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1 HUMANIZAÇÃO, DISCIPLINAMENTO E VIOLÊNCIA: Imagens antropológicas de um quartel de polícia militar 1 Fábio Gomes de França Doutorando em Sociologia pela UFPB Resumo: Este trabalho trata-se de uma etnografia realizada no Centro de Formação da Polícia Militar da Paraíba em dois períodos distintos: inicialmente, entre os anos de 2010-2012 (ao observarmos o período formativo dos alunos do Curso de Formação de Oficiais) e, a posteriori, no ano de 2013 (quando etnografamos apenas a semana de adaptação dos alunos do CFO). Desse modo, mostrar-se-á como se articulam “estrategicamente” relações de poder a partir de imagens concebidas por meio de fotografias que exibem mosaicos e painéis que retratam uma polícia “humanizada” e, além disso, cenas dos alunos policiais militares durante os exercícios que os condicionam a participarem da realidade de um curso policial militar. A partir de uma perspectiva “arqueogenealógica” foucaultiana, a qual ressalta uma relação entre o “visível” (imagens) e o “dizível” (discursos), concluímos que as práticas sociais pedagógicas policiais militares ocultam relações de poder que negam a construção da violência policial desde a formação de seus profissionais por meio de um discurso humanizador. Portanto, este trabalho lança luz para uma leitura foucaultiana no campo da antropologia visual, de modo que percebamos que as imagens demonstram bem mais do que realmente exprimem, já que o cotidiano captado está “naturalizado” por aqueles que o vivenciam. Palavras-chave: Polícia militar; humanização; violência; etnografia. Introdução Os estudos sócio-antropológicos acerca de instituições como as Forças Armadas e as Polícias Militares em nosso país remetem a um passado próximo, pois à época da ditadura militar não era possível tal intento, visto que analisar aspectos dos militares sob a perspectiva das ciências humanas era ser reconhecido como subversivo. Melhor dizendo, adotar uma postura crítica sobre a formação e atuação dos agentes estatais que agiam sob o lema da Doutrina de Segurança Nacional era ser considerado inimigo da democracia imposta pelo regime ditatorial. No entanto, a abertura democrática possibilitou às ciências humanas uma aproximação com o mundo da formação pedagógica militarista, tanto no campo das 1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

HUMANIZAÇÃO, DISCIPLINAMENTO E VIOLÊNCIA · 2020. 3. 15. · Resumo: Este trabalho trata ... 2010-2012 (ao observarmos o período formativo dos alunos do Curso de Formação de

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    HUMANIZAÇÃO, DISCIPLINAMENTO E VIOLÊNCIA:

    Imagens antropológicas de um quartel de polícia militar1

    Fábio Gomes de França

    Doutorando em Sociologia pela UFPB

    Resumo: Este trabalho trata-se de uma etnografia realizada no Centro de Formação da

    Polícia Militar da Paraíba em dois períodos distintos: inicialmente, entre os anos de

    2010-2012 (ao observarmos o período formativo dos alunos do Curso de Formação de

    Oficiais) e, a posteriori, no ano de 2013 (quando etnografamos apenas a semana de

    adaptação dos alunos do CFO). Desse modo, mostrar-se-á como se articulam

    “estrategicamente” relações de poder a partir de imagens concebidas por meio de

    fotografias que exibem mosaicos e painéis que retratam uma polícia “humanizada” e,

    além disso, cenas dos alunos policiais militares durante os exercícios que os

    condicionam a participarem da realidade de um curso policial militar. A partir de uma

    perspectiva “arqueogenealógica” foucaultiana, a qual ressalta uma relação entre o

    “visível” (imagens) e o “dizível” (discursos), concluímos que as práticas sociais

    pedagógicas policiais militares ocultam relações de poder que negam a construção da

    violência policial desde a formação de seus profissionais por meio de um discurso

    humanizador. Portanto, este trabalho lança luz para uma leitura foucaultiana no campo

    da antropologia visual, de modo que percebamos que as imagens demonstram bem mais

    do que realmente exprimem, já que o cotidiano captado está “naturalizado” por aqueles

    que o vivenciam.

    Palavras-chave: Polícia militar; humanização; violência; etnografia.

