Horizontes 20XX A AMAZÔNIA E A INSERÇÃO DE SEGURANÇA DO BRASIL

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    HORIZONTES 20XXA AMAZNIA E A INSERO DE

    SEGURANA DO BRASIL

    GT Poltica Internacional

    Terceira Sesso:

    Segurana Coletiva, Defesa Nacional e Democracia

    XXIV Encontro Anual da ANPOCSPetrpolis, RJ, de 23 a 27 de outubro de 2000

    Domcio Proena JniorSalvador Ghelfi Raza

    Grupo de Estudos EstratgicosCOPPE/UFRJ

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    Agosto de 2000

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    HORIZONTES 20XXA AMAZNIA E A INSERO DE SEGURANA DO

    BRASIL

    Domcio Proena JniorSalvador Ghelfi Raza

    GEEe COPPE/UFRJAgosto 2000

    INTRODUO

    H uma perniciosa fico, de que s o presente explica o presente e que os conhecimentos do

    passado tm pouco ou nenhum valor. Assim, diante dos desafios contemporneos, existe um vis

    em si mesmo injustificvel, que privilegia, de forma quase absoluta, a formulao presente. Ora, o

    presente nasce do passado. Se temos clareza do quanto o passado recente moldou nossa percepo e

    reflexo, ento, se por nenhum outro motivo seno o de no estar marcado por este passado recente,

    fundamental retornar s obras e reflexes do tempo em que este passado recente ainda estava no

    futuro. Mais ainda, existe um valor evidente em poder se dispor das reflexes e experincias de

    situaes passadas em que reconhecemos alguma analogia com o nosso presente1.

    Mesmo hoje, quando o convvio internacional marcado por uma crescente interdependncia entre

    os povos e entre as organizaes privadas de diversos pases, o fundamento da existncia de um

    Estado e de sua capacidade de estabelecer relacionamentos construtivos com outras sociedades

    sua capacidade de respaldar seus interesses pela fora. O ambiente internacional se caracteriza por

    uma situao de anarquia, aqui entendida simplesmente como ausncia de governo, e no como

    anomia, desordem ou caos2. A existncia de acordos, mecanismos de cooperao e entendimentos

    de diversos tipos entre os diversos Estados no pode e no deve ser tomada como materializao de

    1 Para uma discusso mais extensa da questo desta forma contempornea de historicismo, sempre interessanteretornar a POPPER, Karl. The Poverty of Historicism. London: Kiegley Paul, 1983. Do ponto de vista dos estudosestratgicos, a questo das formas pelos quais o passado e o presente dialogam de forma mutuamente enriquecedoraderiva dos trabalhos de DELBRCK, Hans. A History of The Art of War. Lincon and London: Universty of NebraskaPress, 1975-1995 (4 vols.). Uma viso sucinta da forma pela qual a Histria deve ser tratada neste contexto pode serencontrada em HOWARD, Michael. The use and abuse of military history. in The causes of war and other essays.London: FreePress, 1981.2A exposio mais contundente da perspectiva aqui aventada WALTZ, Kenneth N. Theory of International Politics.

    New York, McGraw-Hill, 1979; para crticas e uma resposta de Waltz, v. KEOHANE, Robert O. (ed.).Neorealism andits critics. New York, Columbia University Press, 1986. Num certo sentido, trata-se, aqui, da longevidade daspreocupaes expressas por BULL, Hedley. The anarchical society: a study of order in World Politics. London:MacMillan, 1977.

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    fenmeno blico de cada tempo5.

    A compreenso do fenmeno blico , assim, a questo chave das discusses sobre as bases do

    relacionamento que um Estado mantm com os demais. Essa compreenso tem que estar embasada

    num slido entendimento cientfico, pois, do contrrio, a reificao de prticas estabelecidas

    engessar a busca de alternativas, impedindo uma crtica racional dos arranjos vigentes, das

    alternativas de seu emprego e da concepo de novos arranjos capazes de acompanhar a evoluo

    poltica.

    Um dos desafios intelectuais mais interessantes de nosso tempo diz respeito necessidade de saber

    lidar com as conseqncias do desmoronamento do edifcio discursivo da Guerra Fria. evidente

    que muito da discusso entre cientistas refletiu, antes de mais nada, a questo ideolgica que

    marcou este enfrentamento. Muito da literatura dos estudos estratgicos e das relaes

    internacionais tem que enfrentar uma necessria reinsero6.

    Quaisquer consideraes que se desejem teis para a discusso de segurana, da guerra e da paz em

    nosso tempo, possibilitando uma reflexo embasada sobre os horizontes dos 20XX a dubiedade

    da data deliberada , tm que iniciar por um esclarecimento algo detalhado das bases sobre as

    quais se assentam. No que nos concerne, e com um foco muito claro pelo qual demos conta de uma

    anlise do problema amaznico como guia para a insero de segurana do Brasil, h a necessidade

    de iluminar a pertinncia destas bases7.

    Com efeito, se aguerra um ato de fora para compelir o inimigo a fazer a nossa vontade 8, a

    meta de desarmar o inimigo no sentido de torn-lo incapaz de resistir passaria a ganhar

    precedncia sobre qualquer que seja o objeto especfico de nossa vontade que desejamos impor a

    nosso inimigo9. Evidentemente que o mesmo raciocnio valeria para o inimigo. Assim, desarmar o

    5Nesse sentido, seria admissvel uma redao alternativa em que se tratasse do fenmeno blico em cada tempo. O

    ponto, no entanto, a de uma escolha deliberada por uma insero de entendimento contido no esprito do tempo(Zeitgeist) do momento vivido. Para uma discusso elucidativa da questo, veja-se JONAS, Hans. Teoria da poca

