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HUMANIZAÇÃO, DISCIPLINAMENTO E VIOLÊNCIA:
Imagens antropológicas de um quartel de polícia militar1
Fábio Gomes de França
Doutorando em Sociologia pela UFPB
Resumo: Este trabalho trata-se de uma etnografia realizada no Centro de Formação da
Polícia Militar da Paraíba em dois períodos distintos: inicialmente, entre os anos de
2010-2012 (ao observarmos o período formativo dos alunos do Curso de Formação de
Oficiais) e, a posteriori, no ano de 2013 (quando etnografamos apenas a semana de
adaptação dos alunos do CFO). Desse modo, mostrar-se-á como se articulam
“estrategicamente” relações de poder a partir de imagens concebidas por meio de
fotografias que exibem mosaicos e painéis que retratam uma polícia “humanizada” e,
além disso, cenas dos alunos policiais militares durante os exercícios que os
condicionam a participarem da realidade de um curso policial militar. A partir de uma
perspectiva “arqueogenealógica” foucaultiana, a qual ressalta uma relação entre o
“visível” (imagens) e o “dizível” (discursos), concluímos que as práticas sociais
pedagógicas policiais militares ocultam relações de poder que negam a construção da
violência policial desde a formação de seus profissionais por meio de um discurso
humanizador. Portanto, este trabalho lança luz para uma leitura foucaultiana no campo
da antropologia visual, de modo que percebamos que as imagens demonstram bem mais
do que realmente exprimem, já que o cotidiano captado está “naturalizado” por aqueles
que o vivenciam.
Palavras-chave: Polícia militar; humanização; violência; etnografia.
Introdução
Os estudos sócio-antropológicos acerca de instituições como as Forças Armadas
e as Polícias Militares em nosso país remetem a um passado próximo, pois à época da
ditadura militar não era possível tal intento, visto que analisar aspectos dos militares sob
a perspectiva das ciências humanas era ser reconhecido como subversivo. Melhor
dizendo, adotar uma postura crítica sobre a formação e atuação dos agentes estatais que
agiam sob o lema da Doutrina de Segurança Nacional era ser considerado inimigo da
democracia imposta pelo regime ditatorial.
No entanto, a abertura democrática possibilitou às ciências humanas uma
aproximação com o mundo da formação pedagógica militarista, tanto no campo das
1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.
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Forças Armadas2 como em relação às Polícias Militares. Das poucas pesquisas
realizadas, o fato interessante a destacar é a realização de etnografias que passaram a
mostrar como se estrutura a lógica de organização das instituições que funcionam sob a
égide do militarismo no Brasil. Os muros das casernas foram adentrados e, em alguns
casos, especialmente nos estudos sobre polícias, os pesquisadores tratavam-se de
nativos que passaram a “tornar o familiar em exótico” (DA MATTA, 1978).3
Assim, neste trabalho, mostrar-se-á no campo da Antropologia visual como a
perspectiva foucaultiana pode ser adotada para a análise sócio-antropológica de
fenômenos por meio de fotografias. Inicialmente, esboçamos sinteticamente algumas
considerações acerca da Antropologia visual, suas origens e desdobramentos. A
posteriori, demonstramos alguns dos resultados alcançados em nossas pesquisas que
traduzem o que passamos a denominar de “humanização disciplinada”. Por fim,
expomos uma “narrativa fotográfica” sobre a realidade da formação pedagógica dos
alunos policiais militares, a qual se naturaliza para eles por meio da violência de seus
corpos e subjetividades.
Considerações acerca de uma antropologia visual
Segundo Pontes (2012), o significado que as imagens adquiriram, aqui
especificamente tratando-se daquelas produzidas por máquinas fotográficas, fazem parte
do arcabouço de transformações históricas ocorridas na modernidade, onde se engloba,
além das modificações da própria realidade, as relações sociais e o campo de
objetividade próprio do cânon científico, em especial o que se revela nas ciências
sociais. Nesse contexto, se destacarmos a Sociologia e a Antropologia visual como
áreas de possibilidade do fazer científico estamos a propor o “uso da imagem como
forma de capturar certos aspectos mais efêmeros das relações sociais que poderiam se
perder se não resgatados na forma imagética” (PONTES, 2012, p. 2). Assim, para
Koury (2003), a fotografia deve ser vista enquanto apropriação do real de modo que
tenhamos uma “realidade captada e revelada”.
