antigo primeiro-ministro da França, Robert McNamara egenerais e altos oficiais aposentados doExército e da Aeronáutica. A comissão

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observou que a única utilidade militar dasarmas nucleares era inibir seu uso por outros esugeriu propostas passo a passo paracaminharmos, de forma politicamente estável,em direção a um mundo sem armas nucleares. Aqueles que foram arrancados de plácidoslaboratórios acadêmicos para se juntarem aoProjeto Manhattan pertenciam ao que emretrospecto parece ser a "geração de ouro" dafísica: muitos foram essenciais noestabelecimento da nossa visão moderna deátomos e núcleos. Eles percebiam que o destinoos mergulhara em eventos memoráveis. Amaior parte deles retomou o trabalhoacadêmico em universidades, mas manteve apreocupação com as armas nucleares por todaa vida. Todos foram profundamente marcadospelo seu envolvimento, ainda que de formasdistintas, como mostram as contrastantescarreiras pós-guerra de duas daspersonalidades mais proeminentes, J. RobertOppenheimer e Edward Teller. (AndreiSakharov, o mais celebrado equivalente

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soviético desses dois americanos, pertencia auma geração ligeiramente mais jovem eparticipou do desenvolvimento pós-guerra dabomba H.) Os cientistas atômicos de Chicago, assim comoos pioneiros do movimento Pugwash, deramum exemplo admirável para pesquisadores emqualquer ramo da ciência que tenha sérioimpacto social. Eles não disseram que eram "sócientistas" e que o uso que se fizesse de seutrabalho era problema dos políticos. Elesassumiram a linha de que os cientistas têm odever de alertar o público para asconseqüências de seu trabalho, e de que épreciso estar sempre atento para o modo comosuas idéias são aplicadas. Sentimos que faltaalgo a pais que não se preocupam com o queacontece a seus filhos na vida adulta, ainda queem geral isso esteja além de seu controle. Damesma forma, os cientistas não deveriam serindiferentes aos frutos de sua pesquisa: caberiaa eles acolher (e na verdade cultivar)desenvolvimentos benéficos, mas resistir, tanto

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quanto possível, a aplicações perigosas ouameaçadoras. Neste século, os dilemas e as ameaças virão dabiologia e das ciências da computação, assimcomo da física: em todos esses campos, asociedade precisará insistentemente deequivalentes atuais de Bethe e Rotblat.Cientistas universitários e empresáriosindependentes têm uma obrigação especial porter mais liberdade do que aqueles que estão aserviço do governo ou de empregados decompanhias sujeitas a pressões comerciais. 4. Ameaças pós-2000: Terror e Erro Um milhão de pessoas poderia morrer porbioterror ou bioerro. Que efeito esse presságiotem para décadas posteriores? Estou terminando este capítulo em dezembrode 2002, pouco mais de um ano depois dosataques de 11 de setembro nos Estados Unidos.Persiste o medo de que mais atentadosinscrevam outras datas trágicas em nossamemória coletiva. Uma sucessão de homens-

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bomba suicidas está aterrorizando Israel. Oshomens-bomba são jovens palestinosinteligentes (mulheres e homens) com umidealismo distorcido. No final do século XX,grupos terroristas organizados com objetivospolíticos racionais (por exemplo, aquelesatuantes na Irlanda) se abstiveram do pior deque seriam capazes porque, mesmo com suaperspectiva distorcida, perceberam que haviaum limite além do qual um atentado seriacontraproducente à própria causa quedefendiam. Os terroristas da Al-Qaeda quejogaram aviões contra o World Trade Center eo Pentágono não tinham tais inibições. Sedispusessem de uma arma nuclear, essesgrupos a detonariam de bom grado no centrode uma cidade, matando dezenas de milharesjunto com eles mesmos; e milhões ao redor domundo os aclamariam como heróis. Asconseqüências poderiam ser ainda maiscatastróficas se um fanático suicida seinfectasse intencionalmente com varíola e

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iniciasse uma epidemia; no futuro pode havervírus ainda mais letais (e sem antídoto). O manifesto Einstein-Russell tinha isto a dizersobre as preocupações de cientistas beminformados nos anos 1950 com respeito àameaça nuclear: Nenhum deles dirá que os piores resultadosestão corretos. O que eles dizem, sim, é queesses resultados são possíveis, e ninguém podeter certeza de que não se realizarão. Até agoranão descobrimos se, em algum grau, asopiniões dos especialistas nessas questõesdependem de sua política ou de preconceitos.Elas dependem somente, até onde nossaspesquisas revelaram, da extensão doconhecimento específico de cada especialista.Descobrimos que os [especialistas] que sabemmais são os mais sombrios. O mesmo poderia ser dito hoje sobre outrosriscos tão sérios quanto aqueles que agora nosameaçam. A tecnologia do século XXI nosconfronta com uma série de perspectivas letaisque ainda não estavam no horizonte durante a

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era da Guerra Fria. Além disso, osperpetradores em potencial são também maisheterogêneos e mais ardilosos. As novasameaças mais importantes são "assimétricas":elas provêm não de Estados, mas de grupossubnacionais e até de indivíduos. Ainda que todas as nações imponhamregulamentos rígidos sobre o manuseio dematerial nuclear e vírus perigosos, as chancesde que sejam respeitados no mundo todo nãosão melhores do que a atual aplicação das leiscontra as drogas ilegais. Uma única infraçãopoderia desencadear um desastregeneralizado. Tais riscos simplesmente nãopodem ser de todo eliminados. E o que é muitopior, eles parecem determinados a tornar-semais irredutíveis e mais ameaçadores. Semprehaverá solitários descontentes em todos ospaíses, e a "pressão" que cada um pode exercerestá aumentando. E há outras ameaças bemdiferentes. No ciberespaço, por exemplo,tentativas para tornar sistemas mais robustos eseguros opõem-se à engenhosidade crescente

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dos criminosos que podem tentar infiltrar-se esabotar esses sistemas. Megaterror Nuclear O "megaterrorismo" nuclear é um risco dosmaiores. O romance de Tom Clancy, The Sumof Our Fears [A soma de todos os medos], quefoi transportado para as telas em 2002, retrata adevastação de um estádio de futebol lotado porum dispositivo nuclear roubado. A energianuclear é um milhão de vezes mais eficiente,por quilograma, do que explosões químicas. Abomba usada no ataque da cidade deOklahoma, que matou mais de 160 pessoas —até 11 de setembro de 2001, o maior ataque dahistória em território norte-americano —, eraequivalente a cerca de três toneladas de TNT.OS arsenais nucleares da antiga UniãoSoviética e dos Estados Unidos chegam a essaquantidade de poder explosivo para cadapessoa no mundo, daí o perigo de que mesmouma minúscula fração desse arsenal — uma

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única das dezenas de milhares de ogivasexistentes — se extravie. As bombas nucleares movidas a plutónio têmque ser acionadas por uma implosãoprecisamente configurada. Trata-se de umdesafio técnico, talvez algo desafiante demaispara grupos terroristas. Mas a superfície deuma bomba convencional poderia ser revestidade plutónio para fazer uma "bomba suja". Umaarma como essa não provocaria mais mortesimediatas do que uma bomba convencionalgrande, contudo os estragos causados a longoprazo por poluir uma grande área com níveisinaceitáveis de radiação seriam severos. Umrisco terrorista ainda maior vem do urânioenriquecido (U235 separado) porque é muitomais fácil provocar uma explosão nucleargenuína usando esse combustível. O físico LuisAlvarez, agraciado com o prêmio Nobel,afirmou: Com o urânio armamentista moderno [...] osterroristas teriam uma boa chance de detonaruma explosão de grande alcance simplesmente

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jogando metade do material em cima da outrametade. A maior parte das pessoas não pareceter consciência de que, se o U235 separadoestiver à mão, é um serviço trivial detonar umaexplosão nuclear, ao passo que, se houversomente plutónio disponível, fazê-lo explodir éa tarefa técnica mais difícil que conheço. Alvarez menospreza indevidamente adificuldade de fazer uma arma de urânio.Porém, uma explosão poderia ser alcançadausando um canhão ou um morteiro parapropulsionar uma massa subcrítica,configurada como cartucho ou bala, contraoutra massa subcrítica na forma de um anel oucilindro oco. Uma explosão nuclear no World Trade Center,envolvendo dois pedaços de urânioenriquecido do tamanho de melões, teriadevastado cinco quilômetros quadrados do sulde Manhattan, incluindo toda a Wall Street.Mataria centenas de milhares de pessoas seexplodisse durante o expediente. Devastaçãosemelhante ocorreria se houvesse ataques em

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outras cidades. E explosivos convencionaispoderiam desencadear um desastre quase namesma escala se, por exemplo, fossemlançados para detonar imensos tanques dearmazenamento de petróleo ou gás natural.(Na verdade, o ataque em 1993 ao World TradeCenter poderia ter sido tão destrutivo quanto ode 2001 se a explosão, detonada em um cantodas fundações, tivesse causado o tombamentode uma torre e a destruição da outra.) "Já matamos o dragão, mas agora vivemosnuma selva cheia de cobras peçonhentas", disseJames Wolsey, antigo diretor da CIA, em 1990.Ele se referia à turbulência que se seguiu aocolapso da União Soviética e ao fim da GuerraFria. Uma década mais tarde, sua metáfora éainda mais apropriada para os gruposdissimulados que nos ameaçam. Esses riscos a curto prazo ressaltam a urgênciade salvaguardar o plutônio e o urânioenriquecido nas repúblicas da antiga UniãoSoviética. Talvez já seja tarde demais. Aadministração era negligente no turbilhão

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político do início dos anos 1990: rebeldeschechenos e outros grupos subnacionaispodem já ter se apropriado de algumas armas. Em 2001, os Estados Unidos fizeram cortesnuma proposta de subvenção de 3 bilhões dedólares à Rússia e aos outros Estados da antigaUnião Soviética para desativar armas, evitar a"defecção" de especialistas científicos edesfazer-se do plutónio — esforços que comcerteza merecem mais prioridade do que "adefesa nacional contra mísseis". Umdesenvolvimento positivo, no entanto, temsido a Iniciativa de Ameaça Nuclear, chefiadapelo ex-senador Sam Nunn e financiadasobretudo por Ted Turner, presidente da CNN,que está usando recursos próprios e suainfluência política para estimular medidascapazes de reduzir a ameaça. O terrorismo é um novo risco que afeta nossaatitude em relação a usinas nucleares civis —aumentando os encargos tradicionais de altocusto de capital, os problemas de desativação eo legado de lixo tóxico deixado para as

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gerações futuras. Uma usina de energia abriganão só o "núcleo" altamente radioativo, comotambém um estoque de elementoscombustíveis usados que poderia ser muitovulnerável. Mesmo este último, se incendiado,poderia soltar dez vezes mais césio 137 (commeia-vida de trinta anos) do que o acidente deChernobyl. Projetistas de reatores nucleares tinham porobjetivo reduzir a probabilidade de acidentesgraves a menos de um por milhão de "anos dereatores". Para fazer tais cálculos, todas ascombinações possíveis de deslizes e falhas desubsistema têm que ser incluídas. Entre elas háa possibilidade de que um grande avião sechoque contra o reservatório de contenção.Registros de acidentes aéreos (e projeções parao futuro) nos informam a quantidade de aviõesque provavelmente cairão. Em toda a Europa eAmérica do Norte são só uns poucos por ano.A chance de que um deles se choque contra umedifício específico é tranquilizadoramentebaixa, muito menos do que uma em um milhão

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por ano. Mas agora sabemos que esse não é ocálculo correto. Ele ignora a possibilidade,terrivelmente familiar, de que terroristascamicases mirem bem num desses alvos,usando um grande jato cheio de combustívelou um avião menor carregado com explosivos.A probabilidade de tal evento não pode seravaliada nem mesmo pelos técnicos ouengenheiros mais astutos: é uma questão depercepção política ou sociológica. Porém, épreciso ser um otimista ingênuo para avaliá-laem menos de uma em cem por ano. Se essaestimativa tivesse sido incluída nas avaliaçõesde risco quando as usinas nucleares aindaestavam em planejamento, os projetos atuaispoderiam não ter sido sancionados. Poderiatornar-se incumbência de todos os novosprojetos submeter-se a padrões de segurançaque podem até exigir que sejam postos emsubterrâneos. O papel da energia nuclear poderia dequalquer forma reduzir-se durante ospróximos vinte anos se se puser fim às usinas

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nucleares existentes sem substituí-las. Muitosmilhares de novas usinas elétricas poderiamser necessários se a energia nuclearcontribuísse substancialmente para o objetivomundial de reduzir as emissões de gasesestufa. Muito além das ameaças de sabotageme terrorismo, o risco de acidentes aumentaquando a manutenção é negligente. Oshistóricos de segurança ineficiente de algumasempresas aéreas do Terceiro Mundo põem emperigo sobretudo aqueles que voam nelas;reatores com manutenção deficiente impõemuma ameaça que não respeita fronteirasnacionais. A energia nuclear poderia ter um futuro maisbrilhante se novos tipos de reatores de fissãocapazes de superar os problemas de segurançae desativação dos modelos atuais fossemusados rotineiramente. Outra perspectiva delongo prazo é a fusão nuclear: uma versãocontrolada do processo que mantém o Solbrilhando e impulsiona a bomba H. A fusão hámuito tem sido aclamada como uma fonte

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inexaurível de energia. Mas o objetivoretrocedeu: após uma falsa alvorada nos anos1950, antes que se percebessem as dificuldadesreais, a fusão continua parecendo estar a pelomenos trinta anos de distância. A vantagem principal da energia nuclear, tantode fusão como de fissão, é que ela resolve doisproblemas ao mesmo tempo: reservas depetróleo limitadas e aquecimento global. Mashá uma opção preferível, em termosambientais e de segurança: as fontesrenováveis. Estas certamente fornecerão umafração crescente das necessidades mundiais,mas não serão capazes de suprir a demandatotal sem algumas inovações técnicas. Turbinaseólicas por si não serão suficientes e aconversão atual de energia solar é cara eineficiente. No entanto, se a luz do Sol pudesseser aproveitada por algum materialfotovoltaico barato e eficiente que possa serestendido sobre imensas áreas de terraimprodutiva, então a chamada "economia dohidrogênio" seria factível: a energia elétrica

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movida à luz solar poderia extrair hidrogênioda água; esse hidrogênio seria utilizado emcélulas de combustível, que substituiriam osmotores de combustão interna. Bioameaças Mais inquietante do que os perigos nuclearessão os riscos potenciais oriundos damicrobiologia e da genética. Por décadas,várias nações mantiveram programassubstanciais e em grande parte secretos paradesenvolver armas químicas e biológicas.Existe uma habilidade crescente em projetar edispersar patógenos letais, inclusive nosEstados Unidos e no Reino Unido, ondeprogramas de pesquisa constantemente tentammelhorar contramedidas a ataques biológicos.Suspeita-se que o Iraque mantenha um planoofensivo; vários outros países (a África do Sul,por exemplo) subsidiaram programas dessanatureza no passado. Nas décadas de 1970 e 1980, a União Soviéticaestava engajada na maior mobilização de

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conhecimento científico já vista paradesenvolver armas biológicas e químicas.Kanatjan Alibekov era em certo momento osegundo cientista no programa soviéticoBiopreparat; ele desertou para os EstadosUnidos em 1992, ocidentalizando seu nomepara Ken Alibek. Segundo seu livro Biohazard[Bioperigo], ele era responsável por mais de 30mil subordinados. São descritos os esforçospara modificar organismos de forma a torná-los mais virulentos e resistentes a vacinas. Em1992, Bóris Ieltsin admitiu algo de que osobservadores ocidentais desconfiavam haviamuito: pelo menos 66 mortes misteriosas nacidade de Sverdlovsk que ocorreram no ano de1979 foram causadas por esporos de antraz quevazaram de um laboratório Biopreparat. O problema em detectar a fabricação ilícita dearmas nucleares não é nada comparado àtarefa de verificar a submissão nacional atratados sobre armas químicas e biológicas. Emesmo isso é fácil em comparação com odesafio de monitorar grupos subnacionais e

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indivíduos. Por muito tempo as guerrasbiológicas e químicas foram vistas comoopções baratas para Estados sem armasnucleares. Mas não é mais preciso um Estado,nem mesmo uma grande organização, paraarmar um ataque catastrófico: os recursosnecessários poderiam ser adquiridos porpessoas físicas. A manufatura de substânciasquímicas ou toxinas letais requer equipamentode escala modesta que, além do mais, éessencialmente o mesmo usado em programasmédicos ou agrícolas: as técnicas e osconhecimentos têm "dupla face". Temos aquioutro contraste com programas nucleares, emque o enriquecimento de urânio necessáriopara fabricar armas de fissão eficientes requerequipamento elaborado sem nenhum usoalternativo legítimo. Nas palavras de Fred Ikle: O conhecimento e as técnicas para fabricarsuperarmas biológicas estarão dispersos entrelaboratórios de hospitais, institutos depesquisa agrícola e fábricas pacíficas em todaparte. Somente um Estado com policiamento

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opressivo poderia assegurar controle total,pelo governo, sobre essas novas ferramentaspara destruição em massa. Milhares de indivíduos, talvez até milhões,podem algum dia adquirir a capacidade dedisseminar "armas" que poderiam causarepidemias generalizadas (até mundiais).Alguns adeptos de um culto de morte, oumesmo um único indivíduo amargurado,poderiam desencadear um ataque. Naverdade, já houve bioataques em pequenaescala, mas, felizmente, as técnicas eramprimitivas demais e foram conduzidas comtotal inépcia para que tivessem o mesmo efeitoque um explosivo convencional. Em 1984,alguns seguidores do culto de Rajneesh (aqueledos mantos amarelos e dos cinqüenta RollsRoyces) contaminaram alguns bufês de saladasno município de Wasco, Oregon, comsalmonela e 750 pessoas tiveram surtos degastroenterite. Aparentemente, o objetivo doataque fora incapacitar os votantes de umaeleição local e, portanto, influenciar o resultado

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de uma proposta de planejamento para acomunidade do culto. Mas a origem dessaepidemia só foi inferida um ano mais tarde, oque realça o problema de rastrear osperpetradores de qualquer ataque biológico.No início dos anos 1990, a seita AumShinrikyo, no Japão, desenvolveu váriosagentes que incluíam a toxina do botulismo, afebre Q e o antraz. Eles soltaram o gás neuralsarin no metrô de Tóquio, o que provocou amorte de doze pessoas; o ataque poderia tersido muito mais devastador se eles tivessemsido mais bem-sucedidos ao dispersar o gás noar. Em setembro de 2001, envelopes contendoesporos de antraz foram enviados a doissenadores americanos e a várias organizaçõesda mídia. Morreram cinco pessoas — umatragédia, mas com escala semelhante aacidentes cotidianos de trânsito. No entanto —e isso é um aviso importante —, a extensacobertura da mídia nos Estados Unidos gerouum "fator de pânico" que permeou a nação

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inteira. Podemos imaginar com facilidade aconseqüência descomunal para a psiquenacional de um ultraje que matou milhares. Oimpacto real de um ataque futuro poderia sermaior se fosse utilizada uma variedade debactéria resistente a antibióticos e, é claro, seela fosse dispersada com eficácia. Essa ameaçaestá levando a uma "corrida armamentista"biológica: esforços para desenvolver drogas evírus que possam atingir bactérias específicas,assim como sensores para detectar patógenosem concentrações muito baixas. Quais seriam os efeitos de um bioataque hoje? Muitos estudos e exercícios estão sendoempreendidos para avaliar o possível impactode um bioataque e como os serviços deemergência responderiam a ele. Em 1970 aOrganização Mundial de Saúde estimou que olançamento de cinqüenta quilogramas deesporos de antraz de um avião voando abarlavento de uma cidade poderia causarquase 100 mil mortes. Mais recentemente, em

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1999, vários cenários foram examinados pelogrupo Jason, um consórcio de cientistasacadêmicos altamente conceituados queprestam consultorias regulares aoDepartamento de Defesa norte- americano. Ogrupo analisou o que aconteceria se antrazfosse despejado no metrô de Nova York. Osesporos seriam dispersos ao longo do sistemade túneis e pelos passageiros. Se fosse feitocom discrição, a primeira evidência sóapareceria alguns dias mais tarde, quando asvítimas (então já espalhadas por todo o país )fossem procurar seus médicos devido a algunssintomas. O grupo Jason também estudou os efeitos deum agente químico, a ricina, que ataca osribossomos e interfere na química dasproteínas. Para uma dose letal, bastam dezmicrogramas. No entanto, o fato de o ataque desarin no metrô de Tóquio não ter matadomilhares de pessoas mostrou que adisseminação do agente não é um desafiotécnico trivial. Foram divulgados detalhes de

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experimentos com dispersão de aerossóis (nãotóxicos) desenvolvidos nos anos 1950 e 1960nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os maisrecentes foram realizados nos metrôs deLondres, de Nova York e em San Francisco. Conseguir uma dispersão eficiente no ar é umproblema comum a todos os agentes químicos,e também a agentes biológicos (como o antraz)que não sejam infecciosos. Dizer que algunsgramas de um agente poderiam em princípiomatar milhões pode ser verdade, mas pode serigualmente enganoso (assim como seriaenganoso dizer que um homem pode ser paide 100 milhões de crianças; os espermatozóidessão bem abundantes, mas a dispersão e o partoseriam verdadeiros desafios). No que se refere a doenças infecciosas, adispersão inicial é menos crucial do que o épara o antraz (que não pode ser transmitido deuma pessoa para outra); mesmo umacontaminação localizada, sobretudo numapopulação móvel, poderia desencadear umaepidemia generalizada. Talvez a perspectiva

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mais assustadora, entre vírus conhecidos, seja avaríola. Mediante um magnífico esforçomundial nos anos 1970, encabeçado pelaOrganização Mundial de Saúde, a doença foicompletamente erradicada. Em vez deextinguir o vírus, foram mantidos estoques emduas localidades, o Centro para o Controle deDoenças em Atlanta, nos Estados Unidos, e oLaboratório Vector (com seu nome agourento)em Moscou. A justificativa para preservá-los éque eles poderiam ser usados para ajudar adesenvolver vacinas. Porém, é crescente apreocupação de que reservatórios clandestinosdo vírus possam existir em outros países, o quegera medo do bioterror com a varíola. A varíola é uma doença altamente contagiosa(quase tão infecciosa quanto o sarampo) e quemata cerca de um terço dos que sãocontaminados por seu vírus. Há vários estudospublicados sobre o que aconteceria se essevírus mortífero fosse solto. Ainda que aepidemia fosse contida e o número de mortessó chegasse a centenas, o efeito numa grande

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cidade poderia ser devastador. Haveria umacorrida em busca de suprimentos médicos,sobretudo se houvesse escassez de vacinas.Mas a mortandade real poderia chegar amilhões, principalmente se a epidemia seespalhasse mundo afora. Em julho de 2001, um exercício chamado "DarkWinter" [Inverno Escuro] simulou um ataquesecreto de varíola" nos Estados Unidos, assimcomo a resposta e as contramedidas a ele.Nesse exercício, os papéis foramdesempenhados por figuras experientes: oantigo senador americano Sam Nunn fez asvezes do presidente e o governador deOklahoma era ele próprio. O exercício partiuda suposição de que nuvens de aerossolcontaminadas com o vírus da varíola foramliberadas simultaneamente em três locais —centros comerciais — em diferentes estados. Asimulação levou, na pior das hipóteses, aocontágio de 3 milhões de pessoas (das quaisum terço morreria). Um processo de vacinaçãoimediata sufocaria a dispersão da doença (a

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vacina ainda é eficaz mesmo quatro dias após ainfecção). Mas uma infecção que se espalhassepelo mundo todo, como aconteceria se aemissão inicial se desse num aeroporto ou numavião, poderia acarretar uma epidemiadesenfreada em países em que a vacina nãoestivesse tão prontamente disponível quantonos Estados Unidos — o pior de tudo, talvez,nas megacidades congestionadas do mundoem desenvolvimento. O período de incubaçãoé de doze dias, então, quando o primeiro casose manifestasse, aqueles originalmenteinfectados teriam se espalhado ao redor domundo e causado infecções secundárias. Seriatarde demais para qualquer quarentena eficaz. Smallpox 2002: Silent Weapon [Varíola 2002:uma arma silenciosa], um filme exibido pelaBBC, mostra um único fanático suicida emNova York que infecta um número suficientede pessoas para desencadear uma pandemiaque faz 60 milhões de vítimas. Essa tramaassustadora se baseou num (talvezquestionável) modelo computacional sobre

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como o vírus se espalharia. Quando osmatemáticos tentam computar como umaepidemia se desenvolve, o fator mais crucial aentrar nos cálculos é o número de pessoasinfectadas por uma vítima típica, conhecidacomo o "multiplicador". Para esse modelo emparticular, considerou-se um número de dez.Alguns especialistas argumentaram, contudo,que a varíola não é tão infecciosa, quetipicamente são necessárias várias horas deproximidade para transmiti-la e que, portanto,tais cenários exageram a facilidade com queuma pessoa infectada transmite a doença.Entretanto, há evidência (por exemplo, de umsurto em 1970 num hospital alemão) de que ovírus pode se espalhar por correntes de ar,assim como por contato físico. Algunsespecialistas sugeriram que um multiplicadorde dez pode ser apropriado em hospitais, masque na comunidade seriam apenas cinco:outros sugerem que o multiplicador poderiachegar a dois.

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Incertezas como esta são cruciais paradeterminar quão prontamente uma epidemiapoderia ser contida por vacinação em massa oupor quarentena. Mas, é claro, seria mais difícilcontrolar um surto se (como imaginado noenredo da BBC) ele tivesse se espalhado, antesde ser detectado, para países emdesenvolvimento nos quais a reação a umaemergência como essa seria mais lenta e menoseficaz. E haveria com certeza outros vírusainda mais facilmente transmissíveis. No ReinoUnido, uma epidemia de febre aftosa em 2001teve conseqüências desastrosas para aagricultura, afetando o país inteiro, apesar dosimensos esforços de controle. O resultado teriasido muito pior se tal infecção tivesse sidoespalhada com más intenções. Bioataquesameaçam pessoas e animais, mas podemameaçar também plantações e ecossistemas.Outro dos cenários a curto prazo do grupoJason era uma tentativa de sabotar a produçãoagrícola no Centro-Oeste americano com aintrodução do fungo conhecido como

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"ferrugem-do-trigo", um fungo de ocorrêncianatural que às vezes destrói até 10% dascolheitas na Califórnia. Uma característica comum a todos os ataquesbiológicos é que eles não podem ser detectadosaté que seja tarde demais, talvez nem mesmoantes que os efeitos tenham se difundido pelomundo todo. Na verdade, o uso de bioarmasem guerra organizada tem sido inibido porreservas morais, e também porque o momentode ação e a dispersão não podem sercontrolados por comandantes militares. Essaação retardada, entretanto, é um atrativo parao dissidente ou terrorista solitário, porque aproveniência de um ataque — onde e quando opatógeno foi liberado — pode ser prontamentecamuflada. As perspectivas de detecçãoprecoce seriam aprimoradas se a informaçãomédica fosse rapidamente analisada ecompartilhada por todo o país, de forma queseria mais fácil detectar uma súbita elevação nonúmero de pacientes com um conjuntoespecífico de sintomas, ou a incidência quase

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simultânea de alguma síndrome rara ouanômala. Qualquer ataque causaria perturbação e pânicoseveros. O anúncio alarmista do episódio deantraz de 2001 nos Estados Unidosexemplificou como uma ameaça localizadapode afetar o estado de espírito de umcontinente inteiro. Ao amplificar medos ealimentar a histeria, a cobertura da mídiagarantiria que mesmo uma epidemia devaríola na ponta menos severa do espectro deprevisões perturbaria a vida normal no mundotodo. Vírus arquitetados? Todas as epidemias pré-2000 (com a possívelexceção da difusão russa de antraz em 1979)foram causadas por patógenos de ocorrêncianatural. Mas a bioameaça tem sido agravadapelo avanço da biotecnologia. Segundo umrelatório divulgado em junho de 2002 pelaAcademia Nacional de Ciências dos EstadosUnidos:

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Bastam alguns indivíduos com habilidadesespecializadas e acesso a um laboratório paraproduzir sem muitos custos e com facilidadeuma panóplia de armas biológicas letais quepoderiam ameaçar seriamente a população dosEstados Unidos. Além disso, eles poderiammanufaturar tais agentes biológicos comequipamento disponível no comércio — ouseja, equipamento que também pode ser usadopara fabricar produtos químicos efarmacêuticos, alimentos ou cerveja — e,portanto, permanecer incógnitos. Odeciframento da seqüência do genomahumano e a elucidação completa de numerososgenomas de patógenos [...] permitem que aciência seja utilizada para criar novos agentesde destruição em massa. O relatório observa que o "lado bom" da novatecnologia deveria também levar a formas maisrápidas de identificar uma infestaçãopatogênica, mas sua mensagem geral éinquietante. Ele reconhece que um "solitário"habilidoso poderia perpetrar uma epidemia

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catastrófica, mesmo que hoje as atençõesrecaiam sobre grupos terroristas. No mundotodo há pessoas com conhecimento para levara cabo manipulações genéticas e cultivarmicroorganismos. George Poste, umbiotecnólogo britânico e conselheiro dogoverno que trabalha nos Estados Unidos,conjetura que: Seria interessante refletir, caso [o"Unabomber"] tivesse sido treinado nos anos1990, se ele teria escolhido usar bombas ou emvez disso teria passado por uma fábrica dehambúrgueres e deixado cair algo, à medidaque a ubiqüidade da "Biotecnologia 101" setorna cada vez mais comum em currículosuniversitários pelo mundo afora. (Em 2002 os Estados Unidos aprovaram umaumento significativo para o financiamento debiodefesa. Porém, como subprodutoindesejável, essa habilidade será ainda maisdisseminada.) Eckard Wimmer e seus colegas na StateUniversity de Nova York anunciaram em julho

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de 2002 que haviam montado um vírus dapólio, usando DNA e uma planta genética quepodia ser baixada da internet. Esse vírusartificial representava pouco risco, porque amaior parte das pessoas foi imunizada contra apólio. Mas não seria mais difícil criar variantesinfecciosas ou mesmo letais. Os especialistassabiam há anos que o tipo de síntese montadopor Wimmer era factível; alguns o criticarampela realização de um experimento tãodesnecessário só para chamar a atenção. ParaWimmer, no entanto, foi uma "revelaçãoassustadora" que vírus pudessem ser criadostão prontamente. Vírus como o da varíola, comgenomas maiores do que o da pólio,constituem um desafio técnico maior; alémdisso, o vírus da varíola não seria capaz dereproduzir-se a não ser que enzimas dereplicação fossem transplantadas de um vírusaparentado. Entretanto, alguns vírus menores eigualmente letais — o HIV e o ebola, porexemplo — poderiam ser criados, mesmo

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agora, com a montagem de um cromossomo apartir de genes individuais, como fez Wimmer. Daqui a poucos anos, os mapas genéticos deamplas quantidades de vírus, assim como deanimais e plantas, estarão arquivados embancos de dados de laboratórios acessíveis aoutros cientistas pela internet. O mapa do vírusdo ebola, por exemplo, já está arquivado; hámilhares de pessoas com capacidade paramontá-lo, usando cadeias de DNA disponíveisno comércio. Nos anos 1990, membros do cultoAum Shinrikyo tentaram seguir a pista dovírus ebola encontrado naturalmente na África,mas, por se tratar de um vírus raro, não forambem-sucedidos. Hoje, eles achariam mais fácilmontá-lo num laboratório caseiro. Oscomputadores pessoais e a internet abrirampossibilidades imensamente maiores paracientistas amadores. Numa disciplina como aastronomia, esse é um desenvolvimentoimportante e bem-vindo sem reservas. Masveríamos com ambivalência o poder nas mãos

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de uma sofisticada comunidade debiotecnólogos amadores. A criação de "vírus sob medida" é umatecnologia florescente. E uma compreensãomais efetiva do sistema imunológico humano,embora de benefício médico crucial, tambémfacilitará a vida daqueles que desejam suprimira imunidade. Uma sucessão de vírusarquitetados para os quais não há imunidadenem antídoto poderia ter um efeito ainda maiscatastrófico no mundo inteiro do que a Aids naÁfrica (continente em que a doença estálevando décadas de avanço econômico aoretrocesso): por exemplo, um equivalente davaríola para o qual não há vacina, talvezmesmo um vírus que se espalhe com maisfacilidade do que a própria varíola ou umavariante da Aids que seja transmitida como agripe, ou uma versão de ebola com um períodode gestação mais longo. (Surtos dessa terríveldoença contagiosa são em geral contidosporque ela age demasiado depressa, matandosuas vítimas pela erosão da carne antes que

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tenham muita chance de infectar outraspessoas. Em contraste, é a lentidão com que aAids age que permite que seja transmitida comeficiência.) A não ser que a capacidade de planejar novosvírus seja igualada por habilidadescorrespondentes no projeto e na realização devacinas dirigidas a eles, poderíamos nos vertão vulneráveis quanto os indígenas norte-americanos que sucumbiram a doençastrazidas pelos colonos europeus, contra asquais não tinham imunidade. É possível desenvolver cepas de bactérias quesejam imunes a antibióticos. Na verdade, taisbactérias já estão emergindo naturalmentecomo resultado da seleção darwiniana.Algumas enfermarias de hospitais já foraminfectadas por "bichos" resistentes até avancomicina, antibiótico usado como últimorecurso. A engenharia artificial pode "convocaras mudanças" com mais eficácia do que asmutações naturais. Novos organismos

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poderiam ser projetados para atacar plantas eaté mesmo substâncias inorgânicas. Talvez não tenhamos de esperar muito até quenovos tipos de micróbios sintéticos sejamgeneticamente arquitetados. Craig Venter, ex-presidente e diretor-geral da Celera, acompanhia que seqüenciou o genoma humano,já anunciou planos para ajudar a resolver ascrises mundiais de energia e aquecimentoglobal com a criação de novos micróbios: umtipo dissociaria água em oxigênio e hidrogênio(para a "economia do hidrogênio"); outros sealimentariam de dióxido de carbono naatmosfera (combatendo assim o efeito estufa)para convertê-lo em elementos químicosorgânicos como os que hoje são feitos de óleo egasolina. A técnica de Venter envolve a criaçãode um cromossomo artificial com cerca dequinhentos genes e sua inserção num micróbioexistente cujo genoma tenha sido destruído porradiação. Se essa técnica funcionar, ela abreperspectivas para a criação de novos tipos devida que poderiam alimentar-se de outros

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materiais em nosso ambiente. Por exemplo,poderiam ser desenhados fungos paraalimentar-se de e destruir plásticos depoliuretano. Até as máquinas poderiam estarameaçadas: bactérias especialmente elaboradaspoderiam transformar óleo em materialcristalino e, desse modo, entupir a maquinaria. Erros de Laboratório Quase tão preocupantes são os riscos cada vezmaiores que surgem em decorrência de erro eda imprevisibilidade dos resultados dosexperimentos realizados, mais do que de má-fé. Um episódio recente na Austrália consistiunum prenúncio preocupante. Ron Jacksontrabalhava como pesquisador em Camberra, noCentro de Pesquisa Cooperativa em ControleAnimal, um laboratório do governo cujamissão principal era aprimorar as técnicas parao controle de pestes animais. Com seu colegaIan Ramshaw ele estava pesquisando novasformas de reduzir a população decamundongos. Sua idéia era modificar o vírus

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de varíola murina a fim de que se tornasse,com efeito, uma vacina contraceptivainfecciosa, que seria usada para esterilizarcamundongos. Durante esses experimentos, noinício de 2001, involuntariamente eles criaramuma cepa nova, bastante virulenta, de varíolamurina: todos os camundongos do laboratóriomorreram. Os pesquisadores tinhamadicionado um gene para uma proteína(interleucina-4) que aumentava a produção deanticorpos e suprimia o sistema imunológiconos camundongos; em conseqüência, mesmoanimais previamente vacinados contra avaríola murina morreram. Se esses cientistasestivessem trabalhando no vírus da varíola,eles poderiam tê-lo modificado para que setornasse ainda mais virulento, de forma que avacinação não oferecesse nenhuma proteçãocontra ele? Segundo Richard Preston: "O quede mais importante se impõe entre a espéciehumana e a criação de um supervírus é umsenso de responsabilidade entre os biólogos".