    Introdução

    Os estudos sócio-antropológicos acerca de instituições como as Forças Armadas

    e as Polícias Militares em nosso país remetem a um passado próximo, pois à época da

    ditadura militar não era possível tal intento, visto que analisar aspectos dos militares sob

    a perspectiva das ciências humanas era ser reconhecido como subversivo. Melhor

    dizendo, adotar uma postura crítica sobre a formação e atuação dos agentes estatais que

    agiam sob o lema da Doutrina de Segurança Nacional era ser considerado inimigo da

    democracia imposta pelo regime ditatorial.

    No entanto, a abertura democrática possibilitou às ciências humanas uma

    aproximação com o mundo da formação pedagógica militarista, tanto no campo das

    1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

    dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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    Forças Armadas2 como em relação às Polícias Militares. Das poucas pesquisas

    realizadas, o fato interessante a destacar é a realização de etnografias que passaram a

    mostrar como se estrutura a lógica de organização das instituições que funcionam sob a

    égide do militarismo no Brasil. Os muros das casernas foram adentrados e, em alguns

    casos, especialmente nos estudos sobre polícias, os pesquisadores tratavam-se de

    nativos que passaram a “tornar o familiar em exótico” (DA MATTA, 1978).3

    Assim, neste trabalho, mostrar-se-á no campo da Antropologia visual como a

    perspectiva foucaultiana pode ser adotada para a análise sócio-antropológica de

    fenômenos por meio de fotografias. Inicialmente, esboçamos sinteticamente algumas

    considerações acerca da Antropologia visual, suas origens e desdobramentos. A

    posteriori, demonstramos alguns dos resultados alcançados em nossas pesquisas que

    traduzem o que passamos a denominar de “humanização disciplinada”. Por fim,

    expomos uma “narrativa fotográfica” sobre a realidade da formação pedagógica dos

    alunos policiais militares, a qual se naturaliza para eles por meio da violência de seus

    corpos e subjetividades.

    Considerações acerca de uma antropologia visual

    Segundo Pontes (2012), o significado que as imagens adquiriram, aqui

    especificamente tratando-se daquelas produzidas por máquinas fotográficas, fazem parte

    do arcabouço de transformações históricas ocorridas na modernidade, onde se engloba,

    além das modificações da própria realidade, as relações sociais e o campo de

    objetividade próprio do cânon científico, em especial o que se revela nas ciências

    sociais. Nesse contexto, se destacarmos a Sociologia e a Antropologia visual como

    áreas de possibilidade do fazer científico estamos a propor o “uso da imagem como

    forma de capturar certos aspectos mais efêmeros das relações sociais que poderiam se

    perder se não resgatados na forma imagética” (PONTES, 2012, p. 2). Assim, para

    Koury (2003), a fotografia deve ser vista enquanto apropriação do real de modo que

    tenhamos uma “realidade captada e revelada”.

    2 Para o conhecimento de alguns estudos ver: sobre as Forças Armadas Castro (2004), Leirner (1997),

    Castro e Leirner (2009). No tocante às Polícias Militares temos Muniz (1999), Silva (2002), Nummer

    (2010), Silva (2011), Souza (2012) e França (2012). 3 Nesse sentido, não posso me privar de dizer que sou policial militar no Estado da Paraíba e passei a

    pesquisar a instituição da qual faço parte desde o ano de 2010 quando ingressei no mestrado.

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    No tocante à Antropologia visual, em meio a pouca importância que por muito

    tempo foi dada às imagens fotográficas como objeto de apreensão antropológica,

    Samain (1995) nos esclarece, ao observar os estudos de Margaret Mead, que essa autora

    já intuía à sua época que à fala e ao discurso em torno do homem, que se trata de técnica

    descritiva, acrescentar-se-ia a visibilidade do homem através das lentes das câmeras.