    Atual. So Paulo: Difel, 1976.6Para duas das mais interessantes tentativas de dar conta deste desafio, vejam-se BOOTH, Ken and SMITH, Steve.(eds.) International Relations Theory Today. University Park, Penn.: Pennsylvania State University Press, 1995. Emespecial BUZAN, Barry. The level of analysis problem in International Relations reconsidered: 198-216; e TICKNER,J. Ann. Re-visioning security: 175-197. Para os estudos estratgicos, a melhor colocao do problema nos parece serBETTS, Richard. Should Strategic Studies Survive? Word Politics. 1/97: 213-242.7A exposio que se seque d continuidade a uma trajetria reflexiva que vimos conduzindo nos ltimos anos pela qualidentificar os fundamentos tericos do uso da fora. Reflete, desta maneira, um esforo coletivo que, em outrasocasies, j teve como co-autores de textos especficos a Clvis Brigago, Eugenio Diniz, e Jaqueline Muniz.8

    CLAUSEWITZ, Carl von. On War. Edited by Peter Paret and Michael Howard. New York, Everymans Edition,1997. p. 83.9 Neste sentido, preciso resgatar a concepo de SCHMIDT, Carl. The concept of the political. New Brunswick:Rutgers University Press, 1971, em que a definio do inimigo o atributo central da poltica. Indo mais alm, curioso

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    inimigo, que tentar, por sua vez, nos desarmar, se torna a meta da guerra, substituindo o objetivo

    poltico original.

    Esta dinmica levaria ao seguinte processo de escalao da guerra, trs interaes que levariam a

    uma ascenso aos extremos de violncia:

    se um lado moderasse seus esforos e o outro no, este ltimo teria uma vantagem; portanto,antecipando esse fato, ambos os lados tenderiam a no moderar, de forma alguma, seusesforos, levando a um primeiro fator de ascenso aos extremos de violncia;

    o medo de ser desarmado levaria a que se empregasse o mximo de fora possvel no menortempo possvel; logicamente, o inimigo teria a mesma percepo, o mesmo medo, e a mesmareao, sendo este um segundo fator de ascenso da violncia aos extremos;

    um lado que convertesse todos os seus recursos em fora teria uma vantagem sobre o outro queno o fizesse; como os dois lados podem tambm antecipar esse fato, temos o terceiro fator deascenso da violncia aos extremos.

    Este raciocnio leva a uma idia inicial de que a guerra seria, em todos os casos, violncia absoluta,

    sem limites. Toda guerra deveria ser, logicamente, caracterizada por um nico pulso extremo,

    instantneo e decisivo de violncia, que deixaria um dos lados inteiramente desarmado e entregue

    vontade do outro.

    No entanto, esta guerra de violncia absoluta inexiste. A violncia da guerra foi, sempre, controlada,

    diminuda, limitada. As guerras nunca foram um nico pulso de violncia; nunca foraminstantneas; e muito raramente, se que em algum caso, s terminara depois do completo e

    absoluto desarmamento de um dos lados10. Ora, como isto pode ser? Por que a guerra atinge os

    extremos de violncia, porque to diferente na prtica do que deveria ser, dada a sua natureza

    lgica? Como pode haver limites ao que, em abstrato e logicamente, deveria ser sem limites,

    absoluto?

    A fora das respostas a que a teoria da guerra chegou em seu momento inicial, ainda no incio do

    sculo XIX, tal que hoje muitos as tomam como um dever-ser lgico, poltico ou moral .Mas no esse o caso, de forma alguma. Estes resultados foram e so to fortes que correm o risco de serem

    tomados irrefletidamente como axiomas. essencial que se perceba que os resultados que se

    apresentam logo a seguir no derivam de uma agenda apriorstica do que deveria ser o lugar da

    guerra na vida; no so postulados, mas resultadosconsistentemente construdos a partir de uma

    perceber como o entendimento diferencial entre o inimigo privado e o inimigo pblico estabelece um dilogosurpreendentemente atual para com o problema do provimento da ordem pblica e da segurana internacional.10

    Para uma reviso razoavelmente completa de todas as guerras do Ocidente desde que existem registros histricosminimamente confiveis, no preciso mais que o acima citado Hans Delbrck. Neste sentido, fascinante como muitoda discusso sobre o papel da guerra e a forma concreta como as guerras comeam, se desenvolvem e terminam, pode

    permanecer envolto em mitos e aluses literrias.

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    teoria articulada e coerente da guerra.

    O mais incisivo destes resultados que a guerra a continuao da poltica por outros meios

    (especificamente, os meios de fora). Perceba-se que o fato da guerra ser continuao da poltica

    no uma hiptese de partida, uma prescrio de bom governo ou um desejo que oriente como o

    mundo deve ser. Ao contrrio, trata-se de um resultado.

    Embora o objetivo poltico particular de qualquer guerra individual tenha sido expulso da teoria

    inicial em funo da supremacia da meta de desarmar o inimigo quando do raciocnio lgico

    abstrato expresso mais acima, ele pode retornar a partir da realidade da assimetria entre ataque e

    defesa. Este um resultado nascido do confronto emprico sobre a natureza do uso da fora para a

    defesa e para o ataque. Ataque e defesa so formas diferentes de se lutar, sendo a defesa a mais

    forte.

    Essa fora deriva de uma diversidade de fontes: o fato de que, desde o ponto de vista poltico, assim

    como, do ponto de vista militar, mais fcil preservar do que adquirir. H elementos propriamente

    polticos que respaldam a qualquer defensor: a simpatia dos demais estados, a legitimidade de sua

    posse, os sentimentos e lealdades das populaes dos territrios atacados. H elementos

    propriamente militares que respaldam a qualquer defensor: a liberdade e o conhecimento do

    territrio, a vantagem da preparao e da espera, a dinmica da dificuldade da ao na guerra e os

    elementos afetivos e motivacionais de preservar o que seu que induzem atitudes diferenciadas nas

    tropas que atacam e defendem.

    Assim, uma situao bastante comum que um dos lados, apesar de mais forte que o outro, no

    esteja to forte que possa atacar com expectativa de sucesso. Isto se evidencia freqentemente no

    desenrolar das guerras: uma pausa na ao quando nada justificaria que ambos os lados aceitassem

    tal pausa. A conscincia deste fato, isto , a superioridade da defesa, por ambos os lados, que

    permite o retorno do objetivo poltico. O objetivo preside todo o esforo blico, no mnimo, por

    antecipao da possibilidade desse impasse. Por essa razo, e no por outras, que se pode dizer

    que a guerra pertence ao domnio da poltica uma continuao do intercurso poltico por adio

    de meios violentos11.