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Esse tipo de experimento de laboratório, emque se criam patógenos mais perigosos do queo previsto, e talvez mais virulentos do queaqueles desenvolvidos naturalmente,exemplifica um tipo de risco que os cientistasterão de enfrentar (e se possível minimizar) emoutras áreas de pesquisa. Tais áreas incluem ananotecnologia (e mesmo a físicafundamental), em que as conseqüênciaspoderiam ser ainda mais calamitosas. Ananotecnologia é muito promissora a longoprazo, mas poderia, ao fim, revestir-se de umlado negativo ainda mais sério do quequalquer bioterror. É concebível — embora setrate de algo muito distante da realidade —que sejam inventadas nanomáquinas capazesde montar cópias de si próprias. Se deixadas àsolta, seus números poderiam crescer de modoexponencial, até ficarem sem "comida". Se seuconsumo fosse altamente seletivo, elaspoderiam se substitutas úteis para indústriasquímicas, assim como os "micróbios sobmedida" poderiam sê-lo. Mas o perigo

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despontaria se as nanomáquinas pudessem serprojetadas para ser mais onívoras do quequalquer bactéria, talvez até capazes deconsumir qualquer material orgânico.Metabolizando com eficiência e usando energiasolar, elas poderiam então proliferar-se semcontrole e não atingir o limite maltusiano atéque tivessem consumido toda a vida. Essa cadeia de eventos é armada por EricDrexler no "grey goo scenario" [situação dagosma cinzenta] . Ele escreve: "Plantas" com "folhas" não mais eficientes doque as placas solares de hoje em dia poderiamganhar a competição com as plantas reais,enchendo a biosfera de uma folhagemincomestível. "Bactérias" onívoras duronaspoderiam acabar com as bactérias reais. Elaspoderiam espalhar-se como pólen ao vento,replicar-se com rapidez e reduzir a biosfera apó em questão de dias. Replicadores perigosospoderiam facilmente ser durões, pequenos e dedispersão rápida demais para que sejamcontidos — pelo menos se não nos

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prepararmos. Já temos problemas suficientesno controle de vírus e de moscas-das-frutas. A resultante explosão populacional nesses"replicadores bióvoros" poderia, teoricamente,devastar um continente em poucos dias. Essa éde fato a "pior das hipóteses" teóricas; mesmoassim, tais estimativas dão o recado de que, sea tecnologia de máquinas auto-replicanteschegar a ser desenvolvida, a possibilidade deum desastre de dispersão rápida não pode serdeixada de lado. É possível levarmos a sério a ameaça da"gosma cinzenta", mesmo se estendermosnossa previsão um século adiante? Uma pragadesenfreada de tais replicadores não violarialeis científicas básicas. Mas isso não faz delaum risco sério. Para tomar outra tecnologiafuturista: um foguete espacial movido aantimatéria que atingisse 90% da velocidade daluz é compatível com as leis físicas básicas,porém sabemos que tecnicamente ele estámuito além de nós. Talvez esses replicadoreshipereficientes, alimentando-se da atmosfera,

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sejam tão irrealistas quanto uma "nave estelar",outro exemplo em que o " limite" do que écoerente com as leis científicas gerais (eportanto teoricamente possíveis) está muitoalém do que é provável. Deveríamoscategorizar as idéias de Drexler e outros comoficção científica alarmista? Vírus e bactérias são eles própriosnanomáquinas esplendidamente arquitetadas,e um devorador onívoro que pudesse vicejarem qualquer lugar seria um vencedor nacorrida da seleção natural. Então se essa pragade organismos destruidores é possível, oscríticos de Drexler poderiam argumentar, porque não evoluiu por seleção natural, há muitotempo? Por que a biosfera não se autodestruiu"naturalmente", em vez de ser ameaçadasomente quando são soltas aquelas criaturasprojetadas por uma inteligência humana malaplicada? Uma réplica a esse argumento é queos seres humanos são capazes de engendraralgumas modificações que a natureza não temcomo produzir: geneticistas podem fazer

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macacos ou milho brilharem no escuro pelatransferência de um gene de medusa, enquantoa seleção natural não pode atravessar asbarreiras entre as espécies dessa maneira. Damesma forma, a nanotecnologia pode realizarem algumas décadas coisas que a naturezajamais poderia fazer. Depois de 2020, manipulações sofisticadas devírus e células se tornarão lugar-comum; redesintegradas de computadores terão assumidovários aspectos de nossas vidas. Qualquerprevisão para meados do século é território deconjeturas e "elucubrações". Até lá, nanobôspoderão ter se transformado em realidade; defato, é possível que tantas pessoas tentem fazernanorreplicadores que a chance de umatentativa desencadear um desastre se tornariasubstancial. É mais fácil conceber ameaçasadicionais do que antídotos eficazes. Tais preocupações aparentemente remotas nãodeveriam desviar a atenção das diversasvulnerabilidades descritas neste capítulo que jáestão entre nós, e em proporções cada vez

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maiores. As perspectivas deveriam nos deixartão "sombrios" quanto os cientistas atômicospioneiros ficaram, há meio século, quando aameaça nuclear emergiu. A gravidade de umaameaça é sua magnitude multiplicada por suaprobabilidade: é assim que estimamos nossapreocupação com furacões, impactos deasteróides e epidemias. Se aplicarmos essecálculo aos futuros riscos projetados pelohomem e com os quais nos confrontamos,somando-os uns aos outros, o relógio do JuízoFinal avançará para ainda mais perto da meia-noite. 5. Perpetradores e Paliativos Em um momento em que bastam algunsindivíduos com aptidões técnicas para ameaçara sociedade humana, abandonar a privacidadepode ser o preço mínimo a ser pago paramanter a segurança. Mas até mesmo uma"sociedade transparente" pode não ser segura obastante. .

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Estamos entrando em uma era na qual umaúnica pessoa pode, mediante um atoclandestino, causar milhões de mortes outornar uma cidade inabitável por anos, e emque uma disfunção no ciberespaço podeprovocar grandes estragos globais a umsegmento importante da economia: transporteaéreo, geração de energia ou sistemafinanceiro. Na verdade, um desastre pode serocasionado por qualquer um que sejameramente incompetente em vez de mal-intencionado. Essas ameaças estão crescendo por três razões.Primeiro, as capacidades destrutivas e deperturbação disponíveis a um indivíduotreinado em genética, bacteriologia ou redes decomputador crescerão à medida que a ciênciaavançar; segundo, a sociedade está se tornandomais integrada e interdependente (tantointernacional como nacionalmente); e terceiro,comunicações instantâneas significam que oimpacto psicológico de um desastre local tem

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repercussões globais em atitudes e emcomportamentos. A ameaça subnacional mais evidente hoje emdia vem de extremistas islâmicos, motivadospor valores tradicionais e crenças muitodistantes daquelas que prevalecem nos EstadosUnidos e na Europa. Outras causas e ofensas,também perseguidas com racionalidade eobstinação, podem inspirar atos igualmentefanáticos por grupos sectários e mesmo por"solitários". Além disso, tem gente — cujaquantidade pode crescer nos Estados Unidos— com um domínio tênue sobre aracionalidade, que poderia representar umaameaça ainda mais inflexível se tivesse acesso àtecnologia cada vez mais avançada. Tecnoirracionalidade Alguns otimistas imaginam que a educaçãocientífica ou a educação técnica reduzem apropensão à extrema irracionalidade e àdelinqüência. Mas são numerosos os exemplosque podem desmentir isso. A seita Heavens

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Gate [Portal do Céu], embora pequena emescala, consistiu em um prenúncio do que podeacontecer no Ocidente tecnocrático. Um"núcleo" de membros da seita na Califórniaformou uma comunidade fechada, comaptidão suficiente para financiar-seconstruindo páginas para a internet. Mas suacompetência técnica, além do interesse genuínoem tecnologia espacial e em outras ciências,caminhava junto com um sistema de crençaque desafiava a racionalidade do pensamentocientífico. Muitos de seus membros chegaram acastrar-se: eles proclamavam em seu site aaspiração a metamorfosear-se em "um corpofísico que pertença ao verdadeiro Reino deDeus — o Nível Evolutivo acima do humano— trocando este mundo temporário e perecívelpor outro que seja duradouro e incorruptível". A chegada dos seres que, segundo sua crença,os transportariam a esse plano mais alto seriaanunciada por um cometa: "A aproximação docometa Hale-Bopp é o 'marcador' pelo qualestivemos à espera — a hora da chegada da

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nave espacial do Nível Acima do Humanopara levar-nos a Seu Mundo. Estamosalegremente preparados para deixar EsteMundo". Quando esse cometa, um dos maisbrilhantes da última década, se aproximou aomáximo da Terra, 39 membros da seita,inclusive seu líder Marshall Applewhite,asséptica e metodicamente deixaram suasvidas. É claro que suicídios coletivos não sãonenhuma novidade: há pelo menos 2 mil anosque eles existem. E nos tempos modernoscontinuam a existir, mesmo no Ocidente. Oreverendo James Jones liderou um cultomessiânico que se recolheu a um local remotona América do Sul — "Jonestown", na Guiana.Em 1972 ele instigou um suicídio em massaque levou à morte de todos os novecentosmembros do culto por envenenamento comcianeto. Embora a tecnologia moderna permita acomunicação global instantânea, elaseguramente torna mais fácil viver dentro de

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um casulo intelectual. O grupo Heavens Gatenão precisou ir à floresta amazônica paraisolar-se: uma vez que eram economicamenteauto-suficientes por causa da internet, elespodiam eximir-se de qualquer contato comseus vizinhos físicos reais, na verdade dequalquer pessoa "normal". Mais do que isso,suas crenças eram reforçadas por um contatoeletrônico seletivo com outros adeptos do cultoem outros continentes. A internet dá acesso, em princípio, a umavariedade sem precedentes de opiniões e deinformação. Mesmo assim, ela poderia limitarafinidades e simpatias ao invés de alargá-las:algumas pessoas podem decidir permanecerfechadas dentro de uma cibercomunidade desemelhantes. Em seu livro republic.com, CassSunstein, um professor de direito naUniversidade de Chicago, sugere que ainternet permite a todos nós "filtrar" nossaabsorção, de maneira que cada pessoa leia um"Eu Diário" sob medida para gostosindividuais e (ainda mais insidioso) livre de

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material que possa desafiar preconceitos. Emvez de conviver com aqueles cujas atitudes egostos sejam diferentes, muitos no futuro"viverão em câmaras de eco projetadas por sipróprios" e "não será preciso encarar tópicos evisões que não tenham sido solicitados. Semnenhuma dificuldade, você pode verexatamente o que quer ver, nada mais e nadamenos". É cedo demais para prever o efeito dainternet na sociedade em geral (sobretudo numcontexto internacional). Mas há perigo de queisso promova isolamento e nos permita (seassim escolhermos) fugir com mais facilidadedos contatos cotidianos que inevitavelmentenos poriam diante de pontos de vistaconflitantes. Sunstein discute a "polarização degrupo", pela qual aqueles que interagemsomente com os semelhantes têm seuspreconceitos e suas obsessões reforçados, eassim se deslocam para posições maisextremas. O credo do Heaven’s Gate era um amálgamade conceitos new age e de ficção científica. Esse

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culto não era único; na verdade, talvez sejaparte de uma tendência ressurgente. Osraelianos, com base no Canadá, contam commais de 50 mil adeptos em mais de oitentapaíses. Seu fundador e líder, Claude Vorilhon,um ex-jornalista de motociclismo, declarou em1973 ter sido raptado por alienígenas erecebido informações sobre como a raçahumana foi criada usando "tecnologia deDNA". OS raelianos estão promovendoagressivamente um programa de clonagemhumana que não só é problemático em termoséticos como parece perigosamente prematuromesmo para defensores dessa técnica. Tais cultos podem parecer oriundos dasmesmas "periferias" de onde provêm teóricosda conspiração observadores de óvnis e afins.Mas nos Estados Unidos crenças igualmentebizarras parecem ser quase parte danormalidade. Milhões de norte-americanosacreditam no "Arrebatamento" — quandoCristo mergulha de volta à Terra e transportaos verdadeiros crentes para o Céu —, ou no

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Milênio iminente, como representado no livroda Revelação. O futuro a longo prazo desteplaneta e de sua biosfera não importa paraesses crentes milenaristas, alguns dos quais sãoinfluentes nos Estados Unidos. (Durante ogoverno Reagan, as políticas ambientais eenergéticas ficaram a cargo de James Watt, umfundamentalista religioso que ocupava o postode secretário do Interior. Ele acreditava que omundo terminaria antes que o óleo fosseexaurido e antes que sofrêssemos asconseqüências do aquecimento global ou dodesflorestamento; então era quase nosso deversermos licenciosos com os recursos de origemdivina que a Terra proporciona.) Alguns desses crentes, como os membros doHeaven's Gate, ameaçam só a si mesmos. Seriainjusto demonizá-los a todos, ou pôr no mesmosaco crenças muito díspares. É claro que oscultos ressurgentes constituem ainda umaminúscula "atração secundária", secomparados a ideologias tradicionais. Adevoção desmesurada de entusiastas religiosos

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tradicionais, aliada ao fanatismo e aooportunismo (por exemplo) de extremistasdefensores dos direitos dos animais nosEstados Unidos e no Reino Unido, pode seruma combinação ameaçadora, sobretudoquando acompanhada por sofisticação técnica.A internet não apenas permite que grupos seorganizem; ela também oferece acesso aconhecimento técnico. Nosso sistema social eeconômico está se tornando tão fragmentado einterconectado que bastam alguns indivíduoscom essa mentalidade e com acesso atecnologia moderna para exercer uma"influência" desproporcional. Mesmo que seja possível lidar com um eventoperturbador, uma sucessão deles, com seuimpacto psicológico amplificado por meios decomunicação cada vez mais difundidos, seriacumulativamente corrosiva. A consciência deque tais eventos poderiam ocorrer sem avisodemandaria um forte custo social. Emlocalidades propensas a terrorismo, as pessoasrelutam em aventurar-se num ônibus se têm

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medo de que haja um homem-bomba entreseus companheiros de trajeto; elas hesitam emprestar favores a um estranho; os privilegiadosbuscam abrigo em comunidades cercadas eenclaves. O megaterror futuro poderiaengendrar, pelo mundo todo, esse colapsoentre comunidade e confiança. Obviamente, tais preocupações oferecem maisum incentivo para que as nações e acomunidade internacional minimizem osdesafetos e as injustiças que servem depretexto para as ofensivas. Mas está claro, pelarecente experiência norte-americana, que oproblema interno de cultos niilistas eapocalípticos e de indivíduos ressentidos éintratável. Vigilância Intrusiva: será essa a menos pior dassalvaguardas? Um paliativo seria a aceitação de uma perdacompleta de privacidade, com o desenvol-vimento de novas técnicas que fiquem de olhoem todos nós. A vigilância universal, algo que

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está se tornando tecnicamente factível, poderiasem dúvida ser uma salvaguarda contraatividades clandestinas indesejáveis. Técnicastais como transmissores implantados porcirurgia já estão sendo seriamente discutidaspara (por exemplo) monitorar criminosos emliberdade condicional. Sujeitar todos oscidadãos a tal tratamento seria profundamenteimpalatável para a maior parte de nós, mas, seas ameaças crescessem, poderíamos ter que nosresignar à necessidade de medidas como essa— quem sabe a próxima geração já asconsidere menos repugnantes. Uma vigilância orwelliana, em estilototalitarista tradicional, seria simplesmenteinaceitável; a não ser que técnicas decodificação acompanhassem o avanço, ela setornaria mais e mais intrusiva cada vez que sealcançasse uma melhoria técnica. Mas vamossupor que a vigilância tivesse dois sentidos, eque cada um de nós pudesse "espionar" não sóo governo, como todo mundo. O escritor deficção científica David Brin, em The

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Transparent Society [A sociedadetransparente], de forma um tanto provocadora,argumenta que essa vigilância "simétrica"(contudo ainda mais intrusiva) poderia ser omodo menos inaceitável de garantir um porvirmais seguro. Obviamente, ela exigiria umamudança de mentalidade. Mas isso pode vir aacontecer. Circuitos fechados de televisão emlugares públicos são comuns na Inglaterra, eem geral recebidos como medidas desegurança tranquilizadoras, apesar da perdade privacidade. Mais e mais informação sobrenós — o que compramos, onde e quandoviajamos, e assim por diante — já está sendoregistrada em "cartões espertos" usados paracomprar mercadoria ou passagens e cada vezque usamos um telefone celular. Estousurpreso com a quantidade de amigos queespontaneamente exibem assuntos pessoais empáginas na internet, abertas ao mundo. Entãouma "sociedade transparente", em que nãofosse possível ocultar comportamentos

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aberrantes, pode ser preferida às alternativaspor seus membros. Situações futuristas imaginadas na Europa enos Estados Unidos podem parecer derelevância marginal para o resto do mundo,onde a pobreza priva a maior parte daspessoas de benefícios básicos do século XX.Mas essa transparência poderia espalhar-sepelo mundo, assim como fizeram os telefonescelulares e a internet. Como essa expansão afetaria as relações entreas nações ricas e pobres? Poucos não-africanostêm conhecimento direto da África subsaarianaexceto por intermédio de filmes e noticiários natelevisão. Quais serão as mudanças naspercepções européia e norte-americana acercado resto do mundo quando forem possíveisligações pessoais imediatas? Uma visãootimista seria que essa evidência gráfica "aovivo" de carência individual — ou, porexemplo, os doentes de Aids que não têm nemum dólar por dia para o tratamento básico —estimularia a generosidade com mais eficácia

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do que as ocasionais mensagens e fotografiasrecebidas por doadores de programastradicionais de caridade. Mas parece poucoprovável que aqueles que nos Estados Unidosse recolhem a comunidades cercadas, isoladosdos desvalidos mesmo em seus própriosbairros, estenderiam a mão para o povodesesperado da África. Ainda que tivessem achance de fazer amizade com eles e mantercontato por vídeo, a "fadiga da compaixão"logo se instalaria. Na verdade, essa poderia seroutra situação em que o ciber-mundo leva auma segmentação social mais abrupta. Por outro lado, aqueles que vivem na África eno Sul da Ásia se conscientizarão cada vezmais de sua miséria relativa, sobretudo se(como é possível) o acesso ao ciberespaço setornar mais barato do que o saneamentobásico, do que a comida e do que oatendimento de saúde. Os milhões em paísespobres se mostrariam menos passivos, maisconscientes dos contrastes com relação a áreasmais privilegiadas, e teriam à disposição os

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meios técnicos para criar mais confusão. Não ésó o fundamentalismo religioso que podedesencadear uma hostilidade indignada noOcidente. Se todo o mundo emdesenvolvimento adotasse valores ditosocidentais, os desvalidos ficariam ainda maisamargurados com os benefícios desiguais daglobalização e com um sistema de incentivoseconômicos que proporciona futilidades aosricos em vez de suprir as necessidades dosdestituídos. Podemos permanecer humanos? Até agora as sociedades foram moldadas porreligião, ideologia, cultura, economia egeopolítica. Todos esses elementos — em suaimensa diversidade — servem de pretexto paradisputas internas e guerras. Um elementoimutável ao longo dos séculos, porém, foi anatureza humana. Mas no século XXI drogas,modificação genética e talvez implantes desilício no cérebro mudarão os próprios seres

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humanos — suas mentes e atitudes, até mesmoseu físico. Futuras mudanças genéticas na populaçãohumana — embora muito mais rápidas do queas mudanças evolutivas que ocorremnaturalmente — ainda exigirão algumasgerações. Contudo, alterações de humor e dementalidade poderiam espalhar-se ainda maisrapidamente por populações inteiras por meiode drogas (ou talvez de implantes eletrônicos). Em Nosso futuro pós-humano, FrancisFukuyama argumenta que o uso habitual euniversal de medicamentos que alteram ohumor limitaria e empobreceria o alcance docaráter humano. Ele cita o uso de Prozac paracombater a depressão e de Ritalin paradiminuir a hiperatividade em crianças agitadasembora saudáveis: essas práticas já estãorestringindo os tipos de personalidadesconsiderados normais e aceitáveis. Fukuyamaprevê uma limitação mais extensa, quandooutras drogas forem desenvolvidas, o que

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poderia ameaçar o que, para ele, seria aessência de nossa humanidade. De fato, injeções de hormônios que agemdiretamente sobre o cérebro serão em brevecapazes de efetuar mudanças muito maispoderosas e "precisas" em nossa personalidadedo que o Prozac e sua turma. Já se demonstrouque o hormônio PYY 3-36 elimina a sensaçãode fome, agindo direto no hipotálamo. Um dosespecialistas nessa técnica, Steve Bloom, doHospital Hammersmith, em Londres, externousua preocupação com os rumos que seutrabalho poderia tomar dentro de dez anos: "Sepodemos alterar o desejo das pessoas porcomida, podemos alterar outros desejosprofundos: o hipotálamo também abrigacircuitos cerebrais que influenciam o desejo e aorientação sexuais". Fukuyama teme que as drogas se tornemuniversalmente utilizadas para amenizarextremos de humor e comportamento, e quenossa espécie possa degenerar-se em zumbispálidos e aquiescentes: a sociedade se

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transformaria numa distopia semelhante aoAdmirável Mundo Novo de Aldous Huxley.Ainda que mantivéssemos a aparência, nãoseríamos de todo humanos. Fukuyamadefende um forte controle de todas as drogasque alteram a mente. As proibições nãoprecisariam ser 100% efetivas se o objetivofosse adiar o momento em que todas aspersonalidades extremas pudessem serapagadas. Haveria pouco impacto geral nocaráter nacional se, apesar do regulamento,alguns delinqüentes obtivessem o acesso adrogas mediante táticas ilícitas, ou saíssem deseu país para buscá-las em outro cujosregulamentos fossem mais negligentes. Mas minha preocupação é inversa à deFukuyama. A "natureza humana" inclui umarica variedade de tipos de personalidade, etambém aqueles que têm atração pelos quevivem descontentes à margem. A influênciadesestabilizadora e destrutiva de algumasdessas pessoas será ainda mais devastadora àmedida que crescerem seus poderes técnicos e

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seu conhecimento, e que o mundo quecompartilharmos se tornar maisinterconectado. Há trinta anos o psicólogo B. F. Skinner previu,em seu livro Beyond Freedom and Dignity[Para além da liberdade e da dignidade], quealguma forma de controle da mente poderiaser necessária para evitar um colapso dasociedade; ele argumentou que o"condicionamento" de uma população inteiraseria um pré-requisito para uma sociedade emque seus membros estivessem satisfeitos emviver e que ninguém desejasse desestabilizar. Skinner era um behaviorista, e suas teoriasmecanicísticas de "estímulo-resposta" estãohoje desacreditadas. Mas a questão que eleressaltou está mais aguçada do que nuncaporque os avanços científicos permitem queuma única personalidade "aberrante" causeestragos generalizados. Se um psicólogo atualfosse estimulado a propor uma panacéia, ela separeceria, ironicamente, com o pesadelo pós-humano de Fukuyama: uma população

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tornada dócil e respeitadora da lei devido aouso de "drogas projetadas" e à intervençãogenética com que se podem "corrigir" extremosde personalidade. É bem possível que a ciênciaque estuda o cérebro venha a ser capaz de"modificar" a personalidade de pessoas cujamentalidade poderia levá-las a tornar-seperigosamente ressentidas: uma perspectivaainda mais distópica. Na obra de ficção científica de Philip K. Dick,Minority Report (agora um filme de StevenSpielberg), os "pré-cogs", seres humanosmentalmente anormais criados para exerceressa função, podem identificar aqueles que sãopassíveis de cometer um crime futuro; futurosbandidos são então, com fins preventivos,rastreados e aprisionados em tanques. Senossas propensões são de fato determinadaspela genética e pela fisiologia (e ainda não sesabe até que ponto são), então a identificaçãode criminosos em potencial em breve pode nãomais exigir poderes sobrenaturais. Haverápressões crescentes para instituir esse tipo de

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ação preventiva no mundo real, comosalvaguarda contra as ofensivas — mais e maiscalamitosas à medida que se conhecem novosavanços técnicos — que poderiam ser forjadasaté mesmo por um criminoso delinqüente. Nossa civilização, como Stewart Brandobserva, está "cada vez mais interligada e cadavez mais precariamente equilibrada à beira doabismo graças a uma complexa superestruturade tecnologia sofisticadíssima, em que ofuncionamento de cada peça depende dofuncionamento de todas as outras". Serápossível salvaguardar sua essência, sem que ahumanidade tenha que sacrificar suadiversidade e seu individualismo? Teremosque, para sobreviver, ser intimidados por umestado policial, perder qualquer privacidadeou ser tranqüilizados até a passividade? Ou será que a imposição de freios à ciência e àtecnologia potencialmente ameaçadoras, e até arenúncia total de algumas áreas da pesquisacientífica, poderiam reduzir as ameaças? .

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6. Segurando o Avanço da Ciência? As ciências do século XXI oferecemperspectivas brilhantes, mas têm um ladosombrio também. restrições éticas à pesquisaou a renúncia a tecnologias potencialmenteameaçadoras são difíceis de negociar e aindamais complicadas de implementar. Em 2002 a Wired, uma revista mensal com focoem computadores e engenhocas eletrônicas,inaugurou um "bolão". A idéia era recolheralgumas previsões sobre desenvolvimentosfuturos em sociedade, ciência e tecnologia, ecom isso estimular a realização de debates. Aguru da internet Esther Dyson previu que emdez anos a Rússia chegaria à supremacia naindústria de software mundial. As apostas dosfísicos giravam em torno de quanto temposeria necessário para formular uma teoriaunificada das forças fundamentais e, no fundo,se tal teoria realmente existe. Outra aposta erase alguém, vivo naquele momento, poderiaviver até os 150 anos de idade, o que não é detodo impossível, dados os avanços médicos, a

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despeito de ser uma aposta estranha, já que ospróprios prognosticadores não esperavamsobreviver o suficiente para testemunhar oresultado. Eu cravei mil dólares numa aposta: "Que até oano de 2020 uma instância de bioerro ou debioterror terá matado 1 milhão de pessoas". É claro, torço com fervor para perder a aposta.Mas honestamente não conto com isso. Essaprevisão pressupunha que olhássemos menosde vinte anos à frente. Acredito que o riscoseria grande, mesmo se houvesse um"congelamento" dos novos desenvolvimentos,e os perpetradores potenciais de tais ofensivasou megaerros só continuassem a ter acesso atécnicas utilizadas no presente. Mas não hádúvida de que nenhuma disciplina estáavançando mais rápido do que a biotecnologia,e seus avanços intensificarão os riscos erealçarão sua variedade. A ansiedade na comunidade científica parecesurpreendentemente contida. É claro quenovas tecnologias podem oferecer benefícios

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colossais, e a maior parte dos cientistas assumea atitude de que o que há de negativo pode serremediado com mais tecnologia (ou comtecnologia redirecionada); eles estão atentos atudo a que estaríamos renunciando se nãoseguíssemos adiante. Quando se começou ausar o vapor, centenas de pessoas sofrerammortes horrendas porque caldeiras maldesenhadas explodiam; da mesma forma, noinício a aviação era um perigo. A maior partedos procedimentos cirúrgicos hoje rotineirosera arriscada e muitas vezes fatal nos seusprimórdios. Cada avanço caminhou por"tentativa e erro", porém o limiar aceitávelpode ser aumentado quando o risco é aceitovoluntariamente e o "lado bom" passível de seralcançado é grande (como no caso de umacirurgia). Num ensaio intitulado "The HiddenCost of Saying No" [O custo oculto de dizernão] Freeman Dyson ressaltou essa questão.Ele enfatizou que o desenvolvimento e aintrodução de novas drogas são inibidos — àsvezes em detrimento de muitos cujas vidas

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poderiam ser salvas dessa maneira — pelosprolongados e dispendiosos testes desegurança exigidos antes da aprovação. Mas há uma diferença quando aqueles queestão expostos ao risco não têm escolha e nãoestão em posição de ser objeto de nenhumbenefício compensatório, quando a "pior dashipóteses" poderia ser desastrosa ou quando orisco não pode ser quantificado. Algunscientistas parecem fatalistas no que se refereaos riscos; ou então otimistas, atécomplacentes, com a noção de que os "poréns"mais assustadores podem ser afastados. Esseotimismo pode estar fora de lugar, por issodeveríamos perguntar: é possível protelar osriscos mais intratáveis "se formos com calma"em algumas áreas, ou sacrificando parte datradicional franqueza da ciência? Os cientistas aceitam a necessidade decontroles no modo como trabalham e em comosuas descobertas são aplicadas. Os avançosbiológicos estão abrindo um número crescentede aplicações potenciais — clonagem humana,

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organismos geneticamente modificados e tudoo mais — em que a regulamentação seránecessária. Quase toda descoberta aplicáveltem um potencial para o mal assim como parao bem. Nenhum cientista responsável repetiriaas palavras do diabólico dr. Moreau de H. G.Wells: "Segui com esta pesquisa por onde elame levou. Essa é a única forma que eu conheçode conduzir um verdadeiro procedimento empesquisa. Fiz uma pergunta, imaginei algummétodo para conseguir uma resposta econsegui uma nova pergunta. [...] A coisadiante de você não é mais um animal, umacriatura como nós, mas um problema. [...] Euqueria [...] encontrar o limite extremo daplasticidade numa forma viva". Autocontrole Científico As restrições são obviamente justificadasquando os experimentos são arriscados: porexemplo, criar patógenos perigosos quepoderiam escapar, ou gerar concentraçõesextremas de energia. Às vezes os cientistas se

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submetem a moratórias auto-impostas emlinhas de pesquisa específicas. Um precedentepara isso foi a declaração proposta em 1975 porbiólogos moleculares a fim de restringir algunstipos de experimentos possibilitados pela entãonova técnica de DNA recombinante. Essadecisão seguiu-se a um encontro em Asilomar,na Califórnia, convocado por Paul Berg, daUniversidade de Stanford. A moratória deAsilomar logo pareceu cautelosa demais, masisso não quer dizer que fosse insensata naépoca, já que o nível de risco era entãogenuinamente incerto, fames Watson, co-descobridor da dupla-hélice do DNA, emretrospecto vê essa tentativa de auto-regulaçãocomo um erro. (Watson costuma ser "taurino"no que diz respeito às aplicações dabiotecnologia; para ele, não deveríamos terinibições sobre o uso de novos conhecimentosda genética para "melhorar" a humanidade. Eleperguntou retoricamente: "Se os biólogos nãoderem uma de Deus, quem o fará?"). Mas outroparticipante de Asilomar, David Baltimore,

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continua orgulhoso do episódio: na opiniãodele, foi correto "envolver a sociedade nareflexão sobre os problemas, porque sabemosque ela pode nos impedir de concretizar ostremendos benefícios desse trabalho, a não serque nos entendamos com ela e a levemos aanalisar os problemas". O episódio de Asilomar parecia um precedenteencorajador. Ele mostrou que um grupointernacional de cientistas de ponta poderiaconcordar com um gesto de abnegação, e quesua influência na comunidade de pesquisa erasuficiente para assegurar que o plano fosseimplementado. Hoje, há ainda mais razõespara exercitar o controle, mas um consensovoluntário seria muito mais difícil de seratingido: a comunidade é muito maior e acompetição (realçada por pressões comerciais),mais intensa. Em muitos países, existem diretrizes formais eexigências de licença para a realização deexperimentos com animais, motivadas porquestões de compaixão. No entanto, há uma

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"penumbra" de experimentos que, apesar denão serem cruéis nem perigosos, incitam umreflexo de revulsão que leva alguns a exigiruma regulamentação mais ampla. Os bioeticistas usam o termo "fator eca" [yuckfactor em inglês] para denotar uma aversãoemocional a violações do que percebemoscomo a ordem natural. Essa reação às vezesnão reflete mais do que um conservadorismonão pensante que se desgasta à medida quenos familiarizamos com uma nova técnica:transplantes de rim provocaram uma talresposta quando foram apresentados, mas hojesão amplamente aceitos; na verdade, atétransplantes de córnea tiveram o mesmo efeito.Fotografias em jornais de um rato que receberaum implante de um molde no qual um tecidocresceu na forma de uma orelha humana,quase tão grande quanto o resto de seu corpo,incitou uma reação "eca!" exagerada, apesar dedeclarações de que o próprio rato estava bemem relação a seu tratamento e despreocupadocom sua aparência.