    Essa metodologia serviria para conhecê-lo melhor, assim como ocorria com o uso do

    caderno de campo, sem que a objetividade do empreendimento científico fosse

    ameaçada. Então, se quisermos apontar um marco inicial para os estudos de

    Antropologia visual, talvez pudéssemos seguir outros pesquisadores e relembrar a obra

    Balinese Character, de Gregory Bateson e Margaret Mead, lançada em 1942, porém,

    seguindo os passos de Samain (1995), entre o final do século XIX e início do XX alguns

    antropólogos já se utilizavam da fotografia para registrar imagens dos povos

    considerados exóticos. Se não existia ainda uma sistematização metodológica para o uso

    da imagem fotográfica como instrumento de validação científica, mas o exercício de

    captar o homem considerado primitivo em sua relação com o seu meio sócio-cultural e

    com seu povo já era utilizado.

    Nesse percurso, Samain (1995) alude às imagens realizadas pelo pai do

    funcionalismo na Antropologia, Bronislaw Malinowski, quando de suas pesquisas

    iniciadas em 1914 na Nova Guiné, cujos dados possibilitaram-no lançar obras como “Os

    Argonautas do Pacífico Ocidental”, “A Vida Sexual dos Selvagens” e “Os Jardins de

    Coral e suas Mágicas”. Juntando as três obras citadas, podemos encontrar um total de

    283 fotografias e, ainda segundo Samain (1995), na análise desse material pictográfico,

    Malinowski usa as fotografias dos nativos para além da ilustração que as mesmas

    requerem, pois “entre as fotografias e as legendas remissivas ao seu próprio texto fica

    patente que, para Malinowski, o verbal e o pictórico são cúmplices necessários para a

    elaboração de uma antropologia descritiva aprofundada” (SAMAIN, 1995, p. 33-34).

    Pelas palavras do próprio Malinowski, citadas por Samain (1995) percebe-se o quanto

    as imagens apreendidas por sua lente fotográfica, de acordo com sua visão, são

    importantes para a compreensão do mundo nativo estudado, pois,

    Uma deficiência essencial do meu trabalho de terreno deve ser mencionada:

    trata-se das fotografias. Se vocês, eventualmente, compararem meus livros

    com outros relatos de pesquisas de campo, provavelmente, não se darão conta

    do quanto os meus permanecem mal documentados em termos pictóricos. Eis

    a razão principal para insistir sobre este fato. Tratei a fotografia como se

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    fosse uma atividade secundária, uma maneira – de certo modo menor – de

    agrupar “testemunhos”, “provas”, “evidências”. Foi um sério erro da minha

    parte. Redigindo meus dados materiais sobre os jardins [se refere ao Coral

    Gardens], constato que a verificação (o controle) de meus apontamentos de

    campo me conduziu, graças às fotografias, a reformular minhas declarações

    sobre inúmeros pontos... (p. 42).

    Desse modo, se estamos diante do crescimento da importância da fotografia

    enquanto instrumento sócio-antropológico de compreensão da realidade surge, pois, a

    consideração de que as imagens fotográficas podem ser interpretadas tanto dando ênfase

    a suas composições estéticas que a tornem cientificamente analisáveis para além dos

    raciocínios lineares fazendo delas mais um método investigativo, como também,

    fotografias podem nos revelar situações pelas quais a condição humana se mostra em

    sofrimento (MARTINS, 2013). Nesse esteio, “a fotografia nutre a sua interpretação por

    uma contínua remessa ao real, que não se deixa congelar e que, por sua vez, redefine

    significações ao que só aparentemente é um “congelamento” de imagem e, nesse

    sentido, um “retrato” da sociedade em certo momento” (MARTINS, 2013, p. 37).

    Nessa busca para a compreensão da inserção do homem na realidade social por

    meio da análise sócio-antropológica, afirmamos através de Martins (2013) que a

    fotografia acaba por se tornar um documento de tradução da cotidianidade quando se

    passa a juntar “fragmentos visuais”. O que se anuncia por essa perspectiva é a

    impossibilidade da cotidianidade sem a imagem, já que a ausência da fotografia para

    cada situação faz o imaginário suscitar imagens em nós e para nós fazendo-nos, em

    certa medida, “pensarmos fotograficamente”. Segundo Recuero (2008), na pesquisa

    etnográfica não importa se as informações recolhidas sejam visuais ou anotadas no

    tradicional caderno de campo, o que deve estar presente é o rigor científico nas duas

    formas, pois “a fotografia busca no seio da ciência não ser realidade, mas, conter a

    realidade. Não ser a ciência, mas mostrar a ciência, pois é dotada, quando bem utilizada,

    de uma narrativa eloqüente” (RECUERO, 2008, p. 35).