    Perceba-se como este entendimento coloca claramente que em toda guerra, e durante toda a guerra,

    a possibilidade de negociao est sempre presente: os meios de fora so apenas um tipo de

    argumento, que se acrescenta ao processo de relacionamento. Assim, pode-se perceber que a guerra

    no uma patologia social, nascida da irracionalidade ou pouca viso dos povos ou governantes;

    11CLAUSEWITZ, Carl von. On War. Edited by Peter Paret and Michael Howard. New York, Everymans Edition,1997. p. 99.

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    no um sintoma da imperfeio da natureza humana. uma forma de equacionar os

    enfrentamentos de vontade. Uma forma de resolver questes na arena internacional.

    neste sentido que a guerra no pode ser separada de seu propsito poltico, ou seja, da vontade

    que se quer que o inimigo cumpra. Essa vontade transcende as organizaes militares, alojando-se

    no processo do interrelacionamento poltico das diversas sociedades. Nesse sentido, h uma

    continuidade lgica entre poltica e guerra, j que esta ltima apenas uma das formas pelas quais

    equacionar os interesses conflitantes, interesses que so a matria tanto de uma quanto de outra.

    por istoque a poltica subordina a fora. por isso que o objeto da guerra no desaparece em

    cada guerra, sendo substitudo pela meta de desarmar o inimigo. S a poltica pode determinar se

    lutar; se no lutar; se continuar a lutar ou parar de lutar atende ao que se quer. S a poltica pode

    avaliar se vale a pena usar do argumento da fora, luz de interesses que so, necessariamente,

    mais amplos que os do resultado da guerra em si mesma.

    A guerra nunca o nico propsito polticopor mais importante ou vital que este propsito seja.

    Em todos os momentos os custos e riscos da continuidade da guerra, a necessidade de continuao

    de outras atividades que no a guerra, a probabilidade de que outros objetivos sejam ameaados por

    uma excessiva debilitao, as leituras que outros fazem dos resultados possveis e das formas de

    conduo da guerra por cada um dos lados, tudo isto leva a que no se empenhem todos os recursos

    em foras, e todas as foras num nico empreendimento.

    da, da natureza intrnseca do fenmeno, a partir do ajuste do raciocnio abstrato pelo contato com

    a realidade empiricamente considerada, que se pode concluir que o poder civil, a poltica, subordina

    inteiramente o poder militar, a guerra.

    Outro ponto relevante para discusso de segurana o entendimento que coloca o combate, mesmo

    virtual, como a atividade essencialda guerra. A guerra s pode ter lugar diante do combate. O

    combate o que faz de um determinado enfrentamento poltico uma guerra, mesmo quando ele noocorre de fato.

    dizer: h situaes de enfrentamento em que o combate no ocorre de fato, ainda que as foras

    estejam em condies de combater. Estas ocasies se explicam pelo fato de que ele foi travado

    mentalmente nesse sentido, virtualmente por pelo menos um dos comandantes. Neste

    combate virtual, este comandante percebeu que o resultado provvel antecipado desfavorvel,

    diante do que decide no sacrificar foras, ou, mesmo, iniciar o uso de fora.

    Esta deciso, de no sacrificar ou utilizar foras, admite uma ampla gama de resultados. Estespodem se traduzir na rendio de uma frao de tropas, na cesso de um terreno, no abandono de

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    um objetivo militar e at na imposio da vontade de um dos lados sobre o outro para um dado

    objeto. Podem, mesmo, iluminar a inviabilidade do uso de fora para a obteno de um objetivo

    poltico, levando a reconsiderao de alternativas negociadas para um dado conflito. Assim, tanto a

    rendio, quanto a retirada; tanto a dissuaso quanto a compelncia, se encontram aliceradas na

    compreenso de que o combate a condio de possibilidade de uma guerra12.

    Esta slida estrutura permite perceber que at mesmo a observao armada um ato de fora,

    livrando-nos da armadilha mental que pode resultar de um entendimento que s admite o ato de

    fora quando ele de fato ocorre, desprezando tanto seu potencial quanto a estimativa virtual de

    seu resultado. Observe-se que a mera existncia de foras no implica, necessariamente, em

    qualquer efeito combatente concreto ou virtual. A instrumentalidade da fora integral; foras que

    realizam, desde suas bases, o papel de observadores armados, so qualitativamente diferentes, neste

    sentido, das mesmas foras, simplesmente existindo. Ou seja, da mesma fora que a guerra no

    um fim em si mesma, a fora no combate em si mesma.

    Esta centralidade do combate estrutura um entendimento completo de qualquer fenmeno blico.

    Permite conceituar, com rigor, ttica como sendo o uso das foras nos engajamentos13 e

    estratgia como sendo o uso dos combates para os propsitos da guerra. Permite, ainda, reconhecer

    as demandas e particularidades da presena da poltica no fenmeno blico, seja na circunscrio do

    objeto poltico, seja no controle, mesmo, das formas e limites ao prprio uso da fora atravs de

    normas de comportamento14.

    Este entendimento desafia as tentativas tendenciosas de enquadramento de poltica, estratgia e

    ttica como nveis hierrquicos. Em todo o espectro do fenmeno blico, da mente do presidente

    ao do soldado mais raso, apresentam-se elementos tticos, estratgicos e polticos.

    A guerra se vincula de tal maneira vida das sociedades em todos os tempos seja em sua

    capacidade produtiva, seja como fornecedora de contingentes, seja em termos de seu interesse

    quanto ao que est em jogo, seja ainda em sua capacidade de sustentar os socialmente responsveis

    por combater, seja por fornecer os que de fato combatem e decideme to essencialmente ao seu

    12Para uma discusso extensa de algumas das conseqncias desta estrutura terica para o processo de definio docontedo de uma poltica de defesa, veja-se RAZA, Salvador Ghelfi. Sistemtica Geral de Projeto de Foras. Tese deD.Sc., Programa de Engenharia de Produo, COPPE/UFRJ, em preparao.13 Por engajamento, um anglicismo que substitui, a nosso ver com vantagem, o arcasmo recontro, entenda-se oentrechoque dos meios de fora de forma concreta ou virtual, atravs do combate.14

    As normas de comportamento so instrues politicamente orientadas dos limites aceitveis do uso da fora.Substituem a presena do decisor poltico no momento do engajamento. Por exemplo, numa dada situao, a liberdadedas foras de combaterem pode estar circunscritas a formas ou resultados politicamente determinados: nenhum

    bombardeio a edificaes civis; no atacar sem ser atacado.