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Eu pessoalmente tenho uma resposta "eca!" aexperimentos invasivos que modifiquem ocomportamento dos animais. Fisiologistas nocentro médico da Universidade Estadual deNova York, no Brooklyn, implantarameletrodos em cérebros de ratos. Um eletrodoestimulava o "centro do prazer" cerebral; doisoutros eletrodos ativavam as regiões queprocessam os sinais de seus bigodes direitos eesquerdos. Esse simples procedimentotransformou os animais em "roborratos" quepodiam ser guiados para a esquerda ou para adireita e forçados a comportar-se conformepadrões que pareciam ir de encontro aos seusinstintos. Não eram procedimentosnecessariamente cruéis, e de certa forma nãosão diferentes do modo como um cavalo ouum boi são arreados e conduzidos. Mesmoassim, poderiam ser presságio de modificaçõesintrusivas (de humanos e de animais) quepõem fim àquilo que, para muitos, deveria sersua natureza intrínseca; igual reação seráengendrada por técnicas hormonais mais

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sofisticadas para modificar processos depensamento. Talvez só uma minoria demonstre uma reaçãoexagerada contra esses experimentos comcamundongos e ratos. Porém, algunsprocedimentos que em breve talvez sejampossíveis podem desencadear uma revulsãotão disseminada que decerto haverá pressãopara bani-los: por exemplo, a "construção" deanimais insensíveis que (poder-se-iaargumentar) teriam a qualidade moral devegetais e assim poderiam ser tratados de ummodo assustador, sem nenhuma compunçãoética. (A indústria alimentar seria entãoliberada de pressões para abandonar otratamento cruelmente intensivo de animaiscriados em âmbito industrial.) Hominóidessem cérebro cujos órgãos pudessem sercolhidos como partes sobressalentespareceriam, eticamente, ainda maisproblemáticos. Por outro lado, transplantarórgãos de porcos ou de outros animais parahumanos não deveria suscitar maiores

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preocupações éticas do que comer carne,embora essa técnica (xenotransplante) talvezseja banida — independentemente dejulgamentos éticos — por causa dos riscos deque novas doenças animais sejam introduzidasna população humana. Usar células-troncopara cultivar um órgão de substituição in situpareceria uma alternativa muito mais aceitávelà cirurgia de transplante, que com freqüênciaenvolve uma espera tensa e ambivalente, senãoansiosa, por um acidente de carro ou uminfortúnio similar que forneça um "doador"adequado. Técnicas de clonagem animal podem em brevetornar-se rotina, mas tentativas de clonar sereshumanos provocam uma reação "eca!"generalizada. Há rumores de que o cultoraeliano já tenha centenas de embriõesclonados. Cientistas responsáveis se oporiam aquaisquer tentativas de clonagem devido àprobabilidade de que, mesmo que umagestação chegasse a termo, a criança resultanteapresentasse defeitos devastadores. Apesar das

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objeções éticas gerais e da alta chance denascimentos defeituosos, certamente sepassarão anos até o nascimento do primeirohumano clonado. Escolhas a respeito de como a ciência éaplicada — em medicina, no meio ambiente, eassim por diante — deveriam ser debatidasmuito além da comunidade científica. Esta éuma razão pela qual é importante que opúblico amplo tenha uma percepção básica deciência, que conheça pelo menos a diferençaentre um pró- ton e uma proteína. De outraforma, tal debate não passará de slogans, ouserá conduzido com nível de megafone nasmanchetes sensacionalistas dos tablóides. Asopiniões de cientistas não deveriam ter pesoespecial na decisão de questões que envolvamética ou riscos: na verdade, é melhor que osjulgamentos sejam entregues a grupos maisamplos e imparciais. Um bom aspecto doProjeto Genoma Humano, publicamentefinanciado, era que parte do orçamento era

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destinado à discussão e à análise do seuimpacto ético e social. Os Pagadores da Ciência A pesquisa científica, assim como nossosmotivos para realizá-la, não pode ser separadado contexto social no qual ela é desenvolvida.A ciência sustenta a sociedade moderna. Mas,da mesma forma, as atitudes da sociedadedeterminam que tipo de ciência lhe interessa equais projetos são favorecidos junto a governose patrocinadores comerciais. Só nas ciências com as quais estoupessoalmente envolvido há vários exemplos.Máquinas imensas para estudar partículassubatômicas foram subsidiadas pelo governoporque foram encabeçadas por físicos que sedestacaram durante a Segunda GuerraMundial. Os sensores usados por astrônomospara detectar fracas emissões de estrelas eplanetas distantes foram desenvolvidos a fimde permitir que o Exército americanoidentificasse vietnamitas na mata; agora são

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usados em câmeras digitais. E dispendiososprojetos científicos no espaço — as sondas queaterrissaram em Marte e nos forneceramfotografias detalhadas de Júpiter e Saturno —pegam carona num imenso programa espacialque foi inicialmente estimulado pela rivalidadeentre os superpoderes durante a Guerra Fria. Otelescópio espacial Hubble teria custado aindamais se alguns gastos com desenvolvimentonão tivessem sido compartilhados com satélitesde espionagem. Devido a influências externas como essa — eseria possível fazer listas equivalentes emoutros campos científicos —, o esforçocientífico se desenvolve de maneira sub-ótima.Esse parece ser o caso quando julgamos emtermos puramente intelectuais, ou mesmoquando levamos em conta benefícios prováveispara o bem-estar humano. Alguns tópicos"correram pela pista de dentro" e colheramrecursos desproporcionados. Outros, tais comoa pesquisa ambiental, fontes de energiarenovável e estudos de biodiversidade,

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merecem mais esforço. Na pesquisa médica, ofoco está desproporcionadamente centrado nocâncer e nos estudos cardiovasculares, malesque assolam os países prósperos, e não nasdoenças endêmicas nos trópicos. Mesmo assim, grande parte dos cientistasconsidera conhecimento e entendimento comoalgo que vale a pena atingir e acredita que suapesquisa "pura" deveria ser irrestrita, desdeque feita com segurança e sem objeções éticas.Mas isso não será simplista demais? Há áreasde pesquisa acadêmica — o tipo de ciênciafeita em laboratórios universitários — que opúblico em geral deveria tentar restringir, porcausa do incômodo que causam a respeito dosrumos que podem tomar? A salvaguarda maissegura contra um novo perigo seria negar aomundo a ciência básica que o sustenta. Todos os países dão mais apoio, por motivosestratégicos, a ciências que prometamdesdobramentos valiosos. (A biologiamolecular é favorecida em comparação com oestudo de buracos negros, por exemplo; eu

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pessoalmente estou envolvido com esta última,mas, não obstante, tal discriminação não meparece injusta.) Mas será que o inversoprocede? O apoio a uma linha de pesquisa"pura" deveria ser suspenso, mesmo que sejainegavelmente interessante, que não hajamotivo para esperar que o resultado possa serutilizado com má-fé? Eu acho que sim,sobretudo em face de a alocação atual entreciências diferentes consistir no resultado deuma "tensão" complicada entre fatoresexternos. É claro, os cientistas não podem serimpedidos de pensar e especular: suasmelhores idéias com freqüência surgemespontaneamente, durante as horas de lazer.Contudo, qualquer cientista acadêmico cujaverba tenha sido suspensa tem consciência deque cortes de financiamento podem tornarmais lenta uma linha de pesquisa, ainda quenão possam interrompê-la por completo. Sempre que uma investigação promete umdesdobramento lucrativo a curto prazo não énecessário financiamento público, já que fontes

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comerciais fornecerão o dinheiro: somente aregulamentação do governo poderia entãointerromper a pesquisa. Essa regulamentaçãotambém restringiria a maneira como osbenfeitores particulares poderiam distribuirseus recursos. Indivíduos abastados podemdistorcer a pesquisa — um norte-americanoofereceu 5 milhões de dólares à UniversidadeTexas A&M para subsidiar a pesquisa emclonagem porque ele queria clonar seu cãoidoso. Para efetivamente "brecar" os avanços em umcampo de pesquisa, seria necessário consensointernacional. Se um país impusesseregulamentos, os pesquisadores maisdinâmicos e as companhias maisempreendedoras migrariam para outro maisreceptivo ou permissivo. Isso já estáacontecendo nas pesquisas com células-tronco,pois alguns países, em particular o ReinoUnido e a Dinamarca, estabeleceram normasrelativamente permissivas, em razão do queatraem um "ganho de cérebros". Por oferecer

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um regime ainda mais atraente parapesquisadores e para sua nascente indústriabiotecnológica, Cingapura e China pretendemsobrepujar os competidores. A dificuldade de uma política dirigista emciência é que os avanços que fazem época sãoimprevisíveis. Já comentei que a descobertados raios X foi acidental, não o resultado deum programa médico com o objetivo de veratravés da carne. Outro exemplo: um projetodo século XIX para melhorar a reproduçãomusical teria levado a um orchestrionelaborado e mecanicamente intrincado, masnão teria nos aproximado das técnicas comefeito usadas no século XX. Essas técnicasforam decorrência de uma pesquisa motivadapela curiosidade de Michael Faraday e seussucessores sobre eletricidade e magnetismo.Em tempos mais recentes, os pioneiros do lasernão tinham idéia da extensão com que suainvenção seria aplicada (e certamente nãoesperavam que a realização de operações para

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a remoção de retinas descoladas seria um deseus primeiros usos). Podemos perguntar, a respeito de qualquerinovação, se seu potencial é tão assustador quedeveríamos ser inibidos de levá-la adiante, oupelo menos impor-lhe algumas restrições. Ananotecnologia, por exemplo, provavelmentecausará mudanças na medicina, nainformática, na vigilância e em outras áreaspráticas, mas poderia chegar a um ponto emque um replicador, com seus perigosassociados, se tornasse tecnicamente factível.Haveria então o risco, como há agora comrelação à biotecnologia, de uma "soltura"catastrófica (ou de que a técnica fosseempregada como arma "suicida"); a únicacontramedida seria um análogonanotecnológico de um sistema imune. Paraevitar isso, Robert Freitas sugere umamoratória ao estilo Asilomar: a vida artificialdeveria ser estudada somente porexperimentos em computador em vez de sefazerem testes com qualquer tipo de máquina

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"real"; também deveria haver uma proibição aodesenvolvimento de nanomáquinas capazes dereproduzir-se num ambiente natural.Preocupações similares poderiam originar-sesobre redes superinteligentes de computadorese outras extrapolações da tecnologia atual. Sigilo ou Transparência? Em vez de querer retardar uma área depesquisa, seria possível estancar os riscosseletivamente, negando novo conhecimentoàqueles que parecem tender a aplicá-lo mal?Os governos sempre mantiveram em segredo amaior parte de seu trabalho relacionado àdefesa. No entanto, a pesquisa que não recebeessa classificação (nem é consideradaconfidencial por razões comerciais) costuma,tradicionalmente, ser acessível a todos. Em2002, o governo dos Estados Unidos propôsaos cientistas que eles próprios restringissem adisseminação de novas pesquisas que, emboranão fossem secretas, eram sensíveis e poderiamser mal aplicadas: tratava-se de um desvio tão

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grande do éthos habitual que causoucontrovérsia na comunidade científica norte-americana. O que uma universidade faz se um estudanteaparentemente qualificado de posse de umaverba generosa mas de proveniência suspeitaquer se inscrever para um doutorado emengenharia nuclear ou microbiologia? Natentativa de obstruir o treinamento depotenciais delinqüentes, poderíamos nomáximo impor um modesto atraso na difusãode novas idéias, sobretudo dado que, de todojeito, indivíduos "de alto risco" não podem seridentificados com segurança. Alguns podemdizer que qualquer coisa a que se ponhamfreios, mesmo marginalmente, vale a pena.Outros poderiam argumentar que, já que acapacidade se espalhará de qualquer maneira,poderia até ser melhor estar ligado a tantos ex-estudantes quanto possível. Dessa forma, sãomenores as chances de que um projetosubstancial ilícito pudesse ser levado adiantesem que vazassem notícias por meio de

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contatos pessoais. Transparência máxima emcomunicações, além de uma alta taxa demigração internacional, tornaria projetosclandestinos até mesmo de pequena escaladifíceis de esconder. O fluxo internacional deestudantes e acadêmicos é restrito na práticapor normas nacionais sobre vistos de entrada,mas, se as decisões fossem deixadas àsuniversidades, acredito que a maior parteadotaria uma atitude aberta com relação aestudantes, ao mesmo tempo que imporia umfiltro mais rigoroso a visitantes científicos maisavançados. Uma medida já em discussão seria um acordointernacional que configurasse a aquisição ou aposse de patógenos perigosos, em qualquerlugar, como crime individual em todos ospaíses — assim como acontece com o seqüestrode aviões hoje — e que cultivasse uma culturaem que "dedurar" fosse algo digno de serrecompensado. O principal defensor dessacampanha é Matthew Meselson, professor de

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Harvard e especialista de destaque em armasbiológicas. Os cientistas são os críticos de sua disciplina,assim como os criadores; o controle dequalidade é feito pela "revisão por pares" queprecede a publicação de qualquer novadescoberta em um periódico acadêmico. Essa éuma salvaguarda contra declaraçõesimerecidas ou exageradas. Mas talprocedimento está sendo violado com mais emais freqüência, por causa de pressõescomerciais, ou às vezes simplesmente em faceda intensa rivalidade acadêmica. Descobertasdignas de nota são trombeteadas, por meio deavisos para a imprensa ou conferências, antesque tenham sido revistas. Em contraste, outrasdescobertas são ocultadas por razõescomerciais. E os próprios cientistas enfrentamum dilema quando estão pesquisando tópicos"sensíveis": vírus letais, por exemplo. Um dos desvios mais espetaculares dasnormas científicas ocorreu em 1989, quandoStanley Pons e Martin Fleischmann, que então

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trabalhavam na Universidade de Utah,declararam ter gerado energia nuclear àtemperatura ambiente normal, usando umaparato de mesa. Se crível, a declaraçãomereceria com certeza todo o auê que suscitou:a "fusão a frio" ofereceria ao mundo umsuprimento ilimitado de energia barata elimpa. Estaria na verdade entre uma dasgrandes descobertas do século, uma dasinovações mais importantes desde a descobertado fogo. Porém, dúvidas técnicas rapidamentesurgiram. Declarações extraordináriasdemandam evidência extraordinária, e nessecaso a evidência se mostrou pouco consistente.Incoerências foram detectadas nas declaraçõesde Pons e Fleischmann; experimentos emvários outros laboratórios tentaram reproduziro fenômeno, mas sem sucesso. A maior partedos cientistas se mostrava cética e desconfiadadesde o início; em um ano o consenso geral erade que os resultados tinham sido mal

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interpretados, embora ainda hoje restemalguns "seguidores". Um episódio similar em 2002 foi mais bemconduzido. Um grupo liderado por RusiTaleyarkhan, um cientista do Oak RidgeNational Laboratory, estava investigando umperturbador efeito conhecido como"sonoluminescência": quando ondas sonorasintensas passam por um líquido cheio debolhas, estas são comprimidas e emitem raiosde luz. Os pesquisadores de Oak Ridgedeclararam ter espremido as bolhas emimplosão com uma técnica inteligente atemperaturas tão altas que elas se tornaramquentes o suficiente para desencadear umafusão nuclear, uma versão transitória eminiaturizada do processo que mantém o Solbrilhando e gera a energia numa bomba dehidrogênio. Nem mesmo seus colegas em OakRidge acreditaram: a declaração não violava as"tão caras crenças" tanto quanto a fusão a frio,mas mesmo assim parecia implausível.Entretanto, Taleyarkhan redigiu um artigo

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para o prestigioso periódico Science. Apesar doceticismo dos revisores, o editor decidiupublicar o artigo, mas com um editorialavisando que era controverso. Essa decisãopelo menos assegurava que a declaração fosseobjeto de extenso escrutínio. O fiasco da "fusão a frio" não causou grandemal a longo prazo, exceto para a reputaçãopessoal de Pons e Fleischmann e daqueles quese juntaram a eles sem senso crítico. A validadedas declarações de Taleyarkhan será em brevedecidida mediante a realização de debates erepetições independentes dos experimentosque a motivaram. Qualquer declaraçãopotencialmente memorável, desde queabertamente anunciada, atrairá amploescrutínio por parte da comunidadeinternacional de especialistas. Então nãoimporta muito se a revisão formal por paresnão é cumprida, desde que não hajaimpedimento à transparência. Vamos supor, no entanto, que uma declaraçãoextraordinária como a de Pons e Fleischmann

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tivesse sido feita por cientistas estabelecidos deum laboratório cuja missão fosse militar ouuma pesquisa comercialmente confidencial. Oque teria acontecido? É muito pouco provávelque o trabalho chegasse aos olhos do público:uma vez que a importância econômica eestratégica sem precedentes da "descoberta"tivesse sido apreciada por aqueles nocomando, seria levado a cabo um devastadorprograma secreto de pesquisa, consumindorecursos vultosos e protegido do escrutínioaberto. Algo muito semelhante a isso de fato aconteceunos anos 1980. O Livermore Laboratory, umdos dois laboratórios norte-americanosgigantes envolvidos no desenvolvimento dearmas nucleares, desenvolvia um grandeprograma secreto com o objetivo de produzirlasers de raio X. Esse esforço era financiadocomo parte do projeto Iniciativa de DefesaEstratégica (Guerra nas estrelas) do presidenteReagan. O conceito envolvia raios laser noespaço que seriam acionados por explosão

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nuclear; no microssegundo anterior aomomento de ser vaporizado, o dispositivodevia criar intensos "raios de morte" capazesde destruir mísseis inimigos que seaproximassem. Especialistas independenteseram quase uniformemente sarcásticos em seusjulgamentos. Mas era a idéia mais cara aEdward Teller e a seus protegidos: trabalhandonum ambiente "fechado", com acesso a vastosrecursos do Pentágono, eles puderamempenhar literalmente bilhões de dólares nesseesquema abortivo de "laser de raio X". Se umdos cientistas de Teller tivesse descoberto umafonte de energia, podem-se imaginar muitobem discussões persuasivas, realizadas aportas fechadas, de que o interesse nacionalexigia um programa "explosivo". Nessesexemplos, sigilo leva a desperdício e ao maudirecionamento de esforços. Ainda pior seriaum projeto clandestino que de fato oferecesseriscos dos quais os experimentadores nãotivessem consciência, ou estivessemminimizando, mas que teriam levado a maior

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parte dos cientistas externos a pedir suainterrupção. "Renúncia em Alta Definição" Uma voz influente a favor de "ir com calma" éBill Joy, co-fundador da Sun Microsystems einventor da linguagem computacional Java. Foisurpreendente encontrar desconforto tãoprofundo manifestado — na revista Wired,imagine — por um dos heróis dacibertecnologia, e seu artigo "Why the FutureDoesn't Need Us" [Por que o futuro não precisade nós], publicado em 2000, foi objeto demuitos comentários. O Times de Londrespublicou um editorial equiparando-o aofamoso memorando de 1940, de autoria dosfísicos Robert Frisch e Rudolf Peierls, em quese alertava o governo do Reino Unido dapossibilidade de fabricar uma bomba atômica. O olhar de Joy está fixo no horizontelongínquo. Em vez de temer aonde a genética ea biotecnologia poderiam nos levar na décadaatual — aplicações nocivas da genômica, o

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risco de bioterror por indivíduos, e assim pordiante —, sua inquietação se concentra nasameaças mais remotas das tecnologiasbaseadas em física. Ele está preocupadosobretudo com as conseqüências "tipo bola-de-neve" que podem resultar do momento em quecomputadores e robôs ultrapassarem ascapacidades humanas. Sua preocupação não seconcentra no uso maléfico de nova tecnologia,mas simplesmente no temor de que a genética,a nanotecnologia e a robótica (tecnologiasGNR) podem desenvolver-se de formaincontrolável e "nos dominar". A receita de Joy é "renunciar" à pesquisa e aodesenvolvimento que poderiam tornar essasameaças reais: Se pudéssemos entrar num acordo, comoespécie, sobre o que queremos, aonde vamos epor quê, então tornaríamos nosso futuro muitomenos perigoso — entenderíamos ao quepoderíamos e deveríamos renunciar. De outraforma, podemos facilmente imaginar umacorrida armamentista desenvolvendo-se sobre

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tecnologias GNR, como aconteceu com astecnologias [nucleares] no século XX. Esse étalvez o maior risco, pois, uma vez que talcorrida tem início, é muito difícil acabar comela. Desta vez — ao contrário da época doProjeto Manhattan —, não estamos em guerra,fazendo frente a um inimigo implacável queameaça a nossa civilização; somos guiados, emvez disso, por nossos hábitos, nossos desejos,nosso sistema econômico e nossa necessidadecompetitiva de saber. De acordo com a percepção de Joy, não seriafácil chegar a um consenso de que um tipoespecífico de pesquisa seria tão potencialmenteperigoso que deveríamos abrir mão dele; sereshumanos raramente podem "entrar numacordo, como espécie" — a frase que Joy usa —mesmo sobre o que parecem ser imperativosmais urgentes. Na verdade, um únicoindivíduo iluminado acharia difícil saber ondetraçar o limite em pesquisa. Então será possível"refinar" o suficiente a renúncia para que sepossa estabelecer uma discriminação entre

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projetos benéficos e perigosos? Novas técnicase descobertas terão em geral uma utilidademanifesta a curto prazo, e ao mesmo tempo seconstituirão em passos rumo ao pesadelo alongo prazo de Joy. É possível que as mesmastécnicas que levariam a "nanobôs" vorazesseriam também necessárias para criar oanálogo nanotecnológico de vacinas capazes deoferecer imunidade contra eles. Se gruposclandestinos estivessem realizando pesquisasque oferecessem algum risco, seria mais difícilinventar contramedidas se ninguém maisdetivesse conhecimento relevante. Ainda que todas as academias científicas domundo concordassem que algumas linhasespecíficas de investigação têm um "porém"inquietante, e todos os países, em uníssono,impusessem uma proibição formal, com queeficácia ela poderia ser posta em prática? Umamoratória internacional poderia certamenteretardar tais linhas de pesquisa, mesmo quenão pudessem ser suspensas por completo.Quando experimentos são desautorizados por

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razões éticas, um cumprimento com 99% deeficácia, ou mesmo com somente 90%, é muitomelhor do que não ter nenhuma proibição;mas quando experimentos são arriscados emexcesso, a conformidade precisaria estar pertodos 100% de eficácia para ser tranquilizadora:uma única soltura de um vírus letal poderia sercatastrófica, assim como o seria um desastrenanotecnológico. Apesar de todos os esforçosempreendidos pelas forças da lei, milhões depessoas usam drogas ilícitas; milhares asdistribuem. Em vista da derrota ao controle dotráfico de drogas ou de homicídios, não érealista esperar que, quando o gênio sai dagarrafa, alguma vez possamos estarcompletamente seguros contra o bioerro e obioterror: permaneceriam riscos que nãopoderiam ser eliminados a não ser pormedidas que são em si intragáveis, como é ocaso da vigilância intrusiva universal. Meu pessimismo é a mais curto prazo do que ode Bill Joy, e de certo modo mais profundo. Eleestá preocupado em protelar o dia em que

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robôs superinteligentes possam nos dominar,ou em que a biosfera possa desmanchar-se em"gosma cinzenta". Mas antes que essaspossibilidades futuristas sejam concretizadas, asociedade poderia ser atingida com um golpedemolidor em face da má aplicação de umatecnologia que já existe ou que podemosesperar com certeza para os próximos vinteanos. Ironicamente, o único consolo é que, seesses temores a curto prazo se realizassem, atecnologia hiperavançada necessária para asnanomáquinas e os computadores sobre-humanos sofreria um retrocesso talvezirreversível, salvaguardando-nos assim daspossibilidades que mais perturbam Bill Joy. 7. Desastres Naturais de Referência: Impactos de Asteróides Um enorme asteróide oferece para nós umrisco maior do que acidentes de avião, mas aescalada de ameaças causadas por humanos émuito mais assustadora do que qualquerdesastre natural.

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Em julho de 1994, milhões de pessoasassistiram, pela internet, a imagenstelescópicas dos maiores e mais dramáticos"respingos" já vistos. Fragmentos de umgrande cometa se chocaram contra Júpiter;manchas escuras maiores do que a Terrainteira, cada uma delas uma "cicatriz" deimpacto maciço, ficaram visíveis na superfíciedaquele planeta gigante por várias semanas.No ano anterior, observara-se o cometadespedaçado, batizado de Shoemaker-Levy emhomenagem a seus descobridores, quebrar-seem cerca de vinte pedaços. Astrônomoscalcularam que os fragmentos estavam emtrajetórias que atingiriam Júpiter e seprepararam para assistir aos impactos nomomento previsto. Esse episódio ressaltou a vulnerabilidade donosso próprio planeta a impactos similares. ATerra é um alvo menor do que Júpiter, ogigante do nosso sistema solar, mas cometas easteróides rotineiramente chegam perto osuficiente para se constituir em perigo. Cerca

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de 65 milhões de anos atrás, a Terra foiatingida por um objeto com um diâmetroaproximado de dez quilômetros. O impactoresultante liberou uma energia equivalente a 1milhão de bombas H; desencadeou terremotoscapazes de destruir montanhas ao redor domundo, e ondas de maré colossais; jogou naatmosfera superior dejetos suficientes parabloquear o Sol por mais de um ano. Acredita-se que esse foi o evento que aniquilou osdinossauros. A Terra ainda exibe a cicatriz: foiesse impacto notável que abriu a crateraChicxulub, de quase duzentos quilômetros decomprimento no golfo do México. Duas classes separadas de objetos"encrenqueiros" se chocam em nosso sistemasolar: cometas e asteróides. Os cometas sãofeitos sobretudo de gelo, além de gasescongelados como amónia e metano: são comfreqüência descritos como "bolas-de-nevesujas". A maior parte deles passa quase todo oseu tempo invisível para nós, espreitando nosfrios confins mais externos do sistema solar,

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muito além até mesmo de Netuno e Plutão;mas às vezes eles mergulham para dentro emdireção ao Sol em trajetórias quase radiais,aquecendo-se o suficiente para que algum gelose vaporize, liberando gás e a poeira que refletea luz do Sol para criar sua conspícua "cauda".Os asteróides, objetos menos voláteis do que oscometas, são compostos de material rochoso ese movem em órbitas quase circulares emtorno do Sol. A maior parte deles fica a umadistância segura da Terra, entre as órbitas deMarte e Júpiter. Mas alguns, conhecidos comoobjetos próximos à Terra (near-Earth objects,NEOS), seguem órbitas que podem cruzar-secom a do nosso planeta. Esses NEOS variam amplamente em tamanho:desde "planetas menores" de mais de cemquilômetros de diâmetro, até merospedregulhos. Acredita-se que um asteróide dedez quilômetros, mensageiro de uma catástrofeglobal e de grandes extinções, atinja a Terrauma vez a cada somente 50 a 100 milhões deanos. O impacto Chicxulub, há 65 milhões de

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anos, pode ter sido o evento mais recente dessamagnitude. Duas outras crateras similarmentevastas, uma em Woodleigh, na Austrália, eoutra em Manicouagan, perto de Quebec, noCanadá, poderiam ser os resultados deimpactos comparáveis ocorridos há cerca de200 a 250 milhões de anos. Talvez um delestenha causado as maiores extinções de todas,na transição entre o Permiano e o Triássico, 250milhões de anos atrás. (Na época dessesimpactos, o oceano Atlântico ainda não tinhasido aberto, e a maior parte da massa terrestreformava um único continente, conhecido comoPangéia.) Asteróides menores (e com impactos menosdevastadores) são muito mais comuns: NEOScom um quilômetro de diâmetro são cem vezesmais numerosos do que os asteróidesdesencadeadores de extinção de dezquilômetros; corpos de cem metros sãoprovavelmente outras cem vezes maisnumerosos. A famosa cratera Barringer, noArizona, foi escavada por um asteróide de

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cerca de cem metros de diâmetro, que caiuaproximadamente há 50 mil anos; uma craterasimilar em Wolfe Creek, na Austrália, temcerca de 300 mil anos de idade, NEOS decinqüenta metros parecem atingir a Terra umavez por século. Em 1908, o meteorito Tunguskadevastou uma parte remota da Sibéria. Ele semovia tão depressa, até quarenta quilômetrospor segundo, que seu impacto equivalia aogolpe de uma explosão de quarenta megatons.O meteorito se vaporizou e explodiu alto naatmosfera, achatando milhares de quilômetrosquadrados de floresta, mas sem deixar cratera. Um Risco Baixo, mas não Desprezível Não sabemos se um grande e perigoso NEO"com o nosso nome escrito" está destinado anos atingir no século vindouro. No entanto,sabemos o suficiente sobre a quantidade deasteróides existentes em órbitas que cruzam ada Terra para sermos capazes de calcular aprobabilidade. O risco não é significativo obastante para tirar o nosso sono, mas também

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não é completamente desprezível. Há um riscode 50% de um impacto da escala do Tunguskaem algum lugar da Terra neste século.Contudo, a maior parte da superfície terrestre écoberta por oceanos ou pouco habitada, entãoa chance de um impacto numa região depopulação densa é muito menor: só que talevento poderia causar milhões de mortes. No mundo como um todo, o risco deenchentes, furacões e terremotos é maisintenso. (Na verdade, a maior catástrofenatural localizada que poderia ser consideradamais provável neste século seria um terremotoem Tóquio ou talvez em Los Angeles, onde adevastação imediata teria conseqüências a maislongo prazo para a economia mundial.) Porém,para europeus e norte-americanos que vivemfora das áreas mais propensas a terremotos oufuracões, o impacto de um asteróide é odesastre natural número 1. O risco dominantenão é de eventos da escala do Tunguska, e simde impactos mais raros, que poderiam devastaruma área maior.

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Se você tem agora, digamos, 25 anos de idade,sua esperança de vida futura é de unscinqüenta anos. Portanto, a chance de servítima de um impacto colossal de um asteróideequivale aproximadamente à probabilidade deque um desses aconteça nos próximoscinqüenta anos. Antes que esse prazo chegueao fim, há cerca de uma chance em 10 mil deque um asteróide de meio quilômetro dediâmetro caia no Atlântico Norte, causandotsunamis gigantes (ondas de maré) quedestruiriam as costas norte-americana eeuropéia; ou no Pacífico, onde asconseqüências seriam similares para as costasLeste da Ásia e Oeste dos Estados Unidos. Aprobabilidade de perdermos nossa vida (commuitos milhões de outras) em tal evento é maisou menos a mesma que o risco de uma pessoamédia morrer num acidente de avião — umpouco mais alta, na verdade, se vivermos pertode alguma costa, onde se é mais vulnerável amaremotos menores. .

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É um risco pequeno, mas não mais baixo doque aquele representado por outros perigoscontra os quais os governos tomam medidas dedefesa ou melhoria. Um relatório recente sobreNEOS subsidiado pelo governo britânico assimapresentou a situação: Se um quarto da população do mundoestivesse em perigo devido ao impacto de umobjeto com um quilômetro de diâmetro, então,segundo as normas de segurança atualmentevigentes no Reino Unido, o risco de taiscasualidades, mesmo que sua ocorrência sedesse em média uma vez a cada 100 mil anos,excederia significativamente um níveltolerável. Se esses riscos fossemresponsabilidade de um operador de umafábrica industrial ou outra atividade, seriaexigido que ele tomasse medidas para reduziresse risco. Com a descoberta e o rastreamento dos maisperigosos NEOS que cruzam a Terra,poderíamos em princípio contar com anos deaviso prévio para qualquer catástrofe de peso.