    Nesse sentido, por ser um campo em construção e consolidação, a Antropologia

    visual como qualquer outra ciência está aberta a diálogos teóricos e metodológicos que

    a ajudem a enriquecer suas considerações. É por esse mote que acreditamos que os

    estudos de Foucault (2009) podem tornar-se um referencial no cenário antropológico.

    Neste caso, pela perspectiva foucaultiana, imagens fotográficas podem ser lidas

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    enquanto documentos, pois é na “utilização de uma materialidade documental (livros,

    textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos,

    costumes etc.) que apresenta sempre e em toda parte, formas de permanências”

    (FOUCAULT, 2009, p. 7-8).

    Para tanto, como nosso objeto de estudo aqui tratado são imagens do cotidiano

    da formação policial militar, a qual anuncia um processo pelo qual a polícia tornou-se

    mais humanizada e menos repressiva4, fotografei mosaicos, painéis, frases e imagens

    dos alunos para registrá-los como arquivos. Nesse contexto de elementos variados em

    forma de arquivo, a perspectiva foucaultiana nos permite interpretar que os elementos

    fotografados tratam-se, na verdade, de um “acontecimento discursivo” (FOUCAULT,

    2005). Dessa forma, “trata-se de considerar uma série de acontecimentos, de estabelecer

    e descrever as relações que esses acontecimentos mantêm com outros acontecimentos

    que pertencem às instituições” (FOUCAULT, 2010a, p. 255-256).

    Por esse parâmetro, deve-se entender por arquivo “o conjunto de discursos

    efetivamente pronunciados” (FOUCAULT, 2005, p. 145), o que me levou a buscar,

    através da análise do arquivo, “definir relações que estão na própria superfície dos

    discursos” (Ibidem, p. 146) e, assim, “tornar visível o que só é invisível por estar muito

    na superfície das coisas” (Ibidem, p. 146). Analisei, então, os arquivos fotográficos que

    continham os saberes humanizadores que chamei de paradigmas educacionais através

    “de uma população de acontecimentos dispersos” (FOUCAULT, 2009, p. 24) para

    descobrir quais regras foram estabelecidas para fomentar as práticas humanizadoras.

    Ainda analisei qual seria a intenção real da utilização dos novos paradigmas

    educacionais, ou melhor, que tipo de estratégia estaria montada para se fazer crer que

    existe mudança paradigmática nas práticas discursivas educacionais policiais militares.

    Acerca do que Foucault conceitua por “estratégia”, o mesmo ressalta que “uma

    formação discursiva será individualizada se se puder definir o sistema de formação das

    diferentes estratégias que nela se desenrolam; em outros termos, se se puder mostrar

    como todas derivam de um mesmo jogo de relações” (FOUCAULT, 2009, p. 76).

    Assim, a análise documental centrou-se na relação entre enunciado-discurso-estratégia,

    e por parâmetros sociológicos, o enunciado seria a menor unidade que forma o discurso

    mas que não se esgota na análise da língua e não se localiza na intenção do sujeito

    4 Ver França (2012).

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    falante (FOUCAULT, 2009), pois “o regime de materialidade dos enunciados é da

    ordem da instituição, isso leva o pesquisador a considerar a relação entre prática

    discursiva e instituição, a conceber o discurso não como signos, mas como prática

    discursiva que abarca regras determinadas historicamente” (NAVARRO, 2011, p. 139).

    Vejamos então do que se trata o discurso sobre uma formação policial militar

    humanizada.

    Humanos policiais ou policiais humanos?