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    propsito poltico, dizer, o que se quer da guerra, que o exame do fenmeno blico tem que estar

    relacionado com a vida social de forma ntegra. Assim, pode-se seguir adiante para a considerao

    da insero de segurana do Brasil no horizonte dos 20XX, tendo como referncia esta sntese:

    ... a guerra uma trindade paradoxal composta de uma violncia primordial , dio einimizade, que devem ser considerados uma fora natural cega; do jogo do acaso e da

    probabilidade em que o esprito criativo est livre para vagar; e de seu elemento desubordinao como um instrumento da poltica, que a torna sujeita apenas razo. O

    primeiro desses trs aspectos relativo principalmente ao povo; o segundo ao comandante eseu exrcito; o terceiro ao governo.15

    exatamente o exerccio deste entendimento que estrutura o restante deste ensaio.

    A AMAZNIA COMO PROBLEMA DE SEGURANA

    Uma mudana que todos percebemos, mas de cujas conseqncias no estamos sempre conscientes,foi a da desapario dos principais cenrios de conflito para o planejamento, preparo e inteno de

    emprego das Foras Armadas brasileiras na ltima dcada.

    Por um lado, o fim da Guerra Fria determinou o trmino de um enquadramento brasileiro no

    esquema de solidariedade hemisfrica e ocidental. Este enquadramento reservava papis

    diferenciados para as Foras Armadas brasileiras: desde a luta anticomunista na Amrica Latina,

    passando pelo eventual enfrentamento da URSS na vizinhana atlntica ou at alm. Isto deixou

    legados surpreendentes.

    De acordo com o Thinking Strategically About 200516o legado da Guerra Fria s Foras Armadas

    latino-americanas, e em especial para o Brasil, uma presena ainda marcante de estruturas

    organizacionais e, principalmente, de formas de pensar condicionadas por regimes de fora. Estas

    estruturas e hbitos mentais tm grande dificuldade de serem reconfiguradas para darem conta das

    demandas de defesa e segurana sob regimes democrticos, onde o processo de tomada de deciso

    exige transparncia das metas militares pretendidas e de sua articulao com os objetos polticos.

    De fato, expressa uma preocupao sobre as formas inerciais pelas quais o poder dos militares nassociedades latino-americanas permaneceria desconfortavelmente influente. Atribui falta de

    quadros civis qualificados o quase monoplio das questes de segurana em mos militares.

    Por outro lado, o Mercosur17estabeleceu um entendimento e a promessa de uma integrao que

    15CLAUSEWITZ, Carl von. On War. Edited by Peter Paret and Michael Howard. New York, Everymans Edition,1997. p. 101.16Thinking Strategically About 2005. Washington: CSIS, 1999.17

    preciso chamar ainda ateno para dois aspectos. O primeiro que Mercosur facilmente tomado pelo seupotencial e no por sua realidade. De um lado, toma-se o que , na prtica, um acordo comercial, como uma espcie depromessa de integrao econmica. Segundo, esta sobrevalorizao econmica acaba por ocultar o profundo significadopoltico do fim da rivalidade Brasil-Argentina.

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    removeu a possibilidade do principal cenrio regional das foras armadas brasileiras: o

    enfrentamento com a Argentina18. De acordo com o Defensa no provocativa en Argentina19, a

    demanda por um reenquadramento amplo do que sejam as demandas de defesa da Argentina deu

    margem proposta de um entendimento no qual a Argentina abriria mo do uso da fora para

    soluo de suas questes internacionais de forma unilateral, adotando uma postura de defesa de

    carter no provocativo. Por esta perspectiva, o processo de seleo das alternativas de composio

    de fora e seu posicionamento estaria orientado pelo desejo de transmitir, pela impossibilidade de

    uma ataque surpresa ou continuado contra seus vizinhos, uma posio de estrita defesa de seu

    territrio.

    A isto se somou, ainda, uma nova nfase na participao argentina em misses de paz e

    combatentes da ONU, como expresso, quer na sua participao na Guerra do Golfo de 1990-91,

    quer no seu alto perfil de envolvimento em operaes de paz nos ltimos anos. De fato, a posio

    oficial da poltica de defesa argentina desautoriza qualquer perspectiva que quisesse mant-la como

    uma ameaa militar: a postura da vigilancia estratgicase materializa no abandono deliberado de

    posies, capacidades e nveis de prontido capazes de sustentar uma ofensiva20.

    Desde essa dupla perspectiva, preciso saber considerar as heranas de toda sorte contidas nas

    estruturas e, mesmo, nos processos de planejamento das Foras Armadas brasileiras.

    Em termos mais amplos, evidente que esta no uma questo exclusivamente brasileira. Todos os

    pases tm que dar conta, diante do novo ambiente internacional e das particularidades regionais, da

    razo de ser de suas foras armadas. Tm que atualizar suas misses, rever os propsitos de seu

    dimensionamento, posicionamento, articulao, preparo e emprego, justificando-os luz das metas

    polticas e dos recursos que estas disponibilizam.