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Se fosse previsto um impacto médio noAtlântico, a evacuação em massa de áreascosteiras poderia salvar dezenas de milhões devidas, mesmo que não pudéssemos fazer nadapara desviar o objeto em aproximação. Acomunidade internacional gasta bilhões dedólares por ano em previsão do tempo; pode,portanto, prever furacões. Assegurar que um(muito mais improvável mas bem maisdevastador) tsunami gigante — como apareceno filme Impacto profundo — não nos peguedesprevenidos parece valer alguns milhões. Reduzindo o Risco? Há outro motivo para levantar e catalogartodos os NEOS: a longo prazo, pode serpossível desviar objetos encrenqueiros paralonge da Terra, mas para isso é necessário quese conheçam as órbitas com precisão, e não seatinge precisão sem que tais objetos tenhamsido seguidos por um longo período. Oromance de Arthur C. Clarke, Encontro comRama, descreve como um evento como o

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Tunguska acaba com o Norte da Itália. (O anoque Clarke escolheu para essa catástrofe foi ode 2077, e a data, por coincidência, 11 desetembro.) Depois do choque inicial, a humanidade reagiucom uma determinação e uma unidade quenão se teriam visto em nenhuma era anterior. Épossível que tal desastre não acontecesse outravez por mil anos — mas poderia ocorreramanhã. Muito bem; não haveria próxima vez.Nunca mais seria permitido que um meteoritogrande o bastante para causar uma catástrofeviolasse as defesas da Terra. Assim começou oProjeto Espaçoguarda. Projetos do tipo "espaçoguarda", com os quaispodemos não apenas nos prevenir comotambém nos proteger dos impactos deasteróides, não precisam permanecer no nívelda ficção científica: eles poderiam serimplementados em cinqüenta anos. Hoje, sesoubéssemos com vários anos de antecedênciaque um NEO está a caminho para chocar-secontra a Terra, não haveria nada a fazer. Mas

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dentro de algumas décadas poderíamos disporda tecnologia necessária para desviar atrajetória de maneira a assegurar que o objeto"encrenqueiro" não oferecesse risco. Quantomais previamente fôssemos avisados daiminência de um impacto, menor seria ocutucão orbital exigido para mudar seu rumode forma a não nos atingir. Porém, até mesmotentar um empreendimento como esse seriaimprudente sem que soubéssemos um tantomais do que sabemos hoje sobre a matéria deque os asteróides são feitos. Alguns são rochassólidas; mas outros (talvez a maioria) podemser pilhas de pedras frouxamente aglomeradasunidas tão-somente por "visgo" e por suafraquíssima gravidade. No último caso, atentativa de desviar um asteróide de seu rumo(sobretudo por métodos drásticos, comoexplosão nuclear) poderia estilhaçá-lo, o querepresentaria um risco agregado ainda maiorpara a Terra do que o do corpo único original. Cometas são mais difíceis de lidar. Alguns(como o Halley) retornam repetidas vezes e

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seguem órbitas bem mapeadas, mas a maioriase aproxima "subitamente" desde o espaçoprofundo, sem mais do que um ano de aviso.Além disso, suas órbitas são um tanto erráticasporque jorra gás deles e fragmentos sedestacam de formas imprevisíveis. Por essasrazões, eles representam um risco difícil demanejar e talvez irredutível para nós. Um índice numérico que mede a seriedade decatástrofes improváveis, tais como potenciaisimpactos de asteróides, foi introduzido porRichard Binzel, um professor do MIT. Esseíndice foi adotado numa conferênciainternacional em Turim e ficou conhecidocomo escala Torino. Ela se parece com aconhecida escala Richter para terremotos.Porém, a posição de um evento nessa escalaleva em conta tanto a probabilidade de suaocorrência como sua magnitude: a seriedadede uma ameaça potencial depende dessaprobabilidade, multiplicada pela quantidadede devastação que ela acarretaria se de fatoacontecesse. A escala vai de 1 a 10. Um

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asteróide de cinqüenta metros, como o queexplodiu sobre a Sibéria em 1908, teria grau 8na escala se não houvesse dúvidas de que nosatingiria; um asteróide de um quilômetro teriagrau 10 se também não houvesse dúvidas deque iria nos atingir, mas seria classificadocomo 8 se sua órbita fosse pouco conhecida demodo que pudéssemos apenas prever suapassagem em algum lugar num raio de 1milhão de quilómetros da Terra. Nosso planetasó tem 12.750 quilómetros de diâmetro, então aprobabilidade de atingir a "mosca" giraria emtorno de uma em 10 mil. O número Torino imputado a um eventoespecífico pode mudar à medida queacumulamos mais evidências. Por exemplo, ocaminho de um furacão pode de início serdifícil de prenunciar; no entanto, conforme eleavança, torna-se possível prever com confiançacada vez maior se ele atravessará uma ilhapopulosa ou se errará o alvo. Da mesmamaneira, quanto mais seguimos um NEO, commaior precisão podemos prever sua trajetória

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futura. Com freqüência são identificadosgrandes asteróides que, com base numa órbitameio "chutada", poderiam pôr a Terra emperigo. Mas, quando suas órbitas sãodemarcadas com maior exatidão, em geralficamos confiantes de que passará ao largo —nesses casos, seu grau na escala Torino cai emdireção a zero. No entanto, são poucos os casosem que a área de incerteza encolhe mas a Terrapermanece em seu âmbito; então teríamosrazão para nos preocupar ainda mais e onúmero Torino subiria, talvez, de 8 para 10. Especialistas em impactos de NEOSdesenvolveram um índice mais refinado,chamado de escala Palermo,"1 que leva emconta quão distante no futuro o possívelimpacto ocorreria. Essa é uma medida maisefetiva de quão preocupados deveríamos estar.Por exemplo, se soubéssemos que um asteróidede cinqüenta metros atingiria a Terra no anoque vem, o índice Palermo seria alto, mas se oimpacto desse objeto específico fosse previsto,com um nível igualmente alto de confiança,

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para (digamos) o ano 2890, em nadaaumentaria o nosso nível de ansiedade. E issonão se dá simplesmente porque desdenhamosriscos futuros (sobretudo quando suaocorrência está tão distante que estaremostodos mortos), mas porque a lei das médiasnos leva a esperar, antes disso, vários eventosda escala do Tunguska, causados porasteróides de tamanho similar. Esforços modestos são válidos para monitoraros poucos milhares de NEOS de maiorproporção que poderiam oferecer algum risco.Se a conclusão fosse de que nenhum delesatingiria a Terra nos próximos cinqüenta anos,teríamos alcançado um grau de tranqüilidadeque compensaria o modesto investimentocoletivo em jogo. Se o resultado fosse menostranqüilizador, poderíamos pelo menos nospreparar; além disso, se o impacto previstofosse se dar (digamos) daqui a cinqüenta anos,poderia haver tempo suficiente paradesenvolver a tecnologia necessária paradesviar o objeto encrenqueiro. Também vale a

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pena melhorar o conhecimento estatístico dosobjetos menores, mesmo que não pudéssemosesperar muito sobreaviso se um deles rumassepara uma colisão direta com a Terra. Supererupções Além do perigo sempre presente de choquescom asteróides e cometas, há outras catástrofesnaturais ainda mais difíceis de prever comantecedência, assim como aquelas ainda maisdifíceis de prevenir ou afastar: terremotos eerupções vulcânicas extremamente violentos,por exemplo. Estas últimas incluem uma classerara de "supererupções", milhares de vezesmaiores do que a erupção do Cracatoa em1883, que lançaria milhares de quilômetroscúbicos de dejetos na atmosfera superior. Umacratera em Wyoming, com oitenta quilômetrosde largura, é um vestígio de um evento desses,ocorrido cerca de 1 milhão de anos atrás. Bempróxima do presente, uma supererupção noNorte de Sumatra, há 70 mil anos, deixou umacratera de cem quilômetros e ejetou vários

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milhares de quilômetros cúbicos de cinzas,quantidade suficiente para bloquear o Sol porum ano ou mais. Dois aspectos dessas violentas catástrofesnaturais são, porém, um tanto quantotranqüilizadores. Primeiro, impactosmonumentais de asteróides e erupçõesvulcânicas colossais são eventos tão raros quepessoas razoáveis não ficam profundamenteansiosas nem preocupadas com eles (embora,caso fosse tecnicamente factível, valesse a penarealizar um investimento substancial a fim dereduzir ainda mais o risco). Segundo, eles nãoestão se agravando: podemos estar maisconscientes deles do que as gerações anteriores(e a sociedade está certamente mais avessa arisco do que era), mas é provável que nada quea humanidade faça aumente o risco deimpactos de asteróides e de supererupçõesvulcânicas. Eles servem, portanto, como uma "calibragem"contra os crescentes riscos provocados pelohomem ao meio ambiente, que poderiam, de

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acordo com cenários pessimistas, tornar-semilhares de vezes maiores. 8. Ameaças Humanas à Terra Mudanças ambientais provocadas poratividades humanas, ainda malcompreendidas, podem ser mais graves do queas ameaças "de referência " de terremotos,erupções e impactos de asteróides. Em seu livro The Future of Life [O futuro daVida] , E. O. Wilson dá o tom com umaimagem que ressalta a fragilidade complexa da"Espaçonave Terra": A totalidade da vida, conhecida como biosferapelos cientistas e criação pelos teólogos, é umamembrana tão fina de organismos que envolvea Terra que não pode ser vista de lado a partirde uma nave espacial, porém internamente étão complexa que a maior parte das espéciesque a compõe permanece por descobrir. Os seres humanos estão acabando com avariedade de vida vegetal e animal da Terra.Extinções são, é claro, intrínsecas à evolução e

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à seleção natural: menos de 10% das espéciesque já nadaram, arrastaram-se ou voaramainda estão na Terra. Uma procissãoextraordinária de espécies (quase todasextintas agora) tem traçado o caminho tortuosopelo qual a seleção natural avançou deorganismos unicelulares até a nossa biosferapresente. Por mais de 1 bilhão de anos,"bichinhos" primitivos exalaram oxigênio,transformando a atmosfera venenosa (paranós) da jovem Terra e abrindo caminho paraformas multicelulares complexas — novatosrelativos — e para o nosso surgimento. É preciso um salto imaginativo para entenderperíodos de tempo geológico e quãocolossalmente prolongados eles sãocomparados à história hominóide, que por suavez é muito mais longa do que a históriahumana registrada. (Na cultura popular, essasimensas disjunções são às vezes suprimidas,como em filmes antigos como Um milhão deanos a.C., com Rachel Welch saltitando entreos dinossauros.)

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Os fósseis nos informam que uma abundânciade coisas nadadoras e rastejantes evoluiudurante a era cambriana há 550 milhões deanos, acarretando uma vasta diversificação deespécies. Os 200 milhões de anos seguintesviram o verdejar da terra e ofereceram umhabitat para criaturas exóticas: libélulasgrandes como gaivotas, lacraias de um metro,escorpiões gigantes e monstros marinhossemelhantes às lulas. Então vieram osdinossauros. Seu súbito desaparecimento, 65milhões de anos atrás, abriu caminho para osmamíferos, para a emergência dos primatas epara nós. Uma espécie dura milhões de anos;mesmo os surtos mais rápidos de seleçãonatural costumam levar milhares de geraçõespara mudar a aparência de qualquer espécie.(Eventos catastróficos podem, é claro, causarmudanças drásticas em populações animais;impactos de asteróides, por exemplo, podemdesencadear extinções súbitas.) . .

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A Sexta Extinção Os registros geológicos revelam cinco grandesextinções. A maior de todas aconteceu natransição entre o período Permiano e oTriássico, há cerca de 250 milhões de anos; osegundo maior, há 65 milhões de anos, acaboucom os dinossauros. Mas seres humanos estãoperpetrando uma "sexta extinção" na mesmaescala dos episódios anteriores. As espéciesestão morrendo cem ou até mesmo mil vezesmais do que a taxa normal. Antes que o Homosapiens entrasse em cena, aproximadamenteuma espécie em um milhão se extinguia a cadaano; agora a taxa está mais perto de umaespécie em mil. Algumas espécies estão sendomortas diretamente; porém, a maior parte dasextinções se deve a desdobramentosinvoluntários de mudanças provocadas peloshumanos no habitat, ou à introdução deespécies não nativas em um ecossistema. A biodiversidade está sendo erodida. Asextinções são deploráveis não só por motivosestéticos e sentimentais, atitudes

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exageradamente suscitadas pelos vertebradosditos carismáticos, a minúscula minoria deespécies que são emplumadas, peludas ougrandiosamente oceânicas. Mesmo no nívelmais funcional, estamos destruindo avariedade genética que pode ser valiosa paranós. Como Robert May diz, "estamosqueimando os livros antes de aprendermos alê-los". A maior parte das espécies ainda nãofoi catalogada. Gregory Benford propôs umprojeto de Biblioteca da Vida, um esforçourgente para recolher, congelar e armazenaruma amostra da fauna completa de umafloresta ombrófila tropical, não como umsubstituto para medidas de conservação, e simcomo uma "apólice de seguro". Os avanços biotécnicos estão agravando asameaças à biosfera. Por exemplo, os salmõesem criadouros de peixes, geneticamentemodificados para que cresçam maiores e maisdepressa, poderiam sobrepujar as variedadesnaturais se vivessem na natureza. Pior ainda,novas doenças liberadas involuntariamente

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poderiam devastar espécies. Acima de tudo,essa diminuição iminente das riquezas naturaisconota um fracasso em nossa administração doplaneta. Mas o desejo de um mundo "natural" intocadoé ingênuo. O meio ambiente que muitos de nósprezamos e com o qual nos sentimos mais emsintonia — em meu caso o interior inglês — éuma criação artificial, resultado de séculos decultivo intensivo, enriquecido por muitasplantas e árvores não nativas introduzidas porfazendeiros e jardineiros. Mesmo a paisagemnorte-americana do "Velho Oeste" está longede ser natural. Os índios vinhamtransformando o terreno muito antes dasprimeiras invasões dos europeus: "corte equeimada" são práticas que datam de pelomenos um milênio, tornando a paisagemmuito mais aberta e menos arborizada do queseu estado virgem. A terra foi transformada deforma ainda mais intensiva no século XX. . ,

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Projeções Populacionais O impacto a longo prazo da humanidade sobrea Terra depende tanto da população como doestilo de vida. A WWF, um grupo deconservação, publicou estimativas da área, ou"pegada", necessária para manter cada pessoa:a conclusão é de que precisaríamos de umaárea equivalente a "quase três planetas" paramanter a população mundial com o estilo devida e o padrão de consumo previstos para2050. Esse cálculo específico é controverso etalvez tendencioso: por exemplo, a "pegada"inclui a área de floresta requerida paraabsorver o dióxido de carbono que emana dogasto de energia por pessoa, sem contar comuma possível alteração para o uso de fontes deenergia renováveis, nem com o ponto de vistasustentável de que um aumento sutil nosníveis de dióxido de carbono é tolerável.Mesmo assim, o mundo simplesmente nãopoderia manter para sempre sua populaçãointeira vivendo segundo o estilo de vida atual

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dos europeus e dos norte-americanos de classemédia. No outro extremo, uma população com até 10bilhões de pessoas seria completamentesustentável se todos vivessem emapartamentos minúsculos, talvez como os"hotéis-cápsula" que já existem em Tóquio,subsistissem com uma dieta vegetarianabaseada em arroz, conectados por viaeletrônica, viajassem pouco e encontrassemrecreação e realização na realidade virtual emvez de no consumo e na incessante locomoçãoatualmente favorecidos no desregradoOcidente. Tal estilo de vida seria frugal emsuas demandas de energia e de recursosnaturais. Ele não precisaria, porém, serincompatível com os avanços de ordemcultural e técnica: na verdade, as maisdramáticas máquinas de crescimentoeconômico atual — a miniaturização e atecnologia da informação — são benéficas parao ambiente.

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Para que uma população se mantenha numestado de equilíbrio, cada mulher deve ter emmédia 2,1 crianças (o 0,1 a mais diz respeito acrianças que nunca chegarão à idadereprodutiva). As taxas de fertilidade emmuitos países desenvolvidos estão bem abaixodisso. Surpreendentemente talvez, a Itáliacatólica apresenta a taxa mais baixa de todas —só 1,2 parto por mulher. Os índices referentes àGrécia e à Espanha são quase tão baixosquanto os da Itália, bem como os da Rússia eda Armênia. A drástica redução no tamanho das famíliasnão é um fenômeno unicamente europeu.Hoje, são mais de sessenta países em que afertilidade está abaixo do nível de substituição.Entres eles incluem-se não só a China, onde hámuito tempo se exerce pressão política para"famílias de uma criança", como tambémoutros países asiáticos, tais como Japão, Coréiae Tailândia, onde essa pressão inexiste. Ehouve declínios drásticos em outros lugares.Por exemplo, apesar da política

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anticontracepção da Igreja católica, a taxa defertilidade brasileira caiu pela metade em vinteanos e é atualmente de 2,3. No Irã, onde osmulás que estiveram no poder durante os anos1990 eram abertamente hostis à agenda daONU para limitar o crescimento populacional,as mulheres assumiram o controle das decisõese a taxa de fertilidade caiu de 5,5 em 1988 paraatuais 2,2. Apesar da baixa taxa de natalidade, apopulação da Europa ainda está crescendo, emparte porque as crianças da "explosãopopulacional" estão em idade reprodutiva, etambém por causa da imigração e da melhorana esperança de vida. Avanços médicos emedidas de saúde pública ampliaram aexpectativa de vida e o vigor em todo omundo, a não ser nas partes mais pobres. Sem que uma catástrofe intervenha, apopulação mundial parece destinada acontinuar crescendo até 2050, quando teráatingido 8 bilhões. Essa projeção pode serexplicada pelo fato de a atual distribuição

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etária nos países em desenvolvimentoapresentar forte viés em direção aos jovens, oque significa que o crescimento continuariamesmo que essas pessoas tivessem menosfilhos do que o nível de substituição. Talaumento, combinado com a tendência àurbanização, gerará pelo menos vinte"megacidades" com populações excedendo os20 milhões. Mas a queda surpreendentemente rápida dastaxas de fertilidade, assim como umaramificação do maior poder das mulheres,levou a ONU a reduzir suas projeções para asegunda metade deste século. O melhor palpiteno momento é que depois de 2050 a populaçãocomeçará a cair, talvez alcançando novamenteo montante atual até o fim do século, a não serque os avanços médicos elevem a esperança devida aos níveis que alguns futurólogosprevêem. Os "para lá de cinqüentões"dominarão na Europa e na América do Norte,mesmo sem nenhuma nova técnica queestenda o tempo de vida. Essa tendência pode

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ser mascarada, sobretudo nos Estados Unidos,pela imigração proveniente do mundo emdesenvolvimento, onde a estabilização e oconseqüente declínio (caso aconteçam) serãoretardados. É claro, essa extrapolação é baseada empressupostos sobre tendências sociais. Sepaíses europeus ficassem genuinamenteansiosos a respeito da queda da população, osgovernos poderiam de imediato introduzirmedidas para estimular a fertilidade. De outraforma, a transmissão de epidemias emmegacidades poderia causar declínioscatastróficos, como os já esperados para partesda África, e até 2050 tais previsões poderiamestar radicalmente alteradas por avançostécnicos em robótica e em medicina, tãodrásticos quanto aqueles previstos pelostecnoentusiastas. O resultado mais benéfico, se pudéssemos defato sobreviver ao próximo século semreversões catastróficas, seria um mundo comuma população menor do que a atual (e muito

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aquém de seu pico projetado para cerca de2050). Um novo risco que pode estar abarcado nessasprojeções, e talvez seja um presságio de outros,é a epidemia de Aids. Ela não se haviaestabelecido na população humana até os anos1980, e ainda não chegou a seu pico. Acredita-se que quase 10% dos 42 milhões de pessoas daÁfrica do Sul são soropositivas: a previsão é deque a Aids causará 7 milhões de mortes até2010 só naquele país, o que eliminaria boaparte do grupo etário mais produtivo, cortariaa expectativa de vida tanto de homens como demulheres em até vinte anos e deixaria milhõesde órfãos traumatizados na geração maisjovem. A florescente pandemia de Aidsdevastará a África; milhões de casos estãoprevistos para a Rússia; o número total deinfectados está crescendo depressa na China ena Índia, onde as mortes provocadas por elapodem exceder os níveis africanos dentro deuma década.

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Podemos esperar outras funestas pragas"naturais"? Alguns especialistas têm sidotranqüilizadores sobre nossa provávelsuscetibilidade. Paul W. Ewald, por exemplo,observa que as migrações globais e aconseqüente mistura de povos ao longo doúltimo século nos expuseram a patógenos detodas as partes do mundo, mas houve somenteuma pandemia devastadora: o vírus HIV, daAids. Os outros vírus de ocorrência natural,como o ebola, não são duráveis o suficientepara gerar uma epidemia descontrolada. Noentanto, a avaliação levemente positiva deEwald deixa de lado o risco de algumasepidemias desencadeadas por bioerro ou porbioterror, e não pela natureza. O Clima Inconstante da Terra Tanto a mudança climática como a extinção deespécies caracterizaram a Terra ao longo desua história. Mas a primeira vem sendo, damesma forma que a segunda,

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assombrosamente acelerada por açõeshumanas. O clima passou por mudanças naturais emtodas as escalas de tempo, de décadas acentenas de milhões de anos. Mesmo na era dehistória registrada, o clima regional sofreuvariação evidente. Fazia mais calor no Norteda Europa mil anos atrás: havia assentamentosagrícolas na Groenlândia, onde animaispastavam em terras hoje cobertas de gelo; evinhedos floresciam na Inglaterra. Mas houveprolongados períodos de frio também. A ondade calor parece ter terminado por volta doséculo XV, para ser sucedida por uma"pequena idade do gelo" que perdurou até ofim do século XVIII. Há registros regulares dogelo no Tâmisa ficando tão espesso duranteboa parte daquele período que fogueiras eramacesas sobre ele; as geleiras nos Alpesavançavam. A "pequena idade do gelo" podefornecer pistas importantes para uma questãoperenemente controversa: se a variabilidade doSol poderia desencadear alterações no clima.

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Durante essa onda de frio, o Sol pareciacomportar-se de modo ligeiramente irregular:na segunda metade do século XVII e nosprimeiros anos do XVIII houve um misteriosoperíodo de setenta anos (agora conhecidocomo o mínimo de Maunder, em homenagemao primeiro cientista a perceber o fenômeno),no qual quase não havia manchas solares. Aatividade na turbulenta superfície do Sol —explosões, manchas solares, e assim por diante— normalmente se eleva a um pico e então caioutra vez, num ciclo que se repete de formabastante desordenada, mas, grosso modo, acada onze ou doze anos. As declarações de queesse ciclo afetava o clima datam de mais deduzentos anos, mas são ainda controversas. (Jáse afirmou que o ciclo econômico "segue" aatividade solar.) Há também quem diga que aextensão de um ciclo em particular — se estámais próximo de onze ou de doze anos — afetaa temperatura média. Ninguém entende bem como as manchassolares e a atividade de explosões (ou sua

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ausência) poderiam afetar o clima dessamaneira. As manchas solares estão ligadas aocomportamento magnético do Sol e àsexplosões que geram partículas rápidas queatingem a Terra. Tais partículas em si, noentanto, carregam apenas uma fração mínimada energia solar, mas deveríamos estar abertosà possibilidade de que algum "amplificador"na atmosfera superior possa dar-lhe acapacidade de desencadear mudançassubstanciais na camada de nuvens. Oscientistas com freqüência rejeitaram evidênciasque estavam bem diante de seus narizesporque, na época, não podiam imaginar comoexplicá-las. (Uma instância espetacular disso éa deriva continental. A costa da Europa e daÁfrica parece encaixar-se com a das Américas,como num quebra-cabeça, como se alguma vezessas massas terrestres tivessem sido unidas edepois se separado. Até os anos 1960 ninguémentendia como teria sido possível oscontinentes se moverem, e alguns geofísicosrenomados negavam a evidência de seus

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próprios olhos em vez de aceitar que omovimento continental poderia ter sidoinduzido por algum mecanismo que eles aindanão haviam sido astutos o suficiente paraimaginar.) Há outros efeitos ambientais no clima, taiscomo grandes erupções vulcânicas. A erupçãode 1815 do vulcão Tambora, na Indonésia,lançou cerca de cem quilômetros cúbicos depoeira na estratosfera, junto com gases que,combinados com água, se vaporizaram paracriar um aerossol de gotículas de ácidosulfúrico. Um tempo excepcionalmente frio noano seguinte, tanto na Europa como na NovaInglaterra, fez com que o ano de 1816 ficasseconhecido como "o ano sem verão". (MaryShelley escreveu sua fantasia góticaFrankenstein — o primeiro romance modernode ficção científica — durante o inverno fora deépoca daquele ano, enquanto passava umatemporada na mansão alugada de Byron àsmargens do lago Genebra.)

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Completamente inesperada foi uma mudançaatmosférica causada por humanos: aemergência do buraco de ozônio sobre aAntártica, provocada por reações químicas declorofluorcarbonetos (CFCS) na estratosferaque esgotaram a camada de ozônio. Umacordo internacional para acabar com os CFCSculpados, usados em latas de aerossol e nasubstância resfriadora em geladeirasdomésticas, diminuiu o problema: o buraco deozônio agora está se preenchendo. Mas naverdade tivemos sorte de esse problema tersido tão prontamente remediado. PaulCrutzen, um dos químicos que elucidaramcomo os CFCS agiam na atmosfera superior,observou que consistiu em um acidentetecnológico e um capricho da química aadoção, nos anos 1930, do fluido comercial derefrigeração baseado em cloro. Se em vez dissotivesse sido usado o bromo, os efeitosatmosféricos teriam sido mais rigorosos eduradouros. .

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Aquecimento Estufa Em contraste com o desgaste do ozônio, oaquecimento global devido ao chamado "efeitoestufa" é um problema ambiental para o qualnão há conserto rápido. Esse efeito surgeporque a atmosfera está mais transparente àluz solar incidente do que à "radiação de calor"infravermelha emitida pela Terra; o calor,portanto, é capturado, exatamente como numaestufa. O dióxido de carbono é um dos "gasesestufa" (o vapor de água e o metano sãooutros) que capturam o calor. O dióxido decarbono atmosférico já está 50% acima de seunível pré-industrial, por causa do crescenteconsumo de combustíveis fósseis. Há umconsenso de que esse acúmulo tornará omundo mais quente no século XXI do que eleseria normalmente, entretanto quão maisquente ainda não se sabe. O aumento principalde temperatura será provavelmente entre doise cinco graus. Poucos arriscariam prediçõesmais precisas; muitas advertências compostaspor cenários mais extremos não podem ser

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descartadas. Mesmo se o aumento fosse desomente dois graus, uma estimativa muitoconservadora, isso já poderia acarretar sériasconseqüências localizadas (por exemplo, maistempestades e outras formas de climaextremo). Não há nada muito favorável sobre o climaatual da Terra: é simplesmente algo com que acivilização humana se acomodou ao longo dosséculos, assim como fizeram os animais eplantas (tanto naturais como agrícolas) com osquais dividimos o espaço. A razão pela qual oiminente aquecimento global poderia serameaçadoramente perturbador é queacontecerá com muito mais rapidez do que asmudanças naturais no passado histórico;rápido demais para que as populaçõeshumanas e os padrões de uso da terra e davegetação natural se ajustem. O aquecimentoglobal pode ocasionar uma elevação no níveldo mar, um aumento severo das intempéries euma disseminação de doenças transmitidas pormosquitos para latitudes mais altas. O lado

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bom (de nossa perspectiva humana) é que oclima no Canadá e na Sibéria se tornará maistemperado. O aquecimento global constante ao ritmo dos"palpites mais conservadores" imporia custosem ajustes agrícolas, em defesas marítimas eem outras áreas, além de agravar as secas emalgumas regiões. A ação orquestrada porgovernos para reduzir o aquecimento globalcertamente é válida. Seria um exagero, porém,considerar um aumento de temperatura dedois ou três graus uma catástrofe global. Seriaum revés para o avanço econômico e causaria oempobrecimento de muitas nações. Períodosde fome em um país em geral são decorrentesda má distribuição de riqueza, mais do que dafalta generalizada de comida, e podem seramenizados por meio de ação governamental.Da mesma forma, as conseqüências dealterações climáticas poderiam ser amenizadas,e distribuídas mais eqüitativamente, medianteuma ação internacional. .

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A aparente diminuição do crescimentopopulacional é, obviamente, uma boa notíciano que se refere às projeções de aquecimentoglobal: menos gente quer dizer menos emissão.Mas há tanta inércia nos sistemas atmosféricose oceânicos que, o que quer que aconteça,parece provável que até 2100 tenhamos umaelevação de pelo menos dois graus natemperatura média. Quaisquer projeções maisdistantes no tempo dependem evidentementedo tamanho da população e de como aspessoas vivem e trabalham. Ainda mais, oprognóstico a longo prazo dependerá dasubstituição ou não de combustíveis fósseispor fontes alternativas de energia. Os otimistasesperam que isso aconteça automaticamente. Opropagandista ambiental antipessimismo BjornLomborg cita a máxima de um ministro dopetróleo saudita, para quem "a idade dopetróleo terminará, mas não por falta depetróleo, assim como a idade da pedraterminou, mas não por falta de pedras". Noentanto, a maior parte dos especialistas

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acredita que tetos impostos pelo governo àemissão de dióxido de carbono valem a penanão só por seu impacto direto, comoigualmente por atuarem como um estímulo aodesenvolvimento de fontes de energiarenováveis mais eficientes. Quais são as "piores hipóteses"? Para o grosso da população mundial, asposições ideológicas do século XX quenortearam as relações entre Oriente e Ocidentee motivaram o confronto nuclear eram umadistração irrelevante dos problemas imediatosdecorrentes da pobreza e dos riscosambientais. Às "ameaças sem inimigos" detodos os tempos (terremoto, tempestade e seca)devem agora ser adicionadas as ameaçascausadas pelo homem à biosfera e aos oceanos.A biosfera da Terra tem mudado sem cessar aolongo de sua história. Mas as mudançasglobais — poluição, perda de biodiversidade,aquecimento global etc. — não têmprecedentes em sua velocidade.

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Os problemas de degradação ambiental setornarão muito mais ameaçadores do que sãohoje. O ecossistema pode não ser capaz deajustar-se a eles. Ainda que o aquecimentoglobal ocorra na ponta mais lenta do espectroprovável, suas conseqüências — competiçãopor suprimento de água, por exemplo, emigrações em ampla escala — podemengendrar tensões desencadeadoras deconflitos internacionais e regionais, sobretudose eles forem excessivamente alimentados porcrescimento populacional contínuo. Alémdisso, tal conflito poderia ser agravado, talvezde modo catastrófico, pelas técnicas deperturbação cada vez mais eficazes com asquais a nova tecnologia está delegando poderaté mesmo a pequenos grupos. A interação entre a atmosfera e os oceanos étão complexa e incerta que não se podedescartar o risco de algo muito mais drásticodo que os "melhores palpites" sobre a taxa deaquecimento global. A elevação até 2100poderia até mesmo exceder os cinco graus.

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Pior, a mudança de temperatura pode não sedar somente cm proporção direta (ou"linear")ao aumento na concentração de dióxido decarbono. Quando algum nível limite éalcançado, pode haver uma "virada" súbita edrástica para um novo padrão de ventos e decirculação oceânica. A corrente do Golfo é parte de um sistema defluxo de águas conhecido como "correiatransportadora", pelo qual a água quente flui anordeste, em direção à Europa, perto dasuperfície, e volta, já fria, por maioresprofundidades. O derretimento do gelo daGroenlândia causaria a descarga de um imensovolume de água doce, que se misturaria com aágua salgada, diluindo e tornando-a tãoflutuante que não afundaria mesmo depois deesfriar. Essa injeção de água doce poderia,portanto, extinguir o padrão de circulação"termoalina" (controlado pela salinidade e pelatemperatura do oceano) que é crucial paramanter o clima temperado do Norte daEuropa. Se a corrente do Golfo fosse truncada

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ou revertida, a Bretanha e os países vizinhospoderiam ser mergulhados em invernos quaseárticos, como aqueles que atualmenteprevalecem em latitudes similares no Canadá ena Sibéria. Sabemos que mudanças desse tipo ocorreramno passado porque amostras retiradas dascamadas de gelo que recobrem a Groenlândia ea Antártica fornecem um tipo de registro fóssilde temperaturas: a cada ano gelo frescocongela por cima e esmaga as camadasanteriores. Resfriamentos drásticos emintervalos de décadas ou menos parecem teracontecido muitas vezes durante as últimascentenas de milhares de anos. O clima naverdade permaneceu excepcionalmente estávelao longo dos últimos 8 mil anos. Apreocupação está em que o aquecimento globalcausado pelo homem pode tornar a próxima"virada" muito mais iminente. "Reverter" a corrente do Golfo seria umdesastre para a Europa ocidental, emborapudesse haver alguma "vantagem", como

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compensação, em outro lugar. Outro cenário(assumidamente improvável) seria o chamado"efeito estufa em bola-de-neve", em quetemperaturas crescentes causam umaretroalimentação positiva que libera aindamais gás estufa. A Terra teria que estarsubstancialmente mais quente do que de fatoestá para correr qualquer risco de evaporaçãodesenfreada de água dos oceanos (vapor deágua sendo um gás estufa). Mas não podemosexcluir com tanta firmeza um descontroledevido à emissão de imensas quantidades demetano (pelo menos vinte vezes mais eficientedo que o dióxido de carbono como gás estufa)aprisionado no solo. Tal vazamento seria umdesastre global. Se pudéssemos ter absoluta certeza de quenada mais drástico do que mudanças "lineares"no clima pudessem ocorrer, seriatranqüilizador. A pequena chance de algorealmente catastrófico é mais preocupante doque a chance maior de eventos menosextremos. Nem mesmo as mais rigorosas

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mudanças climáticas concebíveis poderiamdestruir diretamente toda a humanidade, masas piores delas, acompanhadas por transiçõespara modelos climáticos muito mais variáveis eextremos, poderiam anular décadas de avançoeconômico e social. Mesmo uma chance de 1% de que mudançasatmosféricas causadas por humanos possamdesencadear uma transição climática extrema esúbita — e um meteorologista precisaria estarrealmente muito confiante para estimar umaprobabilidade tão baixa — é uma perspectivainquietante o suficiente para justificar medidasde precaução mais enérgicas do que aquelas jápropostas pelos acordos de Kyoto (que exigemque países industrializados reduzam suasemissões de dióxido de carbono para os níveisde 1990 até 2012). Uma ameaça dessa ordemseria cem vezes maior do que o risco basal decatástrofe ambiental ao qual a Terra estáexposta independentemente de açõeshumanas, referente a impactos de asteróides eeventos vulcânicos violentos.