    No filme Robocop, relançado no ano de 2014, sob direção de José Padilha, o

    conflito central da película se estabelece quando o policial Alex Murphy sofre um

    atentado à bomba e, após ter a maior parte do seu corpo inutilizada, passa a ser testado

    no lugar de drones e robôs para atuar contra o crime. Ele se traduz numa imbricação

    entre ser uma máquina com consciência humana, no entanto, os sentimentos e valores

    humanos são controlados pela diminuição da produção em seu cérebro dos hormônios

    que criam nossas emoções. De todo modo, o decorrer do filme nos mostra duas

    situações: a primeira diz respeito a como o Estado se posiciona em relação ao seu

    aparelho repressivo, pois importa criar um policial que combata o crime, mas que não

    possua emoções na hora de atuar. Ele deve apenas agir tecnicamente. Na segunda

    situação, de acordo com as experiências que Alex Murphy como robocop passa a viver,

    especialmente no contato com sua família, emerge, por mais que a Corporação que o

    criou reduza os hormônios de seu corpo, lembranças carregadas de afeto e sensibilidade,

    que o faz recobrar sua antiga vida como policial. Talvez o filme Robocop seja uma boa

    metáfora para entendermos como atualmente no Brasil as instituições policiais militares

    vêm se comportando, ou seja, ao mesmo tempo em que são instituições repressoras e

    representantes do poder coercitivo do Estado, também demonstram uma nova imagem

    próxima de uma polícia humanizada, que se diferencia daquela que atuou no regime

    ditatorial em nosso país (1964-1985).

    Foi por essa perspectiva que realizei uma etnografia no Centro de Formação da

    Polícia Militar do Estado da Paraíba entre os anos de 2010-2012 e, depois retornei em

    2013 para realizar um novo trabalho de campo onde acompanhei especificamente

    apenas a semana inicial de adaptação dos alunos do Curso de Formação de Oficiais, que

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    é comumente conhecida como “semana zero”, de acordo com o discurso nativo.5 No

    caso da observação do discurso de uma polícia humanizada, fotografei mosaicos, frases

    e painéis que passaram a fazer parte do cotidiano da caserna PM, que para mim

    passaram a ser compreendidos devido a uma nova configuração nas relações de poder6

    que envolviam os alunos policiais militares. Por uma perspectiva foucaultiana, analisei

    os elementos citados enquanto “acontecimentos discursivos” que dizem respeito a novos

    saberes institucionalizados que passam a legitimar critérios de verdade que são

    afirmados por valores humanizadores que devem ser apreendidos na formação

    profissional dos policiais militares. Passei a denominar tais saberes de paradigmas

    educacionais.

    Esses paradigmas educacionais a que me refiro dizem respeito ao conjunto de

    discursos que passaram a ser veiculados na instituição policial militar que tiveram como

    base os princípios propalados pelos Direitos Humanos. Esses paradigmas tanto podem

    ser aqueles formalizados como disciplinas acadêmicas, que não existiam na formação

    policial militar antes de 1990 (especialmente os próprios Direitos Humanos),

    regulamentos institucionais que destacam o respeito pela pessoa humana, as novas

    palavras que passaram a ser adotadas no cotidiano policial militar sobre valores

    humanizadores, bem como os elementos simbólicos como os mosaicos que analisei e

    que retratam cenas do cotidiano policial militar em que policiais interagem de forma

    harmoniosa com a sociedade. Se à época da ditadura militar falava-se no combate ao

    inimigo interno sob a égide da manutenção da segurança nacional, agora se fala no

    ambiente intramuros da formação policial militar em igualdade, cidadania, respeito à

    dignidade humana, proteção ao cidadão.

    5 Ver França (2013).

    6 Neste caso, as relações de poder em análise dizem respeito ao poder disciplinar retratado por Foucault.

    Ver Foucault (1987, 2003).

  • 8

    FIGURA 1 (esquerda): policiais militares brincam com crianças em mosaico.

    FIGURA 2 (direita): Educação, cidadania e segurança pública.

    FONTE: Arquivos do autor (2011).