2 Para o conhecimento de alguns estudos ver: sobre as Forças Armadas Castro (2004), Leirner (1997),
Castro e Leirner (2009). No tocante às Polícias Militares temos Muniz (1999), Silva (2002), Nummer
(2010), Silva (2011), Souza (2012) e França (2012). 3 Nesse sentido, não posso me privar de dizer que sou policial militar no Estado da Paraíba e passei a
pesquisar a instituição da qual faço parte desde o ano de 2010 quando ingressei no mestrado.
3
No tocante à Antropologia visual, em meio a pouca importância que por muito
tempo foi dada às imagens fotográficas como objeto de apreensão antropológica,
Samain (1995) nos esclarece, ao observar os estudos de Margaret Mead, que essa autora
já intuía à sua época que à fala e ao discurso em torno do homem, que se trata de técnica
descritiva, acrescentar-se-ia a visibilidade do homem através das lentes das câmeras.
Essa metodologia serviria para conhecê-lo melhor, assim como ocorria com o uso do
caderno de campo, sem que a objetividade do empreendimento científico fosse
ameaçada. Então, se quisermos apontar um marco inicial para os estudos de
Antropologia visual, talvez pudéssemos seguir outros pesquisadores e relembrar a obra
Balinese Character, de Gregory Bateson e Margaret Mead, lançada em 1942, porém,
seguindo os passos de Samain (1995), entre o final do século XIX e início do XX alguns
antropólogos já se utilizavam da fotografia para registrar imagens dos povos
considerados exóticos. Se não existia ainda uma sistematização metodológica para o uso
da imagem fotográfica como instrumento de validação científica, mas o exercício de
captar o homem considerado primitivo em sua relação com o seu meio sócio-cultural e
com seu povo já era utilizado.
Nesse percurso, Samain (1995) alude às imagens realizadas pelo pai do
funcionalismo na Antropologia, Bronislaw Malinowski, quando de suas pesquisas
iniciadas em 1914 na Nova Guiné, cujos dados possibilitaram-no lançar obras como “Os
Argonautas do Pacífico Ocidental”, “A Vida Sexual dos Selvagens” e “Os Jardins de
Coral e suas Mágicas”. Juntando as três obras citadas, podemos encontrar um total de
283 fotografias e, ainda segundo Samain (1995), na análise desse material pictográfico,
Malinowski usa as fotografias dos nativos para além da ilustração que as mesmas
requerem, pois “entre as fotografias e as legendas remissivas ao seu próprio texto fica
patente que, para Malinowski, o verbal e o pictórico são cúmplices necessários para a
elaboração de uma antropologia descritiva aprofundada” (SAMAIN, 1995, p. 33-34).
Pelas palavras do próprio Malinowski, citadas por Samain (1995) percebe-se o quanto
as imagens apreendidas por sua lente fotográfica, de acordo com sua visão, são
importantes para a compreensão do mundo nativo estudado, pois,
Uma deficiência essencial do meu trabalho de terreno deve ser mencionada:
trata-se das fotografias. Se vocês, eventualmente, compararem meus livros
com outros relatos de pesquisas de campo, provavelmente, não se darão conta
do quanto os meus permanecem mal documentados em termos pictóricos. Eis
a razão principal para insistir sobre este fato. Tratei a fotografia como se
4
fosse uma atividade secundária, uma maneira – de certo modo menor – de
agrupar “testemunhos”, “provas”, “evidências”. Foi um sério erro da minha
parte. Redigindo meus dados materiais sobre os jardins [se refere ao Coral
Gardens], constato que a verificação (o controle) de meus apontamentos de
campo me conduziu, graças às fotografias, a reformular minhas declarações
sobre inúmeros pontos... (p. 42).
Desse modo, se estamos diante do crescimento da importância da fotografia
enquanto instrumento sócio-antropológico de compreensão da realidade surge, pois, a
consideração de que as imagens fotográficas podem ser interpretadas tanto dando ênfase
a suas composições estéticas que a tornem cientificamente analisáveis para além dos
raciocínios lineares fazendo delas mais um método investigativo, como também,
fotografias podem nos revelar situações pelas quais a condição humana se mostra em
sofrimento (MARTINS, 2013). Nesse esteio, “a fotografia nutre a sua interpretação por
uma contínua remessa ao real, que não se deixa congelar e que, por sua vez, redefine
significações ao que só aparentemente é um “congelamento” de imagem e, nesse
sentido, um “retrato” da sociedade em certo momento” (MARTINS, 2013, p. 37).