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Concluo este capítulo com uma avaliaçãosóbria de Charles, o príncipe de Gales, cujasidéias são poucas vezes citadas com aprovaçãopelos cientistas: As ameaças estratégicas impostas porproblemas globais ambientais e dedesenvolvimento são o mais complexo,intrincado e potencialmente devastador detodos os desafios à nossa segurança. Oscientistas [...] não entendem completamente asconseqüências do nosso ataque multifacetadoao tecido entrelaçado de atmosfera, água, terrae vida com toda a sua diversidade biológica.As coisas poderiam terminar bem pior do queo melhor dos palpites científicos atuais. Emassuntos militares, a política há muito tem sebaseado na máxima de que deveríamos estarpreparados para a pior das hipóteses. Por quedeveria ser tão diferente quando a segurança éaquela do planeta e do nosso futuro a longoprazo? . .

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9. Riscos Extremos: Uma Aposta de Pascal É concebível que alguns experimentospudessem ameaçar a terra inteira. quão pertode zero deveria estar o risco declarado antesque tais experimentos sejam sancionados? O matemático e místico Blaise Pascal forneceuum argumento famoso para o comportamentodevoto: mesmo se você achasse extremamentepouco provável a existência de um Deusvingativo, seria prudente e racional comportar-se como se Ele existisse, porque vale a penapagar o preço (finito) de abrir mão de prazeresilícitos nesta vida como um "prêmio de seguro"para defender-se contra a menor probabilidadeque seja de algo infinitamente horrível — oFogo eterno — após a morte. Este argumentoparece ter pouca repercussão hoje, mesmoentre os crentes assumidos. A celebrada "aposta" de Pascal é uma versãoextrema do "princípio de precaução". Essalinha de raciocínio é amplamente invocada empolíticas ambientais e de saúde. Por exemplo,as conseqüências a longo prazo de plantas e

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animais geneticamente modificados para asaúde humana, e para o equilíbrio ecológico,são manifestamente incertas: um resultadodesastroso pode parecer improvável, mas nãopodemos dizer que seja impossível.Proponentes do princípio de precauçãoinsistem em que deveríamos agir com cuidado,e em que deveria pesar sobre os defensores damodificação genética o ônus de convencer oresto de nós de que tais temores sãoinfundados — ou, no mínimo, de que os riscossão pequenos o suficiente para seremultrapassados por benefícios específicos esubstanciais. Um argumento análogo é quedeveríamos abrir mão dos benefícios advindosdo consumo extravagante de energia, e assimreduzir as conseqüências deletérias doaquecimento global — sobretudo o pequenorisco de que suas conseqüências poderiam sermuito mais sérias do que a "melhor dashipóteses" sugere. O anverso das imensas perspectivas datecnologia está na crescente variedade de

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desastres potenciais, não só por má-fé, comotambém por um descuido inocente. Podemosimaginar eventos — embora improváveis —capazes de causar epidemias globais dedoenças fatais para as quais não há antídoto,ou mudar a sociedade de modo irreversível. Ea robótica e a nanotecnologia poderiam, alongo prazo, ser ainda mais ameaçadoras. Porém, não se descarta a possibilidade de afísica também ser perigosa. Algunsexperimentos são projetados para gerarcondições mais extremas do que podemacontecer naturalmente. Nesse caso, ninguémsabe exatamente o que acontecerá. Na verdade,não faria sentido desenvolver qualquerexperimento se seus resultados pudessem serde todo previstos de antemão. Para algunsteóricos, certos tipos de experimento poderiamdesencadear um processo do tipo bola-de-neveque destruiria não só a nós, como à própriaTerra. Tal evento parece muito menos prováveldo que as bio ou nanocatástrofes provocadaspor humanos que poderiam abater-se sobre

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nós durante este século; menos provável, defato, do que um gigantesco impacto deasteróide. No entanto, se tal desastre ocorresse,seria, em qualquer avaliação, pior do que"meramente" destruir a civilização, ou atémesmo destruir toda a vida humana. Elemotiva a questão de como quantificamos grausrelativos de horror, e que precauções deveriamser tomadas (por quem) contra ocorrências cujaprobabilidade pode parecer ínfima, mas quepoderiam acarretar uma calamidade "quaseinfinitamente má". Deveríamos abrir mão dealguns tipos de experimentos, pela mesmarazão pela qual Pascal recomendoucomportamento prudente? Arriscando a Terra Preocupações prometéicas desse tiporemontam ao projeto da bomba atômicadurante a Segunda Guerra Mundial.Poderíamos ter certeza absoluta, algunsquestionaram então, de que uma explosãonuclear não inflamaria toda a atmosfera ou os

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oceanos do mundo? Edward Tellercontemplou esse cenário já em 1942, e HansBethe fez um rápido cálculo que pareciatranqüilizador. Antes do teste "Trinity" em1945 da primeira bomba atômica no NovoMéxico, Teller e dois colegas consideraram aquestão num relatório de Los Alamos. Osautores se concentraram numa possível reaçãoem cadeia do nitrogênio atmosférico, eescreveram que "o único fator inquietante éque o 'fator de segurança' decrescerapidamente com a temperatura inicial". Essainferência levou a uma renovada preocupaçãonos anos 1950, porque bombas de hidrogênio(fusão) de fato geram temperaturas cada vezmaiores; outro físico, Gregory Briet, revisitou oproblema antes do primeiro teste da bomba H.Está agora claro que o "fator de segurança" realera na verdade muito grande. Mesmo assim,fica a dúvida de quão pequenas as estimativascontemporâneas desse fator deveriam ter sidoantes que os responsáveis achassem prudenteencerrar os testes com a bomba.

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Agora sabemos com certeza que uma únicaarma nuclear, por mais devastadora que seja,não pode desencadear uma reação nuclear emcadeia com capacidade de destruir porcompleto a Terra ou sua atmosfera. (Osarsenais inteiros dos Estados Unidos e daRússia, se fossem acionados, poderiam noentanto ter um efeito tão avassalador quantoqualquer desastre natural que poderia seresperado nos próximos 100 mil anos.) Masalguns experimentos de física desenvolvidospor razões de pura indagação científicapoderiam supostamente — ou pelo menosalguns afirmam — representar uma ameaçamundial, até mesmo cósmica. Essesexperimentos fornecem um interessante"estudo de caso" sobre quem deveria decidir (ecomo) sancionar ou não um experimento comum "porém" catastrófico que é muitoimprovável mas não de todo inconcebível,sobretudo quando os principais especialistaspodem não ter confiança suficiente em suas

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teorias para oferecer o nível convincente detranqüilização que o público poderia esperar. A maior parte dos físicos (e me incluo entreeles) classificaria essas ameaças como muito,muito improváveis. Mas é importante deixarclaro o que tal avaliação realmente significa.Há dois significados distintos deprobabilidade. O primeiro, que leva a umaestimativa firme e objetiva, se aplica quando omecanismo subjacente é bem compreendido,ou quando o evento sob estudo aconteceumuitas vezes no passado. Por exemplo, é fácilperceber que, quando uma moeda não viciadaé jogada dez vezes, a chance de se obterem dezcaras é um pouco menor do que uma em mil; ea chance de se pegar sarampo durante umaepidemia pode também ser quantificada,porque, mesmo que não entendamos todos osdetalhes biológicos da transmissão viral,dispomos de dados sobre muitas epidemiasanteriores. Há, entretanto, um segundo tipo deprobabilidade que não reflete mais do que umpalpite consciente que pode vir a mudar

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quando aprendermos mais. (As avaliações quediferentes especialistas fazem, por exemplo,das conseqüências do aquecimento global sãoestimativas de "verossimilhança subjetiva" detipo similar.) Numa investigação criminal, apolícia pode dizer que "parece muito provável"ou "é muito improvável" que um corpo estejaenterrado em determinado local. Mas issoreflete somente as probabilidades de apostaque eles forneceriam à luz da evidênciadisponível. Maiores escavações revelarão que ocorpo está ou não está ali, e a probabilidadedali em diante será um ou zero. Quando físicoscontemplam um evento que nunca aconteceuantes, ou um processo que é malcompreendido, qualquer avaliação que possamoferecer se parece com esse segundo tipo deprobabilidade: é um palpite consciente,sustentado (com freqüência muito fortemente)por teorias bem estabelecidas, contudo aindaassim abertas a revisão à luz de nova evidênciaou inspiração. .

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Nosso Experimento "Final"? Os físicos têm por objetivo compreender aspartículas de que o mundo é feito, assim comoas forças que as governam. Eles são loucospara explorar as energias, pressões etemperaturas mais extremas; para essepropósito, constroem máquinas imensas eelaboradas: aceleradores de partículas. Aforma ideal de produzir uma intensaconcentração de energia é acelerar átomos avelocidades enormes, perto daquela da luz, echocá-los entre si. O melhor de tudo é usarátomos muito pesados. Um átomo de ouro, porexemplo, contém quase duzentas vezes amassa de um átomo de hidrogênio. Seu núcleocontém 79 prótons e 118 nêutrons. Um núcleode chumbo é ainda mais pesado, com 82prótons e 125 nêutrons. Quando dois dessesátomos colidem um contra o outro, os prótonse os nêutrons que os constituem implodem auma densidade e a uma pressão muito maisaltas do que eles tinham quando estavam

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dispostos em um núcleo normal de ouro ou dechumbo. Eles podem, desse modo, quebrar-se empartículas ainda menores. De acordo com ateoria, cada próton e cada nêutron consistemde três quarks, então o "espirro" resultantelibera mais de mil quarks. Tais colisõesatômicas ultra-rápidas na verdade replicam,em microcosmo, aquelas que prevaleceram noprimeiro microssegundo após o "Big Bang",quando toda a matéria no universo foiesmagada em algo chamado plasma quark-glúon. Alguns físicos levantam a possibilidade de queesses experimentos poderiam fazer algo muitopior do que estraçalhar alguns átomos, comodestruir a nossa Terra ou mesmo o nossouniverso inteiro. Tal evento é o tema de COSM,romance de Greg Benford em que umexperimento no laboratório Brookhavendevasta o acelerador e cria um novo"microuniverso" (que permanece, felizmente,encapsulado dentro de uma esfera pequena o

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suficiente para ser carregada de um lado parao outro pelo pós-graduando que o criou). Um experimento que gera uma concentraçãosem precedentes de energia poderia — seriapossível, mas altamente implausível — acionartrês possibilidades bem diferentes de desastre. Talvez se formasse um buraco negro, queentão sugaria para dentro tudo o que houvesseem torno dele. Segundo a teoria darelatividade de Einstein, a energia necessáriapara fazer até o menor dos buracos negrosexcederia de longe o que essas colisõespoderiam gerar. Algumas novas teorias, noentanto, invocam outras dimensões espaciaisalém das nossas três costumeiras; umaconseqüência seria reforçar a atração dagravidade, tornando menos difícil do quepensávamos a implosão de um pequeno objetoem um buraco negro. Mas as mesmas teoriassugerem que tais buracos, não obstante, seriaminócuos, porque se erodiriam quaseinstantaneamente, em vez de arrastar paradentro mais coisas de seus arredores.

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A segunda possibilidade assustadora é que osquarks poderiam voltar a reunir-se num objetomuito comprimido chamado strangelet. Issoem si seria inofensivo: o strangelet seria muitomenor do que um único átomo. Porém, operigo é que um strangelet poderia, porcontágio, converter qualquer outra coisa queencontrasse numa nova forma estranha dematéria. No romance de Kurt Vonnegut, Cat'sCradle [Cama de gato], um cientista doPentágono produz uma nova forma de gelo,"gelo nove", que é sólido em temperaturascomuns; quando escapa do laboratório, isso"infecta" a água natural, e até os oceanos sesolidificam. Da mesma forma, um desastrehipotético com strangelets poderia transformartoda a Terra numa esfera inerte hiperdensa decerca de cem metros de largura. O terceiro risco dos experimentos de colisão éainda mais exótico, e potencialmente o maisdesastroso de todos: uma catástrofe que engulao próprio espaço. Espaço vazio — o que osfísicos chamam de "o vácuo" — é mais do que

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um nada. É a arena para tudo o que acontece:ele tem, latentes, todas as forças e partículasque governam nosso mundo físico. Algunsfísicos suspeitam que o espaço pode existir em"fases" diferentes, assim como a água podeexistir em três formas: gelo, líquido e vapor.Além do mais, o vácuo atual pode ser frágil einstável. A analogia aqui é com a água"super-resfriada". Quando muito pura e parada, aágua pode esfriar abaixo de seu ponto normalde congelamento; no entanto, basta umapequena perturbação localizada — porexemplo, um grão de poeira caindo nela —para desencadear a conversão de água super-resfriada em gelo. Igualmente, algunsespecularam que a energia concentrada criadacom o choque de partículas poderia acionaruma "transição de fase" que rasgaria o própriotecido do espaço. A fronteira do novo estilo devácuo se disseminaria como uma bolha emexpansão. Nessa bolha, átomos não poderiamexistir: seria "o pano que cai" para nós, para aTerra, e até para o cosmos mais amplo; ao li m,

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a galáxia inteira, e além dela, seria engolida. Enunca veríamos esse desastre chegar. A "bolha"de novo vácuo avança com a rapi- dez da luz enenhum sinal poderia nos avisar de nossodestino. Seria uma calamidade cósmica, não sóterrestre. Tais cenários podem parecer bizarros, mas osfísicos os discutem com seriedade. As teoriasmais favorecidas são tranquilizadoras: elassugerem que o risco é zero. Mas não podemosestar 100% certos sobre o que poderia comefeito acontecer. Os físicos podem imaginarteorias alternativas (e até escrever equações)condizentes com tudo o que sabemos, razãopela qual não podem ser definitivamentedescartadas, porém isso permitiria que uma ououtra dessas catástrofes acontecesse. As teoriasalternativas podem não estar na linha defrente, mas será que são tão inacreditáveis quenão precisamos nos preocupar com elas? Já em 1983, os físicos estavam se interessandopor experimentos de alta energia desse tipo.Em visita ao Instituto para Estudo Avançado

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em Princeton, discuti essas questões com umcolega holandês, Piet Hut, que também estavavisitando Princeton e em seguida se tornouprofessor lá. (O estilo acadêmico desseinstituto, onde Freeman Dyson é professor hámuito tempo, estimula idéias originais eespeculações.) Eu e Hut percebemos que umaforma de conferir se um experimento é seguroseria ver se a natureza já o fez para nós.Aconteceu de colisões similares àquelas emplanejamento pelos experimentadores de 1983serem de ocorrência comum no universo. Ocosmos inteiro é permeado por partículasconhecidas como raios cósmicos que se lançampelo espaço quase à velocidade da luz; essaspartículas com freqüência se chocam contraoutros núcleos atômicos no espaço, comviolência até maior do que poderia ser atingidaem qualquer experimento atualmente viável.Eu e Hut concluímos que o espaço vazio nãopode ser frágil a ponto de ser rasgado porqualquer coisa feita pelos físicos em seusexperimentos com aceleradores. Se assim fosse,

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o universo não teria durado o suficiente paraque estivéssemos aqui. No entanto, se essesaceleradores se tornassem cem vezes maispotentes — algo que limitações financeirasainda impedem, mas que pode ser possível senovos projetos inteligentes foremdesenvolvidos —, então tais preocupaçõesressuscitariam, a não ser que nesse meio-temponossa compreensão tenha avançado osuficiente para permitir que façamos previsõesmais seguras e mais tranquilizadoras em basessomente teóricas. Os velhos medos voltaram à tona maisrecentemente quando o Brookhaven NationalLaboratory nos Estados Unidos e o laboratórioCern em Genebra anunciaram seus planos dechocar átomos uns contra os outros com aindamais força do que fora feito antes. O diretor doBrookhaven Laboratory na época, JohnMarburger (agora conselheiro científico dopresidente Bush), pediu que um grupo deespecialistas estudasse o assunto. Eles fizeramum cálculo semelhante ao obtido por mim e

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por Hut e garantiram que não havia ameaça deum Juízo Final cósmico desencadeado por umrasgão no tecido do espaço. Mas os físicos não puderam ser tãotranqüilizadores sobre o risco dos strangelets.Colisões com a mesma energia com certezaocorrem no cosmos, mas sob condições quediferem em aspectos relevantes daquelas dosexperimentos terrestres planejados; essasdiferenças poderiam alterar a possibilidade deum processo descontrolado. A maior parte das colisões cósmicas "naturais"se dá no espaço interestelar, num ambiente tãorarefeito que, mesmo que produzissem umstrangelet, seria pouco provável que eleencontrasse um terceiro núcleo, então nãohaveria chance de um processo do tipo bola-de-neve. Colisões com a Terra também diferemessencialmente daquelas em aceleradoresporque os núcleos que chegam são paradospela atmosfera, que não contém átomospesados como o chumbo e o ouro. .

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Alguns núcleos de movimento rápido, porém,batem direto na superfície sólida da Lua, quenão contém esses átomos. Tais impactosocorreram ao longo de toda a sua história. Masa Lua ainda está lá, e os autores do relatório doBrookhaven proferiram esse fato incontestávelcomo garantia de que o experimento propostonão poderia acabar conosco. Só que mesmoesses impactos diferem de uma forma talvezimportante daqueles que ocorreriam noacelerador do Brookhaven. Quando umapartícula rápida se choca contra a superfície daLua, ela bate num núcleo que está quase emrepouso e lhe dá um "chute" ou um coice. Osstrangelets resultantes, produzidos comodetritos na colisão, repartiriam o movimentode coice e, como conseqüência, seriamlançados através da matéria lunar. Emcontraste, os experimentos de aceleradorenvolvem colisões simétricas, em que duaspartículas se aproximam uma da outra "defrente". Então não há coice: os strangelets não

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têm movimento líquido e poderiam, por isso,ter maior chance de agarrar matéria ambiente. Dado que o experimento geraria condições quenunca aconteceram naturalmente, a únicagarantia provinha de dois argumentos teóricos.Primeiro, mesmo se os strangelets pudessemexistir, os teóricos achavam improvável queeles se formassem nessas colisões violentas:parecia mais provável que os dejetos sedispersassem após a colisão, em vez dereagrupar-se num único aglomerado. Segundo,se os strangelets se formassem, os teóricosesperariam que tivessem uma carga elétricapositiva. Por outro lado, para desencadear umcrescimento em cadeia, sua carga teria que sernegativa (para que pudessem atrair, em vez derepelir, núcleos atômicos com carga positivaem seus arredores). Os melhores palpites teóricos são, portanto,tranqüilizadores. Sheldon Glashow, umteórico, e Richard Wilson, um especialista emenergia e em questões ambientais,sucintamente resumiram assim a situação:

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Se os strangelets existem (o que é concebível),se eles formam aglomerados razoavelmenteestáveis (o que é improvável), se eles têm carganegativa (embora a teoria favoreça fortementecargas positivas), e se minúsculos strangeletspodem ser criados no Colididor Relativísticode Ions Pesados [do Brookhaven] (o que éextremamente improvável), então talvezpudesse haver aí um problema. Um strangeletrecém-nascido poderia engolir núcleosatômicos, crescendo de modo inexorável e aofim consumindo a Terra inteira. A palavra"improvável", não importa quantas vezes sejarepetida, simplesmente não basta para mitigarnossos temores desse desastre total. Que riscos são aceitáveis? Os experimentos com acelerador não metiraram o sono. Na verdade, não sei denenhum físico que tenha deixado escapar amenor ansiedade sobre eles. No entanto, essasatitudes são pouco mais do que avaliaçõessubjetivas, com base em algum conhecimento

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da ciência relevante. Os argumentos teóricosdependem de probabilidades e não de certezas,como Glashow e Wilson deixam bem claro.Não há evidência de que as mesmas condiçõestenham alguma vez ocorrido naturalmente. Éimpossível ter certeza absoluta de questrangelets não poderiam levar a um desastredo tipo bola-de-neve. O relatório do Brookhaven (e um esforçoparalelo empreendido por cientistas do maioracelerador europeu, Cern, em Genebra) foiapresentado como tranqüilizador. Porém,mesmo se aceitássemos completamente seuraciocínio, o nível de confiança proporcionadonão parece suficiente. Eles estimaram que, se oexperimento fosse realizado durante dez anos,o risco de uma catástrofe não seria mais de umem 50 milhões. Tal probabilidade poderiaparecer impressionante: uma chance dedesastre menor do que a chance de ganhar aloteria nacional do Reino Unido com um únicobilhete, que é cerca de uma em 14 milhões.Mas, se o porém é a destruição da população

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mundial e o benefício é apenas para a ciência"pura", isso não basta. A forma natural demedir a severidade de uma ameaça émultiplicar sua probabilidade pelo número depessoas em perigo, para calcular o "númeroesperado" de mortes. A população inteira domundo estaria em perigo, então osespecialistas estavam nos dizendo que onúmero esperado de mortes humanas (nessesentido técnico de "esperado") poderia chegar a120 (o número obtido quando se considera apopulação do mundo em 6 bilhões e a dividepor 50 milhões). Obviamente, ninguém argumentaria a favor defazer um experimento de física sabendo queseu "desdobramento" poderia matar até 120pessoas. Isso não é, obviamente, o que nosdisseram neste caso: foi-nos dito que poderiahaver até uma chance em 50 milhões de matar6 bilhões de pessoas. Será que essa perspectivaé mais aceitável? A maior parte de nós, achoeu, continuaria desconfortável. Somos maistolerantes com riscos aos quais nos expomos de

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livre e espontânea vontade, ou se identificamosalgum benefício que compense. Nenhumadessas condições cabe aqui (exceto paraaqueles físicos que estão realmenteinteressados no que poderia ser aprendido doexperimento). Meu colega de Cambridge Adrian Kentenfatizou um segundo fator: o caráterdefinitivo e completo da extinção que essecenário acarretaria. Ela nos privaria daexpectativa — importante para a maior partede nós — de que algum legado biológico oucultural sobrevivesse a nossas mortes; acabariacom a esperança de que nossas vidas e nossostrabalhos possam ser parte de algum processocom continuidade. Ainda pior, impediria aexistência de um número total (talvez muitomaior) de pessoas em gerações futuras.Eliminar toda a gente do mundo (e destruirnão só humanos, mas a biosfera inteira)poderia ser considerado muito mais do que 6bilhões de vezes pior do que a morte de umapessoa. Então talvez devêssemos determinar

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um limite ainda mais rigoroso no risco possívelantes de sancionar tais experimentos. Filósofos há muito debatem como equilibrar osdireitos e os interesses de "pessoas potenciais",que poderiam ter alguma existência futura,contra aqueles das pessoas que de fato existem.Para alguns, como Schopenhauer, a eliminaçãoindolor do mundo não seria um mal de todo.Mas a maior parte de nós estaria maissintonizada com a resposta de Jonathan Schell: Ao mesmo tempo que é verdade que a extinçãonão pode ser sentida por aqueles que a têmcomo destino — os não-nascidos, quepoderiam permanecer não-nascidos —, omesmo não pode ser dito, é claro, para aalternativa à extinção, a sobrevivência. Seprivarmos os não-nascidos da vida, eles nuncaterão a chance de lamentar sua sina, mas se osdeixarmos entrar na vida eles terãooportunidade de sobra para regozijar-se de ternascido em vez de, antes de seu nascimento,ter sido privados por nós da existência. O quedevemos desejar acima de tudo é que gente

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nasça, para seu próprio bem e não porqualquer outra razão. Qualquer outra coisa —nosso desejo de servir as gerações futuraspreparando um mundo decente no qualpossam viver, e nosso desejo de levarmos nósmesmos uma vida decente num mundocomum assegurado pela proteção das geraçõesfuturas — decorre desse compromisso. A vidavem em primeiro lugar, o resto é secundário. Quem deveria decidir? Nenhuma decisão de seguir adiante com umexperimento que envolva uma possibilidadede "Juízo Final" deveria ser tomada a não serque o público em geral (ou um gruporepresentativo dele) esteja satisfeito com acontingência de o risco estar aquém do quecoletivamente é visto como um limite aceitável.Os teóricos neste episódio parecem ter buscadotranqüilizar o público sobre uma preocupaçãoque eles consideravam pouco razoável, em vezde fazer uma análise objetiva. O público temdireito a salvaguardas mais efetivas do que

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esta. Não basta fazer uma estimativa "nascoxas" mesmo que seja sobre o mais minúsculorisco de destruir o mundo. Francesco Calogero é um dos poucos aconsiderar a questão com ponderação. Ele éum físico, e também um ativista de longa datapara o controle de armas, além de ex-secretário-geral das conferências Pugwash.Calogero exprime sua preocupação da seguintemaneira: Estou de certa forma perturbado com o quecreio ser a falta de franqueza em discutir essesassuntos... Muitos, na verdade a maioria[daqueles com quem conversei em particular etroquei mensagens], parece mais preocupadacom o impacto de relações públicas daquiloque eles próprios ou outros dizem ou escrevemdo que em garantir que os fatos sejamapresentados com completa objetividadecientífica. Como deveria a sociedade defender-se contra ofato de ser exposta sem saber a um risco quase-zero de um evento com um senão quase

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infinito? Calogero sugere que nenhumexperimento que possa de alguma formaconter tais riscos deveria ser aprovado sem umexercício prévio, de um tipo conhecido deanálises de riscos em outros contextos,envolvendo uma "Equipe Vermelha" deespecialistas (que não incluiria ninguém dogrupo que propôs o experimento) que faria àsvezes de advogado do diabo, tentando pensarno pior que pudesse acontecer, e uma "EquipeAzul" que tentaria pensar em antídotos oucontra-argumentos. Quando o propósito é explorar condições nasquais a física é "extrema" e muito malconhecida, é difícil pôr qualquer coisa de ladocompletamente. É possível ter certezasuficiente de nosso raciocínio para oferecertranqüilização com nível de confiança de 1milhão, 1 bilhão ou até mesmo 1 trilhão paraum? Argumentos teóricos raramente podemfornecer consolo adequado a esse nível: elesnunca podem ser mais sólidos do que ospressupostos nos quais se baseiam, e somente

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teóricos dotados de uma superconfiançairrefletida apostariam chances de 1 bilhão emum na validade de suas suposições. Mesmo se um número verossímil pudesse seratribuído à probabilidade de um resultadocatastrófico, a questão permanece: quão baixodeveria ser o risco suposto antes quepudéssemos dar nosso consentimentoesclarecido a esses experimentos? Não hábenefício específico de compensação para oresto de nós, então o nível seria certamentemais baixo do que os experimentadorespoderiam aceitar de bom grado para si. (Seriatambém muito mais baixo do que o risco dedevastação nuclear que os cidadãos poderiamter aceitado durante a Guerra Fria, com baseem sua avaliação pessoal do que estava emjogo). Alguns argumentariam que uma chanceem 50 milhões é baixa o suficiente, porque estáabaixo da chance de que no próximo ano umasteróide grande o bastante para causar adevastação global atinja a Terra. (Isso é comoargumentar que o efeito carcinogênico

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adicional de radiação artificial é aceitável senão faz mais do que dobrar o risco de radiaçãonatural.) Mas mesmo esse limite não parecerigoroso o suficiente. Podemos nos resignar aum risco natural (como asteróides oupoluentes naturais) sobre o qual não podemosfazer muito, todavia isso não quer dizer quedeveríamos consentir em um risco adicionalevitável de igual magnitude. Na verdade,sempre que possível são feitos esforços parareduzir os riscos muito abaixo daquele nível. Épor isso, por exemplo, que vale a pena algumesforço para melhorar o risco de impacto deum asteróide. As normas governamentais do Reino Unidosobre riscos de radiação consideram inaceitávelque mesmo o limitado grupo de trabalhadoresem uma usina nuclear arrisque mais do queuma chance em 100 mil por ano de morrerdevido a efeitos de exposição a radiação. Seesse critério avesso ao risco fosse aplicado aoexperimento do acelerador, considerando apopulação mundial em perigo mas aceitando

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um número máximo de mortes igualmenterigoroso, exigiríamos uma garantia de que achance de catástrofe fosse abaixo de uma emmil trilhões (10-15). Se o mesmo peso fosseatribuído à vida de todas as pessoas potenciaisque possam algum dia existir — uma posiçãofilosoficamente controversa, é claro —, entãoseria possível argumentar que o risco tolerávelseria até 1 milhão de vezes mais baixo. O Custo Oculto de Dizer Não Isso leva a um dilema. A política de precauçãomais extrema proibiria qualquer experimentoque criasse condições artificiais novas (a menosque soubéssemos que as mesmas condições jáhouvessem sido criadas naturalmente emalgum lugar). Mas isso travaria a ciência porcompleto. Decerto que a produção de um novotipo de material — um novo produto químico,por exemplo — não deveria ser banida: temosa certeza esmagadora de que, em tal caso,entendemos os princípios básicos. Mas, assimque chegarmos ao limite do perigo, quando a

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criação resulta, digamos, num novo patógeno,então talvez devêssemos dar uma parada. Eexperimentos de física em energiasextremamente altas quebram núcleos atômicosem componentes que não são bemcompreendidos, então, mais uma vez, talvezdevêssemos dar uma parada aqui também. Há uma penumbra nos casos em que, setivéssemos que voltar atrás, seria necessáriaalguma precaução. Por exemplo, geladeiras emlaboratórios científicos normalmente usamhélio líquido para criar temperaturas dentro deuma fração de grau do zero absoluto (-273graus centígrados). Nenhum lugar da natureza— nem na Terra, nem (acreditamos) em outrolugar do universo — é tão frio: tudo é aquecidoa quase três graus acima do zero absoluto pelasfracas microondas que constituem vestígios doinício denso e quente do universo, ocrepúsculo da criação. O dr. Peter Michelson,da Universidade de Stanford, construiu umdetector para ondas cósmicas gravitacionais, asleves ondulações na estrutura do próprio

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espaço que, de acordo com as previsões dosastrônomos, deveriam ser geradas porexplosões cósmicas. Esse instrumento consistiade uma barra de metal pesando mais de umatonelada, resfriada quase a zero absoluto a fimde reduzir as vibrações de calor. Ele adescreveu como "o grande objeto mais frio douniverso, não só da Terra". É bem possível quetodo esse orgulho tenha sido exato (a não serque extraterrestres tenham feito experimentossimilares). Deveríamos realmente ter nos preocupadoquando a primeira geladeira de hélio líquidofoi ligada? Acho que sim. É verdade que nãohavia teorias na época que apontassem para aexistência de qualquer perigo. Mas isso podeter sido só falta de imaginação: há algumasteorias atuais (reconhecidamente muitoimprováveis) que prevêem um risco genuíno,mas quando temperaturas extremamentebaixas foram atingidas pela primeira vez asincertezas eram muito maiores, e com certezaos físicos não poderiam ter afirmado com

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confiança que a probabilidade de catástrofe eramenor do que uma em 1 trilhão. Você poderiasugerir probabilidades tão extremas contra apossibilidade de que o Sol não nasça amanhã,ou de que um dado não viciado caia no seiscem vezes seguidas. Esses casos, contudo,dependem de princípios físicos e matemáticosque são facilmente compreensíveis e que sãosustentados por fortes "testes de campo". Ao decidir sancionar alguma novamanipulação em nosso ambiente, precisamosperguntar: há de fato uma compreensãoprofunda e firme para que possamos rejeitaruma catástrofe com um nível de confiança quenos tranqüilize? Não se pode discordar docomentário de Adrian Kent: Obviamente é insatisfatório que a questão doque constitui um risco aceitável de catástrofedeva ser decidida, de forma ad hoc, de acordocom os critérios de risco particulares daquelesque calham de ser consultados — aquelescritérios, mesmo que sinceros e construídos

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com ponderação, podem não ser represen-tativos da opinião geral. Procedimentos sem objetivo específico além deproporcionar maior compreensão da naturezae satisfazer nossa curiosidade deveriam sersubmetidos a exigências de segurança muitorigorosas. Mas poderíamos concordar quedecisões mais arriscadas fossem tomadas emnosso nome se houvesse algum benefício emcompensação, sobretudo se for grande eurgente. Por exemplo, abreviar a SegundaGuerra Mundial quase com certeza estava namente de Hans Bethe e Edward Teller quandoeles calcularam se a primeira bomba atômicaincineraria a atmosfera inteira. Com tanto emjogo, eles poderiam com propriedade terseguido adiante mesmo sem o nível desegurança ultra-alto que esperaríamos antes desancionar um experimento acadêmico emtempos de paz. Os experimentos com acelerador destacam umdilema com o qual nos confrontaremos cadavez com mais freqüência em outras ciências: a

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quem cabe decidir (e como) se um novoexperimento deve ir adiante se um resultadodesastroso é concebível mas visto como muito,muito improvável? Eles fornecem um "caso-teste" interessante que nos força a nosconcentrar — num contexto muito maisextremo do que qualquer experimentobiológico — cm como avaliar situaçõesassimétricas quando o resultado seráprovavelmente muito útil e positivo, mascercado pela possibilidade (ainda que muitoimprovável) de ser absolutamente desastroso.O episódio australiano da varíola murina, quejá discuti, mostrou num microcosmo o quepoderia acontecer se, mesmoinvoluntariamente, um patógeno perigosofosse criado e solto. Mais adiante no século,micromáquinas não biológicas podem ser tãopotencialmente perigosas quanto vírus à solta,e uma derradeira "situação de gosma cinzenta"à moda de Drexler pode não mais parecerficção científica. .