    18 Como tantos outros assuntos de segurana no Brasil, a identidade das ento chamadas Hipteses de Guerra doBrasil eram objeto de um sigilo formal e de um conhecimento ttico amplamente divulgado. Bem ao incio do processode democratizao, houve diversas oportunidades em que o contedo destas hipteses foi publicamente debatido. Parauma viso particularmente abrangente e especialmente oportuna at para a prpria questo do sigilo nestes assuntos,veja-se a seqncia de artigos de Mario Cesar Flores e Renato Dagnino ao longo dos anos de 1986 e 1987 na revista

    Poltica e Estratgia. So Paulo: Convvio.19A coletnea de CACERES, Gustavo e SCHEETZ, Thomas. Defensa no provocativa en Argentina. Buenos Aires:Buenos Aires, sd., ainda que orientada para a proposta de uma reforma militar na Argentina, tem, de fato, os elementosde diagnstico das formas pelas quais o novo ambiente de segurana foi percebido e, com a nfase da defesa no

    provocativa, alicera o que pode ser considerado como um dos mais importantes arrimos do que seja a proposta civilpara a poltica militar daquela fraterna Repblica.20 Veja-se, por exemplo, o discurso do ex-ministro da defesa da Argentina, o Lic. Lopez Murphy, ao plenrio doencontro Educao e Defesa 2000. Miami, National Defense University, maro de 2000; e a anlise doMilitary Balance

    para o perodo 1992-2000. London, IISS / Brasseys, The Military Balance, 1991-1992 at 1999-2000. O perodoparcial para as foras armadas argentinas, por exemplo, no de todo incompatvel com o que se apresenta como asalternativas econmicas da vigilncia estratgica. Poupam-se salrios para possibilitar investimentos, alm de atender ademandas emergenciais de economia pelo governo argentino.

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    A especificidade brasileira reside exatamente no fato de que tanto as hipteses globais quanto as

    regionais foram transformadas em menos de uma dcada. Esta simultaneidade explica, em larga

    medida, as dificuldades que o Brasil enfrenta.

    A realidade observada o deslocamento do foco das preocupaes de segurana, obedecendo a um

    resultado lgico, porm pouco considerado e at inconsciente. A desapario do risco de guerra

    global e o fim da viabilidade poltica de um conflito armado na fronteira sul, determinaram uma

    situao em que a continuidade de uma longa tradio de preocupao brasileira para com a regio

    amaznica parece se traduzir numa prioridade de segurana.

    Essa priorizao no pode ser tomada sem a necessria reviso do prprio conceito de segurana,

    para alm do entendimento estritamente militar do termo, exorcizando o contedo do passado

    recente e reentendendo a segurana nacional no contexto de um regime democrtico. A questo da

    segurana est presente em todas as circunstncias em que exista risco e em que o uso da fora

    possa ser til. Compreende-se, assim, na forma correta e subordinada poltica que as preocupaes

    de segurana levem em conta uma grande variedade de aspectos.

    No que se refere Amaznia, exatamente o estado de subdesenvolvimento da regio (quase 50% da

    rea nacional, aproximadamente 12,5% da populao, e menos de 2% do PIB) e seu grande

    potencial contextualizam uma diversidade de consideraes, inescapavelmente baseadas mais em

    aspiraes do que em fatos. De acordo com O projeto Calha Norteseus antecedentes polticos21,

    h muita histria por detrs das preocupaes brasileiras para com a Amaznia.

    Reflete,em parte, ao menos, o fato de que a conquista deste territrio para a Coroa Portuguesa e,

    mais tarde, sua incorporao ao recm-independente Imprio do Brasil, foram fatos consumados

    contra os estatutos e acordos vigentes poca o Tratado de Tordesilhas e o fato de que a regio

    amaznica era parte do Ducado do Gro-Par, apenas uma provncia ultramarina do Reino Unido de

    Brasil, Portugal e Algarves, sendo administrada diretamente da metrpole.

    A isto se somou a percepo, amadurecida j no sculo XX, de que, pela lgica geopoltica 22, a

    21 Diniz, Eugenio. O projeto Calha Norte seus antecedentes polticos. So Paulo, USP, 1995, xerox indito(dissertao de mestrado, Departamento de Cincia Poltica).22O entendimento brasileiro de geopoltica muito particular. Ao contrrio da prtica americana, por exemplo, quetomageopolitical considerationscomo uma forma resumida de distinguir formulaes de polticas de base Realista dasde carter moral, no caso brasileiro uma agenda poltica complexa foi identificada com uma escola de pensamentogeopoltico. Se Delgado de Carvalho, na dcada de 1930, est buscando a aplicao de um conhecimentocontemporneo ainda que controverso, o mesmo no pode ser dito das geraes seguintes de geopolticos brasileiros.Talvez o mais sincero destes autores seja Golbery do Couto e Silva, que na sua coletnea de palestras Geopoltica do

    Brasile o Poder Executivo(Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1973), reconhece tanto a herana concretamente totalitria nainspirao do papel da geopoltica brasileira na figura inspiradora do General Ludendorf, quanto os limites dageopoltica em si mesmo para orientar a deciso. Muito j se falou sobre o carter eminentemente retrico e acientficoda geopoltica brasileira; uma reviso bastante completa pode ser encontrada no texto de Eugenio Diniz acima citado.

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    Amaznia se constituiria em um vazio demogrfico, que deveria ser preenchido pelo excesso

    populacional do sul-sudeste do pas. A experincia de induo de povoamento pela lgica

    geopoltica foi das mais infelizes, e muito da migrao interna para a Amaznia se originou de

    outro vazio demogrfico, o nordeste brasileiro. Durante o regime militar, foram feitas diversas

    tentativas de induo de desenvolvimento, indo desde a colonizao pela presena militar, passando

    por projetos agro-industriais, at o estabelecimento de uma zona franca em Manaus. Os resultados

    destas atividades so algo controversos, como as estatsticas citadas mais acima deixam

    transparecer. Mas o importante destacar o lugar secundrio que as preocupaes de segurana

    tiveram em relao questo do desenvolvimento durante todo este perodo.

    A apreciao do deslocamento do foco das preocupaes sobre a Amaznia para a questo de

    segurana depende de um recorte capaz de analisar os principais elementos que o orientariam. Para

    tanto, tratamos de expor a questo da Amaznia e da insero de segurana do Brasil a partir de trs

    critrios de anlise, associados trindade paradoxal, buscando esclarecer a natureza

    particularmente pertinente de cada uma de suas componentes.

    CRITRIOS DE ANLISE

    Busca-se estabelecer as bases para um entendimento possvel sobre o papel da Amaznia na

    segurana brasileira com base em trs perspectivas sobre o seu papel: como objeto de paixo, como

    objeto de razo e como espao de combate, isto , como espao do uso de fora armada.