Nessa busca para a compreensão da inserção do homem na realidade social por
meio da análise sócio-antropológica, afirmamos através de Martins (2013) que a
fotografia acaba por se tornar um documento de tradução da cotidianidade quando se
passa a juntar “fragmentos visuais”. O que se anuncia por essa perspectiva é a
impossibilidade da cotidianidade sem a imagem, já que a ausência da fotografia para
cada situação faz o imaginário suscitar imagens em nós e para nós fazendo-nos, em
certa medida, “pensarmos fotograficamente”. Segundo Recuero (2008), na pesquisa
etnográfica não importa se as informações recolhidas sejam visuais ou anotadas no
tradicional caderno de campo, o que deve estar presente é o rigor científico nas duas
formas, pois “a fotografia busca no seio da ciência não ser realidade, mas, conter a
realidade. Não ser a ciência, mas mostrar a ciência, pois é dotada, quando bem utilizada,
de uma narrativa eloqüente” (RECUERO, 2008, p. 35).
Nesse sentido, por ser um campo em construção e consolidação, a Antropologia
visual como qualquer outra ciência está aberta a diálogos teóricos e metodológicos que
a ajudem a enriquecer suas considerações. É por esse mote que acreditamos que os
estudos de Foucault (2009) podem tornar-se um referencial no cenário antropológico.
Neste caso, pela perspectiva foucaultiana, imagens fotográficas podem ser lidas
5
enquanto documentos, pois é na “utilização de uma materialidade documental (livros,
textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos,
costumes etc.) que apresenta sempre e em toda parte, formas de permanências”
(FOUCAULT, 2009, p. 7-8).
Para tanto, como nosso objeto de estudo aqui tratado são imagens do cotidiano
da formação policial militar, a qual anuncia um processo pelo qual a polícia tornou-se
mais humanizada e menos repressiva4, fotografei mosaicos, painéis, frases e imagens
dos alunos para registrá-los como arquivos. Nesse contexto de elementos variados em
forma de arquivo, a perspectiva foucaultiana nos permite interpretar que os elementos
fotografados tratam-se, na verdade, de um “acontecimento discursivo” (FOUCAULT,
2005). Dessa forma, “trata-se de considerar uma série de acontecimentos, de estabelecer
e descrever as relações que esses acontecimentos mantêm com outros acontecimentos
que pertencem às instituições” (FOUCAULT, 2010a, p. 255-256).
Por esse parâmetro, deve-se entender por arquivo “o conjunto de discursos
efetivamente pronunciados” (FOUCAULT, 2005, p. 145), o que me levou a buscar,
através da análise do arquivo, “definir relações que estão na própria superfície dos
discursos” (Ibidem, p. 146) e, assim, “tornar visível o que só é invisível por estar muito
na superfície das coisas” (Ibidem, p. 146). Analisei, então, os arquivos fotográficos que
continham os saberes humanizadores que chamei de paradigmas educacionais através
“de uma população de acontecimentos dispersos” (FOUCAULT, 2009, p. 24) para
descobrir quais regras foram estabelecidas para fomentar as práticas humanizadoras.
Ainda analisei qual seria a intenção real da utilização dos novos paradigmas
educacionais, ou melhor, que tipo de estratégia estaria montada para se fazer crer que
existe mudança paradigmática nas práticas discursivas educacionais policiais militares.
Acerca do que Foucault conceitua por “estratégia”, o mesmo ressalta que “uma
formação discursiva será individualizada se se puder definir o sistema de formação das
diferentes estratégias que nela se desenrolam; em outros termos, se se puder mostrar
como todas derivam de um mesmo jogo de relações” (FOUCAULT, 2009, p. 76).