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Mesmo o "porém" do pior experimentobiológico concebível nunca poderia ser tãomau quanto o experimento do acelerador, vistoque a Terra inteira não estaria em perigo. Masnos campos da biologia e da nanotecnologia —em contraste com aqueles que usam imensosaceleradores de partículas —, os experimentossão menores em escala, portanto é provávelque sejam feitos em quantidades muitomaiores, e com variedade muito maior.Precisamos de garantias de que nem sequerum deles saia desastrosamente errado. Se 1milhão de experimentos fossem serdesenvolvidos em separado — 1 milhão dechances de desastre —, então o risco tolerávelpara cada um deles seria muito mais baixo doque para um experimento levado a cabo "deuma vez". Quantificar essas considerações numnúmero real exigiria uma estimativa dobenefício provável. Riscos maiores seriamaceitos em experimentos que fossem essenciaisa um programa que pudesse manifestamentesalvar milhões de vidas. Os riscos impostos

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pela ciência são às vezes parceiros necessáriosdo progresso: se não aceitamos algum risco,podemos abrir mão de grandes benefícios. Uma linha específica de argumentação é usadana avaliação tlc risco, com resultados que sãomuitas vezes indevidamente otimistas. Umacidente de peso, por exemplo a destruição deum avião ou de uma nave espacial, podeocorrer de inúmeras formas diferentes, cadauma das quais requerendo uma série completade contratempos (por exemplo, a falhacombinada ou sucessiva de várioscomponentes). O padrão de riscos pode serexpresso como uma"árvore de falhas"; asprobabilidades contrárias a cada um sãocombinadas, assim como se multiplicam aschances ao apostar numa combinação devencedores numa corrida de cavalos (embora aaritmética seja um pouco mais complicadaporque pode haver vários tipos diferentes defalha, e os contratempos podem sercorrelacionados de uma maneira como osresultados de corridas distintas de cavalos não

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são). Tais cálculos podem ignorar alguns tiposde falhas cruciais, e portanto fornecer umafalsa sensação de tranqüilidade. O ônibusespacial era considerado seguro o bastante, deforma que o risco para sua tripulação seriamenos de um em mil. Mas a explosão de 1986aconteceu durante seu 25º vôo (e o décimo vôodo veículo de lançamento Challenger). Emretrospecto, chances de um em 25 teriam sidoum chute melhor. Igualmente, é preciso atentarpara as estimativas dadas para vários tipos depercalços com usinas nucleares, que sãocalculadas de modo semelhante. Para ajustar um risco minúsculo para a Terrainteira, multiplicamos uma probabilidademuito pequena por um número colossal,análogo aos eventos mais extremos de impactode asteróides na escala Torino. Aprobabilidade nunca é realmente zero porquenosso conhecimento fundamental de físicabásica é incompleto; mas, ainda que ela fossede fato muito pequena, quando multiplicada

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por um risco colossal, o produto poderia sergrande o suficiente para causar preocupações. Quando um aspecto negativo potencialmentecatastrófico é concebível — não só emexperimentos com aceleradores, como tambémna genética, na robótica e na nano tecnologia—será possível que cientistas dêem a garantiaultraconfiante que o público pode exigir?Quais deveriam ser as diretrizes de taisexperimentos, e quem deveria formulá-las?Acima de tudo, mesmo que haja concordânciasobre as diretrizes, como elas podem serimplementadas? À medida que o poder daciência cresce, esses riscos se tornarão,acredito, mais variados e difusos. A despeitode que cada risco seja pequeno, eles poderiamchegar a um perigo cumulativo substancial. 10. Os Filósofos do Juízo Final Será o puro pensamento capaz de nos dizer seos anos da humanidade estão contados? Algumas vezes os filósofos fazem uso deargumentos engenhosos que podem parecer

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decisivos para uns, mas um mero jogo depalavras para outros, ou uma prestidigitaçãointelectual, embora não seja fácil detectar afalha. Há um argumento filosófico modernosegundo o qual o futuro da humanidade édesolador, que pode parecer pertencer a essacategoria dúbia, mas que (com reservas)resistiu a uma boa dose de escrutínio. Oargumento foi inventado por meu amigo ecolega Brandon Cárter, um pioneiro no uso doque se costuma chamar em ciência de princípioantrópico, a idéia de que as leis que governamo universo devem ter sido bem especiais paraque a vida e a complexidade tenham emergido.Ele inicialmente apresentou esse argumento,para assombro de sua audiência acadêmica,numa conferência organizada pela RoyalSociety de Londres em 1983. A idéia naverdade não passava de uma reflexão numapalestra que discutia a probabilidade de que avida viria a evoluir em planetas que orbitamoutras estrelas. Ela levou Carter a concluir quea vida inteligente era rara em outras partes do

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universo, e que, a despeito de que o Sol iriacontinuar a brilhar por bilhões de anos, ofuturo a longo prazo da vida era desolador. Esse "argumento do Juízo Final" depende deum tipo de "princípio copernicano" ou"princípio de mediocridade" aplicado à nossaposição no tempo. Desde Copérnico, negamosa nós mesmos uma posição central nouniverso. Da mesma forma, segundo Carter,não deveríamos pressupor que estamosvivendo um momento especial na história dahumanidade, nem entre os primeiros nementre os últimos de nossa espécie. Considerenosso lugar na "lista de chamada" do Homosapiens. Conhecemos nosso lugar apenasgrosseiramente: a maior parte das estimativassugere que o número de seres humanos quenos precederam gira em torno de 60 bilhões,então nosso número na lista de chamada estáperto disso. Uma conseqüência desse dado éque 10% das pessoas que já viveram estãovivas hoje. À primeira vista, parece umaproporção extraordinariamente alta, dado que

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ahumanidade remonta a milhares de gerações.Contudo, é provável que, pela maior parte dahistória humana — toda a era pré-agrícolaantes (talvez) de 8000 a.C. —, houvesse menosde 10 milhões de pessoas no mundo. Nostempos romanos, a população mundial estavaperto dos 300 milhões, e somente no século XIXé que ela passou de 1 bilhão. Os mortos sãomais numerosos do que os vivos, porémsomente por um fator de 10. Agora considere dois cenários diferentes parao futuro da huinanidade: um "pessimista", emque nossa espécie definha daqui a um ou doisséculos (ou, se sobrevive mais do que isso, temuma população muito reduzida), de maneiraque o número total de humanos que terãoexistido é 100 bilhões; e um cenário "otimista",em que a humanidade sobrevive por muitosmilênios com pelo menos a população atual(ou talvez chegue a espalhar-se muito além daTerra com uma população cada vez maior), demodo que trilhões de pessoas estejamdestinadas a nascer no futuro. Brandon Carter

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defende que o "princípio da mediocridade"deveria nos levar a apostar no cenário"pessimista". Nosso lugar na lista de chamada(mais ou menos no meio) é completamenteprevisível e típico, enquanto no cenário"otimista", em que uma população numerosapersiste no futuro, aqueles que vivem noséculo XXI estariam no princípio da lista dechamada da humanidade. Uma simples analogia demonstra a essência doargumento. Suponha que lhe mostrem duasurnas idênticas: você é informado de que umacontém só dez bilhetes, numerados de 1 a 10, eque a outra contém mil bilhetes, numerados de1 a 1000. Suponha que você escolha uma dasurnas, tire um bilhete e veja que tirou onúmero 6. Com certeza você concluiria que omais provável é que o número sorteado tivessesido retirado da urna que continha dezbilhetes: seria muito surpreendente tirar umnúmero pequeno como 6 da urna com milbilhetes. De fato, se você tivesse probabilidadesiguais, a priori, de escolher qualquer uma das

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urnas, um simples argumento deprobabilidade mostra que, tendo tirado onúmero 6, as chances são agora de cem paraum de que você tenha na verdade optado pelaurna contendo apenas dez bilhetes. Carter defende, na mesma linha do caso dasduas urnas, que nosso lugar conhecido na listade chamada dos humanos (cerca de 60 bilhõesde seres humanos nos precederam) inclina oargumento a favor da hipótese de que haverásomente 100 bilhões de humanos, edesfavoreceria a suposição alternativa de quehaverá mais de 100 trilhões. Então oargumento sugere que a população do mundonão pode continuar por muitas gerações emseu nível atual; ela deve diminuirgradualmente, e ser sustentada num nível bemmais baixo do que no presente, ou umacatástrofe vai acabar com nossa espécie dentrode poucas gerações. Um argumento ainda mais simples foi usadopor Richard Gott, professor na Universidadede Princeton com um histórico dc trinta anos

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de idéias malucas mas originais sobrelocomoção mais rápida do que a luz, máquinasdo tempo e afins. Se dermos com algum objetoou fenômeno, é pouco provável que o façamostão perto do início de sua vida, nem muitoperto de seu fim. Logo, é justo pressupor quealgo que já seja antigo durará por muito tempono futuro, e não se deveria esperar que algo deorigem recente fosse tão durável. Gottrelembra, por exemplo, que em 1970 ele visitouo muro de Berlim (então com doze anos deidade) e as pirâmides (com mais de 4 mil anosde idade); seu argumento teria previsto(corretamente) que o mais provável era que aspirâmides ainda estariam de pé no século xxi;mas não seria surpreendente se o mesmo nãoocorresse com o muro de Berlim (e, é claro, elejá se foi). Gott chegou a mostrar como o argumento seaplicava a espetáculos da Broadway. Ele fezuma lista de todas as peças e musicais emcartaz na Broadway num dia específico (27 demaio de 1993) e descobriu quanto tempo fazia

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que cada um deles estava sendo apresentado.Com base nisso, Gott previu que aqueles queestavam em cartaz havia mais temposobreviveriam a um futuro mais distante. Catsestava em cartaz havia 10,6 anos, e continuoupor outros sete anos. A maior parte dosdemais, em cartaz havia menos de um mês, foiencerrada em poucas semanas. É evidente que a maioria de nós poderia terfeito todas as previsões de Gott sem empregarsua linha de argumentação, a partir de nossafamiliaridade com história básica, com arobustez e a durabilidade gerais de artefatos detipos diferentes, e assim por diante. Tambémsabemos alguma coisa sobre os gostos dosnorte-americanos e a economia do teatro.Quanto mais informação de fundo tivermos,mais confiantes podem ser nossas previsões.Mas mesmo um alienígena recém-chegado,desprovido desse conhecimento, que nãosoubesse nada exceto o tempo de existênciados vários fenômenos, poderia usar oargumento de Gott para fazer algumas

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previsões cruas mas corretas. E é claro que aduração futura da humanidade é algo arespeito do que somos tão ignorantes quantoqualquer marciano seria sobre a sociologia deespetáculos da Broadway. Portanto, o que Gottdefende, seguindo Cárter, é que essa linha deraciocínio pode nos dizer algo — na verdade,algo pouco animador — sobre a longevidadeprovável de nossa espécie. É óbvio que o futuro da humanidade não podeser reduzido a um simples modelomatemático. Nosso destino depende de fatoresmúltiplos, acima de tudo — um tema centraldeste livro — de escolhas que nós mesmosfazemos durante o século presente. O filósofocanadense John Leslie segue a linha de que oargumento do Juízo Final não deixa de afetaras probabilidades: ele deveria nos tornarmenos otimista sobre o futuro a longo prazo dahumanidade do que seríamos de outra forma.Se pensássemos, a priori, que fosseesmagadoramente provável a humanidadecontinuar por milênios com uma população

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elevada, então o argumento do Juízo Finalreduziria a nossa confiança, embora talvezainda acabássemos por favorecer esse cenário.Isso pode ser compreendido com ageneralização do exemplo da urna. Vamossupor que, em vez de só duas urnas, houvessemilhões de urnas contendo cada uma milbilhetes e que somente uma contivesse apenasdez. Então, se você escolhe uma urna ao acaso,ficaria surpreso em tirar um 6. No entanto, sehouvesse milhões de urnas "de mil bilhetes",seria menos surpreendente ter tirado umnúmero estranhamente baixo de uma delas doque ter escolhido a única urna com dezbilhetes. Da mesma forma, se a probabilidade aprincípio favorece fortemente um futuroprolongado para a humanidade, então "ruínalogo" poderia ser menos provável do que nosencontrarmos muito no início da lista dechamada da humanidade. Leslie solucionaria assim outro enigma quepode parecer negar toda a linha deargumentação. Suponha que tivéssemos de

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tomar uma decisão fatídica que determinariase a espécie se extinguiria em breve ou, aocontrário, se ela sobreviveria quaseindefinidamente. Por exemplo, poderiaconsistir na escolha de estimular a primeiracomunidade fora da Terra que, uma vezestabelecida, geraria tantas outras que algumadelas teria a garantia de sobreviver. Se talcomunidade fosse de fato estabelecida eflorescesse, nos encontraríamos neste momentono início extremo da lista de chamada. Seráque o argumento do Juízo Final de algummodo nos restringe em relação à escolha queleva a um futuro humano truncado? Lesliedefende que temos a liberdade de decidir, masque a escolha que fazemos afeta aprobabilidade prévia dos dois cenários. Outra ambigüidade diz respeito a quem ou oque deveria ser levado em conta: comodefinimos humanidade? Se a biosfera inteiraestivesse para ser eliminada em algumacatástrofe global, então não haveria dúvidasobre quando termina a lista de chamada. Mas,

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se nossa espécie fosse metamorfosear-se emoutra coisa, isso significaria o fim dahumanidade? Em caso positivo, o argumentode Carter-Gott poderia nos dizer algodiferente: poderia apoiar Kurzweil, Moravec eoutros que prevêem uma "tomada de poder"por máquinas dentro deste século crucial. Ouvamos supor que há outros seres em outrosmundos. Nesse caso, talvez todos os seresinteligentes, não só humanos, deveriam estarna "classe de referência". Não há uma formaclara de ordenar a lista de chamada, e oargumento cai por terra. (Gott e Leslie usaramum raciocínio semelhante para argumentarcontra a existência de outros mundos compopulações muito mais avançadas do que nós.Se houvesse, eles afirmam, deveríamos nossurpreender por não estar num deles.) Quando ouvi pela primeira vez o argumentodo Juízo Final de Cárter, lembrei-me docomentário peremptório de George Orwellnum contexto diferente: "Você deve ser umverdadeiro intelectual para acreditar nisso —

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nenhuma pessoa normal seria tão tola". Porém,localizar uma falha explícita não é um exercíciotrivial. Vale a pena fazê-lo, no entanto, vistoque nenhum de nós aceita de bom grado umnovo argumento de que os dias dahumanidade possam estar contados. 11. O Fim da Ciência? Einsteins futuros podem transcender as teoriasatuais de espaço, tempo e mundo micro. Masas ciências holísticas de vida e complexidadepropõem mistérios que as mentes humanastalvez nunca compreendam por completo. Continuará a ciência a seguir adiante, trazendonovas idéias e talvez mais ameaças também?Ou a ciência do próximo século será umanticlímax após os triunfos já alcançados? O jornalista John Horgan abraça a segundaopinião: ele argumenta que já desvendamos asidéias realmente grandes. Tudo o que resta,segundo Horgan, é preencher os detalhes, ouentão permitir-nos o que ele denomina "ciênciairônica" — conjeturas frouxas e indisciplinadas

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sobre tópicos que nunca entrarão no âmbito doestudo empírico sério. Acredito que essa teseesteja fundamentalmente equivocada, e queidéias tão revolucionárias quanto qualqueruma das que foram descobertas no século XXrestam a ser reveladas. Prefiro o ponto de vistade Isaac Asimov. Ele comparou a fronteira daciência a um fractal — um padrão com camadasobre camada de estrutura, de maneira que umpedacinho minúsculo, quando ampliado, é umsimulacro do todo: "Não importa quantoaprendamos, o que resta, por mais pequenoque possa parecer, é tão infinitamentecomplexo quanto o todo era ao princípio". Avanços do século XX quanto ao entendimentodos átomos, da vida e do cosmos estão entre osgrandes feitos intelectuais coletivos dahumanidade. (A ressalva "coletivos" é crucial.A ciência moderna é uma empreitadacumulativa; descobertas são feitas quando omomento é oportuno, quando as idéias-chaveestão "no ar" ou quando alguma técnica nova éexplorada. Os cientistas não são exatamente

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tão intercambiáveis quanto lâmpadas, mas há,no entanto, poucos casos em que um indivíduotenha feito muita diferença nodesenvolvimento a longo prazo da disciplina:se "A" não tivesse realizado o trabalho ou adescoberta, "B" em pouco tempo teria obtidoalgo similar. Essa é a forma com que a ciêncianormalmente se desenvolve. O trabalho de umcientista perde sua individualidade, mas éduradouro. Einstein tem um lugar de honra nopanteão científico porque foi uma dessaspoucas exceções: se ele não tivesse existido,suas sacadas mais profundas teriam emergidomuito mais tarde, talvez por uma rotadiferente ou mediante os esforços de váriaspessoas em vez de uma só. Porém, as sacadasteriam ao fim sido feitas: nem mesmo Einsteindeixou uma marca pessoal distintiva que oiguale àquela que é legada pelos grandesescritores ou compositores.) Desde a era clássica grega, quando seacreditava que terra, ar, fogo e água eram assubstâncias do mundo, os cientistas buscam

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uma visão "unificada" de todas as formasbásicas da natureza, além de compreender omistério do próprio espaço. Os cosmólogoscostumam ser criticados por estarem "muitasvezes errados mas nunca em dúvida". De fato,não raro eles abraçaram especulações malfundamentadas com fervor irracional e,levados por um otimismo cego, viram demaisem coisas que não passavam de evidência vagae tateante. Mas mesmo os mais cautelososentre nós têm confiança de que agoraentendemos pelo menos os contornos de nossocosmos inteiro, e aprendemos de que ele éfeito. Podemos traçar a história evolutiva atéantes de o nosso sistema solar ter se formado,até uma época muito anterior à existência dequalquer estrela, quando tudo brotava de umquentíssimo "evento-gênese", o chamado BigBang, cerca de 14 milhões de anos atrás. Oprimeiro microssegundo está encoberto pormistério, entretanto tudo o que aconteceudesde então — o surgimento de nossocomplexo cosmos a partir de um início simples

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— é resultado de leis que podemos entender,não obstante os detalhes ainda nos escapem.Assim como os geofísicos vieram a entender oprocesso que fez os oceanos e esculpiu oscontinentes, os astrofísicos entendem nosso Sole seus planetas, e até os outros planetas quepodem orbitar estrelas distantes. Em séculos anteriores, os navegadoresmapearam os contornos dos continentes etomaram as medidas da Terra. Nestes últimosanos apenas, o nosso mapa do cosmos, emtempo e espaço, também se firmou. Um desafiopara o século XXI é refinar nossa visão atual,preenchendo-a com mais detalhes, assim comofizeram gerações de mapeadores para a Terra,e sobretudo investigar os misteriosos domíniosonde os cartógrafos antigos escreveram "aquihá dragões". Paradigmas em Mudança O termo "paradigma" foi popularizado porThomas Kuhn em seu livro clássico A estruturadas Revoluções Científicas. Um paradigma não

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é só uma idéia nova (se fosse, a maior partedos cientistas poderia declarar ter mudadoalguns): uma mudança de paradigma denotauma reviravolta intelectual que revela novaspercepções e transforma nossa perspectivacientífica. A maior mudança de paradigma doséculo XX foi a teoria quântica. Essa teoria nosdiz, contrariamente a qualquer intuição, que naescala atômica a natureza é intrinsecamente"errática". Apesar disso, os átomos secomportam de formas matemáticas precisasquando emitem e absorvem luz, ou quando seunem para formar moléculas. Cem anos atrás,a própria existência dos átomos eracontroversa; mas a teoria quântica agorajustifica quase todos os detalhes sobre como osátomos se comportam. Como StephenHawking observa: "É um tributo a quão longenós chegamos na física teórica o fato de queagora são necessárias máquinas enormes e ummonte de dinheiro para fazer um experimento[em partículas subatômicas] cujo resultado nãopodemos prever".

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A teoria quântica é comprovada cada vez quevocê tira uma fotografia digital, navega pelainternet ou usa qualquer aparelho - umaparelho de cd ou um código de barras emsupermercado - que envolva laser. Só agoracomeçamos a nos dar conta de algumas desuas espantosas conseqüências. Ela talvezpermita que os computadores sejam projetadoscom princípios completamente novos, quepoderiam superar qualquer computador"clássico", desde que a lei de Moore perdure. Mais um novo paradigma da ciência do séculoXX — outro espantoso salto intelectual — é emgrande parte criação de um homem, AlbertEinstein: ele aprofundou nossa compreensãodo espaço, do tempo e da gravidade, dando-nos uma teoria, a da relatividade geral, quegoverna a moção dos planetas, das estrelas edo próprio universo em expansão. Essa teoriafoi confirmada por um monitoramento muitopreciso por radar de planetas e naves espaciais,e por estudos astronômicos de estrelas denêutrons e buracos negros —objetos em que a

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gravidade é tão forte que espaço e tempo sãofortemente distorcidos. A teoria de Einsteinpode ter parecido arcana, mas ela pode sercomprovada sempre que um caminhão ou umavião determinam seu posicionamento pelosistema de posicionamento global por satélite(GPS). Ligando o muito grande e o muito pequeno Mas a teoria de Einstein é inerentementeincompleta: ela trata espaço e tempo como umcontínuo regular. Se cortarmos um pedaço demetal (ou, na verdade, de qualquer material)em pedaços cada vez menores, em certo pontochegaremos a um limite ao alcançarmos o nívelquântico de átomos individuais. Da mesmaforma, na escala mínima esperamos até que oespaço seja granuloso. Talvez não só o espaço,como também o próprio tempo, seja feito dequanta finitos em vez de "fluir" continuamente.Pode ser que haja um limite fundamental àprecisão com que qualquer relógio seja capazde subdividir o tempo. Contudo, nem a teoria

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de Einstein nem a teoria quântica, em suasformas presentes, podem esclarecer amicroestrutura do espaço e do tempo. Aciência do século XX deixou essa peçaimportante faltando no quebra-cabeça, comoum desafio para o século XXI. A história da ciência sugere que, quando umateoria sucumbe ou confronta um paradoxo, aresolução será um novo paradigma quetranscenda o que veio antes. A teoria deEinstein e a teoria quântica não podem sermescladas: ambas são magníficas dentro deseus limites, mas no nível mais profundo elassão contraditórias. Até que haja uma síntese,certamente não seremos capazes de atacar oassoberbante enigma do que aconteceu bem láno início, e muito menos de atribuir qualquersignificado à pergunta "O que aconteceu antesdo Big Bang?" No "instante" do Big Bang, tudofoi espremido em um tamanho menor do queum único átomo, de maneira que flutuaçõesquânticas já não podiam sacudir o universointeiro.

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Segundo a teoria das supercordas, atualmenteo enfoque mais em voga para uma teoriaunificada, as partículas que constituem osátomos resultam do próprio tecido do espaço.As entidades fundamentais não são pontos, esim minúsculas alças, ou "cordas", e as diversaspartículas subnucleares são modos diferentesde vibração — harmonias diferentes — dessascordas. Além disso, as cordas não estãovibrando em nosso espaço comum (com trêsdimensões espaciais, mais o tempo), mas numespaço de dez ou onze dimensões. Além de Nosso Espaço e Tempo Vemos a nós mesmos como serestridimensionais: podemos ir para a direita oupara a esquerda, para a frente ou para trás,subir ou descer, e é só. Então, como as outrasdimensões, se é que existem, estão escondidasde nós? Pode ser que elas estejam todasembrulhadas bem juntinhas. Uma longamangueira pode parecer uma linha (com umaúnica dimensão) quando vista de longe, porém

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de perto percebemos que é um longo cilindro(uma superfície bidimensional) bem enrolado;ainda mais de perto, percebemos que essecilindro é feito de material que não éinfinitamente estreito, mas se estende a umaterceira dimensão. Por analogia, qualquerponto aparente em nosso espaçotridimensional, se for imensamente ampliado,pode na verdade ter uma estrutura complexa:um origami bem apertado com váriasdimensões adicionais. Algumas dessas dimensões poderiam aparecerem escala microscópica em experimentos delaboratório (embora provavelmente estejamenoveladas de um modo denso demais paraisso). Ainda mais interessante, uma dimensão amais pode não estar nem um poucoembrulhada: pode haver outro universotridimensional "ao lado" do nosso, integradonumespaço ainda mais dimensionado. Insetosrastejando por uma grande folha de papel(seu"universo" bidimensional) podem não terconsciência de uma folha similar que esteja

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paralela a ela, mas não em contato. Igualmente,poderia haver outro universo inteiro(tridimensional, como o nosso) a menos de ummilímetro de nós, no entanto não prestamosatenção nele porque esse milímetro é medidoem uma quarta dimensão espacial, e estamosaprisionados a somente três. Poderia ter havido muitos Big Bangs, atémesmo uma infinidade deles, não só o quegerou o "nosso" universo. Pode até mesmo serque o alcance do nosso "universo", resultadodo nosso próprio Big Bang, vá muito além dos10 bilhões de anos-luz que nossos telescópiospodem enxergar: ele pode englobar umdomínio ainda mais vasto, estender-se a umadistância tão longínqua que nenhuma luz tevetempo de chegar até nós. Sempre que umburaco negro se forma, processos lá no fundodele poderiam desencadear a criação de outrouniverso, que se expandiria para um espaçodisjunto do nosso. Se esse novo universo fossecomo o nosso, então estrelas, galáxias eburacos negros se formariam nele, e esses

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buracos negros, por sua vez, dariam origem aoutra geração de universos, e assim por diante,talvez ad infinitum. Quem sabe universospudessem ser criados num laboratóriofuturista, pela implosão de um aglomerado dematerial para fazer um pequeno buraco negro,ou mesmo pela colisão de átomos carregadoscom energias muito altas em um acelerador departículas. Nesse caso, os argumentosteológicos de design poderiam serressuscitados sob nova forma, borrando afronteira entre o natural e o sobrenatural. Aprendemos, desde que Copérnico destronoua Terra de sua posição central, que nossosistema solar é só um entre bilhões ao alcancede nossos telescópios. Nossos horizontescósmicos estão, mais uma vez, aumentando demaneira igualmente dramática: o que portradição chamamos de nosso universo podenão passar de uma "ilha" num arquipélagoinfinito. Para fazer predições científicas, é precisoacreditar que a natureza não é volúvel, e ter

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desvendado alguns padrões regulares. Masesses motivos não precisam ser completamentecompreendidos. Por exemplo, os babilônios, hámais de 2 mil anos, podiam prever aprobabilidade de ocorrência de eclipses solaresporque haviam coletado dados por séculos edescobriram padrões repetitivos naperiodicidade dos eclipses (em particular, queeles seguem um ciclo de dezoito anos). Só queos babilônios não sabiam como o Sol e a Luarealmente se moviam. Foi só no século XXII —a era de Isaac Newton e Edmund Halley— queo ciclo de dezoito anos foi atribuído a uma"ginga" na órbita da Lua. A mecânica quântica funciona maravilhosa-mente: a maior parte dos cientistas a utilizaquase sem pensar. Como meu colega JohnPolkinghorne disse: "A mecânica quânticamédia não é mais filosófica do que a mecânicamotora média". Mas muitos cientistasponderados que vieram depois de Einsteinacharam a teoria "arrepiante" e duvidam deque tenhamos atingido a perspectiva ideal

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sobre ela. As interpretações acerca da teoriaquântica hoje em dia podem estar num nível"primitivo", análogo ao conhecimentobabilônio dos eclipses: predições úteis, porémsem conhecimento profundo. Alguns dos paradoxos desconcertantes domundo quântico podem ser esclarecidos poruma idéia conhecida da ficção científica: os"universos paralelos". O romance clássico deOlaf Stapledon, Star Maker [Fabricante deestrelas], prefigurou esse conceito. O fabricantede estrelas é um criador de universos e, numade suas criações mais sofisticadas: Sempre que uma criatura se visse diante devários cursos de ação possíveis, ela os tomavatodos, dessa forma criando muitas [...] históriasdistintas do cosmos. Como em cada seqüênciaevolutiva do cosmos havia muitas criaturas ecada uma delas constantemente se via diantede muitos percursos possíveis e ascombinações de todos os seus percursos eraminúmeras, uma infinidade de universosdistintos se esfoliava de cada momento.

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À primeira vista, o conceito de universosparalelos pode parecer muito arcano paraexercer qualquer impacto prático. Mas ele podefornecer a perspectiva de um tipo decomputador inteiramente novo, o computadorquântico, capaz de transcender os limites atémesmo do mais rápido processador digital, naprática dividindo a carga computacional entreuma quase infinidade de universos paralelos. No século XX aprendemos a natureza atômicade todo o mundo material. No XXI, o desafioserá entender a arena em si, investigar anatureza mais profunda do espaço e do tempo.Novas idéias deveriam esclarecer como o nossouniverso começou e se ele é um entre muitos.Num nível terreno mais prático, elas podemrevelar novas fontes de energia latentes nopróprio espaço vazio. Um peixe mal tem conhecimento do meio noqual vive e nada; certamente, ele não dispõe depoderes intelectuais para compreender que aágua consiste em átomos interligados dehidrogênio e oxigênio, cada um feito de

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partículas ainda menores. A microestrutura doespaço vazio poderia, da mesma forma, sercomplexa demais para que os cérebroshumanos a compreendessem por contaprópria. Idéias sobre dimensões adicionais, ateoria das cordas e afins atrairão animadointeresse científico neste século. Aspiramos aentender nosso habitat cósmico — e, a não serque tentemos, sem dúvida não vamosconseguir —, mas pode ser que tenhamos umpouco mais de chance do que um peixe. As Fronteiras do Tempo O tempo, como Wells e seu crononauta bemsabiam, é uma quarta dimensão. Viajar notempo no futuro longínquo não viola nenhumalei fundamental da física. Uma nave espacialque pudesse viajar a 99,99% da velocidade daluz poderia permitir que sua tripulaçãoavançasse para o futuro. Um astronauta queconseguisse navegar para a órbita maispróxima possível em torno de um buraconegro em rotação rápida sem cair lá dentro

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poderia, num período subjetivamente curto,ver uma extensão de tempo futuroimensamente longa no universo externo. Taisaventuras podem ser irrealizáveis, mas não sãoimpossíveis em termos físicos. Mas e a viagem para o passado? Há mais decinqüenta anos, o grande lógico Kurt Gödelinventou um bizarro universo hipotético,coerente com a teoria de Einstein, que permitia"alças de tempo" nas quais eventos no futuro"causam" eventos no passado, que então"causam" suas próprias causas, introduzindoinúmeras esquisitices no mundo, mas semcontradições. (O filme O Exterminador doFuturo, no qual um filho manda seu pai devolta no tempo para salvar — e inseminar —sua mãe, combina maravilhosamente as idéiasda maior mente austríaco-americana, Gödel,com os talentos do maior corpo austríaco-americano, Arnold Schwarzenegger.) Váriosteóricos posteriores usaram as teorias deEinstein para projetar "máquinas do tempo"que poderiam criar alças temporais.

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Entretanto, essas máquinas não caberiam numporão vitoriano. Algumas delas precisam tercomprimento efetivamente infinito; outrasnecessitam de vastas quantidades de energia.Retornar ao passado envolve o risco de mudá-lo de tal forma que a história pode setransformar em algo internamente incoerentese, por exemplo, seus pais forem impedidos denascer. Tais enigmas não eliminam as viagensno tempo nem mesmo em princípio: elesapenas restringem o livre-arbítrio do viajanteno tempo. Mas não há nada de novo nisso. Afísica já nos restringe: não podemos exercernosso livre-arbítrio andando no teto. Outraopção é que viajantes no tempo pudessempassar para um universo paralelo, em que oseventos se desenrolassem de um mododiferente em vez de repetir-se, como no filmeFeitiço do Tempo [Groundhog Day]. Simplesmente ainda não temos uma teoriaunificada; e universos paralelos, alças notempo e dimensões adicionais são com certeza"grandes idéias" para a ciência do século XXI.