    A AMAZNIA COMO PAIXO

    Nada to importante nem to fcil de ser esquecido quanto a dimenso afetiva que determina pelo

    que vale a pena lutar. Num mundo fortemente marcado pelas hipteses racionais necessrias

    lgica do mercado, a componente da paixo tende a ser sempre deslocada para um plano que pode

    ser tomado, de alguma forma, como ilegtimo. Isso se deve ao fato de que ela , de fato, irracional.

    Mas a guerra feita por seres humanos, e as paixes humanas so to parte da poltica, e portantoda poltica armadada guerraquanto a razo ou as possibilidades das armas.

    Considere-se que se os brasileiros fossem indiferentes com relao a qualquer parte do seu

    territrio, ou a qualquer questo internacional em particular, ento no existiriam cenrios de

    guerras com relao a sua posse ou a sua soluo. Seria possvel uma soluo puramente racional,

    medida em preos e custos, fossem os imediatos e patrimoniais, fossem os de oportunidade e de

    mercado, ou fossem mesmo um ato de fora ao qual no se pretenderia resistir alm dos custos

    Nenhuma destas consideraes contradiz o fato de que o discurso geopoltico justificou diversas das atividadesbrasileiras, especialmente, durante o perodo dos governos militares (1964-1988).

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    esta paixo foi se modificando pode ser talvez encontrada na figura e experincia do brasiguayos,

    onde percebeu-se que mesmo uma grande presena populacional no significa uma automtica

    perda de soberania.

    De outro ponto de vista, a forma pela qual as Naes Unidas tm tratado qualquer tentativa de

    modificao, pela fora, da fronteira de seus Estados membros, um forte elemento tranqilizador

    para o receio de uma invaso da Amaznia. Ainda assim, estes receios centenrios de uma

    ocupao discreta, ou de uma usurpao territorial encontram atualidade na advertncia que

    suspeita das ambies autonomistas das populaes amaznidas e de uma eventual

    internacionalizao da Amaznia25.

    Contemporaneamente, estes receios tendem a se expressar no risco de uma perda de controle

    concreto do territrio para atores sem a identidade de Estado (a guerrilha, o narcotrfico); ou na

    formao de Estados desde os grupos tnicos amaznidas (principalmente, os povos naes

    indgenas) ou ainda na perspectiva difusa de uma internacionalizao da Amaznia, apoiada nos

    dois primeiros ou como uma espcie de oportunstica punio pela m gesto brasileira da regio

    por um, ou alguns, pases centrais26. Isto ecoa as preocupaes constantes para com as difceis

    questes do controle de um territrio despovoado; da regulao de recursos explorveis em tais

    regies; da preservao ou integrao dos povos indgenas; do desenvolvimento ecologicamente

    sadio ou sustentvel. Enfim, as dificuldades do aproveitamento racional, justo e integrado dos

    amplos potenciais minerais e hdricos como ferramentas do desenvolvimento e prosperidade

    nacionais.

    De uma perspectiva mais ampla, a discusso amaznica serve, ainda, como bandeira de luta numa

    agenda poltica onde as paixes so mobilizadas por essa questo para emprestar uma dimenso

    concreta a uma luta maior. A questo da Amaznia articula-se com sentimentos que buscam

    enfrentar a questo mais ampla da globalizao27, dando materialidade territorial aos desafios

    presentes idia tradicional de soberania.

    A Amaznia , indubitavelmente, uma questo planetria. H dcadas de crescente preocupao

    sobre o seu valor para o futuro da humanidade. H um reconhecimento crescente da importncia

    desta regio em termos de sua biodiversidade e como espao para a discusso dos direitos dos

    25Veja-se a resenha em DINIZ, Eugenio. op. cit.26Brasil, Senado Federal.Anais do Seminrio Amaznia. Braslia: Senado Federal, 1996. Este um tema recorrentenas preocupaes do Congresso Nacional que j realizou diversos eventos em torno dele.27Aqui, a contragosto, seguimos uma prtica inteiramente miditica de utilizar o termo globalizao como expressosinttica de um vasto leque de questes que, no fundo, so apenas os desafios do nosso tempo. S o fazemos pelocontedo emocional que o termo carrega e, portanto, pelo efeito que pode ter na leitora ou leitor.

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    povos indgenas, transcendendo os limites das fronteiras polticas dos Estados.

    Em primeiro lugar, preciso perceber a seriedade com que se toma a expresso patrimnio comum

    da humanidade, to freqentemente atribudo regio amaznica28. preciso aferir que isto ao

    menos um convite para o sentimento de propriedade coletiva, que ignore as soberanias nacionais

    dos Estados amaznicos. Patrimnio comum da humanidade , de fato, um termo de outra forma

    reservado para, no parece haver alternativa, os patrimnios comuns da humanidade, fora de

    qualquer soberania: os oceanos, a Antrtida e o espao sideral. Traz consigo o sentimento de que o

    justo, o correto, que tais territrios estejam abertos a uma renncia de sua governana por

    qualquer Estado individual. Assinala a pertinncia de uma consertao internacional para seu bom

    uso e controle. s deste ponto de vista que se pode perceber que possvel compreender que as

    dvidas sobre a competncia ou mesmo a boa vontade da gesto brasileira da regio seja em

    termos da preservao ambiental, seja do provimento de condies dignas aos povos indgenas

    sejam base para uma paixo que busca preservar o que de todos de uma m utilizao.

    A AMAZNIA COMO RAZO

    Os elementos racionais que orientam a considerao das possibilidades de conflito envolvendo a

    Amaznia, dizem respeito, principalmente, deciso brasileira de resistir pelas armas, quando

    oportuno, ingerncia de outrem. Assim, como o Brasil quem possui a Amaznia brasileira; como

    nada do exposto acima sugere qualquer ambio brasileira de expandir suas posses na regio; como

    o nus da agresso est nas mos de outrem, ento caber ao Brasil decidir se um golpe de mo ou

    um ato de fora contra o seu controle do territrio amaznico sero, ou no, respondidos pela fora.

    Existem dois motivos racionais que podem influir nessa deciso.

    O primeiro, o compromisso assumido no Artigo Primeiro da Carta de 1988 onde se l: a

    Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do

    Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - asoberania.... Trata-se do compromisso primeiro do pacto da sociedade brasileira. Assim, um ator

    racional, um brasileiro ou brasileira, tem todo o direito de esperar que este compromisso seja

    respeitado. Esperar que uma ameaa clara e real ao controle brasileiro de seu territrio seja

    respondida por todos os meios, inclusive a guerra.

    A alternativa a perda de credibilidade da estrutura formal que ordena a sociedade. Se o Estado no

    defende a soberania, ento ele no tem propsito. Ainda que seja possvel ser derrotado numa

    28Para uma coletnea curiosa dos pronunciamento de diversas personalidades polticas mundiais sobre o tema, veja-seCarta Capital, 14-9-99. Disponvel nosite desta revista.

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    A AMAZNIA COMO ESPAO DE COMBATE

    Ainda assim, se for o caso de se considerar a Amaznia sob uma perspectiva de defesa, h que se

    levar em conta que existem timos locais na disposio da fora no territrio em funo de

    peculiaridades logsticas (por exemplo, a confluncia dos rios), e tticas (por exemplo, as alturas)

    do terreno. necessrio considerar, tambm, os efeitos multiplicadores destes timos de forma

    particular, distinta da valorao territorial feita mais acima, na medida em que servem para

    economizar meios de fora e portanto, recursos necessrios para a sustentao destes meios. No que

    se refere questo dessa otimizao da aplicao de recursos para o propsito do uso da fora,

    desde o ponto de vista de suas peculiaridades, seria necessrio tomar a Amaznia por uma tica

    particular, isto , tomar a Amaznia como um espao de combate. Mas isto s pode ser feito de

    forma bastante restrita na ausncia da identificao de objetos polticos que norteiem o

    entendimento estratgico de tais aes.

    Um exemplo algo abstrato parece adequado. H rios mais regularmente navegveis que outros,

    melhor localizados em relao a pontos ou regies politicamente valoradas, cujas margens servem

    mais ou menos para a instalao de equipamentos e estruturas de defesa. Ora, evidente que dispor

    de infraestrutura e meios que sejam capazes de facilitar o controle e a defesa de um rio

    regularmente navegvel, melhor localizado, mais capaz de aceitar os equipamentos e as estruturas

    de defesa, uma deciso melhor do que faz-lo em outra parte, para o mesmo propsito.

    Para alm deste entendimento, a forma pela qual a Amaznia se transformaria em foco prioritrio

    dos esforos de preparo e inteno de emprego das Foras Armadas brasileiras, admitiria, no

    contexto at aqui exposto, a formulao de uma hiptese e dois mecanismos.

    A mudana de prioridade do Cenrio Amaznico resultaria de dinmicas internas s Foras

    Singulares e, como tal, desconectadas de uma deciso poltica explcita que as anteceda e oriente no

    tratamento do Cenrio Amaznico, em resposta a sentimentos difusos de que a regio est

    ameaada. Esta hiptese traz consigo a possibilidade de uma poltica de defesa implcitapara esta

    regio. Isso no significa a existncia de uma intencionalidade para o agregado de atividades e

    iniciativas que conformariam esta poltica. Mas sugere, sim, a ocupao de lacunas de deciso

    poltica. O risco que se acabe por induzir ameaas atravs de dois mecanismos conexos.

    No primeiro mecanismo, cria-se a ameaa pelo fato dela ser necessriapara o bom funcionamento

    dos processos pelos quais as foras concebem suas alternativas de preparo e emprego32. Desde logo,

    Editora da UnB, 1999.32 O termo preparo e emprego uma concesso prtica brasileira que descreve uma quantidade considervel de

    processoso projeto de foras, elementos da prpria poltica de defesa, etc.por um termo que administrativamente

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    ela surgiria a partir de percepes segmentadas, nascidas da continuidade ou mudana de nfase de

    programas e iniciativas pr-existentes, ou at simplesmente da aceitao da retrica da ameaa

    estrangeira Amaznia como um input vlido ao processo de planejamento. Nesse sentido, a

    ameaa o resultado de uma necessidade metodolgica do processo de preparo e da antecipao

    das expectativas de emprego da fora, e no de uma avaliao racional de sua viabilidade poltica.

    Isto pode traduzir uma medida de continuidade de metodologias de projeto de foras tpicas da

    Guerra Fria, que pressupe a existncia de uma ameaa para a formulao dos cenrios de

    planejamento e que exigem uma identificao razoavelmente precisa do inimigo e suas intenes

    provveis. Nada assegura que essa ameaa exista. Esta uma deciso poltica que precisa anteceder

    a aplicao da metodologia. O erro est em induzir a ameaa simplesmente para atender a

    metodologia.

    No segundo mecanismo, em contraste, ocorreria uma transposio de ameaa. A resoluo do

    Cenrio Sul teria feito do Cenrio Amaznico, que era antes apenas uma preocupao de carter

    geopoltico, o cenrio principal. Aqui, tem-se o mesmo resultado geral do primeiro mecanismo,

    mas por razes inteiramente diversas. Quando cessa a ameaa prioritria ao sul, transpe-se a

    prioridade para a Amaznia, seguindo ao longo de uma hierarquia pr-existente dentre os diversos

    cenrios. Isto estaria ocorrendo sem necessariamente atentar para a realidade das paixes

    envolvidas ou para a racionalidade que avaliaria a viabilidade poltica do cenrio.

    O primeiro mecanismo imputa o surgimento do Cenrio Amaznico necessidade de sua

    caracterizao para a aplicao das ferramentas e metodologias de planejamento; o segundo, atribui

    o Cenrio Amaznico transferncia de prioridade dentro de uma hierarquia pr-existente.

    CONCLUSES

    Existe um dilogo intrnseco entre as formulaes governamentais de poltica para o campo externo,

    administrativamente repartidas entre as de carter principalmente diplomtico e as de carterprincipalmente militar. Este dilogo reflete um vnculo essencial que espelha apenas a unidade do

    fenmeno dos relacionamentos internacionais na realidade, apesar de sua segregao na prtica

    governamental da maioria dos Estados. Na maior parte das vezes, o esprito do tempo instrui as

    formas pelas quais o contedo cotidiano de cada uma destas esferas de responsabilidade

    administrativas admite a incorporao de preocupaes da outra. Desnecessrio dizer que, aqui

    tambm, o fim da Guerra Fria propicia circunstncias que convidam a uma reconsiderao de

    consistente, mas cuja pertinncia lgica e conceituao rigorosa, desde uma perspectiva sistmica, ainda est por serfeita. Veja-se Proena Jr & Diniz, op. cit., para um enquadramento mais firme do que sejam as atividades de uma

    poltica de defesa.

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    mentalidades e renovao de entendimentos.

    De um determinado ponto de vista, essa segregao da soluo pacfica ao campo da diplomacia,

    e da alternativa de fora ao campo militar til na exata medida em que se tenha clareza da forma

    como ela dialoga com a unidade do relacionamento concreto entre os Estados. Na Europa da belle

    poque, era usual que a questo da oportunidade do uso da fora pertencesse esfera diplomtica,

    enquanto que a materialidade deste usofosse na forma de sua viabilidade em termos de produo

    de resultados, fosse na dos requisitos de sua utilizaopertencesse esfera militar.

    Ficou evidente que a continuidade deste arranjo era impossvel no mundo da Guerra Fria. Sem

    querer fazer qualquer referncia especificidade do processo brasileiro, h que se reconhecer que a

    dinmica da segurana nacional nos EUA foi uma soluo pela qual, diante do que era um

    enfrentamento poltico em que as possibilidades virtuais de combate tinham grande significado ,

    uma parte considervel de relacionamentos que seriam, fora deste contexto, diplomticos, foram

    deslocados para uma esfera militarizada. A esta dinmica se somou, ainda, o enfrentamento

    burocrtico entre as instncias de segurana nacional, as foras armadas e as burocracias

    diplomticas. Isso se deu de tal forma que o fim da Guerra Fria significou uma reviso profunda

    para nos atermos ao caso dos EUAde toda a estrutura superior de gesto dos assuntos do Estado.

    Se no primeiro momento aps a Guerra Fria pareceu que o uso da fora estaria reservado para um

    ltimo e indesejvel extremo de possibilidade, muito rapidamente ficou evidente que este no era o

    caso. Longe de significar a possibilidade de um retorno prticas diplomticas divorciadas das

    possibilidades do uso da fora, o fim da Guerra Fria, de fato, colocou em tela a necessidade da

    reconsiderao das formas e da oportunidade de um uso cotidiano da fora. Esse uso passou a ser

    uma ferramenta freqente numa poltica de sustentao de um determinadostatus quo.

    A discusso contempornea sobre o papel das foras de paz reflete, por exemplo, esta difcil

    transio. Em muitas ocasies, h dificuldade de compatibilizar um uso de forapara os propsitos

    dapaz.Em outras, h relutncias que parecem refletir a continuidade de expectativas do mundo da

    Guerra Fria, em que o uso de fora explcita poderia ter conseqncias catastrficas. As sucessivas

    experincias balcnicas do exemplos de uma e outra possibilidades.

    Perceba-se o alcance desta conjuntura. Evidencia-se uma crescente convergncia temtica e

    metodolgica de dois campos que se julgavam polares: os estudos de paz e os estudos

    estratgicos33. Onde, no ambiente polarizado da Guerra Fria, entendiam-se que estes campos

    33Veja-se, por exemplo, o contedo de KLARE, Michael. (ed.) Handbook of Peace Studies. Oxford: Oxford UniversityPress, 1998 e SHULTZ, RH; GODSON, R. and QUESTER, GH. (ed) Security Studies for the 21st Century.Washington, USA: Brasseys, 1997. Observe-se, ainda, a explicitao de KLARE, Michael. (ed.) Peace and World

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    irrelevncia da questo do conflito armado no horizonte de preocupao. Como os ltimos cinco

    anos evidenciam uma quase guerra entre Per e Equador; a questo das FARCs h

    concretamente questes de defesa e poltica externa de segurana nas fronteiras brasileiras. No

    interessa a ningum que o Brasil se veja diante da situao de no ter instrumentalidade militar, ou

    que no seja capaz de considerar diplomaticamente em que momento o uso da fora pode oferecer

    soluo. De um ponto de vista mais amplo, a agenda de participao brasileira nos esforos de

    segurana em escala mundial tem um significado muito concreto em termos de seu projeto de

    foras. No se pode ver com bons olhos a situao em que o Brasil se descubra incapaz de dar

    substncia a suas posies, por exemplo, diante das necessidades de foras de paz em reas de seu

    interesse poltico externo.

    H pelo menos um juzo que pode servir de concluso para o panorama contido neste ensaio. Um

    projeto de foras nacional passa por uma discusso das necessidades de segurana e defesa do

    Brasil que leva em conta tanto aspectos militares quanto diplomticos.

    Isto significaria, num momento de renovao das prprias formas de pensar as instituies

    militares, a consolidao de instncias tecnicamente habilitadas a um planejamento integrado de

    todas as Foras Armadas para as necessidades de segurana e defesa do Brasil. preciso qualificar

    a natureza desta atividade. No se trata to somente de uma considerao de planejamento dentro

    um horizonte medido pela escala da vida til dos equipamentos e dos ciclos de carreiras, dcadas.

    Ao contrrio, trata-se de um verdadeiro projeto de foras, uma ferramenta de integrao das

    diferentes foras segundo suas especificidades num todo sinrgico e de orquestrao explcita entre

    a poltica declaratria e a prtica concreta da concepo e do emprego das foras. De fato, uma

    sistemtica geral de projeto de foras um instrumento suficiente para que se assegure que, por um

    lado, os cenrios de planejamento sejam coerentes com as demandas e expectativas polticas do

    governo e que, por outro, os arranjos de foras resultantes sejam logicamente articulados entre si,

    garantindo, quando necessrio, que as possibilidades do uso de fora sejam capazes da forma e dos

    resultados politicamente teis.