Assim, a análise documental centrou-se na relação entre enunciado-discurso-estratégia,
e por parâmetros sociológicos, o enunciado seria a menor unidade que forma o discurso
mas que não se esgota na análise da língua e não se localiza na intenção do sujeito
4 Ver França (2012).
6
falante (FOUCAULT, 2009), pois “o regime de materialidade dos enunciados é da
ordem da instituição, isso leva o pesquisador a considerar a relação entre prática
discursiva e instituição, a conceber o discurso não como signos, mas como prática
discursiva que abarca regras determinadas historicamente” (NAVARRO, 2011, p. 139).
Vejamos então do que se trata o discurso sobre uma formação policial militar
humanizada.
Humanos policiais ou policiais humanos?
No filme Robocop, relançado no ano de 2014, sob direção de José Padilha, o
conflito central da película se estabelece quando o policial Alex Murphy sofre um
atentado à bomba e, após ter a maior parte do seu corpo inutilizada, passa a ser testado
no lugar de drones e robôs para atuar contra o crime. Ele se traduz numa imbricação
entre ser uma máquina com consciência humana, no entanto, os sentimentos e valores
humanos são controlados pela diminuição da produção em seu cérebro dos hormônios
que criam nossas emoções. De todo modo, o decorrer do filme nos mostra duas
situações: a primeira diz respeito a como o Estado se posiciona em relação ao seu
aparelho repressivo, pois importa criar um policial que combata o crime, mas que não
possua emoções na hora de atuar. Ele deve apenas agir tecnicamente. Na segunda
situação, de acordo com as experiências que Alex Murphy como robocop passa a viver,
especialmente no contato com sua família, emerge, por mais que a Corporação que o
criou reduza os hormônios de seu corpo, lembranças carregadas de afeto e sensibilidade,
que o faz recobrar sua antiga vida como policial. Talvez o filme Robocop seja uma boa
metáfora para entendermos como atualmente no Brasil as instituições policiais militares
vêm se comportando, ou seja, ao mesmo tempo em que são instituições repressoras e
representantes do poder coercitivo do Estado, também demonstram uma nova imagem
próxima de uma polícia humanizada, que se diferencia daquela que atuou no regime
ditatorial em nosso país (1964-1985).
Foi por essa perspectiva que realizei uma etnografia no Centro de Formação da
Polícia Militar do Estado da Paraíba entre os anos de 2010-2012 e, depois retornei em
2013 para realizar um novo trabalho de campo onde acompanhei especificamente
apenas a semana inicial de adaptação dos alunos do Curso de Formação de Oficiais, que
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é comumente conhecida como “semana zero”, de acordo com o discurso nativo.5 No
caso da observação do discurso de uma polícia humanizada, fotografei mosaicos, frases
e painéis que passaram a fazer parte do cotidiano da caserna PM, que para mim
passaram a ser compreendidos devido a uma nova configuração nas relações de poder6
que envolviam os alunos policiais militares. Por uma perspectiva foucaultiana, analisei
os elementos citados enquanto “acontecimentos discursivos” que dizem respeito a novos
saberes institucionalizados que passam a legitimar critérios de verdade que são
afirmados por valores humanizadores que devem ser apreendidos na formação
profissional dos policiais militares. Passei a denominar tais saberes de paradigmas
educacionais.
Esses paradigmas educacionais a que me refiro dizem respeito ao conjunto de
discursos que passaram a ser veiculados na instituição policial militar que tiveram como
base os princípios propalados pelos Direitos Humanos. Esses paradigmas tanto podem
ser aqueles formalizados como disciplinas acadêmicas, que não existiam na formação
policial militar antes de 1990 (especialmente os próprios Direitos Humanos),
regulamentos institucionais que destacam o respeito pela pessoa humana, as novas
palavras que passaram a ser adotadas no cotidiano policial militar sobre valores
humanizadores, bem como os elementos simbólicos como os mosaicos que analisei e
que retratam cenas do cotidiano policial militar em que policiais interagem de forma
harmoniosa com a sociedade. Se à época da ditadura militar falava-se no combate ao
inimigo interno sob a égide da manutenção da segurança nacional, agora se fala no
ambiente intramuros da formação policial militar em igualdade, cidadania, respeito à
dignidade humana, proteção ao cidadão.
5 Ver França (2013).
6 Neste caso, as relações de poder em análise dizem respeito ao poder disciplinar retratado por Foucault.
Ver Foucault (1987, 2003).
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FIGURA 1 (esquerda): policiais militares brincam com crianças em mosaico.