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Admitindo isso, Horgan só pode sustentar suatese pessimista do "fim da ciência" denegrindoteorias como a "ciência irônica". Essa éprovavelmente uma avaliação justa de suaposição atual, quando elas são um conjunto deidéias matemáticas, enfeitado com algo queparece ficção científica e sem compromissocom experimento ou observação. Mas aesperança é de que tais teorias, de acordo comnossa capacidade intelectual, de fatoexpliquem coisas sobre o nosso mundo físicoque hoje parecem misteriosas: por que prótons,elétrons e outras partículas subatômicasrealmente existem, e por que o mundo físico égovernado por forças e leis específicas. Umateoria unificada pode revelar algumas coisasinsuspeitas, sejam elas em escalas minúsculas,ou a explicação de alguns mistérios de nossouniverso em expansão. Talvez alguma novaforma de energia latente no espaço possa serextraída com alguma utilidade; umacompreensão de dimensões adicionais poderiadar substância ao conceito de viagem no

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tempo. Tal teoria também nos dirá quais tiposde experimentos extremos, se é que existem,poderiam desencadear uma catástrofe. A Terceira Fronteira da Ciência: O MuitoComplexo Uma teoria definitiva para o cosmos e omundo micro — mesmo que ela fosse algumdia alcançada -— ainda não seria presságio do"fim da ciência". Há mais uma fronteira aberta:o estudo de coisas que são muito complicadas— acima de tudo, nós mesmos e nosso habitat.Podemos entender um átomo individual e atéos mistérios dos quarks e de outras partículasque rondam em seus núcleos, maspermanecemos perplexos com a maneiraintrincada com que os átomos se combinampara fazer todas as elaboradas estruturas denosso ambiente, sobretudo aquelas que estãovivas. A frase "teoria de tudo", muitas vezesusada em livros populares, tem conotações quenão só são insolentes, como muito enganosastambém. Uma dita teoria de tudo na verdade

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não seria de nenhuma ajuda para 99% doscientistas. O brilhante e carismático físico RichardFeynman gostava de enfatizar esse aspectocom uma boa analogia, que na verdaderemonta a T. H. Huxley no século XIX. Imagineque você nunca tivesse visto uma partida dexadrez. Depois de assistir a algumas, vocêpode inferir as regras. Mas, no xadrez,aprender como as peças se mexem é só umapreliminar trivial na progressão absorventeque vai de iniciante a mestre. Da mesma forma,mesmo que tivéssemos conhecimento das leisbásicas, explorar como suas conseqüências sedesdobraram ao longo da história cósmica —como galáxias e estrelas e planetas seformaram, e como aqui na Terra, e talvez emmuitas biosferas em outros lugares, os átomosse juntaram em criaturas capazes de refletirsobre suas origens — é um desafio infinito. A ciência ainda mal começou: cada avanço põeem foco um novo conjunto de perguntas.Concordo com John Maddox: "As grandes

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surpresas serão as respostas a perguntas queainda não somos inteligentes o suficiente paraformular. O empreendimento científico é umprojeto inacabado e assim permanecerá peloresto dos tempos". Pode parecer presunção da parte decosmólogos que se pronunciam confiantessobre assuntos arcanos e remotos quando asopiniões de especialistas sobre questõescotidianas já muito estudadas, tais como dietae cuidado de crianças, são manifestamentepouco mais do que modas transitórias. Mesmoassim, o que torna as coisas difíceis de serementendidas é a complexidade que elaspossuem, não o seu tamanho. Planetas eestrelas são grandes, mas se movem de acordocom leis simples. Podemos entender estrelas, eátomos também; mas o mundo de todo dia,sobretudo o mundo vivo, representa umdesafio maior. A dietética é, num sentidoconcreto, uma ciência mais difícil do que acosmologia ou a física subatômica. Sereshumanos, as entidades mais intrincadamente

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construídas que conhecemos no universo, estãoa meio caminho entre átomos e estrelas. Seriamprecisos tantos corpos humanos para fazer oSol quantos átomos existentes dentro de cadaum de nós. Nosso mundo cotidiano impõe um desafioainda maior para a ciência do século XXI doque o cosmos ou o mundo de partículassubnucleares. O reino biológico é o desafioprincipal, mas mesmo substâncias simples secomportam de formas complexas. Padrõesclimáticos são manifestações da bemcompreendida física do ar e da água, contudosão excessivamente intrincados, caóticos eimprevisíveis; teorias melhoradas do mundomicro não são de nenhuma utilidade paraaqueles que preparam as previsões do tempo. Quando nos debatemos com as complexidadesem nossa escala humana, um enfoque holísticose mostra mais útil do que um reducionismoingênuo. O comportamento animal faz maissentido quando entendido em termos deobjetivos e de sobrevivência. Podemos prever

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com confiança que um albatroz voltará a seuninho depois de percorrer 10 mil quilômetrosou mais. Tal predição seria impossível — nãosó na prática, como mesmo em princípio —, seanalisássemos o albatroz num conjunto deelétrons, prótons e nêutrons. As ciências são às vezes comparadas a andaresdiferentes de um alto edifício: lógica no porão,matemática no primeiro andar, depois a físicade partículas, seguida do resto da física e daquímica, e assim por diante, até chegar àpsicologia, à sociologia e à economia nacobertura. Mas a analogia é pobre. Assuperestruturas, as ciências dos "andares altos"que lidam com sistemas complexos, não estãoem risco por causa de uma fundação poucosegura, como acontece num prédio. Há leis danatureza no domínio macroscópico que são tãodesafiantes quanto qualquer coisa no mundomicro, e são conceitualmente autônomas dele— por exemplo, aquelas que descrevem atransição entre comportamento regular ecaótico, que se aplicam a fenômenos tão

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diferentes quanto torneiras pingando epopulações animais. Há problemas em química, biologia, meioambiente e ciências humanas que permanecemsem solução porque os cientistas nãoelucidaram os padrões, as estruturas e asinterconexões, não porque não entendemos osuficiente de física subatômica. Ao tentarentender como as ondas de água se quebram ecomo os insetos se comportam, uma análise nonível atômico não ajuda. Encontrar o "texto" dogenoma humano — descobrir a cadeia demoléculas que codificam nossa herançagenética — é um feito espantoso. Mas é apenaso prelúdio para o desafio muito maior daciência pós- genômica: entender como o códigogenético desencadeia a montagem de proteínase se expressa num embrião emdesenvolvimento. Outros aspectos da biologia,sobretudo a natureza do cérebro, impõemdesafios que ainda mal podem ser formulados. . .

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Os Limites das Mentes Humanas Alguns ramos da ciência poderiam algum diaestacar. Mas isso pode acontecer porquechegamos aos limites do que nosso cérebropode entender, não porque o assunto estáesgotado. Talvez os físicos nunca cheguem aentender a natureza fundamental de tempo eespaço porque a matemática é difícil demais;mas eu acho que nossos esforços paracompreender sistemas muito complexos —acima de tudo, nossos próprios cérebros —serão os primeiros a atingir tais limites. Talvezagregados complexos de átomos, sejam elescérebros ou máquinas, nunca possam entendertudo sobre eles mesmos. Computadores com faculdades humanas vãoacelerar a ciência, mesmo que não pensemcomo nós pensamos. O computador enxadristada IBM, O Deep Blue, não desenvolveu suaestratégia como faz um jogador humano; eleexplorou sua velocidade computacional paracomparar milhões de séries alternativas demovimentos e respostas, aplicando um

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conjunto complicado de regras, antes dedecidir-se por um lance ideal. Essa abordagemde "força bruta" dominou um campeãomundial; assim também, máquinas farãodescobertas científicas que escaparam acérebros humanos sem assistência. Porexemplo, algumas substâncias perdemcompletamente sua resistência elétrica quandoresfriadas a temperaturas muito baixas(supercondutores). Há uma busca contínuapara encontrar a "receita" de umsupercondutor que funcione em temperaturasambientes normais (ou seja, quase trezentosgraus acima do zero absoluto; a temperaturasupercondutora mais alta atingida até agora é120 graus). Uma busca como essa envolvemuita "tentativa e erro", porque ninguémentende o que é que faz a resistência elétricadesaparecer mais prontamente em algunsmateriais do que em outros. Suponha que uma máquina obtivesse talreceita. Talvez ela a tivesse conseguido damesma forma com que Deep Blue ganhou seus

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jogos de xadrez contra Kasparov: testandomilhões de possibilidades em vez de fazer usode uma teoria ou estratégia à moda humana.Mas ela poderia ter chegado a algo que daria aum cientista um prêmio Nobel. Além disso,sua descoberta anunciaria uma inovaçãotécnica que poderia, entre outras coisas, levar acomputadores ainda mais potentes, umexemplo da aceleração do tipo bola-de-neve natecnologia, preocupante para Bill Joy e outrosfuturistas, que poderia ser inevitável quandoos computadores forem capazes de aumentarou até suplantar cérebros humanos. Simulações em que usarão computadores cadavez mais potentes ajudarão os cientistas aentender processos que não estudamos emnossos laboratórios nem observamosdiretamente. Meus colegas já podem criar um"universo virtual" num computador e fazer"experimentos" nele — simulando, porexemplo, como estrelas se formam e morrem, ecomo nossa Lua se formou num impacto entrea jovem Terra e outro planeta.

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A Primeira Vida Em breve os biólogos terão esclarecido osprocessos pelos quais as combinações de genescodificam a intrincada química de uma célula,assim como a morfologia de membros e olhos.Outro desafio é elucidar como a vida começou,talvez até mesmo replicar o evento, quer numlaboratório, quer "virtualmente" numcomputador (onde se pode estudar a evoluçãocom muito mais rapidez do que em temporeal). Toda a vida na Terra parece ter tido umancestral comum, mas como essa primeiracoisa viva veio a existir? O que fez com que osaminoácidos se transformassem nos primeirossistemas replicadores, e na intrincada químicaprotéica da vida unicelular? A resposta a essapergunta — a transição dos não-vivos para osvivos — é um assunto inacabado fundamentalpara a ciência. Experimentos de laboratórioque tentam simular a "sopa" de produtosquímicos na jovem Terra podem dar pistas;

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simulações em computador também poderiam.Darwin imaginou um "laguinho morno". Estamos agora mais conscientes da imensavariedade de nichos que a vida pode ocupar.Os ecossistemas situados perto de fontessulfurosas quentes nos oceanos profundos nosdizem que nem mesmo a luz solar é essencial.Então os princípios da vida podem ter ocorridonum vulcão tórrido, numa localizaçãosubterrânea profunda ou até mesmo na ricamistura química de uma nuvem interestelarpoeirenta. Acima de tudo, queremos saber se osurgimento da vida era de alguma formainevitável, ou se foi um acaso feliz. Aimportância cósmica da nossa Terra dependede as biosferas serem raras ou comuns, o quepor sua vez depende de quão "especiais" ascondições precisam ser para que a vida tenhainício. A resposta a essa pergunta-chave afeta amaneira como vemos a nós mesmos e o futuroda Terra a longo prazo. Estamos bloqueados, éclaro, pelo fato de que dispomos de um único

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exemplo, mas pode ser que isso mude. A buscapor vida alienígena talvez seja o desafio maisfascinante para a ciência do século XXI. Seuresultado terá influência tão profunda sobrenosso conceito a respeito do nosso lugar nanatureza quanto o darwinismo nos últimos 150anos. 12. Há Significado Cósmico em Nossa Sina? As probabilidades poderiam ser tão fortementecontrárias ao surgimento (e à sobrevivência) devida complexa que talvez a terra seja a moradaúnica de inteligência consciente em nossagaláxia inteira. nossa sina teria então umaverdadeira ressonância cósmica. A vida é disseminada? Ou a Terra é especial —não só para nós, para quem ela é o planetanatal, mas também para o amplo cosmos? Enquanto só tivermos conhecimento de umabiosfera, a nossa, não podemos deixar deadmitir que ela seja única: a vida complexapoderia ser o resultado de uma cadeia deeventos tão improvável que tenha acontecido

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só uma vez no universo observável, no planetaem que (é claro) estamos. Por outro lado, avida poderia ser disseminada, surgindo emqualquer planeta como a Terra (e talvez emmuitos outros ambientes cósmicos também).Ainda sabemos muito pouco sobre como avida começou e como ela evolui para quepossamos decidir entre essas duaspossibilidades extremas. O maior avanço seriaencontrar outra biosfera: vida alienígena real. Explorações não tripuladas ao sistema solarnas próximas décadas podem melhorar aschances. Desde a década de 1960, sondasespaciais têm sido enviadas aos outros planetasdo nosso sistema solar, mandando de voltafotografias de mundos que são variados edistintos; mas nenhum — em forte contrastecom o nosso próprio planeta — pareceacolhedor para a vida. Marte é ainda oprincipal foco de atenção. Sondas revelarampaisagens marcianas dramáticas: vulcões deaté vinte quilômetros de altura e um cânion deseis quilômetros de profundidade que se

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estende por 4 mil quilômetros. Há leitos de riossecos, até mesmo traços que se assemelham àsmargens de um lago. Se alguma vez fluiu águana superfície de Marte, é provável que tenha seoriginado no subterrâneo profundo e sidoforçada para cima através da camada de gelopermanente. Sondando Marte e Além A primeira busca séria da Nasa por vidamarciana foi nos anos 1970. As sondas Vikingforam lançadas de pára-quedas sobre umdesolado deserto pedregoso e recolheramamostras de solo; seus instrumentos nãodetectaram nenhum sinal nem mesmo dosorganismos mais primitivos. A única alegaçãoséria de vida fóssil veio mais tarde, com asanálises de um pedaço de Marte que chegouaté a Terra sozinho. Marte está sendobombardeado, como a Terra, por impactos deasteróides que lançam detritos no espaço.Alguns desses detritos, depois de vaguear emórbita por muitos milhões de anos, caem na

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Terra na forma de meteoritos. Em 1996, oficiaisda Nasa orquestraram uma entrevista coletivamuito badalada, à qual até o presidenteClinton compareceu, para proclamar que ummeteorito recuperado da Antártica, comassinaturas químicas de origem marciana,levava traços de minúsculos organismos. Oscientistas voltaram atrás em algumasafirmações desde então: a "vida em Marte"pode desaparecer assim como aconteceu comos "canais" há um século. Mas a esperança deque haja vida no planeta vermelho não foiabandonada, embora mesmo os otimistasesperem um pouco mais do que bactériasdormentes. Outras sondas espaciais vãoanalisar a superfície marciana muito maisminuciosamente do que a Vikings (em missõesposteriores) trazer amostras para a Terra. Marte não é o único alvo dessesreconhecimentos. Em 2004 a sonda Huygensda Agência Espacial Européia, que é parte dacarga da missão Cassini da Nasa, vai serlançada de pára-quedas na atmosfera de Titã, a

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lua gigante de Saturno, em busca de qualquercoisa que possa estar viva. Há planos mais alongo prazo para aterrissar uma sondasubmersível em Europa, lua de Júpiter, àprocura de vida — talvez mesmo combarbatanas ou tentáculos — em seus oceanoscobertos de gelo. Detectar vida em dois lugares do nosso sistemasolar — que agora sabemos ser somente umdentre milhões de sistemas planetários emnossa galáxia — sugeriria que se trata de algoque é comum em outros lugares do universo.Imediatamente concluiríamos que nossouniverso (com bilhões de galáxias cada umacontendo bilhões de estrelas) poderia abrigartrilhões de habitats onde algum tipo de vida(ou vestígios de vida passada) exista. E por issoque é cientificamente tão importante procurarvida nos outros planetas e luas do nossosistema solar. Há um quesito fundamental, porém: antes defazer qualquer inferência sobre a ubiqüidadeda vida, precisaríamos ter bastante certeza de

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que qualquer vida extraterrestre começou deforma independente, e que organismos nãochegaram, através de poeira cósmica oumeteoritos, de um planeta ao outro. Afinal,sabemos que alguns meteoritos que atingirama Terra vieram de Marte; se houvesse vidaneles, talvez tenha sido assim que a vidacomeçou aqui. Talvez tenhamos todosascendência marciana. Outras Terras? Mesmo que haja vida em outros lugares donosso sistema solar, poucos cientistas, se tanto,esperam que ela seja "avançada". Mas e ocosmos mais remoto? Desde o ano de 1995, umnovo campo da ciência foi inaugurado: oestudo de outras famílias de planetas, emórbita em torno de estrelas distantes. Quais sãoas perspectivas de vida em alguns deles?Poucos dentre nós ficaram surpresos com ofato de que esses planetas existissem: osastrônomos já sabiam que outras estrelas seformavam como o nosso Sol, a partir de uma

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nuvem interestelar de rotação lenta que secontraía num disco; o gás poeirento nessesoutros discos podia aglomerar- se para formarplanetas, como aconteceu em torno do recém-nascido Sol. Mas até a década de 1990 nãohavia técnicas sensíveis o suficiente pararevelar qualquer um desses planetaslongínquos. Enquanto escrevo, já se sabe decem outras estrelas como o Sol que têm pelomenos um planeta; quase todo mês outras sãodescobertas. Esses planetas encontrados atéagora, orbitando estrelas como o Sol, são todosmais ou menos do tamanho de Júpiter ou deSaturno, os gigantes do nosso sistema solar.Mas eles provavelmente não passam dosintegrantes maiores de outros "sistemassolares" cujos membros menores estão aindapor ser descobertos. Um planeta como a Terra,trezentas vezes menor do que Júpiter, seriapequeno e indistinto demais para ser reveladopor meio das técnicas atuais, mesmo queestivesse em órbita em torno de uma dasestrelas mais próximas. Para observar planetas

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como a Terra, serão necessários gigantescosaparatos telescópicos no espaço. O principalprograma científico da Nasa — "Origins" —concentra-se na origem do universo, dosplanetas e da vida. Um dos projetos maispalpitantes será o chamado Terrestrial PlanetFinder [Buscador Terrestre de Planetas], umaparato de telescópios no espaço; os europeusestão planejando um projeto semelhante,chamado "Darwin". Todos nós, quando jovens, aprendemos adisposição do nosso sistema solar — otamanho dos nove planetas principais, e comoeles se movem em órbita em torno do Sol. Masdaqui a vinte anos poderemos dizer a nossosnetos coisas muito mais interessantes numanoite estrelada. Estrelas próximas terãodeixado de ser meros pontos cintilantes no céu.Pensaremos nelas como os sóis de outrossistemas solares. Saberemos as órbitas doséqüito de planetas de cada estrela, e atémesmo detalhes topográficos dos planetasmaiores.

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O Terrestrial Planet Finder e sua contrapartidaeuropéia deveriam descobrir muitos dessesplanetas, mas só como pontos luminososindistintos. A despeito disso, muito pode seraprendido sobre eles, mesmo sem um retratodetalhado. Vista de (digamos) cinqüenta anos-luz de distância — a distância de uma estrelapróxima —, a Terra seria, segundo Carl Sagan,um "pálido ponto azul", aparentemente muitoperto de uma estrela (nosso Sol) que a suplantaem brilho por um fator de muitos bilhões. Otom de azul seria levemente diferente,dependendo de termos o oceano Pacífico ou amassa terrestre eurasiana diante de nós. Pelaobservação de outros planetas, ainda que sema resolução de detalhes em suas superfícies,podemos inferir se estão girando, ocomprimento de seu "dia" e até, grosso modo,sua topografia e seu clima. Estaremos especialmente interessados em"gêmeos" possíveis da nossa Terra: planetas domesmo tamanho que o nosso, orbitando outrasestrelas do tipo do Sol, e com climas

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temperados, onde a água não ferve nem ficacongelada. Pela análise da luz difusa de talplaneta, poderíamos inferir quais gases existemem sua atmosfera. Se existisse ozônio — o quesugere riqueza em oxigênio, como naatmosfera da Terra —, isso indicaria umabiosfera. Nossa atmosfera não começou dessaforma, ela foi transformada por bactériasprimitivas em sua história inicial. Mas uma imagem real de um planeta comoesse — uma que possa ser exposta em telas dotamanho de paredes que terão entãosubstituído os pôsteres como decoração —exercerá um impacto muito maior do que asfotos clássicas do nosso planeta visto doespaço. Mesmo que programas como o daNasa continuem por várias décadas, nãoteremos tais fotografias antes de 2025. Elasexigirão imensos espelhos no espaço; umaparato estendido por centenas de quilômetrosofereceria uma imagem muito borrada e crua,capaz apenas de revelar um oceano ou umamassa continental. Mais adiante, fabricantes

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robóticos poderão construir, na gravidade zerodo espaço, espelhos finos como membranas emescala mais gigantesca. Estes mostrariam maisdetalhe e nos permitiriam "fuçar" ainda maislonge, aumentando a chance de encontrar umplaneta que pudesse abrigar vida. Vida Alienígena? A que distância teremos que procurar paraencontrar outra biosfera? Será que a vidacomeça em cada planeta na faixa detemperatura correta, onde há água, junto comoutros elementos como o carbono? Nomomento, essas perguntas estão em aberto.Como muitas vezes na ciência, a falta deevidência leva a opiniões polarizadas e nãoraro dogmáticas, mas agnosticismo é realmentea única atitude racional enquanto sabemos tãopouco sobre como a vida começou, quãovariadas suas formas e habitats poderiam ser eque caminhos evolutivos ela poderia tomar. Será possível que alguns desses planetas,orbitando outras estrelas, abriguem formas de

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vida muito mais exóticas do que até mesmo osotimistas poderiam esperar em Marte ou emEuropa — quem sabe até algo que pudesse serchamado de inteligente? Para melhorar asprobabilidades, precisamos de umacompreensão mais clara de quão especial oambiente físico da Terra teve que ser parapermitir o prolongado processo de seleção quelevou às formas superiores de animais nonosso planeta. Donald Brownlee e Peter Ward,em seu livro Rare Earth, afirmam quepouquíssimos planetas em torno de outrasestrelas — mesmo aqueles que se pareciamcom a Terra quanto ao tamanho e àstemperaturas — forneceriam a estabilidade delongo prazo necessária para a prolongadaevolução que deve preceder a vida avançada.Para eles, vários dos pré-requisitos existentesraramente poderiam ser preenchidos. A órbitado planeta não poderia chegar muito perto deseu "sol", nem muito longe, como aconteceriase outros planetas maiores chegassem pertodemais e o empurrassem para uma órbita

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diferente; sua rotação deve ser estável (algoque depende de a nossa Lua ser grande); nãopode haver bombardeio excessivo porasteróides; e assim por diante. Mas as maiores incertezas estão na seara dabiologia, não da astronomia. Primeiro, comocomeçou a vida? Acho que há uma chance realde progresso aqui, então saberemos se é um"golpe de sorte", ou se é quase inevitável notipo de "sopa" inicial esperada num planetajovem. Há contudo uma segunda pergunta:não obstante exista vida simples, quais são asprobabilidades de que ela evolua para algo quereconheceríamos como inteligente? É provávelque esta questão se revele muito maisinacessível. Mesmo que vida primitiva sejaalgo comum, o surgimento de vida "avançada"pode não ser. Conhecemos, de modo geral, os estágiosprincipais do desenvolvimento da vida aqui naTerra. Os organismos mais simples parecem teremergido nos primeiros 100 milhões de anosdo resfriamento final da crosta terrestre após o

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último impacto importante, cerca de 4 bilhõesde anos atrás. Entretanto, parecem ter sepassado cerca de 2 bilhões de anos antes que asprimeiras células eucarióticas (nucleadas)aparecessem, e mais outro bilhão antes da vidamulticelular. A maior parte dos planoscorporais básicos parece ter surgido durante a"explosão do Cambriano", há pouco mais demeio bilhão de anos. A imensa variedade decriaturas viventes em terra emergiu daqueletempo, pontuada por grandes extinções, comoo evento há 65 milhões de anos que acaboucom os dinossauros. Ainda que existisse vida simples em muitosplanetas em torno de estrelas próximas, talvezbiosferas complexas como a da Terra sejamraras: poderia haver algum obstáculo essencialna evolução que seja difícil de superar. Talveza transição para a vida multicelular. (O fato deter surgido vida simples bem depressa nonosso planeta, ao passo que os organismosmulticelulares mais básicos levaram quase 3bilhões de anos, sugere que pode haver severas

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barreiras à emergência de qualquer vidacomplexa.) Ou quem sabe o maior obstáculoveio mais tarde. Mesmo numa biosferacomplexa, a emergência de inteligência donível da humana não é garantida. Se, porexemplo, os dinossauros não tivessem sidoexterminados, a cadeia de evolução dosmamíferos que levou ao Homo sapiens poderiater sido encerrada, e não podemos prever seoutra espécie teria assumido nosso papel.Alguns evolucionistas acreditam que aemergência da inteligência se configure emuma contingência, até mesmo improvável.Outros divergem, no entanto. Entre eles estámeu colega de Cambridge Simon ConwayMorris, uma autoridade na extraordináriavariedade de formas de vida do Cambriano emBurgess Shale, nas Rochosas canadenses naColúmbia Britânica. Ele se impressiona com aevidência para a "convergência" em evolução(por exemplo, o fato de que marsupiaisaustralianos têm contrapartidas placentáriasem outros continentes) e defende que isso

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poderia quase garantir a emergência de algocomo nós. Morris escreve: "Para toda aplenitude da vida há um forte selo delimitação, concedendo previsibilidade ao quenão só vemos na Terra, como, por extensão, emoutros lugares". Uma possibilidade mais terrível seria umobstáculo em nosso estágio evolutivo atual, oestágio em que a vida inteligente começa adesenvolver tecnologia. Se for o caso, odesenvolvimento futuro da vida depende de oshumanos sobreviverem a esta fase. Isso nãoquer dizer que a Terra tem que evitar umdesastre, só que, antes que isso aconteça,alguns seres humanos ou artefatos avançadosdeverão ter se espalhado além de seu planetanatal. É justificável que buscas por vida seconcentrem em planetas como a Terra, queorbitam estrelas longevas. Todavia, os autoresde ficção científica nos lembram de que háalternativas mais exóticas. Talvez a vida possaflorescer até mesmo num planeta jogado na

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escuridão enregelada do espaço interestelar,cujo principal calor emana da radioatividadeinterna (o processo que aquece o núcleoterrestre). Poderia haver estruturas vivasdifusas, flutuando livremente em nuvensinterestelares; tais entidades viveriam (e, seinteligentes, pensariam) em câmera lenta, mas,apesar disso, podem vir a expressar-se nofuturo distante. Nenhuma vida sobreviveria num planeta cujaestrela solar central se tornasse um gigante eexplodisse suas camadas externas. Taisconsiderações nos lembram da transitoriedadede mundos habitados, e também de quequalquer sinal de aparência artificial poderiavir de computadores superinteligentes(embora não necessariamente conscientes),criados por uma raça de seres alienígenas quehá muito deixou de existir. Inteligência Alienígena: Visitas ou Sinais? Se a vida avançada for disseminada, temos queconfrontar a famosa pergunta feita pelo grande

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físico Enrico Fermi: por que eles já nãovisitaram a Terra? Por que eles, ou seusartefatos, não estão diante de nossos narizes?Esse argumento ganha ainda mais pesoquando nos damos conta de que algumasestrelas são bilhões de anos mais velhas que onosso Sol: se a vida fosse comum, suaemergência deveria ter tido uma "vantagem"em planetas em torno dessas estrelas anciãs. Ocosmólogo Frank Tipler, talvez o proponentemais enérgico da visão de que estamossozinhos, não sugere que alienígenas teriamviajado distâncias interestelares. Ele defende,porém, que pelo menos uma civilizaçãoalienígena teria desenvolvido máquinas auto-reprodutoras e as teria lançado no espaço.Essas máquinas se espalhariam de planeta emplaneta, multiplicando-se à medida queavançavam; elas se dispersariam pela galáxiaem 10 milhões de anos, um tempo muito maiscurto do que a "vantagem" que algumas dasoutras civilizações poderiam ter tido. (É claroque há contendas recorrentes sobre a

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possibilidade de óvnis terem nos visitado;algumas pessoas afirmam ter sido abduzidaspor alienígenas. Nos anos 1990, seu "cartão devisita" favorito era um padrão de "círculos deplantação" em campos de milho, sobretudo noSul da Inglaterra. Como a maior parte doscientistas que estudaram esses relatos, souprofundamente incrédulo. Afirmaçõesextraordinárias exigem evidênciaextraordinária para apoiá-las, mas em todosesses casos a evidência é frágil. Se alienígenasrealmente tivessem capacidade mental etecnologia para atingir a Terra, será que elesnão fariam mais do que pilhar alguns camposde milho? Ou se contentariam com a breveabdução de alguns lunáticos conhecidos? Suasmanifestações são tão banais e poucoconvincentes quanto as mensagens dos mortosde que volta e meia se tinha notícia no apogeudo espiritismo, há cem anos.) Talvez possamos descartar visitas poralienígenas de escala humana, mas se umacivilização extraterrestre tivesse dominado a

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nanotecnologia e transferido sua inteligênciapara máquinas, a "invasão" poderia consistirnum enxame de sondas microscópicas quepoderiam ter passado despercebidas. Mesmoque não tivéssemos sido visitados, nãodeveríamos, apesar da pergunta de Fermi,concluir que não existem alienígenas. Seriamuito mais fácil mandar um sinal de rádio oude laser do que atravessar as distânciasinimagináveis do espaço interestelar. Já somoscapazes de mandar sinais que poderiam serdetectados por uma civilização alienígena; naverdade, equipados com grandes antenas derádio, eles poderiam detectar os fortes sinais deradar de mísseis antibalísticos, assim como aemissão conjunta de todas as nossasretransmissoras de televisão. Buscas por inteligência extraterrestre (Seti, deSearches for Extraterrestrial Intelligence) estãosendo encabeçadas pelo Instituto Seti emMountain View, Califórnia; seu trabalho ésustentado por generosas doações de PaulAllen, co-fundador da Microsoft, além de

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outros benfeitores particulares. Qualqueramador interessado que tenha um computadorpessoal pode baixar e analisar um curto trechoda seqüência de dados do radiotelescópio doinstituto. Milhões de pessoas aceitaram essaoferta, cada uma delas inspirada pelaesperança de ser a primeira a encontrar o "ET".À luz desse amplo interesse público, parecesurpreendente que as buscas do Seti aindaenfrentem tanta dificuldade em obterfinanciamento público, mesmo no nível dosimpostos arrecadados com um único filme deficção científica. Se eu fosse um cientista norte-americano testemunhando perante oCongresso, ficaria mais satisfeito em requisitaralguns milhões de dólares para o Seti do queem buscar fundos para alguma ciência maisespecializada, ou até para projetos espaciaisconvencionais. Faz sentido escutar, em vez de transmitir.Qualquer troca de duas mãos levaria décadas,então haveria tempo para planejar umaresposta ponderada. Mas, a longo prazo, um

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diálogo poderia desenvolver-se. O especialistaem lógica Hans Freudenthal propôs toda umalinguagem para comunicação interestelar,mostrando como ela poderia começar com ovocabulário limitado necessário paradeclarações matemáticas simples, egradualmente desenvolver e diversificar odomínio do discurso. Um sinal manifestamenteartificial, que tivesse intenção de serdecodificado ou que fosse parte de algumciberespaço cósmico que estivéssemosespionando, passaria a notável mensagem deque inteligência (embora não necessariamenteconsciência) não é algo exclusivo da Terra. Se a evolução em outro planeta de algumaforma se parecesse com os cenários de"inteligência artificial" conjeturados para oséculo XXI aqui na Terra, a mais provável edurável forma de "vida" pode ser representadapor máquinas cujos criadores há muito foramusurpados ou se extinguiram. O único tipo deinteligência que poderíamos detectar seriaaquele que levasse a uma tecnologia que

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pudéssemos reconhecer, e isso poderia ser umafração desimportante e atípica da totalidade dainteligência extraterrestre. Alguns "cérebros"podem interpretar a realidade de uma maneiraque não podemos conceber e ter umapercepção bem diferente dela. Outrospoderiam não ser comunicativos: levar vidascontemplativas, talvez nas profundezas dealgum oceano planetário, sem fazer nada querevelasse sua presença. Outros "cérebros"ainda poderiam ser conjuntos de "insetossociais" superinteligentes. Pode haver muitomais por aí do que seríamos capazes dedetectar. Ausência de evidência não énecessariamente evidência de ausência. Sabemos pouco demais sobre como a vidacomeçou e como ela evolui para sermoscapazes de dizer se é provável ou não aexistência de inteligência alienígena. O cosmospode já estar pululando de vida: se for o caso,nada que aconteça na Terra fará muitadiferença para o futuro cósmico da vida alongo prazo. Por outro lado, o surgimento de

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inteligência pode exigir uma cadeia de eventostão improvável que seja exclusiva à nossaTerra. Pode simplesmente não ter ocorrido emnenhum outro lugar, em volta nem mesmo deuma dentre os trilhões de bilhões de outrasestrelas ao alcance dos nossos telescópios. Também não podemos julgar o melhor meio debuscar por vida inteligente. Em capítulosanteriores, enfatizei que não podemos tercerteza nem sobre qual será a forma deinteligência dominante na Terra, mesmodentro de um século. Que perspectivaspoderíamos ter ao imaginar o que poderia sergerado em outra biosfera com 1 bilhão de anosde vantagem sobre nós? Sabemos muito poucopara determinar probabilidades com confiançasobre o que pode existir ou como isso poderiamanifestar-se, então deveríamos procurar poremissões de rádio anómalas, lampejos ópticos eabsolutamente qualquer tipo de sinal quetenhamos instrumentos para detectar. De algum modo, seria um desapontamento seas buscas por inteligência alienígena

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estivessem fadadas ao fracasso. Por outro lado,tal fracasso aumentaria nossa auto-estimacósmica: se nossa minúscula Terra fosse umamorada única da inteligência, poderíamos vê-la sob uma perspectiva menos humilde do queela mereceria se a galáxia já estivessepululando de vida complexa. 13. Além da Terra Se sondas e fabricadores robóticos seespalhassem pelo sistema solar, será quealguns humanos os seguiriam? comunidadesdistantes da terra seriam estabelecidas (sefossem) por pioneiros individualistas queapreciam encarar riscos. viajar além do sistemasolar é uma perspectiva muito mais remota epós-humana. Uma imagem ícone dos anos 1960 foi aprimeira fotografia tirada do espaço,mostrando nossa Terra esférica. JonathanSchell sugere que essa foto deveria sercomplementada por outra, com foco no nosso

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planeta mas que se estenda no tempo, e não noespaço: O ângulo que conta é visto da Terra, de dentroda vida. [...] Deste ponto de observaçãoterreno, outra paisagem — ainda mais extensado que aquela desde o espaço — se descortina.É a visão de nossos filhos e netos, e de todas asfuturas gerações da humanidade, estendendo-se diante de nós no tempo. [...] A idéia deinterromper o fluxo da vida, de amputar essefuturo, é tão chocante, tão estranha à naturezae tão contraditória em relação ao impulso davida que mal podemos considerá-la antes delhe darmos as costas irritados e descrentes. Vale a pena tomar precauções para assegurarque, aconteça o que acontecer, algo dahumanidade sobreviva? A maior parte de nósse importa com o futuro, não só por causa dapreocupação pessoal com filhos e netos, masporque todos os nossos esforços perderiam ovalor se não fossem parte de um processocontinuado, se não tivessem conseqüências querefletissem no futuro distante.