    Destaco, nesse contexto, que esse fenômeno e o objetivo de minha análise

    podem ser percebidos como uma “economia política da formação”7, ou seja, a mudança

    de um modelo de formação (antes mais próximo da ideologia própria à ditadura militar

    em nosso país) a outro (que surgiu com as novas configurações da sociedade brasileira

    devido à promulgação da Constituição cidadã de 1988 e o final do regime militar). A

    partir dessa ideia deve-se questionar como é que esses novos paradigmas, que foram

    chamados de educacionais por fazerem parte do processo educacional de formação

    profissional dos policiais militares, estão se disseminando discursivamente na realidade

    desses profissionais como uma nova verdade que deve traduzir a realidade da instituição

    policial. O que ocorre é que se criou a afirmação de que a Polícia Militar está

    humanizando seus profissionais em formação tanto para as relações cotidianas durante o

    processo de formação como para as práticas desenvolvidas nas ruas na interação direta

    com a sociedade.

    Nessa contextualização busquei entender como as relações de poder se

    estabelecem nesse novo modelo de formação já que “o poder produz saber. Poder e

    saber estão diretamente implicados. Não há relação de poder sem constituição correlata

    de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo

    relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 27). Essa nova formação humanizada dos

    policiais militares pode ser entendida como um “acontecimento” (FOUCAULT, 2010a,

    p. 256), que seria a substituição de discursos antigos pela proliferação de novos

    discursos que passam a influenciar práticas que estão atravessadas por estratégias de

    poder presentes nas instituições disciplinares (CASTRO, 2009, p. 24-25). Segundo

    Navarro (2011), “uma vez produzido no interior de uma prática que se pauta pelo

    emprego de estratégias de manipulação do real, o acontecimento é produto de escolhas

    orientadas de imagens que lhe imprimem a impressão do vivido mais perto” (p. 142).

    7 Utilizo essa ideia muito interessante que foi proposta pelo professor Rogério de Souza Medeiros durante

    a Qualificação desta Dissertação no dia 20/12/2011, a qual me serviu de forma esclarecedora para

    designar o processo que estudo na formação dos profissionais policiais militares.

  • 9

    FIGURA 3 (esquerda): Segurança e proteção à criança.

    FIGURA 4 (direita): Valores humanizadores policiais. FONTE: arquivos do autor (2011).

    No entanto, o que a primeira pesquisa me revelou foi a proliferação de discursos

    humanizadores que passaram a ocultar a lógica do disciplinamento, o que passei a

    afirmar ser um processo de “humanização disciplinada” (FRANÇA, 2012).

    FIGURAS 5 (esquerda) e 6 (direita).

    FONTE: Arquivos do autor (2011).

    Como exemplo para entendermos esse processo, ao analisar a frase da esquerda

    em destaque na foto se vê: “Quem ama a disciplina ama o conhecimento”. A frase é

    clara sobre a importância da disciplina também na forma do aprendizado típico dos

    alunos policiais militares. A disciplina também está presente na maneira que os

    conteúdos devem ser aprendidos. A frase está exposta num local do CE em que os

    alunos estão aptos a vê-la cotidianamente. Mas, nosso olhar deve voltar-se para a

    direita, onde se encontra a frase “Essa é a nossa missão transformar pessoas através

    do conhecimento”. Nessa última frase vê-se que, novamente, a humanização do

    policial se destaca, agora através da aquisição de conhecimento, que nesse caso diz

  • 10

    respeito ao policial esclarecido, que é transformado em profissional com maior

    qualificação. Nessas condições, destaco na segunda frase a forma em que o poder está

    ocultado por meio da crença na formação policial por meio do conhecimento, já que a

    formação dos alunos da PM paraibana até 1990 era baseada unicamente na educação

    militarizada através da doutrina de segurança nacional. Dessa maneira, a nova educação

    humanizada deve se pautar por meio do conhecimento e não só apenas pelo militarismo.

    Mas, o tipo de conhecimento que não aparece na segunda frase é destacado na primeira,

    pois ele deve ser o conhecimento atrelado à disciplina. Além disso, quando se destaca a

    palavra “missão” na segunda frase, essa palavra é própria do disciplinamento militar e

    se configura como parte do vocabulário institucional para traduzir qualquer tipo de

    atividade desempenhada pelo policial militar. Então, “transformar pessoas” novamente

    se torna o correlato das relações que ocultam o poder.

    Nessa realidade entre humanização e disciplinamento o que se percebe é que as

    regras engendradas promovem discursos em que as estratégias de poder se estabelecem

    por meio da humanização, validando assim um duplo processo normalizador. Assim,

    visto que o disciplinamento ainda é a realidade constante na formação policial militar e

    a forma de aprender extrapola as salas de aula e se norteia de forma que “o processo de

    avaliação de um cadete8 não se restringe ao bom desempenho acadêmico no conjunto de

    disciplinas que é obrigado a cumprir. O processo de ensino numa instituição militarista

    implica, sobretudo, na internalização do ethos militar” (CARUSO, 2010, p. 110).

    Observemos a foto abaixo:

    FIGURA 7

    8 Denominação dos alunos policiais militares que frequentam o Curso de Formação de Oficiais.

  • 11

    Na figura 7 destaca-se a frase “Se queres a Paz, prepara-te para Guerra”.

    Essa frase incita os alunos policiais a se prepararem antes para o combate se quiserem

    almejar a tranquilidade advinda com a paz. A palavra paz representa a humanização, na

    situação em que as pessoas podem viver no exercício de direitos e liberdades numa

    relação de harmonia coletiva. Ao contrário, a guerra simboliza o disciplinamento: a

    preparação própria através de mecanismos condicionantes e repetitivos, que exigem a

    profícua “docilidade” e utilização máxima do tempo e das forças dos indivíduos

    (FOUCAULT, 1987; LUDWIG, 1998; WRIGHT MILLS, 1981; WEBER, 2010). Nesse

    contexto remeto a Elias (1997), que estudou como a introjeção do ethos militarista pela

    sociedade alemã por meio da coerção externa e do autodisciplinamento voltado para

    hábitos violentos e guerreiros, acabou tornando o comportamento social desse povo,

    num determinado momento histórico (1871-1914), avesso a princípios humanitários,

    pois guiar-se por esses princípios passava a denotar ser socialmente inferior. Dessa

    maneira, percebe-se que a PM paraibana foi construída historicamente por processo

    semelhante, pois “instadas a organizar-se à imagem e semelhança do Exército, sendo,

    entretanto, instituições destinadas a cumprir papel radicalmente diferente, as PMs

    acabam produzindo-se como entidades híbridas, pequenos exércitos em desvio de

    função” (SOARES apud LUIZ, 2003, p. 68).

    Portanto, se a humanização policial militar diz respeito a uma forma de

    ocultação do poder disciplinar, quando do meu retorno ao Centro de Formação PM em

    2013, pude constatar que essa humanização não ocorria de forma efetiva, fazendo os

    alunos não compreenderem o significado dos valores humanitários como dignidade e

    respeito, porque seus próprios direitos não eram levados em consideração. Antes da

    humanização, o ethos militarista é destacado desde a semana inicial da formação

    pedagógica PM, de modo que a “naturalização” de um comportamento violento surge a

    partir do condicionamento corporal e afetivo dos alunos por meio de uma violência

    exercida por ritos e exercícios desgastantes. As imagens a seguir, captadas durante a

    pesquisa em 2013, é que nos demonstram como o “espírito militar” (CASTRO, 2004) se

    concretiza através do sofrimento dos alunos policiais.

  • 12

    Corpos, olhares e violência: imagens do disciplinamento policial militar

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  • 17

    Considerações finais

    Este trabalho serviu de esboço e reforço da utilização da fotografia como recurso

    metodológico no campo das ciências sociais. Nesse sentido, valemo-nos de imagens

    captadas em pesquisas anteriores, mas que aqui serviram de suporte para que

    pudéssemos propor novas concepções teóricas de análise. Neste caso, a perspectiva

    foucaultiana foi adotada para observarmos as regras pedagógicas de um quartel de

    polícia militar: disciplinamento corporal e afetivo, controle dos corpos,

    condicionamento, uniformização, sofrimento para a aprendizagem, robustez, virilidade,

    violência. Nesse sentido, discorremos sobre as estratégias que fortalecem o poder

    disciplinar que se oculta pelo discurso de uma formação mais humanizada dos alunos

  • 18

    policiais e, por fim, narramos fotograficamente que os alunos não compreendem esse

    processo de humanização porque seus direitos não são respeitados visto que deve existir

    uma naturalização da violência através do ethos militarista.

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