FIGURA 2 (direita): Educação, cidadania e segurança pública.
FONTE: Arquivos do autor (2011).
Destaco, nesse contexto, que esse fenômeno e o objetivo de minha análise
podem ser percebidos como uma “economia política da formação”7, ou seja, a mudança
de um modelo de formação (antes mais próximo da ideologia própria à ditadura militar
em nosso país) a outro (que surgiu com as novas configurações da sociedade brasileira
devido à promulgação da Constituição cidadã de 1988 e o final do regime militar). A
partir dessa ideia deve-se questionar como é que esses novos paradigmas, que foram
chamados de educacionais por fazerem parte do processo educacional de formação
profissional dos policiais militares, estão se disseminando discursivamente na realidade
desses profissionais como uma nova verdade que deve traduzir a realidade da instituição
policial. O que ocorre é que se criou a afirmação de que a Polícia Militar está
humanizando seus profissionais em formação tanto para as relações cotidianas durante o
processo de formação como para as práticas desenvolvidas nas ruas na interação direta
com a sociedade.
Nessa contextualização busquei entender como as relações de poder se
estabelecem nesse novo modelo de formação já que “o poder produz saber. Poder e
saber estão diretamente implicados. Não há relação de poder sem constituição correlata
de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo
relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 27). Essa nova formação humanizada dos
policiais militares pode ser entendida como um “acontecimento” (FOUCAULT, 2010a,
p. 256), que seria a substituição de discursos antigos pela proliferação de novos
discursos que passam a influenciar práticas que estão atravessadas por estratégias de
poder presentes nas instituições disciplinares (CASTRO, 2009, p. 24-25). Segundo
Navarro (2011), “uma vez produzido no interior de uma prática que se pauta pelo
emprego de estratégias de manipulação do real, o acontecimento é produto de escolhas
orientadas de imagens que lhe imprimem a impressão do vivido mais perto” (p. 142).
7 Utilizo essa ideia muito interessante que foi proposta pelo professor Rogério de Souza Medeiros durante
a Qualificação desta Dissertação no dia 20/12/2011, a qual me serviu de forma esclarecedora para
designar o processo que estudo na formação dos profissionais policiais militares.
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FIGURA 3 (esquerda): Segurança e proteção à criança.
FIGURA 4 (direita): Valores humanizadores policiais. FONTE: arquivos do autor (2011).
No entanto, o que a primeira pesquisa me revelou foi a proliferação de discursos
humanizadores que passaram a ocultar a lógica do disciplinamento, o que passei a
afirmar ser um processo de “humanização disciplinada” (FRANÇA, 2012).
FIGURAS 5 (esquerda) e 6 (direita).
FONTE: Arquivos do autor (2011).
Como exemplo para entendermos esse processo, ao analisar a frase da esquerda
em destaque na foto se vê: “Quem ama a disciplina ama o conhecimento”. A frase é
clara sobre a importância da disciplina também na forma do aprendizado típico dos
alunos policiais militares. A disciplina também está presente na maneira que os
conteúdos devem ser aprendidos. A frase está exposta num local do CE em que os
alunos estão aptos a vê-la cotidianamente. Mas, nosso olhar deve voltar-se para a
direita, onde se encontra a frase “Essa é a nossa missão transformar pessoas através
do conhecimento”. Nessa última frase vê-se que, novamente, a humanização do
policial se destaca, agora através da aquisição de conhecimento, que nesse caso diz
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respeito ao policial esclarecido, que é transformado em profissional com maior
qualificação. Nessas condições, destaco na segunda frase a forma em que o poder está
ocultado por meio da crença na formação policial por meio do conhecimento, já que a
formação dos alunos da PM paraibana até 1990 era baseada unicamente na educação
militarizada através da doutrina de segurança nacional. Dessa maneira, a nova educação
humanizada deve se pautar por meio do conhecimento e não só apenas pelo militarismo.
Mas, o tipo de conhecimento que não aparece na segunda frase é destacado na primeira,
pois ele deve ser o conhecimento atrelado à disciplina. Além disso, quando se destaca a
palavra “missão” na segunda frase, essa palavra é própria do disciplinamento militar e
se configura como parte do vocabulário institucional para traduzir qualquer tipo de
atividade desempenhada pelo policial militar. Então, “transformar pessoas” novamente
se torna o correlato das relações que ocultam o poder.
Nessa realidade entre humanização e disciplinamento o que se percebe é que as
regras engendradas promovem discursos em que as estratégias de poder se estabelecem
por meio da humanização, validando assim um duplo processo normalizador. Assim,
visto que o disciplinamento ainda é a realidade constante na formação policial militar e
a forma de aprender extrapola as salas de aula e se norteia de forma que “o processo de
avaliação de um cadete8 não se restringe ao bom desempenho acadêmico no conjunto de
disciplinas que é obrigado a cumprir. O processo de ensino numa instituição militarista
implica, sobretudo, na internalização do ethos militar” (CARUSO, 2010, p. 110).
Observemos a foto abaixo:
FIGURA 7
8 Denominação dos alunos policiais militares que frequentam o Curso de Formação de Oficiais.
11
Na figura 7 destaca-se a frase “Se queres a Paz, prepara-te para Guerra”.
Essa frase incita os alunos policiais a se prepararem antes para o combate se quiserem
almejar a tranquilidade advinda com a paz. A palavra paz representa a humanização, na
situação em que as pessoas podem viver no exercício de direitos e liberdades numa
relação de harmonia coletiva. Ao contrário, a guerra simboliza o disciplinamento: a
preparação própria através de mecanismos condicionantes e repetitivos, que exigem a
profícua “docilidade” e utilização máxima do tempo e das forças dos indivíduos
(FOUCAULT, 1987; LUDWIG, 1998; WRIGHT MILLS, 1981; WEBER, 2010). Nesse
contexto remeto a Elias (1997), que estudou como a introjeção do ethos militarista pela
sociedade alemã por meio da coerção externa e do autodisciplinamento voltado para
hábitos violentos e guerreiros, acabou tornando o comportamento social desse povo,
num determinado momento histórico (1871-1914), avesso a princípios humanitários,
pois guiar-se por esses princípios passava a denotar ser socialmente inferior. Dessa
maneira, percebe-se que a PM paraibana foi construída historicamente por processo
semelhante, pois “instadas a organizar-se à imagem e semelhança do Exército, sendo,
entretanto, instituições destinadas a cumprir papel radicalmente diferente, as PMs
acabam produzindo-se como entidades híbridas, pequenos exércitos em desvio de
função” (SOARES apud LUIZ, 2003, p. 68).
Portanto, se a humanização policial militar diz respeito a uma forma de
ocultação do poder disciplinar, quando do meu retorno ao Centro de Formação PM em
2013, pude constatar que essa humanização não ocorria de forma efetiva, fazendo os
alunos não compreenderem o significado dos valores humanitários como dignidade e
respeito, porque seus próprios direitos não eram levados em consideração. Antes da
humanização, o ethos militarista é destacado desde a semana inicial da formação
pedagógica PM, de modo que a “naturalização” de um comportamento violento surge a
partir do condicionamento corporal e afetivo dos alunos por meio de uma violência
exercida por ritos e exercícios desgastantes. As imagens a seguir, captadas durante a
pesquisa em 2013, é que nos demonstram como o “espírito militar” (CASTRO, 2004) se
concretiza através do sofrimento dos alunos policiais.
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Corpos, olhares e violência: imagens do disciplinamento policial militar
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Considerações finais
Este trabalho serviu de esboço e reforço da utilização da fotografia como recurso
metodológico no campo das ciências sociais. Nesse sentido, valemo-nos de imagens
captadas em pesquisas anteriores, mas que aqui serviram de suporte para que
pudéssemos propor novas concepções teóricas de análise. Neste caso, a perspectiva
foucaultiana foi adotada para observarmos as regras pedagógicas de um quartel de
polícia militar: disciplinamento corporal e afetivo, controle dos corpos,
condicionamento, uniformização, sofrimento para a aprendizagem, robustez, virilidade,
violência. Nesse sentido, discorremos sobre as estratégias que fortalecem o poder
disciplinar que se oculta pelo discurso de uma formação mais humanizada dos alunos
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policiais e, por fim, narramos fotograficamente que os alunos não compreendem esse
processo de humanização porque seus direitos não são respeitados visto que deve existir
uma naturalização da violência através do ethos militarista.
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