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Seria absurdo afirmar que a emigração para oespaço é uma resposta ao problemapopulacional, ou que mais do que umaminúscula fração dos que estão na Terra venhaa deixá-la. Se algum desastre reduzisse ahumanidade a uma população muito menor,vivendo em condições primitivas num terrenobaldio devastado, os sobreviventes aindaachariam o ambiente da Terra mais acolhedordo que o de qualquer outro planeta. Apesardisso, mesmo alguns poucos grupos pioneirosque vivessem independentes do planetarepresentariam uma salvaguarda contra o piordesastre possível — o abortamento do futurointeligente da vida em face da extinção de todaa humanidade. O pequeno mas constante risco de umacatástrofe global provocado por uma causa"natural" será em muito aumentado pelosriscos que brotam da tecnologia do século XXI.A humanidade permanecerá vulnerávelenquanto estiver confinada aqui na Terra. Valea pena, no espírito da aposta de Pascal,

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assegurar-se não só contra a ocorrência dedesastres naturais, mas também contra o riscoprovavelmente muito maior (e sem dúvidacrescente) das catástrofes causadas porhumanos discutidas nos capítulos anteriores?Uma vez que comunidades auto-sustentadasexistam fora da Terra — na Lua, em Marte ouflutuando livremente no espaço —, nossaespécie seria invulnerável até mesmo aospiores desastres globais. Então qual seria a possibilidade de estabelecerum habitat sustentável em outro ponto dosistema solar? Quanto tempo será necessáriopara que voltemos à Lua, e quem sabeexploremos ainda mais além? As Viagens Espaciais Tripuladas Renascerão? Aqueles de nós que hoje se encontram na meia-idade lembram de ter visto na televisão assombrias imagens do "pequeno passo" de NeilArmstrong. Nos anos 1960, o programa dopresidente Kennedy para "mandar um homemà Lua antes do fim da década, e trazê-lo são e

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salvo de volta à Terra" levou as viagensespaciais do pacote de cereais à realidade. Eparecia ser só o começo. Imaginamos projetosde continuação: uma "base lunar" permanente,bastante similar à que existe no pólo sul; ou atémesmo imensos "hotéis espaciais" orbitando aTerra. Expedições tripuladas a Marte pareciamo próximo passo natural. Mas nenhuma dessaspossibilidades se concretizou. O ano de 2001não se pareceu com a representação de ArthurC. Clarke, assim como 1984 (felizmente) nãolembrou a de Orwell. Em vez de ser um precursor para umprograma continuado e cada vez maisambicioso de viagem espacial tripulada, oprograma Apolo de aterrissagem na Lua foium episódio passageiro, motivadoprimariamente pelo afã de "derrotar os russos". A última aterrissagem lunar foi em 1972.Ninguém com idade muito aquém dos 35 selembra de quando o homem andou na Lua.Para os jovens, o programa Apolo é um remotoepisódio histórico: eles sabem que os

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americanos mandaram homens para a Lua,assim como sabem que os egípcios construíramas pirâmides; mas as motivações parecemquase tão bizarras num caso como no outro. Ofilme de 1995 Apolo 13, um "docudrama"estrelado por Tom Hanks, sobre o quasedesastre que recaiu sobre James Lovell e suatripulação numa viagem em torno da Lua, foipara mim (e suspeito que para muitos outrosde idade similar) um lembrete evocativo de umepisódio que ansiosamente acompanhamos naépoca. Mas, para uma audiência jovem, aparafernália ultrapassada e os tradicionaisvalores "corretos" devem ter parecido tãoantiquados quanto um "faroeste" tradicional. A argumentação em defesa de vôos espaciaistripulados nunca foi muito forte, e fica cadavez mais fraca com os avanços em robótica eem miniaturização. O uso do espaço paracomunicações, meteorologia e navegação foiadiante, aproveitando os mesmos avançostécnicos que nos deram telefones celulares ecomputadores portáteis de alta capacidade

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aqui na Terra. A exploração do espaço parafins científicos pode ser mais bemdesempenhada (e de forma muito mais barata)por sondas sem tripulação. Imensasquantidades de sondas robóticasminiaturizadas — "máquinas inteligentes" —serão, daqui a 25 anos, espalhadas pelo sistemasolar, mandando de volta imagens de planetas,luas, cometas e asteróides, revelando de quesão feitos, e talvez construindo artefatos com amatéria-prima encontrada neles. Pode haverbenefícios econômicos a longo prazo noespaço, mas eles serão implementados porfabricantes robóticos, não por pessoas. Mas qual é o futuro dos vôos espaciaistripulados? Na década de 1990, cosmonautasrussos passaram meses, anos até, circundandoa Terra na cada vez mais decrépita estaçãoespacial Mir. Com sua longevidade previstahavia muito esgotada, a Mir encerrou suamissão em 2001 com um mergulho final nooceano Pacífico. Sua sucessora, a InternationalSpace Station (ISS), será o artefato mais caro

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jamais construído, mas é um "elefante branco"no céu. Mesmo que seja terminada, algo queparece incerto, dados os custos imensos ecrescentes e os prolongados atrasos, ela nãopode fazer nada para justificar seu preço.Passados trinta anos desde que se andou naLua, uma nova geração de astronautas estádando voltas e mais voltas em torno da Terra,com mais conforto do que a Mir oferecia,porém a um preço muito mais alto. Enquantoescrevo, o número de astronautas a bordo foireduzido para três, por razões de segurança efinanceiras: eles ficarão entretidos com tarefas"domésticas", tornando ainda menos provávelque alguém a bordo se dedique a projetossérios ou interessantes. Na verdade, em grandeparte é tão pouco prático fazer ciência com aiss quanto seria fazer astronomia de baseterrestre num barco. Mesmo nos EstadosUnidos, a comunidade científica se opôsfirmemente à ISS e desistiu de fazer campanhacontra ela só quando o impulso político setornou inevitável. É triste que eles não tenham

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sido ouvidos: é uma derrota política nefastaque fundos de governo não tenham podido serencaminhados para as mesmas companhiasaeroespaciais, mas para projetos alternativosconsiderados úteis ou inspiradores. A ISS não énem um nem outro. Há somente uma razão para aplaudir a iss: seacreditarmos que, no futuro, as viagensespaciais se tornarão rotina, este programacontinuado assegurará que os quarenta anosde experiência de vôo espacial tripulado obtidopelos Estados Unidos e pela Rússia não sedissiparão. Um retorno aos vôos espaciais tripulados teráque esperar por mudanças em tecnologia e —talvez mais ainda — mudanças em estilo. Astécnicas atuais de lançamento são tãoextravagantes quanto seriam as viagens aéreasse o avião tivesse de ser reconstruído apóscada vôo. Vôos espaciais só se tornarãoacessíveis quando sua tecnologia se aproximardaquela do avião supersônico. Só assim asviagens orbitais de turismo poderão se

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transformar em rotina. O financista norte-americano Dennis Tito e o magnata sul-africano do software Mark Shuttleworth jágastaram 20 milhões de dólares em troca deuma semana na iss. Há uma fila de outrosdispostos a seguir esses "turistas espaciais",mesmo a esse preço; haveria muitos mais se ovalor das passagens fosse barateado. Na verdade, os indivíduos não irão, a longoprazo, restringir- se ao papel de passageirospassivamente circundando a Terra. Quandoesse tipo de escapada se tornar enfadonha,insípida e rotineira demais, alguns quererão irmais longe. Expedições tripuladas ao espaçoprofundo poderiam ser inteiramentefinanciadas por indivíduos ou consórciosparticulares e quem sabe tornar-se, com efeito,território de aventureiros endinheirados, comopilotos de teste ou exploradores antárticos,para aceitar altos riscos em troca de poderexplorar com ousadia a fronteira distante eexperimentar emoções além daquelasfornecidas por grandes iates ou por balonismo

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em torno do mundo. O programa Apolo eraum empreendimento quase militar financiadopelo governo; expedições futuras poderiam terum estilo bem diferente. Se bilionáriosusuários de tecnologia como Bill Gates ouLarry Ellison buscarem desafios que não façamsua vida futura parecer um anticlímax, elespoderiam custear a primeira base lunar oumesmo uma expedição a Marte. O Caminho "barato" para Marte Se a exploração de Marte fosse iniciada numfuturo próximo, ela poderia muito bem seguiro formato defendido pelo engenheiroindependente norte-americano Robert Zubrin.Em resposta a declarações desanimadoras daNasa de que uma expedição custaria mais de100 bilhões de dólares, Zubrin propôs umaestratégia de preço reduzido "direto a Marte"que passaria por cima da ISS. Ele tencionavaescapar de um dos principais problemas dosesquemas iniciais: a necessidade de carregar,na jornada de ida, todo o combustível para a

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viagem de volta. A proposta, apresentada emseu livro The Case for Mars [O caso de Marte],envolve primeiro o envio direto para Marte deuma sonda sem tripulação que irá manufaturaro combustível para uma jornada de volta. Elalevaria uma estação de processamentoquímico, um pequeno reator nuclear e umfoguete capaz de trazer de volta o primeirogrupo de exploradores. Esse foguete nãoestaria completamente abastecido: seustanques estariam cheios de hidrogênio puro. Oreator nuclear (rebocado por um tratorzinhoque também seria parte do primeirocarregamento) geraria então energia para aestação química, que usaria hidrogênio paraconverter dióxido de carbono da atmosferamarciana em metano e água. A água seriadesmembrada, o oxigênio armazenado e ohidrogênio reciclado para fazer mais metano.O combustível do foguete de retorno seriametano e oxigênio. Seis toneladas dehidrogênio dariam cem toneladas de metano, osuficiente para abastecer o foguete de volta dos

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astronautas. (É claro que, se fosse possívelextrair água de gelo que não estivesse muitoabaixo da superfície, parte desse processopoderia ser eliminada.) Dois anos mais tarde, uma segunda e umaterceira naves espaciais seriam lançadas. Umadelas levaria um carregamento semelhanteàquele da primeira nave, enquanto a outraconteria a tripulação, assim como provisõessuficientes para uma estada em Marte de atédois anos. A nave tripulada faria uma trajetóriamais rápida do que a de carga. Isso quer dizerque a tripulação não precisa ser lançada até (ea não ser) que o carregamento estivesse acaminho em segurança, mas poderia, mesmoassim, chegar a Marte antes do cargueiro. Sepor algum infortúnio eles aterrissassem longedo ponto pretendido (onde estaria a primeiraleva de carga), ainda haveria tempo paradesviar a segunda nave de carga para o pontoreal de aterrissagem, de maneira que, ondequer que ela pousasse, a tripulação teriasuprimentos. Uma vez que essa missão de

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abrir caminhos estivesse cumprida, poderia serrealizada mais uma ou duas viagens a cadadois anos, aumentando gradualmente a infra-estrutura. Será que alguém quereria ir? Pode haver aquium paralelo com a exploração terrestre, que foiimpelida por uma variedade de motivos. Osexploradores que saíram da Europa nosséculos XV e XXI eram bancados sobretudopelos monarcas, na esperança de encontrarmercadorias exóticas ou colonizar novosterritórios. Alguns, por exemplo o capitãoCook em suas três expedições no século XXIIIpara os mares do Sul, receberam financiamentopúblico, pelo menos em parte comoempreendimento científico. E, para alguns dosprimeiros exploradores — em geral os maisarrojados de todos —, o empreendimento eraacima de tudo um desafio e uma aventura: amotivação dos montanhistas de hoje em dia ede velejadores que fazem a volta ao mundo. Os primeiros viajantes para Marte, ou osprimeiros habitantes a longo prazo de uma

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base lunar, poderiam ser impulsionados porqualquer um desses motivos. Os riscos seriamaltos; mas, na verdade, nenhum viajante doespaço estaria se aventurando no desconhecidocomo os grandes navegadores fizeram.Aqueles primeiros viajantes dispunham demuito menos conhecimento prévio do quepoderiam encontrar e de quantos morreriamno empreendimento. Além disso, nenhumespaçonauta estaria privado de contatohumano. Haveria de fato uma demora de trintaminutos para que mensagens fossem evoltassem de Marte. No entanto, osexploradores tradicionais levavam meses paramandar recados para casa; e alguns — ocapitão Scott e outros pioneiros polares —simplesmente não tinham contato nenhum. Há muito em jogo na abertura de novosmundos. Parece ser um axioma que todosdeveriam retornar. Mas talvez os pioneirosmais determinados devessem estar preparadospara aceitar — como muitos europeus fizerampor vontade própria quando partiram para o

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Novo Mundo — que não haja volta. Poderiahaver muitos que se sacrificariam numa causagloriosa e histórica; ao abrir mão da opção dealguma vez voltar para casa, eles reduziriam oscustos por eliminar a necessidade de levarcasulos de foguete e hidrogênio para a viagemde volta. Uma base marciana se desenvolveriamais depressa se os que a construíssem secontentassem somente com passagens de ida. Futuristas e entusiastas do espaço comfreqüência advertem que a "humanidade" ou "anação" deveria decidir fazer algo. A exploraçãoespacial na verdade começou como umempreendimento quase militar financiadopelos governos. Mas essa retórica éinapropriada para feitos espaciais tripuladosno século XXI. A maior parte das grandesinovações e realizações foi iniciada não porqueeram um objetivo nacional, e sim por causa demotivação econômica ou simplesmente porobsessão pessoal. O empreendimento será mais barato e menosprecário quando os sistemas de propulsão

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forem mais eficientes. Atualmente, sãonecessárias várias toneladas de combustívelquímico para propulsionar uma tonelada decarga para fora das garras da gravidade daTerra. Realizar viagens espaciais é difícilprimariamente porque a trajetória tem de serplanejada com alta precisão para minimizar oconsumo de combustível. Mas se houvesse,digamos, dez vezes mais impulso para cadaquilograma de combustível, então ajustes ameio caminho poderiam ser feitos sempre quepreciso, como fazemos ao dirigir por umaestrada tortuosa. Manter um carro na estradaseria um empreendimento de alta precisão se ajornada tivesse que ser programada deantemão, sem chance de efetuar ajustes nocaminho. Se fosse possível esbanjar potência ecombustível, as viagens espaciais seriam umexercício quase não especializado. O destino (aLua, Marte ou um asteróide) está bem à vista.Basta rumar para ele e usar retrofoguetes parafrear quanto for necessário no fim da jornada.

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Não sabemos ainda que tipos de novossistemas de propulsão se mostrarão maispromissores: a energia solar e a nuclear são asduas opções óbvias a curto prazo. Ajudariamuito se o sistema de propulsão e ocombustível necessário para escapar dagravidade da Terra pudessem localizar-se nosolo em vez de ter que ser parte da carga.Potentíssimos lasers em solo seriam outrapossibilidade. Outra: um elevador espacial, umcabo feito de fibra de carbono que se estenderiapor mais de 25 mil quilômetros no espaço eque seria fixo por um satélite geoestacionário.(Nanotubos de carbono têm uma força detensão bastante alta. Já foram feitos "novelos"de carbono finíssimos de até trinta centímetrosde comprimento; o desafio é fabricar tubos deenorme comprimento, ou desenvolver técnicaspara trançá-los num cabo muito longo queretivesse a força de fibras separadas.) Esse"elevador" permitiria que carregamentos epassageiros fossem içados para fora dagravidade da Ter ra com energia fornecida do

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solo. O resto da viagem poderia ser alimentadopor um foguete (talvez nuclear) de baixapropulsão. Antes que seres humanos se aventurem noespaço profundo, o sistema solar inteiro terásido mapeado e investigado por flotilhas deminúsculas naves robóticas, controladas pelos"processadores" cada vez mais potentes eminiaturizados que a nanotecnologiafornecerá. Uma expedição tripulada a Marteterá sido precedida pelos cargueiros deprovisões imaginados por Zubrin e talveztambém por sementes de plantas projetadaspara florescer e multiplicar-se no planetavermelho. Freeman Dyson imagina "árvoressob medida", feitas pela engenharia genética,que poderiam produzir uma membranatransparente em torno de si que funcionassecomo uma estufa. Métodos de força bruta foram propostos para"terraformar" a superfície inteira de Marte paratorná-la mais habitável. Ela poderia seraquecida por injeção de gases estufa em sua

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tênue atmosfera, ou pelo posicionamento deimensos espelhos em órbita para dirigir maisluz solar aos pólos, ou mesmo ter algunstrechos cobertos com algo preto para absorvera luz do Sol — fuligem ou basalto em pó. Seriaum processo que levaria séculos; mas dentrode um século poderia haver uma presençapermanente em bases localizadas. Uma vezque a infra-estrutura estivesse lá, as viagens deida e volta se tornariam menos custosas epoderiam ser mais freqüentes. Questões de ética ambiental podem pesar.Seria aceitável explorar Marte, como aconteceuquando (com conseqüências trágicas para osindígenas americanos) os colonos pioneirosavançaram para o oeste através dos EstadosUnidos? Ou ele deveria ser preservado comoecossistema natural, como a Antártica? Aresposta deveria, na minha opinião, dependerdo que é na verdade o estado virgem de Marte.Se já tiver havido vida lá — sobretudo se elativesse um DNA diferente, atestando umaorigem bem separada de qualquer vida na

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Terra —, então haveria pontos de vista muitoalardeados de que ele deveria ser preservadocom o mínimo de poluição. O que poderiarealmente acontecer dependeria do caráter dasprimeiras expedições. Se fossemgovernamentais (ou internacionais), umcontrole à moda antártica poderia serpraticável. Por outro lado, se os exploradoresfossem aventureiros com financiamentoprivado e disposição de livre empreendimento(até mesmo anárquica), o modelo do faroeste,gostemos ou não, teria maior probabilidade deprevalecer. No Espaço mais Profundo O enfoque não ficará exclusivamente na Lua eem Marte. Ao final, a vida poderia espalhar-see diversificar-se entre cometas e asteróides, atémesmo nos recantos mais frios e longínquos donosso sistema solar: o vasto número depequenos corpos no sistema solar tem, emconjunto, uma superfície habitável muitomaior do que os planetas.

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Uma alternativa seria construir um habitatartificial, flutuando livre no espaço. Essa opçãofoi estudada nos anos 1970 por Gerard O'Neill,um professor de engenharia na Universidadede Princeton. Ele imaginou uma nave espacialcom a forma de um vasto cilindro, girandolentamente em torno de seu eixo. Os ocupantesviveriam no lado interno de suas paredes,presos a elas pela gravidade artificial geradapor sua rotação. Os cilindros seriam grandes osuficiente para ter uma atmosfera, até mesmoquem sabe nuvens e chuva, e poderiamacomodar dezenas de milhares num ambienteque, nos esboços talvez fantasiosos de O'Neill,se assemelhava a um verdejante subúrbiocaliforniano. O material para construir essasestruturas gigantescas teria que ser "minerado"da Lua ou de asteróides. O'Neill defendeu oválido ponto de vista de que, uma vez queprojetos de engenharia robótica de grandeescala pudessem ser desenvolvidos no espaço,usando matéria-prima que não precise serretirada da Terra, torna-se factível a construção

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de plataformas espaciais artificiais em escalamuito ampla. Os cenários específicos de O'Neill podemtornar-se tecnicamente factíveis, mas elespermanecem implausíveis do ponto de vistasociológico. Uma única estrutura frágilcontendo dezenas de milhares de pessoas seriaainda mais vulnerável a um único ato desabotagem do que comunidades integradasaqui na Terra. Um conjunto mais disperso dehabitats de menor escala ofereceria chancesmais sólidas de sobrevivência edesenvolvimento. Na segunda metade do século XXI poderiahaver centenas de pessoas em bases lunares,assim como há agora no pólo sul; algunspioneiros já poderiam estar vivendo em Marte,ou em pequenos habitats artificiais navegandopelo sistema solar, ligando-se a asteróides oucometas. O espaço também será permeado porrobôs e "fabricadores" inteligentes, utilizandomatéria-prima de asteróides para construirestruturas de escala cada vez maior. Não estou

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especialmente defendendo esses desenvolvi-mentos, mas eles, mesmo assim, parecemplausíveis, de um ponto de vista tanto técnicocomo sociológico. O Futuro Distante Ainda mais adiante, em séculos futuros, robôse fabricadores poderiam ter se infiltrado pelosistema solar inteiro. Se os próprios sereshumanos terão aderido a essa diáspora, trata-se de algo mais difícil de prever. Se tivessem,comunidades se desenvolveriam de maneira atorná-los ao fim bem independentes da Terra.Sem estar presos a nenhuma restrição, algunscertamente explorariam todo o espectro detécnicas genéticas e divergiriam em novasespécies. (A restrição devida à falta dediversidade genética em pequenos grupospoderia ser ultrapassada por variaçõesprovocadas artificialmente no genoma.) Asdiversas condições físicas—muito diferentesem Marte, no cinturão de asteróides e nosrecantos distantes ainda mais frios do sistema

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solar — dariam ímpeto renovado àdiversificação biológica. Embora uma visão contrária seja comfreqüência expressa, as extensões de espaçooferecem pouca esperança de uma solução aproblemas de recursos ou de população naTerra: estes terão que ser resolvidos aqui, se oproblema não se tornar trivial em face dealgum dos infortúnios à civilização terrestrelevantados em capítulos anteriores. Aspopulações no espaço podem afinal crescerexponencialmente, mas isso será por causa deseu crescimento autônomo, e não em virutdeda "emigração" da Terra. Aqueles que forempara o espaço serão impelidos por um anseioexploratório. Suas escolhas, entretanto, terãoconseqüências incalculáveis. Uma vezatravessado o limite de haver um nível auto-sustentado de vida no espaço, então o futuro alongo prazo estará asseguradoindependentemente de qualquer risco que secorra na Terra (com a exceção da destruiçãocatastrófica do próprio espaço). Será que isso

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acontecerá antes que nossa civilização sedesintegre, deixando a perspectiva como um"poderia-ter-sido"? As comunidades espaciaisauto- sustentadas estarão estabelecidas antesque uma catástrofe acabe com a esperança dequalquer empreendimento dessa natureza,talvez encerrando-o para sempre? Vivemos noque poderia ser um momento definidor para ocosmos, não só para o nosso planeta. Os seres que poderiam, dentro de algumascentenas de anos, ocupar locais em nossosistema solar seriam todos humanóidesreconhecíveis, a despeito de poderem sercomplementados (e provavelmente, nos locaismais inóspitos, em franca minoria) por robôscom inteligência humana. No entanto, sechegassem a acontecer, as viagens além dosistema solar através do espaço intereste- larseriam um desafio pós-humano. Inicialmenteelas envolveriam sondas robóticas. A jornadaduraria muitas gerações humanas e exigiriauma comunidade autônoma, ou a animaçãosuspensa de qualquer inteligência viva.

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Alternativamente, poder-se-ia lançar materialgenético no cosmos, ou plantas inseridas emmemórias inorgânicas, em naves em miniatura.Elas poderiam ser programadas para aterrissarem planetas promissores e duplicar cópias desi, dando início a uma difusão pela galáxiainteira. Poderia mesmo haver transmissão alaser de informação "codificada" (um tipo de"viagem espacial" realizada à velocidade daluz) que poderia desencadear a montagem deartefatos ou a "semeadura" de organismosvivos em localidades propícias. Tais conceitosnos confrontam com questões profundas sobreos limites da armazenagem de informação,além de implicações filosóficas de identidade. Isso seria uma transição evolutiva tão notávelquanto aquela que levou à vida terrestre naTerra. Mas ainda poderia ser só o começo daevolução cósmica. Perspectiva de um Gigaano Uma piada batida entre professores deastronomia descreve um aluno preocupado

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perguntando: "Quanto você falou que levariapara o Sol carbonizar a Terra?". Ao receber aresposta, "6 bilhões de anos", o aluno respondecom alívio: "Graças a Deus, achei que vocêtivesse dito 6 milhões". O que acontecerá nosevos do futuro distante pode parecerfrancamente irrelevante para as coisas práticasda nossa vida. Mas não acho que o contextocósmico seja inteiramente irrelevante à formacomo percebemos nossa Terra e a sina doshumanos. O grande biólogo Christian de Duve imaginaque: A árvore da vida pode atingir o dobro de suaaltura atual. Isso poderia acontecer porcrescimento do ramo humano, mas nãonecessariamente. Há tempo de sobra para queoutros galhos brotem e cresçam, ao fimchegando a um nível muito mais alto do queaquele que ocupamos enquanto o galho maisalto murcha. [...] O que vai acontecer dependeaté certo ponto de nós, já que agora temos o

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poder de influenciar de forma decisiva o futuroda vida e da humanidade na Terra. O próprio Darwin observou que "nenhumaespécie viva transmitirá sua aparênciainalterada para um futuro distante". Nossaprópria espécie pode mudar e diversificar-semais depressa do que qualquer predecessor,por meio de modificações controladas cominteligência, não só pela seleção natural. Muitoantes de o Sol finalmente ter limpado alambidas o rosto da Terra, uma variedadepululante de vida ou seus artefatos poderia terse espalhado muito além de seu planetaoriginal; desde que evitemos uma catástrofeirreversível antes que esse processo possacomeçar. Eles poderiam ter a expectativa deum futuro quase infinito. "Buracos deminhoca", dimensões adicionais ecomputadores quânticos abrem panoramasespeculativos que poderiam ao fimtransformar todo o nosso universo num"cosmos vivo".

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As primeiras criaturas aquáticas se arrastarampara a terra firme no período siluriano, há maisde 300 milhões de anos. Podem ter sido bichospouco atraentes, mas, se tivessem sidoextirpados, a evolução da fauna terrestreestaria em jogo. Da mesma forma, o potencialpós-humano é tão imenso que nem mesmo omais misantropo entre nós toleraria que elefosse abortado por ações humanas. 14. Epílogo A cultura tradicional ocidental imaginou umcomeço e um fim para a história, mas umaextensão de tempo restrita — só algunsmilhares de anos — entre um e outro. (Muitos,no entanto, questionaram a exatidão doarcebispo de Armagh, James Ussher, famosopor datar a Criação num sábado à tarde, no dia22 de outubro de 4004 a.C.) Além disso,acreditava-se amplamente que a históriaadentrara seu milênio final. Para o ensaísta doséculo XXII sir Thomas Browne,"o mundo em

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si parece estar em declínio. Mais Tempodecorreu do que está por vir". Na concepção de Ussher, a criação do mundo ea criação da humanidade aconteceram com umintervalo de uma semana uma da outra; paranossas mentes modernas, os dois eventos estãoinimaginavelmente distantes. Houve umalonga ausência antes de nós, e seu registro nosobserva de cada pedra. A evolução da biosferada Terra pode ser reconstruída em váriosbilhões de anos: avalia-se que o futuro denosso universo físico se estende ainda mais,talvez até mesmo ao infinito. Mas, apesardesses horizontes expandidos, tanto passadocomo futuro, uma escala de tempo se contraiu:estimativas pessimistas do tempo que resta ànossa civilização, antes que se esfarele oumesmo passe pelo apocalipse final, são maiscurtas do que os cálculos de nossosantecessores que devotamente adicionaramtijolos a catedrais que não ficariam prontasdurante seu tempo de vida. A Terra em si podepersistir, contudo não serão os humanos que

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lidarão com nosso planeta sendo crestado peloSol agonizante; nem mesmo, talvez, com oesgotamento dos recursos do nosso planeta. Se o ciclo de vida inteiro do nosso sistemasolar, de seu nascimento numa nuvem cósmicaa seus estertores de morte nas chamas finais doSol, fosse visto com um recurso de avançorápido num único ano, então toda a históriaregistrada duraria menos de um minuto noinício de junho. O século XX passaria zunindoem um terço de segundo. A fração de segundoseguinte, nessa representação, seria "crítica": noséculo XXI, a humanidade corre mais riscos doque jamais correu em face da má aplicação daciência. E as pressões ambientais causadas porações coletivas humanas poderiamdesencadear catástrofes mais ameaçadoras doque qualquer perigo natural. Durante várias décadas recentes, estivemosvulneráveis a um holocausto nuclear.Escapamos, mas em retrospecto parece quedevemos nossa sobrevivência tanto à sortecomo a probabilidades intrinsecamente

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favoráveis. Além disso, conhecimento recente(sobretudo em biologia) deu origem a perigosnão nucleares que poderiam ser ainda maissombrios na próxima metade de século. Armasnucleares conferem a uma nação agressorauma vantagem devastadora sobre qualquerdefesa possível. Novas ciências logoconcedarão a pequenos grupos, até mesmoindivíduos, influência semelhante sobre asociedade. Nosso mundo cada vez mais inter-conectado é vulnerável a novos riscos; "bio" ou"ciber", terror ou erro. Esses riscos não podemser eliminados: na verdade será difícil impedirque cresçam sem invadir algumas acalentadasliberdades pessoais. Os benefícios que a biotecnologia traz sãoevidentes, mas devem ser pesados contra osriscos e as restrições éticas que osacompanham. A robótica ou a nanotecnologiatambém envolverão alguns senões: elaspoderiam ter conseqüências desastrosas oumesmo incontroláveis quando mal aplicadas.Pesquisadores deveriam ter cuidado ao

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"empurrar as fronteiras" da ciência; mesmo sefosse o caso de pôr freios em alguma pesquisa,uma moratória nunca poderia ser efetivamenteimplementada no mundo todo. Nem pensadores especulativos como H. G.Wells nem seus cientistas contemporâneostiveram muito sucesso em prever os destaquesda ciência do século XX. O século atual é aindamenos previsível por causa da possibilidade dealterar ou suplementar o intelecto humano.Mas quaisquer novos avanços inteiramenteinesperados podem muito bem apresentarnovos riscos também. Responsabilidadeespecial recai sobre os próprios cientistas: elesdeveriam estar cientes de como seu trabalhopoderia ser aplicado e fazer tudo ao seualcance para alertar o público em geral arespeitos dos perigos potenciais. Um desafio fundamental é entender a naturezada vida; como começou e se ela existe fora daTerra. (Com certeza não há outra perguntacientífica que eu pessoalmente estaria maisávido por ver respondida.) Vida alienígena

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pode ser descoberta — até mesmo,possivelmente, inteligência alienígena. Nossoplaneta poderia ser um dentre milhões a seremhabitados: podemos viver num universo pró-biológico que já pulula de vida. Se for o caso,os mais notáveis acontecimentos na Terra,mesmo nossa extinção absoluta, mal seriamregistrados como eventos cósmicos. Naspeculiares palavras do astrônomo e místico doséculo XXIII, Thomas Wright of Durham: Nesta grande Criação Celestial, a Catástrofe deum Mundo, tal como o nosso, ou mesmo aDissolução total de um Sistema de Mundos,pode não ser mais para o grande Autor daNatureza do que é o mais comum Acidente naVida entre nós, e em toda Probabilidade taisdefinitivos e usuais Dias dos Juízos Finaispodem ser tão freqüentes aqui quantoNascimentos ou a Mortalidade entre nós sobreesta Terra. Mas poderia acontecer de as probabilidadesserem extremamente desfavoráveis aosurgimento da vida, de forma que nossa

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biosfera seja a morada única de vidainteligente e consciente de si em nossa galáxia.O destino da nossa pequena Terra teria entãoum significado verdadeiramente cósmico —uma importância que reverberaria por toda a"Criação Celestial" de Thomas Wright. Nossas preocupações principais se concentramnaturalmente no destino da geração atual e naredução das ameaças a nós mesmos. Para mim,entretanto, e talvez para outros (sobretudoaqueles que não possuem uma crençareligiosa), uma perspectiva cósmica reforça oimperativo de querer bem a este "pálido pontoazul" no cosmos. Ela também deveria motivaruma atitude circunspecta em relação ainovações tecnológicas que impõem umapequena ameaça que seja de um "porém"catastrófico. O tema deste livro é: a humanidade está emmaior perigo do que já esteve em qualqueroutra fase de sua história. O cosmos maisamplo tem um futuro potencial que poderia serinfinito. Mas serão essas vastas extensões de

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tempo preenchidas com vida, ou ficarão vaziascomo os primeiros mares estéreis da Terra? Aescolha pode depender de nós, neste século. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .