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I Congresso Direito Vivo€¦ · 2 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos, “Matrizes teóricas para se repensar a crítica no direito”. n: Revista do i Instituto de Pesquisas e Estudos

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I Congresso Direito Vivo

Erika Juliana DmitrukMiguel Etinger de Araujo Junior

Coordenadores

Londrina2013

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REALIZAÇÃOLUTAS Londrina - Projeto integrado de

extensão, pesquisa e ensino no 1680PROEX/UEL

Departamento de Direito PúblicoCentro de Estudos Sociais Aplicados – CESA

UEL – Universidade Estadual de Londrina

COORDENAÇÃOErika Juliana Dmitruk

Miguel Etinger de Araujo Junior

COMISSÃO CIENTÍFICAErika Juliana Dmitruk

Miguel Etinger de Araujo JuniorMarisse C. Queiroz

Fabio MartinsCesar Bessa

COMISSÃO ORGANIZADORAAutieres Oliveira Costa

Barbara Garcia

Baruana Calado dos SantosCarlos Alberto Guerra

Caroline Gonzalez CastroCaroliny Freitas Máximo Guimarães

Débora Teixeira RodriguesDeíse Camargo Maíto

Fábio MartinsFelipe Junias Teruel

Fernanda Verruck de MoraesGabriel Rufini Galvão

Guilherme Ferreira Duarte BarbosaGuilherme Uchimura

Juliana Kiyosen NakayamaLaura Emili Salgado

Luara Soares ScalassaraLuiz Ernesto Guimarães

Milien MalinowskiRodolfo Carvalho Neves dos Santos

Thaís Aranda BarrozoVictor Hayashi

Samantha DorosoWilliam Fernandes Rabelo da Silva

REITORANádina Aparecida Moreno

VICE-REITORABerenice Quinzani Jordão

Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

C749a Congresso Direito Vivo (1 : 2013 : Londrina, PR). Anais do I Congresso Direito Vivo : projeto integrado nº 1680 – PROEX/UEL lutas Londrina, 03 a 05 de abril, Londrina, PR / coordenação: Érika Juliana Dmitruk e Miguel Etinger de Araújo Junior. - Londrina : UEL, 2013. 378 p.

Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-207-9

1. Direito – Congressos. 2. Direito – Teoria crítica – Congressos.

3. Direito – Aspectos sociais – Congressos. I. Dmitruk, Érika Juliana. II. Araújo Junior, Miguel Etinger de. III. Universidade Estadual de Londrina. IV. Título.

CDU 34(061.3)

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03/04/2013

19h15 – Palestra: “Direito e Teoria Crítica na Perspectiva da América Latina”Palestrante: Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)Debatedores: Erika Juliana Dmitruk (UEL) e Sérgio Alves Gomes (UEL)

04/04/2013

15hs – 17h30: Jogo da CidadeCoordenação da atividade: Beatriz Fleury e Silva (UEM)

15hs-17h30: Exibição de CurtasModeradores: Thaís Aranda Barrozo (UEL/FAAT) e Elisa Roberta Zanon (Unifil)

19h15 – Palestra: “Movimentos Sociais e Direito à Moradia”Palestrante: Betânia de Moraes Alfonsin (Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul; PUC/PR)Debatedores: Miguel Etinger de Araújo Junior (UEL), Sandra Maria Almeida Cordeiro (UEL) e Beatriz Fleury e Silva (UEM)

05/04/2013

14hs – 18hs: Mostra de Trabalhos CientíficosGT1: Teorias Críticas do DireitoCoordenação: Erika Juliana Dmitruk (UEL)

GT2: Experiências Jurídicas de intervenção em Conflitos UrbanosCoordenação: Miguel Etinger de Araujo Junior (UEL)

GT3: Experiências Jurídicas de intervenção em Conflitos de GêneroCoordenação: Marisse C. Queiroz (PUC/PR)

GT4: Experiências Jurídicas de intervenção em Conflitos em Áreas Rurais e relacionados às Comunidades Tradicionais.Coordenação: Miguel Etinger de Araujo Junior (UEL)

GT5: Educação Popular e Assessoria Jurídica Popular Universitária.Coordenação: Fábio Martins (UNESP – advogado militante nos movimentos sociais)

GT6: Relações contemporâneas de trabalho e instrumentos jurídicos de proteção do trabalhadorCoordenação: Cesar Bessa (UEL)

19h15 – Palestra: “A Criminalização da luta pela Terra no Paraná”Palestrante: Darcy Frigo (ONG Terra de Direitos)Debatedores: Fábio Martins e Gerson da Silva

22:30 – Encerramento do Evento

PROGRAMAÇÃO

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PATROCÍNIO

APOIO

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SuMáRIO

APRESENTAçãO .........................................................................................................................................

TENDêNCiAS DO PENSAMENTO CRíTiCO DO DiREiTO NA AMéRiCA LATiNA.................Antonio Carlos Wolkmer

DiREiTO à MORADiA E MOViMENTOS SOCiAiS ............................................................................Betânia de Moraes Afonsin

CRiMiNALiZAçãO DA LUTA PELA TERRA NO PARANÁ ..............................................................Darci Frigo

SOBERANiA ESTATAL E MONiSMO JURíDiCO: A EXCLUSãO DOS POBRES NO ESTADO CiViL ................................................................................................................................................................Erika Juliana Dmitruk

CONHECiMENTO TRADiCiONAL ASSOCiADO E APLiCAçãO DO PROTOCOLO DE NAGOyA NOS ESTADOS PLURiNACiONAiS LATiNO-AMERiCANOS DO SéCULO XXi .....Miguel Etinger de Araujo Junior

POSSiBiLiDADES DA EXTENSãO UNiVERSiTÁRiA SOB O ENFOQUE DAS TEORiAS CRíTiCAS DO DiREiTO ..............................................................................................................................Baruana Calado dos Santos

A MERCADORiZAçãO DOS DELiTOS ..................................................................................................Guilherme Cavicchioli Uchimura

O DiREiTO E A CONSOLiDAçãO DO CAPiTALiSMO: UMA LEiTURA DA “LEGiSLAçãO SANGUiNÁRiA CONTRA OS EXPROPRiADOS” DE KARL MARX ................................................Izabella Affonso Costa

O DiREiTO ALTERNATiVO E A JUSTiçA SOCiAL NA AMéRiCA LATiNA ................................Luiz Ernesto Guimarães; Caroliny Freitas Máximo Guimarães

DiREiTO COMO ELEMENTO CONSTiTUíDO E CONSTiTUiNTE DA EVOLUçãO SOCiOCULTURAL........................................................................................................................................Maria Carolina Silvestre de Barros

AO POVO O POVO .......................................................................................................................................Sócrates Fusinato

ORçAMENTO PARTiCiPATiVO à LUZ DA FiLOSOFiA DA LiBERTAçãO DE HENRiQUE DUSSEL ............................................................................................................................................................Alexandre Alberto Trannin

ESTãO DEMOCRÁTiCA DAS CiDADES: OS MOViMENTOS SOCiAiS COMO iNSTRUMENTO DO EFETiVO EXERCíCiO DA CiDADANiA .........................................................................................Ivan Martins Tristão; Caroline Gonzalez Castro

O PROBLEMA DA FALTA DA GESTãO DEMOCRÁTiCA DAS CiDADES NA GESTãO DE UM BEM DE USO COMUM ................................................................................................................................Deíse Camargo Maito

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DiREiTO FUNDAMENTAL à MORADiA E AO MEiO AMBiENTE: CONFLiTO DE PRiNCíPiOS SUSCiTADO PELA LEi 11.977/2009 .................................................................................Guilherme Faraco; Humberto Bunshi Arakawa Júnior

A QUALiDADE DO MEiO AMBiENTE ViSANDO O PLANEJAMENTO URBANO, A LUZ DA CONSTiTUiçãO FEDERAL .......................................................................................................................Luca de Campos Carrer

A LEGiTiMiDADE DEMOCRÁTiCA DO PODER POLíTiCO E O DOMíNiO DO MERCADO ECONôMiCO: COPA DO MUNDO NO BRASiL EM 2014 E A SOBERANiA POPULAR ...........Rodrigo Camargo da Cruz

ASPECTOS RELEVANTES DOS CONFLiTOS DE GêNERO: O MACHiSMO ENQUANTO OPRESSOR DO HOMEM ............................................................................................................................Raquel Viotto Martins

FUNçãO SOCiAL DA PROPRiEDADE RURAL E SEU PAPEL ECONôMiCO, AMBiENTAL E SOCiAL ............................................................................................................................................................Luciana Maria Faria de Souza

ASPECTOS JURíDiCOS E SOCiOECONôMiCOS DOS ABUSOS E ViOLAçãO DOS DiREiTOS CONSTiTUCiONAiS SOFRiDOS PELOS POVOS GUARANi-KAiOWÁ EM MATO GROSSO DO SUL ..........................................................................................................................................Larissa Maura Pereira Freitas

EDUCAçãO POPULAR E ASSESSORiA JURíDiCA UNiVERSiTÁRiA POPULAR: iNSTRUMENTO DE ACESSO à JUSTiçA E EMANCiPAçãO SOCiAL ..........................................Larissa Maura Pereira Freitas

ASSéDiO MORAL NAS RELAçõES DE TRABALHO: UM PROBLEMA DE GêNERO ................Layla Gonçalves Mendes de Carvalho Barbosa

A PRESCRiçãO DE OFíCiO NO PROCESSO DO TRABALHO SOB A óTiCA CONSTiTUCiONAL. ....................................................................................................................................Leika Yasko Pereira Wagatsuma; Mateus Alves Saffaro

CONTRiBUiçãO SiNDiCAL: UM ATENTADO àS LiBERDADES E à FORçA SiNDiCAL ......Luara Soares Scalassara

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APRESENTAÇÃO

Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.

(Paulo Freire)

A citação de Paulo Freire acima colada é a grande inspiração do LUTAS:Londrina. Este coletivo possui a forma institucional de projeto integrado de pesquisa, ensino e extensão, cadastrado na Universidade Estadual de Londrina sob número 1680, com início em novembro de 2012, apesar de estar em atividade desde agosto de 2011.

Com a dedicação de alunos e professores, inspirados por uma leitura crítica do Direito, e pela vontade de disseminar suas experiências e estudos, iniciou-se a preparação do i Congresso Direito Vivo.

Foi assim que, nos dias 03, 04 e 05 de abril de 2013, o Anfiteatro do CESA – Centro de Estudos Sociais Aplicados, da Universidade Estadual de Londrina, sediou um congresso que reuniu uma gama bastante distinta de alunos, profissionais e integrantes de movimentos sociais. A temática trabalhada atraiu pessoas de diversas áreas e dos mais diversos movimentos. Extrapolou os limites tradicionais dos congressos jurídicos aqui realizados.

Uma música acolhedora recepcionava os que chegavam. Aos poucos, os lugares foram sendo ocupados. A luz se apaga, a música muda... alunos carregam velas e um caixão. Mas quem estão velando? Velam o direito morto, aquele que nasce e perece nos livros. Pouco a pouco, flores são depositadas. Flores, sinal de vida? Sim, flores. Então a música começa a se tornar animada e cativante, a luz é acesa e vemos que as flores agora estão entre os participantes. A flor precede o fruto, e os frutos do i Congresso de Direito Vivo começavam a ser colhidos. 1

Esta publicação é um registro deste i Congresso Direito Vivo, o qual se encontra em sua primeira edição. Os artigos científicos aqui publicados foram selecionados por uma comissão constituída por professores e pesquisadores, e apresentados durante o Congresso. Os critérios de escolha levaram em conta

1 Texto inspirado na publicação do blog lutas-londrina.blogspot.com.br. por Luara Scalassara e Bárbara Garcia, participantes do Projeto integrado de Extensão nº 1680 - Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos.

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a pertinência com os temas propostos, a revisão bibliográfi ca e a relevância acadêmica dos textos.

Como o Lutas Londrina debate o Direito como uma atividade criativa, libertadora e emancipadora, baseada na alteridade, dentro da visão de Roberto Lyra Filho, Paulo Freire, Marx, Eugen Ehrlich, Dussel, os textos aqui colacionados trazem esta marca. Esperamos que estes estudos sejam utilizados em pesquisas posteriores, e também inspirem ações transformadoras.

O i Congresso Direito Vivo contou com um grupo que sonhou um evento diferente para os corredores do CESA e para a Universidade Estadual de Londrina. Esse grupo é formado pelos professores Erika Juliana Dmitruk, Miguel Etinger de Araujo Junior, Th ais Aranda Barrozo e Juliana Nakayama, e pelos discentes Autieres Oliveira, Barbara Garcia, Baruana Calado, Caroline Castro, Carol Guimarães, Débora Rodrigues, Deíse Maito, Felipe Junias Teruel, Fernanda Moraes, Guilherme Uchimura, Guilherme Duarte, Laura Salgado, Luara Scalassara, Luiz Ernesto, Milien Malinowski, Rodolfo Santos, Vanessa Ferreira, William Fernandes.

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TENDêNCIAS DO PENSAMENTO CRÍTICO DO DIREITO NA AMéRICA LATINA

Antonio Carlos Wolkmer1

1 Introdução: o sentido da crítica

Ao repensar as formas de controle e regulamentação social num cenário localizado de sociedades pós-coloniais como as da América Latina, que são historicamente suscetíveis aos impactos dos sistemas de poder mundializado e de relações complexas de dominação, torna-se cada vez mais significativo o resgate da teoria social marxista e das diversas manifestações de normatividade em sentido crítico-emancipatório, para se pensar a sociedade e o Direito latino-americanos.

E para iniciar, faz-se necessário assimilar os diversos sentidos despreendidos da expressão “crítica”, termo que não deixa de ser ambíguo e abrangente, pois representa inúmeros significados, sendo interpretado e utilizado de formas diversas no espaço e no tempo. De qualquer modo, a “crítica” emerge como elaboração instrumental dinâmica que transpõe os limites naturais das teorias tradicionais, não se atendo apenas a descrever o que está estabelecido ou a contemplar, equidistantemente, os fenômenos sociais e reais2.Reconhece-se ainda, que a “crítica” pode revelar, no esclarecimento de Paulo Freire,

(...)Aquele conhecimento não é dogmático, nem permanente, mas que existe num continuo processo de fazer-se a si próprio. E, seguindo a posição de que não existe conhecimento sem práxis, o conhecimento ‘crítico’ seria aquele relacionado com um certo tipo de ação que resulta na transformação da realidade. Somente uma teoria ‘crítica’ pode resultar na libertação do ser

1 Professor Titular de “História das instituições Jurídicas” dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UFSC. Doutor em Direito e membro do instituto de Advogados Brasileiros (RJ).é pesquisador do CNPQ. Professor visitante de cursos de pós-graduação em várias universidades do Brasil e do Exterior. Autor de diversos livros, dentre os quais: Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito. 3ª São Paulo: Alfa-Omega, 2001; (Org) Direitos Humanos e Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. Sintesis de uma História das idéias Jurídicas: da Antiguidade Clássica à Modernidade. 2ª ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008; introdução ao Pensamento Jurídico Crítico 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001; História do Direito no Brasil. 5ª ed

2 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos, “Matrizes teóricas para se repensar a crítica no direito”. in: Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos. Bauru: iTE, n.25, abr./jul. 1999 p.102.

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humano, pois não existe transformação da realidade sem a libertação do ser humano.3

Como processo histórico identifi cado ao utópico, ao radical e ao transformador, a “crítica” assume a “função de abrir alternativas de ação e margem de possibilidades que se projetam sobre as comunidades históricas”4.

Uma posição “crítica” inspirada no materialismo dialético há que ser vista, por conseguinte, não só como uma avaliação crítica “de nossa condição presente, mas crítica na direção de uma nova experiência (...)5, de uma nova sociedade”.

Entendido a crítica como instrumental de ruptura e de transformação, a questão que se coloca a seguir é como viabilizá-la na inserção da trajetória da sociedade, das instituições e do Direito latino-americanos. Ainda que engendrado historicamente por descontinuidades e fl uxos deterministas alienígenas, pode-se apostar na existência de uma fi losofi a da libertação e de um pensamento jurídico na América Latina.

Certamente, em um sentido mais geral, o pensamento latino-americano presente, explicita ou implicitamente, na produção cultural de seus autores, escritores e fi lósofos, reforça a premissa de que o importante “ (...) não é tentar afi rmar tal pensamento como verdade ou como aquele mais adequado à região, mas ao contrário, um pensamento enquanto(...)6 manifestação apta a instrumentalizar a força de sua crítica no sentido de contribuir na desconstrução das velhas práticas de saber e de poder dominantes, na Sociedade e no Direito.

A construção de uma nova cultura de normatividade, marcada pela pluralidade e pela ética da alteridade, seja como forma de destruição da dominação, seja como instrumento de libertação e de transformação, envolve a consideração de certas condições práticas e teóricas, quais sejam:1) inspira-se na “práxis concreta” e na situação histórica das estruturas

socioeconômicas da América Latina, até secularmente espoliadas, dependentes, marginalizadas e colonizadas;

3 FREiRE, Paulo. in: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 3-4

4 HABERMAS, Jurgen. in: SANTiAGO, Gabriel L. As utopias latino-americanas: em busca de uma educação libertadora. Campinas: Alínea, 1998. P. 44.

5 QUiNNEy, Richard. in: WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 5.

6 SANTiAGO, Gabriel L. O. Cit., p. 27

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2) nutre-se em categorias teóricas e processos de conhecimentos encontrados em suas próprias tradições culturais. isso não implica em descartar determinados referenciais teóricos vinculados a crítica, a tomada de consciência, a desalienação e a emancipação, como o aporte referencial representado pela teoria social marxista.

2 O marxismo e o movimento de crítica jurídica na europa

A crise dos modelos normativos tecno-formais estabelece condições para o surgimento de orientações teóricas que questionam e superam o reducionismo normativista. Toda essa revisão do Direito dominante, marcada pela ilegitimidade e pela inefi cácia de produção e aplicação da justiça, produz tendências teóricas e movimentos transcontinentais de perfi l e procedimento crítico. Uma signifi cativa parcela de tais correntes ou formulações críticas, alternativas e anti-formalistas têm buscado sua base epistemológica e sua prática ideológica na teoria social marxista. O marxismo exerceu incisiva infl uência nas orientações jurídicas anti-positivistas e anti-formalistas, direcionando o Direito para um compromisso maior com a realidade e com as práticas sociais. O impacto do marxismo sobre o mundo jurídico, ganhou força a partir da segunda metade do século XX, sobre pesquisadores, profi ssionais litigiantes e tendências acadêmicas na Europa e na América Latina. Senão, veja-se, primeiramente, algumas orientações críticas no Direito na França, itália e Espanha.7

3 Associação crítica do direito: França

Foi um movimento de investigação crítica, criado em 1978, formado por juristas e professores de faculdade francesas de Direito, propondo uma teoria jurídica oposta ao individualismo formalista e ao positivismo normativista, aproximando-se da ciência política e utilizando-se do marxismo, como referencial metodológico. A buscar reconstruir a Teoria Geral do Direito, aprova-se o materialismo dialético, insufl ado por interpretações althusserianas e gramscianas, então na moda.

Em seus primórdios, coincidentes com a fundação e com a publicação de um Manifesto, o movimento irá expressar que o Direito e o Estado são 7 Para o aprofundamento e a descrição mais abrangente do movimento jurídico crítico na Europa, ver:

Antonio C. Wolkmer. Introdução ao Pensamento jurídico Crítico. 7ed. São Paulo: Saraiva, 2009

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fenômenos produzidos pelas contradições sociais, de sorte que a apreciação neutra do Direito não faz mais do que reforçar a dominação do modo de produção capitalista. Torna-se arbitrário e contraditório, para a própria realidade social, apresentar como naturais às “clássicas” distinções entre ciência jurídica e ciência política, entre Direito Público e Direito Privado, entre indivíduo e coletividade. Assim, a fi nalidade do movimento é não só introduzir novo discurso teórico e outra “prática de ruptura com a ideologia dominante”, mas, sobretudo, incrementar transformações no ensino e na pesquisa jurídica das universidades, contribuindo para edifi car uma epistemologia do Direito na perspectiva de “transição do socialismo”.8

Ainda que o movimento crítico francês teve uma vida efêmera, certamente, foram importantes seus infl uxos e sua receptividade no pensamento jurídico crítico de inúmeros países da América Latina.

4 uso alternativo do direito: Itália e Espanha

Desde fi ns dos anos 60 e começo da década de 70 constituiu-se, na itália, um movimento teórico-prático, formado por professores universitários, advogados e principalmente magistrados progressistas9. O objetivo dessa importante tendência político-jurídica foi propor, diante da dominação e da conservação do Direito burguês capitalista, a utilização do ordenamento jurídico vigente e de suas instituições na direção de uma prática judicial emancipadora, voltada aos setores sociais excluídos ou às classes menos favorecidas.

O movimento do Uso Alternativo do Direito fez-se representar, desde a década de 60, por inúmeros magistrados integrantes da “Magistratura Democrática”, corrente dissidente no interior da Associazione Nazionale Magistrati. Além de editar duas importantes revistas (Magistratura Democrática e Quale Giustizia), aglutinou o interesse de alguns dos mais

8 Michel Miaille, “Critique 1-Critique di Droit”, in André-Jean Arnaud (dir.), op. cit., p. 86. Para uma análise mais complete do movimento crítico francês, verifi car algumas obras que tiveram signifi cativa repercussão, como: Maurice Bourjol e outros, Pour une Critique Du Droit, Grenoble; Maspero, 1978; Michel Miaille, Uma introdução Crítica ao Direito, Lisboa: Moraes Ed., 1979; El Estado Del Derecho, Puebla; Universidad Autónoma de Puebla, 1985; Jean Jacques Gleizal, Le Detroit Politiquede L’Ètat, Paris:PUF, 1980; F. Collin, A. Jeammaud, A Roudil, G. Lyon-Caen, Le Detroit Capitaliste Du Travail, Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1980.

9 O movimento italianoteve seu impulso e sua afi rmação com o Congresso de Catãnia, realizado em maio de 1972,resultando nas formulações sobre o “uso alternativo do Direito”, publicada em dois volumes, em 1973, e organizada por Pietro Barcellona.

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importantes juristas críticos e antidogmáticos da itália, tais como: Pietro Barcellona, Giuseppe Cotturri, Luigi Ferreajoli, Salvatore Senese, Vicenzo Accattatis, etc10.

Apoiando-se em pressupostos do pensamento neomarxista contemporâneo, que explora as fi ssuras, as antinomias e as contradições da ordem jurídica burguesa, os adeptos do modelo alternativo do Direito consideram a relevância de dois aspectos: a) a estreita relação entre a função política do Direito enquanto instrumento de dominação e as determinações socioeconômicas do modo capitalistas; b) o Pode Judiciário, que assegura o status quo estabelecido, agindo não só como aparelho ideológico do Estado, mas também como instrumento de repressão e controle institucionalizado. A tradição liberal-individualista tem demonstrado que o poder judicial não é uma instância neutra e independente na espera de máquina estatal, a serviço das liberdades e acima dos antagonismos de classe. A esse respeito, Ferrajoli alertava para a necessidade de desmascarar certos postulados ideológicos de cultura jurídica burguesa, como a apoliticidade, a imparcialidade e a independência dos juízes. A contradição está no fato de que o Poder Judiciário, não obstante de sua aparência de neutralidade, nada mais é do que uma instituição de natureza política, refl exo da própria dinâmica do poder do Estado capitalista. Barcellona acentuava a obrigatoriedade da função política no Direito e a necessária legitimação de uma práxis emancipadora.

Ao longo das décadas de 70 e 80, os ventos do movimento crítico italiano difundiram-se e encontraram eco entre juristas e magistrados da Espanha: em Madrid, com Perfecto Andrés ibañez e seu grupo “Jueces para La Democracia”, e em Granada, na Faculdade de Direito, com Nicolas Lopez Cólera e Modesto Saavedra López.

Foi no âmbito da teoria e fi losofi a do Direito que o marxismo teve, na época, dois dos mais destacados intérpretes: Elias Diaz, de Madrid e, Juan-Ramón Capella, de Barcelona. Coube à Capella uma repercussão maior, na medida, que adota uma postura teórica claramente ideológica, voltada para a transformação radical da ordem jurídica burguesa. Trata-se de ensaísta eclético e de conferencista polêmico, com interesses diversos que atravessam desde as incursões sobre a fi losofi a marxista, os problemas teóricos envolvendo a ciência e a lógica, até as questões sobre ecologia, pacifi smo, feminismo, armamentismo etc.10 Nicolás Lopez Calera, Modesto Saavedra Lopez, Perfecto Andrés ibañez, Sobre el Uso Alternativo Del

Derecho, Valencia: Fernando Torres, 1948, p. 40.

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Algumas incisivas posturas ideológicas defendidas em seu livro Sobre la Extinción Del Derecho y la Supresión de los Juristas, acabou por desencadear uma ampla discussão, na qual sustenta o argumento de que “o jurista foi, no passado, o intelectual orgânico privilegiado das classes dominantes na sociedade dividida em classes (...) . Fica claro, portanto, que Capella, sem reduzir o Direito à política, procura a “interpretação histórico-materialista do conteúdo concreto das normas jurídicas”, buscando, de um lado, “esboçar uma teoria do Direito como instrumento do domínio de classe e, de outro, aprofundar o estudo de caráter ideológico do Direito e da doutrina dos juristas” .

5 O marxismo como fonte da crítica transformadora do Direito na América Latina

A partir dos anos 80, não menos relevante, foi infl uência de diferentes aportes marxistas, advindos da Associação Crítica do Direito (França) e do Uso Alternativo do Direito (itália) sobre amplos setores do Direito crítico Latino-Americano, entre os quais um grupo de juristas mexicanos, bem como alguns teóricos marxistas de Cuba, Porto Rico, Chile, Colômbia, Argentina e Brasil.

Um dos núcleos mais fortes de investigação jurídica progressista inspirada no marxismo está no México, em volta das pesquisas publicadas pela revista Crítica Jurídica, tendo, como fundador e expoente, o nome de Oscar Correas, jurista argentino radicado no México. Partindo de pressupostos oferecidos pelo marxismo, faz uma crítica contundente ao Direito moderno. Opondo-se à ciência jurídica material voltada para os conteúdos normativos enquanto consolidação dos fenômenos socioeconômicos. Em sua obra ideologia Jurídica, publicada nos anos 80, procura demonstrar, mediante uma série de ensaios, os impasses e os limites das concepções do Direito como refl exo da distinção/oposição “estrutura-superestrutura” de algumas imprecisões da teoria de Pashukanis e do processo de funcionamento da normatividade capitalista no âmbito dos Direitos Civil, Laboral, Econômico, Público, Penal etc.

Avançado em sua crítica ao Direito moderno e inspirando-se na teoria do valor, proposta por Marx em O capital, o autor constrói, por meio de obra signifi cativa, introdución a la Crítica Del Derecho Moderno, a proposição de que as normas do sistema (a circulação de mercadorias, a compra e venda da força de trabalho e a circulação do capital) são a expressão do fenômeno econômico exclusivamente capitalista. Fica demonstrado, assim, que “Direito moderno

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contém uma ‘lógica’, uma estrutura, que não é senão a forma ‘normativa’ das exigências da reprodução ampliada do capital” .

Para além do México, cabe resgatar em outros países da América Latina, posturas jurídicas teórica-práticas com forte presença da crítica de teor marxista. é o que se poderá constatar em Cuba, na Faculdade de Direito da Universidade de Havana, o destacado Prof. Julio Fernandez Bulté, docente de Filosofi a Jurídica. igualmente, o jusfi lósofo e jurista Carlos Rivera Lugo, da Faculdade de Direito de Mayaguez, Puerto Rico. Com suas investigações sobre Direito, Estado, educação crítica e insurgências jurídicas.

Cabe assinalar como crítica jurídica inspirada no materialismo dialético no Chile, os nomes de Manoel Jaques e de Eduardo Novoa Monreal. Pela sua produção e inserção internacional, o destaque maior coube à Eduardo Novoa Monreal, antigo professor de Direito Penal da Universidade do Chile e assessor jurídico do governo de Salvados Allende, entre 1970-1973.

Solidamente sustentado em posturas de marxismo clássico. Novoa Monreal visualiza o Direito não como autêntica ciência, mas como “uma técnica instrumental destinada a servir por igual às diversas ideologias (...) e de quem exerce o poder de uma sociedade. (...) As idéias políticas e sociais dominantes determinam o que deve ser o Estado e moldam o conteúdo das normas jurídicas. Por conseguinte, para determinar o conteúdo do Direito é decisiva a consideração da forma de organização social a que ele está destinado a servir, conforme seja ela liberal-individualista, reformista ou revolucionária” .

Além da produção no Chile, surgem, com destaque, formulações jurídico-fi losófi cas de teor marxista de autores colombianos. Ora, a emergência do pensamento jurídico crítico na Colômbia procurou levantar preocupações, como assinala Quiñones Paez, com a solidifi cação do Direito “relação de dominação, bem como o papel que nele cabe ao ideológico e ao Estado, suas implicações com respeito ao delito e à polícia criminal, e o conteúdo da prática em si mesma.”

Com esse intento, deve-se mencionar o jurista formado pela Universidade Nacional da Colômbia, Victor Manuel Moncayo, que se insere no âmbito da teoria crítica do Direito por dois ensaios denominados: El Derecho: una Relación de Producción e Sobre El Derecho em las Formaciones Sociales Capitalistas. No dizer de Quiñones Páez, Moncayo busca, nesse contexto, dois objetivos essenciais: defi nir o papel do Direito no processo de obtenção da mais-valia e, de outro lado, analisar sua função como veículo obrigatório na manifestação e realização dos interesses de classe .

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Concomitantemente, algumas aproximações de teor marxista aparecem em diversas abordagens epistemológicas de teóricos argentinos, lotados na Universidade de Buenos Aires (década de 80 e até a metade dos anos 90), como Carlos M. Cárcova, Ricardo Entelman, Enrique E. Mari, dentre tantos. Um breve destaque poderia ser feito ao Prof. Cárcova por seu interesse, no transcurso dos anos 90, por temas multi e transdisciplinar, como o marxismo e o Direito, pluralismo jurídico, direito alternativo, direito humanos, teórica crítica, multiculturalismo e pós-modernidade.

Finalmente, algumas observações sobre a trajetória da crítica jurídica no Brasil e seu diálogo com o marxismo. No amplo cenário de pesquisadores, operadores e juristas, destacaremos dois professores da Universidade de Brasília, dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado.

Primeiramente, situaremos as incursões fi losófi cas de Roberto A. R. de Aguiar, assentadas na dialética de cunho neomarxista. A publicação de seu livro Direito, Poder e Opressão, em 1980, expressa, de um lado, a forte absorção da teoria marxista na concepção jurídica do mundo, de outro, a utilização da arqueologia de Michel Foucault para o exame das relações do Direito com o fenômeno do poder. Essa mesma perspectiva é ainda mantida no segundo livro, O que é justiça? Uma Abordagem Dialética, quando assinala, de forma mais incisiva, a cumplicidade ideológica do Direito e da Justiça com as práticas sociais dominantes. Daí que, para Roberto A. R. de Aguiar, a justiça expressa um valor ideológico, na medida em que está “(...) assentada sobre uma concepção de mundo que emerge das relações concretas contraditórias do social. (...) Por ser ideológica, a idéia de justiça traduz os interesses dos grupos detentores do poder e é utilizada para a manutenção dessa relação de poder. (...) a justiça não é neutra, mas sim comprometida, não é mediana, mas de extremos. Não há justiça que paire acima dos confl itos, ou no sentido de manutenção ou no sentido de transformação.

Para fi nalizar, registra-se a contribuição sociológica e jusfi losófi ca do antigo titular da também Universidade de Brasília, Roberto Lyra Filho (falecido em 1986). Certamente, é o nome mais expressivo do pensamento crítico dialético do Brasil contemporâneo, fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira, da revista Direito & Avesso, e idealizador do projeto “O Direito Achado na Rua”. Para o humanismo marxista de Roberto Lyra Filho, é no espaço privilegiado do pluralismo jurídico insurgente não estatal que se tenta dignifi car o Direito dos oprimidos e dos espoliados. Evidentemente, o Direito não mais refl etirá com exclusividade a superestrutura normativa do moderno sistema de dominação

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estatal, mas solidifi cará o processo normativo de base estrutural, produzido pelas cisões classicistas e pela resistência dos grupos menos favorecidos. é nesse quadro de alargamento do Direito (abrangência das normas não estatais) que, segundo Lyra Filho, elimina-se “(...) a noção mutiladora do Direito como veículo de dominação e, portanto, rompe o ‘bloqueio’ tradicional e ‘livra o Direito da caracterização como ideologia’. Em suma: realiza-se a devolução ao Direito da sua dignidade política (...)”.

6 Conclusão

Na verdade, os infl uxos do marxismo sobre a tradição das idéias na academia e sobre a prática institucional de seus operadores (advogados, promotores e magistrados) permite compartilhar certos pontos comuns, como a teoria do confl ito, a dimensão político-ideológica do jurídico, a defesa de uma sociedade democrática e socialista, a efetivação da justiça social, a superação da legalidade tradicional liberal-burguesa e a opção pelos excluídos e injustiçados. A crítica jurídica de inspiração marxista tem propiciado empiricamente, no cotidiano do espaço societário e das instâncias institucionais, tendências ou variantes que se desdobram e se integram, como o “Direito achado na rua”, o “Direito insurgente”, o “Direito alternativo”, a “justiça comunitária” e os diversos ativismos em prol dos Direitos Humanos.

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DIREITO à MORADIA E MOVIMENTOS SOCIAIS1

Betânia de Moraes Afonsin2

1 Introdução

1.1 Uma nota histórica sobre a urbanização das cidades brasileiras

Antes de se adentrar no tema principal, é importante analisar aspectos históricos pertencentes à urbanização das cidades brasileiras. No Brasil, a urbanização está associada ao processo de industrialização das cidades, que tem um padrão de desenvolvimento excludente e promotor de desigualdades regionais e segregação sócio-espacial. Os principais impactos disso refletem na taxa de urbanização do país, que, historicamente, é a seguinte:

- 1940 – 31% da população vivendo em cidades;- 1990 – 75% da população vivendo em cidades;- 2000 – 81% da população vivendo em cidades;- 2010 – 84,35% da população vivendo em cidades;

2 Desenvolvimento

2.1 Problematização das Ocupações Irregulares Para Fins de Moradia

Outro impacto causado pela urbanização é o recebimento de pessoas em cidades despreparadas para receber um grande contingente de pessoas, pois as cidades estavam e ainda estão desprovidas de infraestrutura, sem oferta habitacional adequada e sem oferta de empregos suficientes para a demanda. A partir disso, cria-se a cidade informal, muitas vezes contida dentro de grandes centros urbanos, com as favelas que contam com milhões de moradias precárias em áreas impróprias para fins de moradia.1 Texto adaptado das apresentações de slides e exposição da palestrante. Redigido por Débora Teixeira

Rodrigues, Deíse Camargo Maito e Luara Soares Scalassara, discentes do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Participantes do Projeto integrado de Extensão nº 1680 - Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos.

2 Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (iPPUR) da UFRJ; Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS; Professora e coordenadora das atividades complementares da FMP, e professora da PUC/RS.

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Um dos fatores que desencadeia todo problema de falta de moradia adequada bem como a exclusão da população à cidade, é que, no Brasil, primeiro a população produz o espaço urbano e, após isso, se busca a regularização. O certo, para a justa produção do espaço urbano, seria produzir loteamentos, regularizá-los e, somente após isso a população começar a morar.

O crescente processo de urbanização tem acarretado vários impactos negativos, dentre eles: elevação do preço da terra urbana, deterioração do meio-ambiente nas cidades, deterioração da qualidade de vida da população, dentre outros.

As ocupações irregulares têm gerado problemas como o crescimento das periferias, as ocupações desordenadas do solo, a insegurança da posse, as irregularidades urbanísticas.AuMENTO DA PObREZA E A VIOLêNCIA uRbANA.

Como exemplo dessas ocupações irregulares para fi ns de moradia pode-se citar cidades feitas em cima de lixões e ocupações em áreas ambientalmente vulneráveis. Atualmente, em São Paulo, 800 mil pessoas vivem em áreas muito arriscadas, suscetíveis a alagamento e desabamento.

Tem-se o senso comum de que a pobreza gera irregularidade. No entanto, o correto é afi rmar que as ocupações irregulares geram pobreza, a exemplo de empregos informais, comércio informal, entre outros. Os cidadãos que moram de forma irregular, sem endereço, são privados de muitos direitos, como, por exemplo, a entrega de um bem de consumo guarnecedor de sua própria residência, que não há como informar um endereço certo para se realizar a entrega. Essas pessoas, ao habitarem locais vulneráveis fi cam sujeitas a incêndios, falta de atendimento médico e saneamento básico.

Pode-se citar as favelas no Rio de Janeiro como um grande exemplo de ocupações irregulares. Aos olhos da indústria turística, essas favelas são tidas como verdadeiros pontos turísticos, uma espécie de “safári” pra quem vem de fora visitar a “cidade maravilhosa”. Os turistas veem as paisagens maravilhosas e depois admiram e até se divertem vendo o outro tipo de vida que as pessoas que moram na favela tem. é lamentável que a favela seja um “espetáculo” e que haja uma verdadeira espetacularização da pobreza.

3 Cumplicidade do Direito com o Mercado Imobiliário

Se o mercado imobiliário tratou de segregar social e espacialmente as populações de baixa renda, o Direito também não cumpriu com melhor papel.

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Um latente problema é a terra ser tratada como uma mercadoria, visto que ela é um bem essencial a todos os seres humanos, com vistas a garantir um direito fundamental: o direito de moradia. Um grande erro recorrente no mercado imobiliário é a retenção de terrenos para a valorização. A pessoa que fi ca com terreno retido, recebendo valorização, faz do que é pra morar, um direito patrimonial de um só, enquanto que a terra tem que atender a sua função social, porque é um direito social de todos ter lugar para morar. A terra não pode servir à especulação.

A primeira legislação que visou regularizar o acesso a terra foi a Lei de Terras, instituída no império. Após isso, somente em 1979 têm-se a primeira legislação sobre urbanismo no Brasil. Ao longo do século XX, o Direito foi uma dimensão importante na confi guração de um espaço urbano profundamente hierarquizado no Brasil. O Código Civil de 1916 adotou o Liberalismo jurídico clássico e tratou o direito de propriedade como um direito absoluto, exclusivo e perpétuo. No entanto, nesse código ainda não havia a previsão da função social da propriedade.

A função social da propriedade foi mencionada no código civil de 2002, e na Constituição Federal de 1988, como um princípio. No entanto, esse princípio não necessariamente gera efeitos jurídicos concretos.

A Constituição Federal de 1988 assume o direito social à moradia a partir da Emenda Constitucional 26, de 2000. O Estatuto da Cidade de 2001 estabelece a regularização fundiária como uma diretriz da política urbana a ser executada pelos municípios e traz uma série de novos instrumentos, a exemplo do iPTU progressivo no tempo em casos de má ocupação do solo urbano. No entanto, são em poucos municípios que o imposto progressivo existe aqui no Brasil.

isso comprova que, de um modo geral, a legislação urbanística é desigual, agrega valor ao solo. Ela demarca o que tem aproveitamento, “qual terreno vale mais”, usando a lei para agregar valor ao terreno com interesses de terceiros. Já no âmbito local, a legislação urbanística das cidades sempre foi defi nida de acordo com os interesses das elites locais e criou uma cerca invisível entre a cidade regular e a cidade irregular, de acordo com Raquel Rolnik.

A produção “ilegal”, irregular da cidade é, no entanto, profundamente legítima, pois todos precisam morar em algum lugar. O direito à moradia é direito humano fundamental, constitucionalmente garantido.

A ONU tem um comentário, o nº4, que defi ne o conteúdo do direito humano à moradia adequada. Esse direito humano à moradia adequada

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pressupõe os seguintes fatores: Segurança legal da posse, disponibilidade de serviços, facilidades e infraestrutura, custo acessível, habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural.

No Brasil, no ano passado, houve um episódio que contrariou tudo o que se tem consubstanciado como direito à moradia e direitos humanos: o caso de desocupação de Pinheirinho. Nesse episódio, cerca de três mil policiais despejaram uma população indefesa e desarmada de suas moradias.

Em relação ao direito à moradia, a função social da propriedade é o que há de mais importante. Para que se chegue a isso, é imprescindível que a população ocupe posições em conselhos municipais, com a representação de movimentos sociais.

4 Movimento organizado em torno da luta pela garantia do direito à moradia (ainda não alcançado)

Em 2009 em Porto Alegre, um movimento social tinha como lema: “quando morar é um privilégio, ocupar é um direito”. Nessa mesma linha de raciocínio, há movimentos de resistência a despejos forçados, quando o direito à moradia já foi violado ou está ameaçado de sofrer violação.

Essas violações estão muito recorrentes nas cidades sede da Copa do Mundo. Em Porto Alegre, por exemplo, cerca de oito mil pessoas estão sendo despejadas de casa por causa de apenas cinco jogos de futebol.

Os movimentos sociais, no geral, têm a seguinte pauta: elaborar estratégias de lutas que reorganizem e regularizem as famílias moradoras em área de risco.

Já a estratégia adotada pelos movimentos sociais incluem ações como: ocupações para denunciar o não atendimento da função social da propriedade; participação em conselhos setoriais, representando o movimento social; articulação com outros atores, em fóruns como o Fórum da Reforma Urbana, por exemplo; movimento de resistência a despejos forçados, quando o direito à moradia já foi violado ou está ameaçado de sofrer violação.

Os movimentos pelo direito à moradia são articulados a partir da situação de emergência em que as famílias se encontram, por isto, às vezes, são vulneráveis. Dessa forma, necessitam de uma articulação com outros movimentos sociais e busca de apoio institucional junto a órgãos públicos como a Defensoria, por exemplo. Eles se utilizam também de estratégias de negociação para garantia de relocalização adequada.

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Um exemplo de resistência à desocupação forçada ocorreu no Rio de Janeiro, onde moradores da comunidade do Horto continuam vigilantes para a possibilidade de remoção. Uma barreira humana foi montada para evitar que um mandado de reintegração de posse, emitido pela 23ª Vara Federal, fosse cumprido na manhã de 03/04/2013.

A legitimidade das ações dos movimentos sociais é muito grande. Além de um marco legal que é desconsiderado (e que garante o direito à moradia), o Brasil tem 6.500.000 de unidades vazias, enquanto o défi cit habitacional brasileiro gira em torno de 5.500.000 de unidades.

A urbanização capitalista do mundo é estruturalmente excludente e não garantirá nunca um lugar para a moradia da população de baixa renda nas cidades. é preciso apostar em políticas públicas que por um lado, regularizem as ocupações existentes e por outro previnam a produção irregular de cidade.

Nesse sentido, há um importante programa habitacional que merece destaque: Minha Casa, Minha Vida. Em que pese o inegável valor do programa, é necessário realizar uma discussão pública sobre os critérios de localização dos empreendimentos, para evitar a periferização da produção habitacional e a construção de moradias na “não cidade”, em áreas periféricas e fracamente dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos. O programa Minha Casa Minha Vida é, com certeza, uma repetição do Banco Nacional de Habitação, não funciona. Ele transforma o sonho da casa própria em pesadelo de cidade.

O papel dos movimentos sociais na construção do direito à moradia adequada para todos no Brasil deve ser de protagonista. Em Porto Alegre, os movimentos sociais possuem um jargão que resume bem sua atuação perante o governo:“Governo e feijão, só na pressão”.

5 Desfecho

Os movimentos precisam elaborar estratégias de luta que pressionem os governantes a implementar políticas de regularização fundiária e relocalizar famílias moradoras em área de risco, garantir a reserva de áreas bem localizadas nas cidades para produção de novas moradias, garantir a função social da propriedade com aplicação de instrumentos que combatam a retenção especulativa de imóveis urbanos.

Cabe aos movimentos sociais, através da sua atuação, colocar a política habitacional no centro da política urbana brasileira, a fi m de garantir o direito

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à cidade para todos e todas. é simples mandar cumprir leis, mas parece ser tão difícil garantir os direitos básicos a quem é vítima do sistema capitalista desigual. Pelo mercado, não há saída. O sistema capitalista é estruturalmente desigual e não garante direitos à moradia. é preciso apostar em políticas públicas, que por um lado, regularizam as ocupações existentes e por outro garantam o efetivo acesso à moradia adequada.

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CRIMINALIZAÇÃO DA LuTA PELA TERRA NO PARANá1

Darci Frigo2

Sumário: 1) A Persistência da Concentração da propriedade da terra, da desigualdade e da violência. 2) Agroestratégias. 3) Criminalização da luta social – O Caso do Paraná. 4) impunidade.

1 A persistência da concentração da propriedade da terra, da desigualdade e da violência

O processo de enfrentamento da violência e criminalização dos movimentos sociais está inserido no contexto de luta pela superação das desigualdades em nosso país, tendo como um dos seus pilares mais persistentes a concentração da terra e da renda no campo. “O Brasil é um dos países que apresenta as maiores desigualdades sociais do mundo. Hoje é a 7ª maior economia do globo e o 84º país no ranking de desenvolvimento humano. Não por acaso, também possui um alto índice de concentração de terras: “um por cento dos proprietários rurais controla 45% de todas as terras cultiváveis da nação, ao passo que 37% dos proprietários rurais possuem apenas 1% da mesma área” (CARTER, 2010). Segundo o Censo Agropecuário de 2006, do iBGE, à concentração fundiária brasileira corresponde um índice de Gini de 0,872, ocupando a segunda posição mundial na concentração de terra, perdendo apenas para o Paraguai, com índice de Gini de 0,94. O índice de concentração fundiária de 2006 se mostrou estável ante aos apurados nos censos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856), confirmando a perduração de uma concentração fundiária inaceitável no Brasil”.3

2 Agroestratégias

O Estado brasileiro, contaminado nas suas entranhas pelos interesses dos proprietários privados, não tem enfrentado a coalizão do agronegócio

1 O texto que segue apresenta apenas alguns temas que foram debatidos durante o i Congresso Direito Vivo, realizado na UEL, em Londrina, entre os dias 3 a 5 de abril de 2013.

2 Advogado popular. Coordenador Executivo da Terra de Diretos – Organização de Direitos Humanos.3 PRiOESTE, F. V. G., e MASO, T.F., Democratização do acesso à terra: direito da sociedade e dever

constitucional do Estado. In Direitos Humanos no Brasil 3 Diagnótico e Perspectivas, Passo Fundo, iFiBE, 2012.

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integrada por forças poderosas como a CNA (Confederação Nacional – Patronal - da Agricultura), sua Bancada Ruralista no Congresso Nacional, Sociedade Rural Brasileira e a ABAG – Associação Brasileira do Agronegócio, com associados representando desde empresas nacionais e transnacionais e até por representantes dos meios privados de comunicação, visando democratizar a propriedade da terra no Brasil. O conjunto das ações articuladas por grande campo estão sendo chamadas por Alfredo Wagner Berno de Almeida de agroestratégias. Falando sobre o fato de que essa coalizão escolheu em 2010 a questão ambiental como tema e a mudança no Código Florestal, um dos mais destacados dispositivos da legislação ambiental brasileira. “Tanto no Legislativo quanto no Executivo registra-se uma nova correlação de forças que empresta a essas agroestratégias uma característica mais ofensiva. Até então, elas se voltavam principalmente para a expansão do agronegócio sobre amplas extensões de terras, buscando retirar os mecanismos que imobilizavam as terras ou que lhes impediam de estarem plenamente dispostas às transações de mercado” (...). “Assim, as áreas protegidas, ambientalmente tal como as terras quilombolas, os faxinais, os fundos de pasto, as áreas de extrativismo das quebradeiras de coco babaçu, seringueiros e castanheiros estariam difi cultado, segundo os interesses dos ruralistas, a reestruturação formal do mercado de terras e a expansão dos agronegócios, deixando imensas extensões protegidas e fora dos circuitos mercantis de troca”.4

Só assim é possível entender porque tantos ataques aos direitos de camponeses, quilombolas, indígenas povos e comunidades tradicionais, bem como, dos direitos ambientais da sociedade.

Não por acaso, esse grande “partido” do agronegócio, elegeu, especialmente nos últimos 10 anos, como seus grandes inimigos os direitos dos sem terra, quilombolas e indígenas e os direitos ambientais de toda a sociedade (mudanças já efetivadas no Código Florestal, agora chamado de Código do Desfl orestamento ou do Agronegócio). Não nos esqueçamos de que primeiro alvo do agronegócio foi o conjunto de movimentos sociais que lutam por reforma agrária, tratados sempre como violentos e ilegítimos nos meios privados de comunicação. A abertura de sucessivas Comissões Parlamentares de inquérito no âmbito do Congresso Nacional, a apresentação de Projetos de Leis que retiram direitos conquistados na Constituição de 1988 e a persistente violência contra lideranças de trabalhadores rurais (36 assassinatos em 2012), 4 ALMEiDA, Alfredo W.B., A Reconfi guração das agroestratégias: novo capítulo da guerra ecológica. In

Terra e Território na Amazônia: demandas, desafi os e perspectivas”, UNB, 2011.

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indígenas, quilombolas e povos tradicionais, foram importantes instrumento do agronegócio para impedir o avanço da reforma agrária e dos direitos de quilombolas e indígenas.

3 Criminalização da luta social – O Caso do Paraná

Um dos capítulos mais emblemáticos da luta pela terra no Brasil foi escrito pelos movimentos sociais no Paraná, no fi nal dos anos 90 e primeiros anos do terceiro milênio. Nesse período 19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados no Estado. Foi durante o Governo Jaime Lerner que os movimentos do campo viveram os anos mais agressivos dessa violência e repressão de forma combinada entre agentes privados (fazendeiros e suas milícias) e agentes públicos (polícias militar e civil), o que pode ser verifi cado através dos dados do período catalogados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT): entre 1994 e 2002, 16 camponeses foram assassinados por agentes privados (pistoleiros). No mesmo período agentes públicos, principalmente, foram responsáveis por: 516 prisões arbitrárias, 31 tentativas de homicídio, 49 ameaças de morte, 7 casos de tortura, 134 despejos e 325 pessoas vítimas de lesões corporais em consequência dos confl itos agrários. Todas essas violações de direitos humanos de camponeses vêm acompanhando de um amplo processo de ataque ideológico via grandes meios privados de comunicação que visa criar o que se chama de “consenso social” que vai justifi car o que chamamos de criminalização do protesto social. Esse processo se inicia com a desmoralização, estigmatização, passa pelas ameaças, prisões, abertura de inquéritos e processos criminais, Comissões Parlamentares de inquérito, indo até à violência extrema com a eliminação de lideranças dos movimentos sociais.

4 Impunidade

A impunidade é regra em confl itos fundiários no Brasil. Pesquisa feita pela CPT em 2011 aponta que no Brasil apenas 8% dos casos de assassinatos ocorridos em confl itos agrários, entre 1985 e abril de 2011, foram julgados pelo menos em primeira instância. No Paraná, dos 19 assassinatos ocorridos entre 1994 e 2009, apenas quatro foram julgados. Em dois casos houve absolvição dos acusados (executores), sem que houvesse se quer a identifi cação dos mandantes. Em outros dois casos dois executores foram condenados e apenas no caso do

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assassinato de Sebastião Camargo um dos mandantes foi condenado em 2012. “O caso do trabalhador Sebastião Camargo é o quarto dos 19 assassinatos que vai a Júri no Paraná, apesar da maior parte ter ocorrido há mais de 10 anos. A única condenação por crime de confl ito agrário ocorreu em julho de 2011, quando Jair Firmino Borracha foi sentenciado pelo Tribunal do Júri a 15 anos de prisão pelo assassinato do sem-terra Eduardo Anghinoni, ocorrido em 1999, no município de Querência do Norte/PR. Borracha também participou do despejo que resultou na morte de Sebastião Camargo”. Já o principal acusado da morte de Sebastião Carmargo Filho, o ex-presidente da União Democrática Ruralista, Marcos Prochet, conseguiu por duas vezes adiar o seu julgamento, Como no primeiro júri sobre o caso, ocorrido em novembro de 2012, a defesa do latifundiário usou de manobras para protelar o julgamento. (  Sebastião Camargo - www.terradedireitos.org.br). Em face da crônica impunidade nos casos de assassinatos de trabalhadores rurais, organizações de direitos humanos e movimentos sociais recorreram à instâncias internacionais ao menos em 6 casos ocorridos no Paraná, dentre eles o Caso de Sebastião Camargo Filho. O Brasil foi denunciado junto à Comissão interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CiDH/OEA) e em dois casos o Brasil foi condenado pala Corte interamericana de Direitos Humanos - Escutas Telefônicas ilegais – Coana e do Assassinato do trabalhador Rural Sétimo Garibaldi, ambos do Noroeste do Paraná. No Caso de Sebastião Camargo a CiDH, em seu Relatório de 2011, a CiDH afi rmou que “o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de garantir o direito à vida de Sebastião Camargo Filho (...) ao não prevenir a morte da vítima (...) e ao deixar de investigar devidamente os fatos e sancionar os responsáveis”. Além das denúncias em âmbito internacional, para enfrentar a violência e a impunidade as organizações de direitos humanos e movimentos sociais tem se utilizado também de outros instrumentos como as denúncias no sistema interno de direitos humanos (Comissões Parlamentares de Direitos Humanos, Ministério Público, redes de direitos humanos), os tribunais populares e o processo de fortalecimento assessoria jurídica popular em direitos humanos.

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SObERANIA ESTATAL E MONISMO juRÍDICO: A ExCLuSÃO DOS PObRES NO ESTADO CIVIL

Erika Juliana Dmitruk1

Sumário: 1. introdução; 2. O mito da soberania; 3. Quando o mito da soberania é repetido mais de cem vezes e se torna verdade, criando um Direito a sua imagem e semelhança 4. inclusão dos excluídos do monismo: o Pluralismo Jurídico; 5. Conclusão. Referências.

Resumo: investiga o conceito de soberania e a construção do Estado Moderno, utilizando os contratualistas e a filosofia política. Relaciona o conceito de soberania e a construção teórica do monismo jurídico, identificando o mesmo como teoria valorativa do Direito. indica, a partir da leitura crítica do Direito, a possibilidade de redefinição do conceito de soberania e, assim, a possibilidade de coexistência de sistemas jurídicos, incluindo grupos sociais excluídos do Direito estatal.

Palavras-chave: Sociologia Jurídica, Filosofia Política, Soberania, Monismo Jurídico, Pluralismo Jurídico.

1 Introdução

No presente artigo procurar-se-á desenvolver argumentos que levem o leitor ao entendimento da construção do conceito de soberania, bem como o de monismo jurídico dela decorrente, a partir do século XVi. Quais eram os fins intrínsecos dessa construção teórica, e quais os principais questionamentos levantados pelas teorias críticas da Ciência Política e do Direito, privilegiando-se o Pluralismo Jurídico. Abordar-se-á a possibilidade de juridicidade formulada fora do âmbito estatal.

Entre os defensores da soberania estudados, será possível identificar que o fim principal desta construção teórica é a defesa da propriedade, uns restringindo seu conceito a bens materiais e outros (como Locke) ampliando-o para abarcar características próprias da personalidade e bens imateriais. Qual o lugar ocupado neste paradigma por aqueles que não possuem propriedade, que nada têm de seu e que, por isso mesmo, qualquer coisa em que lancem mão só pode ser considerado usurpação? A história da idade Média informa que, naquela época, a miséria já constituía problema real, e a população gritava por alimento. Existiu alguma causa para serem esses miseráveis excluídos 1 Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela UFSC, docente do departamento de Direito Público da

Universidade Estadual de Londrina, email: [email protected].

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do contrato social? Seria o fi m desse contrato? Eliminá-los todos? Como subsistiriam sem assistência e sem o amparo do Estado civil?

Ver-se-á que, não obstante serem totalmente excluídos do contrato, esses pobres e miseráveis desenvolveram outras formas de organização, diferentes das pintadas nos diversos “estados de natureza”, e por isso, a necessidade do questionamento de seus pressupostos e prerrogativas. é dessas classes desapropriadas que surgem os primeiros gritos de descontentamento e denúncia do mito da soberania.

é muito cômodo afi rmar que o Direito, diretamente derivado da soberania, serve, sobretudo, para garantir a liberdade e a segurança dos “cidadãos” a fi m de que não sejam despojados de seus bens apenas pelo poder do mais forte, como acontecia antes da instituição do contrato social e o pacto de se viver em comunidade sob um mesmo senhor cujo poder é totalmente limitado e vinculado ao Direito escrito.

A lei do mais forte, porém deixou de existir após a instauração do estado civil? Ou apenas o atributo força transvalorou-se? Enquanto no estado de natureza era clara a posição do mais forte, aquele que subjugava os demais pela sua força ou pela liderança de um bando, atualmente, supondo que se encontre em um estado civil, quem é o mais forte? Quais atributos fazem dele o mais forte? Seus músculos? Não mais. Hoje o que torna o mais forte digno dessa posição é o seu poder econômico. E o Direito, neste “novo” quadro, continua sendo igual para todos e assim garantindo a liberdade e a segurança dos cidadãos, sem distinção.

2 O mito da soberania

A questão da soberania ganhou terreno a partir da formação dos Estados Nacionais, no fi m da idade Média e início da idade Moderna. Pela energia que seus teóricos despenderam para elaborá-la e defendê-la, pode-se perceber o quão artifi cial foi sua construção.

Para Goyard-Fabre a soberania, que nomeia o poder investido no Estado moderno, tem como principal aptidão “refrear os ímpetos da força bruta” (1999, p. 115), através da criação do Direito. Ao realizar a genealogia da soberania, inicia sua árvore por Jean Bodin. Em suas obras Methodus e La Republique pode-se vislumbrar o conceito de soberania a partir de um contexto jurídico-histórico. Bodin busca o conceito de soberania na noção romana de

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imperium. Transfere ao monarca um poder auto-sufi ciente e independente do domínio espiritual. Daí em diante, a soberania passa a concentrar “o princípio de independência e o princípio de onicompetência do Estado moderno”(1999, p. 118-123).

Com Grotius e Hobbes, a soberania continua sendo reconhecida como “potencia civil”, ou “o poder moral de governar um Estado”. Separam defi nitivamente o poder temporal do espiritual ao afi rmar a independência da soberania de toda doutrina teocrática (GOyARD-FABRE, 1999, p. 150-151).

Autores como Hobbes, Locke e Rousseau partiram deste conceito, defendendo estados de natureza diferentes para chegarem à prerrogativa do Estado de elaborar leis e conferir castigos a atitudes de seus “súditos” que contrariassem a liberdade deles. Em outras palavras, o súdito cidadão seria castigado ao não usufruir corretamente seu direito personalíssimo de liberdade.

Hobbes, como teórico do absolutismo, constrói um Estado capaz de proteger o homem da insegurança vivida no estado de natureza. Para CAPELLA, Hobbes é quem põe as primeiras peças essenciais para a construção do mito político da modernidade (2002, p. 104). A principal crítica feita a Hobbes por Capella é que este trabalha com homens adultos e auto-sufi cientes. Esquece ou ignora todo o período que o recém nascido da espécie humana necessita da sociedade a ele pré-existente. E esta necessidade não se restringe a cuidados relacionados ao abrigo e alimentação, mas também a necessidades culturais, como o ensino da língua e manejo de objetos de cultura. Como então aceitar uma construção a partir de um conceito de homem tão artifi cial como a feita por Hobbes? Aceita-se porque ele descreve seres humanos funcionais ao capitalismo, seres humanos egoístas ( 2002, p. 105) 2.

O conceito de estado de natureza segundo Hobbes, retomado pelos demais contratualistas, serve a um objetivo explicitamente ligado ao capitalismo. No estado de natureza, imaginado por Locke também por Kant, já aparecem a propriedade privada, o trabalho assalariado, a acumulação de propriedade e contratos desiguais. Como isso é possível se o estado de natureza é marcado 2 Châtelet (2000, p. 54) interpreta de maneira diferenciada: “A concepção política de Th . Hobbes é muito

mais sutil do que pode parecer à enunciação de seus princípios iniciais. Tomando como ponto de partida uma concepção individualista e realista do homem, recusando previamente qualquer pressuposto moral, ela se empenha em conjurar o que, para ela, é o maior dos males: a guerra civil. Para fazê-lo, analisa as condições graças às quais instaura-se uma ordem política estável. E a condição primordial é que a coletividade deseje a instituição de um princípio soberano onipotente e consinta em obedecer às leis civis e às decisões que são impostas pelo poder que encarna a soberania. Resolvida assim a questão política do bom entendimento e da tranqüilidade na República, os súditos poderão livremente se entregar às atividades que julgarem capazes de lhe trazer a salvação e a satisfação empírica”. 2000, p. 54

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pela ausência de qualquer poder institucionalizado? Esta é uma resposta óbvia: todos esses institutos são naturais e inerentes à individualidade humana.

Para Rousseau3, um dos inspiradores da Revolução Francesa (2002, p. 23), o homem que nasceu livre se encontra acorrentado por todos os lados. Mas essa é uma situação reversível, posto que a escravidão deriva de um direito não legítimo, um direito baseado na força que por isso não é capaz de se manter. Em qualquer falha da força ele será desobedecido, uma vez que o direito do mais forte nunca é Direito, e sim violência (2002, p. 26).

Continuando sua defesa, o teórico francês assevera que um povo é um povo mesmo antes do pacto que instituiu a sociedade civil, no que acompanha Grócio (2002, p.30), e este povo, impedido de criar novas forças, reconduz as que já existem, acreditando ser válida a união de suas forças e o trabalho em conjunto a fi m de não mais se submeter a violência de um mais forte. Essa união de forças dá origem à sociedade civil4, onde cada homem obedecerá apenas a si mesmo, já que sua vontade, unida com a dos demais, é que fará as regras daqui em diante (2002, p. 31-33). Como participantes da vontade soberana, cada componente do povo passa a adotar o nome de cidadão. Assim, não cabe a nenhum dos componentes desse povo desobedecer o que foi por eles decidido, posto que se o fi zer será coagido a cumprir a norma pelos demais membros do corpo, que lhe fazem o favor de torná-lo um homem livre. Nesse novo estado, o homem, agora cidadão, deixará de agir por instinto, respeitando princípios de justiça e moralidade que devem domar seus impulsos irracionais (2002, p. 34). Nenhuma troca é mais vantajosa do que esta, ao trocar a liberdade natural, que dava direito ao homem de lançar mão sobre tudo o que lhe interessasse, mas com muita difi culdade em manter o alcançado, este novo homem, cidadão, passa a ter a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui (2002, p. 35).

Rousseau, porém não se cansa de propalar as qualidades deste novo estado, o civil, e quão mais seguro para aqueles que gozam de propriedade ele será. é o conforto que o homem acomodado necessita.

Como se dará a construção das normas, do Direito, neste novo Estado? Para que não haja desvirtuamento dos seus fi ns e um possível retorno a lei

3 Segundo Châtelet (2000, p. 70): “A obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deu lugar a uma multiplicidade de interpretações ainda hoje das mais contraditórias: Filósofo das Luzes, cujos princípios combate; teórico dos direitos naturais, que não poupa sarcasmos à escola do Direito Natural; promotor de uma revolução liberal, cujas taras descreve antecipadamente; individualista empenhado em construir os fundamentos do coletivismo totalitário ...“.

4 Châtelet defende a idéia que a instituição da sociedade civil no pensamento de Rousseau se dá a partir de uma “seqüência de acidentes”. op. cit. p. 72

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do mais forte, a única vontade a ser obedecida é a vontade geral, incorporada pela soberania que é prerrogativa do ser coletivo, o povo. Por essa razão ela é inalienável, indivisível e infalível. Esse pacto torna todos os cidadãos iguais entre si, em direitos e deveres (2002, p. 39-44).

Locke, contemporâneo da segunda revolução inglesa (1689) (CHÂTELET, 2000, p. 57), por sua vez, defende a tese de que o homem, em estado de natureza, já dispunha do poder de fazer acordos, cumprir promessas, respeitar a propriedade. Tanto que é apenas com a invenção da moeda e a possibilidade de acumular riquezas, que a confl ituosidade surge no estado de natureza. é neste momento que os proprietários (aqueles que agora possuem mais terras do que o necessário a sua subsistência, a fi m de produzirem mais para arrecadar mais moeda) decidem criar um ente que seja forte o sufi ciente para realizar o direito natural, não mais respeitado em vista do desejo de todos de acumular moeda. Esse ente é o Estado, que se torna soberano, e responsável por fi xar a lei, punir as faltas contra a lei e administrar questões de guerra e paz. Vê-se que é um Estado abertamente fundado por proprietários temerosos em perder seus bens (2000, p.58-59). Dá muita ênfase ao poder de elaborar leis. identifi ca o poder político com o direito de elaborar leis e de utilizar a força para garantir sua execução (LOCKE, 2002, p. 22).

Ao contrário de Hobbes, não pinta o estado de natureza de maneira terrível, e encontra, neste estágio pré-contratual da humanidade, uma lei natural que a todos obriga. Esta lei é a razão (2002, p. 22-24). Por isso, sendo do conhecimento de todos, todos são juízes e todos são capazes de fazer valer a lei. Com isso, se alguém se aproxima, mesmo que seja tão somente para assaltar os meus bens, eu posso subtrair-lhe a vida, uma vez que nada me garante que tal homem sórdido só queira os meus bens. O que ele fará comigo depois de consegui-los? Para Locke, qualquer transgressão pode ser punida com a morte, para que a pena, tornando-se exemplar, evite que novos crimes sejam cometidos (2002, p. 28). O que diferencia, basicamente, o estado de natureza do estado civil, é que, no primeiro, todos têm o direito de executar a lei, são juízes em causa própria, e, no segundo, os cidadãos investem o Estado com essas prerrogativas. Agora é um ente abstrato que legisla, julga e administra a comunidade.

Discorre amplamente sobre a propriedade, afi rmando a sua existência no estado de natureza, pelo poder transformador do trabalho. A acumulação de propriedade apenas se torna possível e atraente quando há a possibilidade de

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trocar bens perecíveis (milho, trigo, carnes, frutas e frutos) por bens duráveis (ouro, pedras preciosas, prata) (2002, p. 38-49).

Wolkmer insere as teorias contratualistas entre as concepções doutrinárias do Estado que destacam ou baseiam-se na supremacia do indivíduo (2000, p. 64), uma vez que postulam o nascimento do Estado a partir da vontade livre dos indivíduos que entre si pactuam a instituição de um ente que dirima seus confl itos, guardando as diferenças entre Hobbes, Locke e Rousseau. (2000, p. 67-68).

Segundo Goyard-Fabre (1999, p. 55) a noção de poder político sempre foi ligada a fi gura dos detentores da autoridade, o que pode ser constatado desde as obras de Aristóteles, Santo Agostinho e, principalmente, nos modernos. Para ela, a autoridade estatal para formular e executar normas é marcada por três movimentos: o primeiro com Maquiavel e o princípio de ordem pública, o segundo com Hobbes e o princípio de autoridade, e, por fi m, com Rousseau, em um princípio constitucionalista (1999, p. 59).

Com Maquiavel descobre-se que o poder político nada precisa pedir a Deus, ele é laico. A questão inaugurada pelo humanismo jurídico-político de Maquiavel é tornar inteligível que o poder político apenas existe a partir de regras que estabeleçam suas estruturas básicas (GOyARD-FABRE, 1999, p.67). Hobbes, construtor do princípio da autoridade, assevera que “a força do poder reside na arquitetura racional de sua legislação positiva (1999, p. 73). O Poder do Estado moderno tem o monopólio da criação do Direito, a tal ponto que, onde não existe Poder, não há Direito” 5. Rousseau, motivando o terceiro movimento, disserta sobre os direitos civis e diferencia, no que segue Hobbes, o Direito natural do verdadeiro Direito: o Direito promulgado pelo Estado. Após esses três movimentos, e mesmo durante estes, a característica mais festejada do Estado é a capacidade de promulgar leis e fazer com que sejam cumpridas.

A transformação do conceito de soberania deu-se ao longo de séculos. Ademais, além das origens modernas ora citadas, podem-se encontrar teorias sobre o poder do Estado, apesar de não existir ainda o termo soberania, desde as epístolas do apóstolo Paulo. Nessa época, o poder “soberano” é relacionado diretamente com a imagem temporal da onipotência de Deus. A partir daí, Agostinho é capaz de defender a origem divina do poder dos reis, localizando o conceito de soberania em uma perspectiva teológico-política. Com Bodin, Grotius e Hobbes, esses poderes são distinguidos. Para Hobbes, inclusive, o 5 GOyARD-FABRE. “O Poder é, em seu princípio, edifi cado pelo homem; são os homens que asseguram

seu funcionamento; em sua utilização, ele deve servir à segurança dos homens e à paz civil.”op. cit. p. 74-76.

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monstro Estado era erigido sem nada pedir a Deus, sendo tão somente uma construção da razão humana (1999, p. 160-162).

A relação entre o poder temporal e o espiritual na consagração da soberania é clara quando se observa que na idade Média quem inicia a centralização do poder é a própria igreja Católica. Com o Papa Gregório Vii (papa entre 1073-1085) dá-se início a centralização do poder na igreja que percebe a infl uência de seus representantes em cada feudo. Leve-se em conta que o rei, nessa época, é muito mais uma fi gura decorativa, impedido de viajar pelos reinos de seus vassalos pela falta de segurança, de estradas, e pelo grande gasto que tal empreitada exigia. A grande responsável pelo movimento de reunifi cação do poder é a igreja. Em um primeiro momento, ela unifi ca seu discurso, instituindo concílios onde as diretrizes são dadas a todos os representantes de Deus. inicia o processo racionalizante e formalizador do conhecimento teórico-eclesial com a edição da bula papal Dictatus Papae (1075) (LOPES, 2000, p. 63-81).

A partir desse mecanismo desenvolvido pela igreja é que se constrói o conceito moderno de Estado. Ressalte-se que até o poder de polícia já é desenvolvido no âmbito do poder eclesial, com a militia cristhi, capaz de submeter os bispos, padres e fi éis que não aceitem a nova ordem. é aqui também que se tem início o espírito das Cruzadas (2000, p. 81). Ademais, a própria igreja, na ausência de um Estado unifi cado, cria as Cortes Eclesiásticas, que recuperam a formação do Direito Romano, aplicando o mesmo Direito em todos os feudos e a todos os que recorressem a essa corte. é também o início do Direito Moderno.

Mas por que a necessidade expressa e defendida por todos esses teóricos de que a edição do Direito seja uma prerrogativa estatal? Em um primeiro momento, quando da constituição dos Estados Nacionais, os reis soberanos necessitavam enfeixar em suas mãos o poder jurisdicional, que se encontrava entre as Cortes Eclesiásticas, onde se aplicava o Direito Canônico, e as Cortes Senhoriais, onde era aplicado o Direito consuetudinário. Com a teoria do direito divino dos reis, estes a nada se submetiam, eram soberanos. Para resolver as pendências jurídicas neste período histórico, os reis não eram responsáveis e nem se encontravam submetidos a nenhuma lei, uma vez que eles incorporavam a própria soberania.

Com as Revoluções Burguesas, várias mudanças ocorreram. Em primeiro lugar a migração do conceito de soberania da pessoa do soberano para todo o povo. E essa migração acarretou uma série de problemas a serem

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resolvidos: 1) quando a soberania pertencia a um único homem, o monarca, era ele quem editava as leis. é possível que o povo edite ele mesmo as leis a que vai se submeter? 2) como tornar essas leis exeqüíveis perante todos os cidadãos? 3) que mecanismos serão instituídos para modifi cá-las? 4) como se exercerá o poder soberano tão difusamente distribuído?

Para resolver esses problemas foram criados mecanismos de representação, em “que os titulares da soberania a delegam incondicionalmente por um tempo determinado” (CAPELLA, 2002, P. 116). Então a soberania, que estava distribuída entre todos os cidadãos, volta a concentrar-se em instituições ou “poderes” do novo Estado. Essas instituições são responsáveis por promulgar as leis, exigir o seu cumprimento e coagir os “cidadãos” ao seu cumprimento, bem como governar o Estado.

Tais leis possuíam o caráter geral, eram iguais para todos, destituindo os privilégios do clero e da nobreza e dando uma aparência de igualdade real. Todavia, essa igualdade era apenas formal, uma vez que ignorava por completo as desigualdades existentes na sociedade. Mas, mesmo assim, cumpria o objetivo de internalizar nas pessoas a sensação de que viviam sob um poder não mais de homens, mas de leis impessoais que não mais as distinguiam pelo seu nascimento.

3 quando o mito da soberania é repetido mais de cem vezes e se torna verdade, criando um direito a sua imagem e semelhança.

A transformação ocorrida no Direito pós Renascimento e ilustração é sensível. O Direito da sociedade feudal, descentralizado, consuetudinário, que levava em conta os privilégios da nobreza, é substituído por uma construção legislativa sistemática a partir do Estado, o qual possui, daqui em diante, o monopólio da edição de leis e do poder coercitivo. O Direito passa defender valores como a uniformidade, universalidade e igualdade, não distinguindo classes ou privilégios. Vê-se no Direito a continuidade do processo de racionalização da política, uma vez que é o instrumento privilegiado do controle social, na falta de tabus e padrões morais rígidos estabelecidos pela igreja. O mundo novo procura enxergar todas as pessoas como gêmeos buskanovskizados. é o ideal expresso nas palavras: “Comunidade, identidade, estabilidade” (HUXLEy, 2003, p. 14).

Desenvolvem-se as teorias liberais econômicas, que colonizam todo o pensamento político e jurídico. Assim, com a migração do conceito de soberania

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para o povo, todo o povo, faz-se necessária a regulamentação do exercício desse poder. Surge daí a aplicação das teorias da tripartição das funções do Estado, sistema de pesos e contrapesos, e o monopólio da produção jurídica e da coerção pelo Estado.

Esse novo Estado é concebido para assegurar os direitos da classe em ascensão, a burguesia, que passa a ter “existência histórica” (CAPELLA, 2002, P. 97), e ao mesmo tempo estabelece a ilusão da liberdade, igualdade e fraternidade para as classes que os auxiliaram a fazer a revolução, porém dela não usufruíram. é a soberania, em sua acepção moderna, o que justifi ca a nova ordem. às classes menos favorecidas faz acreditar que são felizes em sua própria condição, como Deltas, Gamas e ípsilons, amando o que não é uma escolha, mas uma determinação (HUXLEy, 2003, p. 22-25).

Para entender melhor o que ocorre nesse período não se pode esquecer de que é a burguesia quem toma à frente nas mudanças. Não é surpreendente que estas espelhem seus interesses mais diretos.

CAPELLA assevera que o Direito moderno nada tem que o torne parecido com o Direito anterior. Revela um projeto racionalizador e de sistematização que na época eram necessários para a garantia das relações comerciais6. Constrói-se, para segurança dos comerciantes, um Direito cuja única fonte válida das normas jurídicas é serem estas legisladas por um Parlamento, ou o órgão legislativo de um Estado, e que deve ser público e sistematizado em códigos acessíveis a qualquer indivíduo. Não é de se estranhar que as características gerais que o Direito reveste a partir deste período são muito parecidas em todas as sociedades do capitalismo concorrencial (2002, p.131).

Para o mesmo autor, duas são as máximas que norteiam a construção do sistema social capitalista: “1) tudo pode ser mercadoria e 2) toda mercadoria deve ter uma voz” (2002, p.131). A partir desses dois axiomas torna-se possível desvendar os mistérios do Direito esculpido pela Modernidade. Se tudo pode ser mercadoria, inclusive o trabalho humano, então há que se esclarecerem quais as características intrínsecas de cada uma, quais as restrições de seu uso ou de sua propriedade, em quais categorias são subdivididas, e quais as garantias inerentes a cada um de seus proprietários. Se toda mercadoria deve ter uma voz para que seja intercambiada da maneira mais favorável possível, devem-se estabelecer quem são os sujeitos capacitados a efetuar trocas, quais as limitações encontradas a esse direito, de forma a não lesar a outra parte.

6 Ver também: TiGAR, M. et LEVy, M. O direito e a ascensão do capitalismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

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Estabelece-se aquele que será o responsável por todas e cada uma das coisas que possuem valor comercial. Desenvolve-se a construção do conceito de sujeito de direito.

O Direito passa a buscar a segurança dos proprietários. Estabelece normas rígidas, as quais quando não obedecidas serão submetidas a tribunais previamente estabelecidos, com jurisdições e hierarquias também previstas em leis, onde o papel do juiz é ser mera boca da lei, pois cabe a ele decidir apenas a partir dos documentos apresentados pelas partes. Não buscará a verdade dos fatos, mas pesará a verdade dos documentos apresentados ante a rigidez da lei promulgada pelo Estado. Os contratos fi rmados entre particulares deverão ser retamente obedecidos sempre que não ferirem normas de ordem pública, as quais visam tão somente dar corpo a segurança reclamada pelos particulares (2002, p. 135-142).

Uma ilustração desse tipo de pensamento é dada por Shylock, personagem de Shakespeare, que requer ante o judiciário o cumprimento de um contrato assinado entre ele e seu opositor Antonio. A partir das cláusulas do contrato e de leis de ordem pública, Pórcia livra Antônio da obrigação e ainda coloca Shylock em uma posição bastante delicada ante a lei (SHAKESPEARE, 1981, p. 281-367).

O processo de racionalização do Direito segue em marcha apressada, em movimentos de constitucionalização das normas dos Estados, com a autonomização do Direito e sua não subordinação à ética ou à moral. O Direito passa a ser produtor do Direito, a ordem jurídica é vista e defendida como auto-fundadora, o pensamento dominante não acredita que o Direito nasce do fato, uma vez que só é Direito a norma produzida conforme o Direito estabelecido, que prevê regras legislativas próprias (GOyARD-FABRE, 2002, p. 82-91; 122-130).

Com Kelsen, no século XX, temos a coroação desse movimento. Esse autor procura purifi car a ciência jurídica, tornando-a livre de qualquer infl uência sociológica, política ou econômica. A epistemologia jurídica confunde-se com a própria ciência do Direito, e leitores desavisados reforçam a ideia formalizada de norma.

Warat, ao analisar a purifi cação do Direito realizada por Kelsen, assevera o interesse kelseniano em encontrar fundamentos que justifi quem a construção de uma Ciência Jurídica, o aperfeiçoamento da Dogmática Jurídica e sua ascensão ao prestígio gozado pelas Ciências Naturais. Por isso, mister se mostrou a separação de todo conhecimento jurídico dos conhecimentos sociais, econômicos, psicológicos ou políticos. Seu objetivo consistia no aperfeiçoamento

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lógico-racional da metodologia jurídica. Por isso sua investigação parte da identifi cação dos problemas da Dogmática, sua desconstrução e a defesa da possibilidade de um conhecimento científi co dirigido ao Direito. Seu objeto por excelência é a Ciência do Direito, constituindo-se em uma epistemologia jurídica. Ademais, Kelsen não pretende confundir os enunciados da Ciência do Direito com Direito Positivo. Os postulados da Ciência do Direito não são obrigatórios, por outro lado, as regras do Direito Positivo o são. Deseja e constrói categorias próprias da ciência do Direito, desprovidas de juízos políticos, pretensões ideológicas e outras “impurezas”. Sua fi nalidade primordial, segundo Warat, foi:

precisamente a elucidação metodológica do pensamento dogmático do Direito. Trata-se de uma investigação realizada dentro do campo da ciência dogmática, conforme o proceder kantiano, de tomar a ciência positiva como ponto inicial de todo empreendimento epistemológico (1983, p. 33).

Cabe frisar que a Teoria Pura do Direito é epistemologia do conhecimento normativo.

Esta vontade e busca da purifi cação da Ciência do Direito é explicitada por Kelsen em sua obra Teoria Pura do Direito7. Todavia, mesmo propalando-se como um conhecimento epistemológico, despido de ideologia, esta própria assertiva já conota uma tomada de posição ideológica8. A Teoria Pura do Direito de Kelsen foi utilizada por juristas de várias gerações (e ainda hoje) como cartilha defensora do Direito como ele é.

Principalmente a partir de Kelsen, uma versão difundida no senso comum é a da identifi cação do Direito com as regras legisladas pelo Estado. Não obstante este fato, Genaro Carrió sustenta que a expressão positivismo jurídico tem sido tomada para designar uma variedade muito heterogênea de atitudes, teses e concepções relacionadas com o fenômeno jurídico (CARRió, 1990, p. 321-328). A partir desse autor buscam-se alguns esclarecimentos acerca do que se pode tomar por positivismo jurídico.

O positivismo jurídico pode ser tomado como enfoque metódico, que postula pertencerem Direito e Moral a universos distintos e, se uma

7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo, Martins Fontes, 2000. A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial .p. 1. ... ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto. p. 1.

8 Ver: ideologia, Estado e Direito. Antonio Carlos Wolkmer.

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regra jurídica é imoral, não signifi ca que não pertença ao Direito Positivo (CARRió, 1990, p. 325). Já o positivismo jurídico como ideologia toma uma atitude valorativa frente ao Direito Positivo, e postula que existe o dever moral de obedecer às normas. Finalmente, o positivismo como teoria designa um conjunto de teses sobre a natureza do Direito Positivo, das normas jurídicas, das fontes do Direito, das propriedades características dos ordenamentos jurídicos e da função desempenhada pelos juízes ( 1990, p. 326).

Para os autores que defendem essa corrente do pensamento, o Direito Positivo é a vontade do Estado, e não há fonte mais genuína do Direito do que a lei. O ordenamento jurídico constitui um todo completo, sem lacunas ou incoerências. Os juízes não possuem outra função além de deduzir, a partir de regras de Direito Positivo, a solução dos casos concretos (CARRió, 1990, p. 326).

Tais concepções reducionistas do fenômeno jurídico, todavia, foram sendo superadas. Com a publicação da obra O Conceito de Direito de Herbert Hart (1961), iniciou-se uma profunda refl exão sobre as concepções até então aceitas do Direito, uma vez que Hart dará ênfase ao estudo da aplicação judicial do Direito e utilizará para entendê-lo instrumentos da fi losofi a analítica e contemporânea (HART, 1997, p. 15).

Hart defende a separação entre Direito e Moral, e, para ele, normas moralmente iníquas podem perfeitamente ser Direito. Todavia, Hart rechaça a tese de que as normas jurídicas podem ser concebidas como ordens, e também não adere a tese positivista de que as regras jurídicas são a única fonte do Direito. A sua construção teórica da regra de reconhecimento, que em cada comunidade estabelece os critérios de validade jurídica, não é Direito legislado. Apenas a aceitação efetiva do Direito legislado é que poderá revelá-la. Outrossim, defende que o ordenamento jurídico não é completo ou coerente, e em virtude disso os juízes não podem limitar-se a tarefa puramente dedutiva que a teoria positivista exige (HART, 1997, p. 332-337).

Percebe-se, com as tese defendidas por Hart, que mesmo os autores ligados à corrente positivista do pensamento jurídico, já questionam seus postulados.

4 Inclusão dos excluídos do monismo: o Pluralismo jurídico

Ao estudar-se o fenômeno do monismo jurídico, decorrente do movimento de racionalização do poder e do Direito na Modernidade, é

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possível formular a seguinte questão: como os seres criados em comunidades absolutamente distintas, não obstante residir em um mesmo país, podem internalizar o mesmo conjunto de normas? é possível esquecer que o homem não aparece espontaneamente ou adulto no mundo, disposto a cumprir as ordens e mandamentos que vêm de instituições que dizem representá-lo e, apenas por isso, acredita-se que o representem? Somos criados internalizando valores e normas distintos, a depender da comunidade a qual pertençamos. é possível afi rmar que as normas internalizadas pelos habitantes de Canudos eram as mesmas que as dos policiais da República (CUNHA, EUCLiDES, 2002)? Ou que um habitante do centro de Londrina ou Florianópolis possua a mesma formação que àqueles de seus bairros pobres ou dos estudantes que migram para essas cidades para estudar? Que tipo de fi cção é essa que não respeita os grupos e suas peculiaridades, e que ainda busca afi rmar-se como benéfi ca igualmente a todos?

Em tempos como este é preciso que surjam mais homens e mulheres dispostos a dizer não a esta fi cção. Mas não um não vazio, ou niilista. Um não que represente uma atitude positiva. Um não revoltado (CAMUS, 2003, p. 25). Um não a toda a hipocrisia que o processo de massifi cação de valores, coroado pelo Direito, traz consigo. Um não que signifi que: Basta! Até aqui foi possível suportar, mas daqui em diante eu digo como será! Um não capaz de criar e sustentar valores, que ultrapasse limites e que coloque os oponentes em posição de igualdade, tornando assim possível o embate das forças9.

Foi de nãos conscientes e revoltados que a Teoria do Direito passou a aspirar novos ares. Concomitante ao movimento de racionalização e restrição do Direito à lei, surgiram as principais doutrinas acerca de sua origem na realidade social, no embate de forças emergentes do contexto social.

Alguns teóricos do Direito destacaram-se por fazer oposição à visão corrente, científi ca e uniforme. Entre os autores dessa linha de investigação destacamos Georges Gurvich, Eugen Ehrlich, Antonio Carlos Wolkmer, Boaventura de Sousa Santos, Roberto Lyra Filho.

Gurvich, ao tratar do Direito, trabalha muito mais com a idéia de legitimidade do que de coerção. Para esse autor o Direito sempre estará baseado em um reconhecimento coletivo, a fi m de que se possam estabelecer de maneira satisfatória as pretensões dos demandantes de um litígio (GURViTCH, p.

9 “(...) O revoltado defende aquilo que ele é (...) A revolta (...) em seu princípio, limita-se a recusar a humilhação sem exigi-la para os outros. Aceita inclusive o sofrimento para si mesma, desde que sua integridade seja respeitada”. CAMUS, op. cit. p. 30.

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239). Vislumbra a existência de gradações de efi cácia do Direito, existindo possibilidade de existência de normas jurídicas10 mesmo fora do âmbito estatal de procedência. O Direito a partir dessa visão não necessita ser encarcerado em nenhuma estrutura pré-estabelecida, pode e deve ser procurado em quaisquer “manifestações da sociabilidade, grupos, classes ou sociedades globais” (GURViTCH, p. 243).

O autor elenca alguns dos precursores dessa busca do Direito não restrito à concepção estatal, e em sua lista fi guram Léon Duguit , Emmanuel Levy e Maurice Hauriou, os quais ele classifi ca como “juristas sociólogos que buscaram o Direito não organizado e espontâneo e que o Estado apenas observa”, valorando este Direito como “superior e anterior ao direito do Estado” (GURViTCH, p. 248). O Estado nada pode fazer para domar o Direito não organizado, que nasce dos diversos grupos sociais (GURViTCH, p. 249). Segundo Gurvich, esses três autores têm em comum o fato de negarem a “defi nição do direito que o ligava à existência organizada de coações e procuraram baseá-lo numa autoridade não personifi cada (...) baseada em garantias sociais provenientes do meio onde nasce e onde é aplicado” (GURViTCH p. 249).

Nega-se, com essa afi rmação, a validade do Direito aplicado apenas e tão somente pelo medo que a sanção do Estado gera. A partir deste novo olhar para o Direito, confere-se maioridade às pessoas, que não precisam de prêmios ou recompensas para cumprir ou deixar de cumprir as normas. Cumprem-se as normas por seu caráter legítimo, e não pela sanção intimidadora ou prêmio redentor.

Dos escritos de Ehrlich depreendem-se que é muito simplifi cadora a visão do Direito que o limita às leis emanadas do Estado. Esse tipo de justifi cação não tem validade quando é contrastada com a realidade dos grupos sociais. é mera técnica, e não Ciência do Direito (GURViTCH, 1945, p. 162). Através de sua teoria, Ehrlich desconstrói os postulados da lógica jurídica, quais sejam : “a negação da liberdade dos juízes, a dependência de todo Direito do Estado, e a unidade do Direito” (1945, p. 162).

é preciso pesquisar o Direito mais profundamente e, aí sim, encontrar toda uma gama de regras e relações organizadas abaixo do Direito estatal,

10 idéia colhida na obra de : EHRLiCH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Trad. Tené Ernani Gertz. Brasília: Ed. UNB, p. 36: “A ordem interna das associações é determinada por normas jurídicas. Normas jurídicas não devem ser confundidas com prescrições jurídicas. A prescrição jurídica é a redação de uma determinação jurídica em uma lei ou um código. Norma jurídica, ao contrário, é a determinação jurídica transformada em ação, como acontece em uma associação pequena, mesmo sem uma redação clara”.

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elaboradas por juízes, doutrinadores, pessoas integrantes de grupos sociais organizados. O Direito que daí surge é muito mais objetivo que o Direito do Estado (GURViTCH, 1945, p.164). Não se pode buscar o desenvolvimento do Direito nas leis, mas na própria sociedade. As leis são proposições formuladas pelo Estado e direcionadas aos tribunais estatais e demais órgãos públicos. isso é facilmente constatado na medida em que a maioria das pessoas vive na “total ignorância destas proposições” (GURViTCH, 1945, p. 167).

Para Gurvitch é possível vislumbrar como produtora do Direito toda forma ativa de sociabilidade que realize um valor positivo. Nos grupos em que predomine essa forma de sociabilidade, os valores realizam-se como fatos normativos. Toda forma de sociabilidade ativa que realiza um valor positivo é produtora de Direito, um fato normativo. Todo grupo no qual predomine a sociabilidade ativa e realize um valor positivo se afi rma como um fato normativo que engendra sua própria regulação jurídica (1945, p. 229-263).

Mas esta capacidade de transformar valores em fatos normativos não é encontrada em qualquer agrupamento social. Nos grupos transitórios é um fato quase impossível, uma vez que grupos desorganizados têm maior difi culdade para criar Direito. isso porque é necessário que no choque de forças entre os vários direitos esses grupos possuam força sufi ciente para efetivar os valores por eles eleitos.

No choque entre valores diversos, o resultado sempre será ou a sobreposição de um ou a síntese dos valores em choque. Quando se chocam ordens tão diversas como o Direito Burguês e o Direito Proletário o que se assiste é o confl ito não só de normas, mas de visões de mundo que abraçam valores diversos e possuem concepções antagônicas de justiça (GURViTCH, 1945, p. 267). Para que os valores, de quaisquer das partes realizem-se, estas devem estar preparadas e organizadas para o embate.

Gurvitch e Ehrlich11 reinterpretam o conceito de soberania. Soberania antes de ser “um tipo de poder” é uma “qualidade do poder”. Dessa forma é

11 A correspondência estreita entre direito e sociedade foi levada ao extremo pela escola do direito livre alemã. Ehrlich admitiu o papel secundário desempenhado pelo direito legislado na disciplina da vida social, por admitir encontrar-se na sociedade, e não no Estado, o “ centro de gravidade do direito”, enquanto Gurvitch, defensor da teoria do direito social, disse corresponder a cada tipo de sociabilidade um tipo de direito: haveria assim direito correspondente às relações de aproximação, como, por exemplo, o de família ou o das sociedades civis ou comerciais, outro correspondente às relações de afastamento, como o de propriedade, além do correspondente às relações mistas (aproximação-afastamento), como o dos contratos. Essas idéias, algumas sustentadas no limiar do século XX, enquanto outras entre as duas guerras mundiais, tinham o mérito de acentuar a vinculação do direito à realidade social e fazer depender do tipo de sociedade o conteúdo do direito. (negritos nossos)

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possível distinguir entre soberania absoluta e soberania relativa. Apenas as sociedades totalitárias seriam portadoras da primeira. é possível graduar a soberania. Gurvitch e Ehrlich associam a soberania absoluta com os “grupos superfuncionais como a nação e a sociedade internacional”. Trabalham então com um pluralismo vertical, onde todos os demais grupos, com sua soberania relativa, estariam inseridos neste todo que é a soberania da nação (1945, p. 268-278).

Ehrlich rechaça as leituras do Direito que o restringem ao Direito Estatal. isso porque quando se reduz o estudo do Direito ao estudo das leis, o que se ensina e aprende é a técnica do Direito e não sua ciência. Haja vista que apenas uma parte do Direito é o estatal, e que é uma parte reduzida. O estudioso do Direito precisa conhecê-lo de forma mais abrangente (1986, p. 9-20).

Ressalta o papel da Escola Histórica do Direito e de seus fundadores Savigny e Puchta, cujos estudos voltaram-se para o Direito extra-estatal. Para estes autores, também muito mais importante do que a coerção é a legitimidade, uma vez que defendem que o Direito se desenvolve acompanhando o sentimento de justiça do povo (1986, p. 20).

Essa nova leitura conduz a uma visão do fenômeno jurídico a partir da ordem interna das relações humanas. Toda ordem jurídica primitiva consiste na ordem interna das relações humanas, as quais criam normas de forma autônoma, mesmo quando inspiradas por outras ordens já existentes. Tal modelo é repetido no Direito feudal e Moderno (EHRLiCH, 1986, p. 20).

Por ordem jurídica primitiva pode-se entender àquelas que se desenvolveram em comunidades onde ainda não se conhece a escrita. Como depreende-se do artigo escrito por Wolkmer, as leituras feitas desse momento da história do Direito privilegiam a presença da coerção para impor o cumprimento de regras, em lugar da legitimidade. Também adotam teorias evolucionistas onde o ápice da escala de desenvolvimento do Direito encontra-se no modelo do Direito Ocidental, escrito, o que hoje já é questionado por estudiosos da Antropologia Jurídica (2001, p. 19-30).

Uma vez que o Direito primitivo é um Direito que, assim como o moderno, repousa sobre sanções, o Pluralismo Jurídico não pode ser visto como um retorno ao primitivismo, mas sim um avanço para um Direito que se baseie na legitimidade e não no castigo.

O Direito não depende de outra coisa senão do “jogo de forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturais de uma dada organização

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social” (WOLKMER, p.176-181). Constitui-se, pois, uma improbidade relacioná-lo única e exclusivamente com uma norma fundamental da qual todas as outras derivam, estudá-lo apenas como um sistema autopoiético. Essa interpretação privilegia o monopólio legislativo estatal, e exclui qualquer outra fundamentação que retome suas raízes sociais, econômicas, políticas, psicológicas ou fi losófi cas. Reduz-se para apreender.

5 Conclusão

Apresentou-se, no início deste artigo, a construção do conceito de soberania na modernidade e de que maneira o monismo jurídico está a ele atrelado.

A partir das refl exões realizadas foi possível constatar que um discurso jurídico que afi rme o Direito unicamente como produção estatal, distante de valores e das transformações e reclames sociais não é neutro – invocando-se aqui a ideia de neutralidade científi ca. Muito pelo contrário, esta construção teórica serve a interesses bem defi nidos.

Com a literatura proveniente da fi losofi a política destacou-se a exclusão das classes sociais menos favorecidas das teorias do contrato social, as quais mesmo partindo de pontos distintos, chegavam a proteger interesses muito próximos – a propriedade e a segurança.

Essa exclusão refl ete-se também na construção do Direito moderno, em especial nas teorias positivistas, que o garantem a partir do uso da força. Segundo essas teorias, a principal característica das normas jurídicas consiste na possibilidade de aplicação coercitiva pelo Estado (o qual detém o monopólio da produção das normas e da aplicação da força).

Neste Direito positivado pelo Estado um padrão de valores e comportamentos sobrepõe-se a todos os demais, e torna-se o único protegido pela força estatal. Aqueles que não o apreenderam, deverão segui-lo por receio da punição.

Todavia, outra resposta é possível. A construção de um Direito baseado na legitimidade das normas. Esta é a proposta dos autores que defendem o Pluralismo Jurídico.

A legitimidade das normas seria refl etida em sua obediência por convicção interna, recobrando a maioridade dos atores sociais que deixariam de responder apenas aos estímulos de punição X recompensa.

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Para chegarmos a essa nova estrutura jurídica, é preciso reinterpretar o conceito de soberania, passando o mesmo a identifi car uma qualidade do poder ao invés de um tipo de poder.

Essa perspectiva jurídica e de Estado abre espaço para aqueles que foram inicialmente excluídos do contrato social, e torna possível que o Direito seja múltiplo, seguido por convicção e aberto aos valores anteriormente rechaçados pelo mesmo.

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CONhECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO E APLICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOyA NOS ESTADOS

PLuRINACIONAIS LATINO-AMERICANOS DO SéCuLO xxI 1

Miguel Etinger de Araujo Junior2

Sumário: introdução. 1) Proteção do Patrimônio Genético E do Conhecimento Tradicional Associado. 2) Estados Plurinacionais. Considerações Finais.

Resumo: A diversidade é uma palavra que permeia os mais variados aspectos da vida humana, e constituí a própria essência da vida no planeta. Uma simples observação dos diversos elementos que compõem os mais variados ecossistemas permite comprovar a assertiva anterior, da mesma maneira que enorme variedade de pessoas quanto à sua raça, cor, cultura e vários outros aspectos leva à mesma conclusão. Se no ambiente dos recursos naturais o equilíbrio alcançado por estes diversos elementos é uma consequência natural, atém mesmo por questão de sobrevivência, o ser humano não apresenta esta mesma facilidade em lidar com o outro. Estes dois aspectos da diversidade, a biológica e a humana, vêm sendo objeto de regulações jurídicas, almejando-se o necessário equilíbrio e o respeito entre todos. Em sua área de abrangência, o Protocolo de Nagoya visa promover este respeito à biodiversidade, e, no presente estudo, procura-se apresentar os parâmetros para sua efetividade e legitimação nos países latino-americanos que experimentaram neste início de Século XXi a construção do novo constitucionalismo baseado na ideia de pluralidade e diversidade do povo. Será, portanto, com respeito aos princípios ali construídos que os acordos internacionais poderão se sustentar como mecanismos eficazes de promoção do desenvolvimento ambiental e social. Palavras-Chave: Biodiversidade; Protocolo de Nagoya; Estados plurinacionais; Contratos; Conhecimento Tradicional Associado.

Resumen: La diversidad es una palabra que penetra en diversos aspectos de la vida humana, y constituye la esencia misma de la vida en el planeta. Una simple observación de los distintos elementos que componen los ecosistemas más diversos puede demostrar la afirmación anterior, así como la gran variedad de personas por su raza, color, cultura y muchos otros aspectos llevan a la misma conclusión. Si el ambiente de los recursos naturales el equilibrio alcanzado por estos elementos es una consecuencia natural, incluso se pega una cuestión de supervivencia, el ser humano no tiene la misma facilidad en el trato con los demás. Estos dos aspectos de la diversidad biológica y humana, han sido objeto de regulaciones legales, buscando el necesario equilibrio y el respeto entre todos. En su área de cobertura, el Protocolo de Nagoya tiene como objetivo promover el respeto por la biodiversidad, y en el presente estudio, tratase de proporcionar los parámetros para su eficacia y legitimidad en los países latinoamericanos en los cuales se ha experimentado en el inicio del siglo XXi la construcción del nuevo constitucionalismo basado en

1 Artigo apresentado no XXii Encontro Nacional do CONPEDi. Curitiba. 2013.2 Doutor em Direito da Cidade pela UERJ, Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito

Negocial e da Graduação em Direito da UEL - Universidade Estadual de Londrina/PR. Advogado. Coordenador dos projetos de pesquisa: i) Direito à moradia: aplicabilidade e efetividade dos instrumentos jurídicos na região metropolitana de Londrina/PR, e ii) Licenciamento ambiental nas relações empresariais: aspectos teóricos e práticos sob o enfoque interdisciplinar econômico, gerencial e jurídico, ambos em andamento na UEL.

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la idea de la pluralidad y la diversidad de la gente. Por lo tanto, será con respecto a los principios construidos allí que los acuerdos internacionales pueden sostenerse como mecanismos efi caces para promover el desarrollo ambiental y social.Palabras Clave: Biodiversidad; Protocolo de Nagoya; Estados plurinacionales; Contratos; Conocimiento Tradicional Asociado.

1 Introdução

O processo de reconhecimento da importância do meio ambiente equilibrado para todas as pessoas no mundo, seja para as presentes como para as futuras gerações, parece ter encontrado relativo consenso nos mais diversos locais do Planeta. Este sentimento pode ser consequência da constatação fática de que a degradação ambiental causa uma vida inadequada, citando como exemplo a questão da mudança climática, gerando eventos extremos e a consequente massa de refugiados ambientais. Ou ainda uma consequência natural da conscientização do lugar do Homem enquanto elemento constitutivo da Natureza. independente da concepção adotada, desde a mais pragmática até a mais espiritual, tem-se verifi cado a construção de diversos mecanismos voltados à proteção ambiental, desde o nível global até a esfera local, impondo-se a necessidade de verifi car a adequação destes mecanismos com a diversidade existente no planeta. Diversidade de ordem cultural, econômica, religiosa, política, etc.

No caso da mudança climática, citada acima, tem-se verifi cado um movimento global voltado à construção de mecanismos que impeçam a ocorrência de situações limítrofes anunciadas por diversos mecanismos de pesquisa. Tais mecanismos, no entanto, esbarram nas mais variadas difi culdades de implementação, como não aceitação de que a causa da mudança climática decorre da utilização inadequada dos recursos naturais, ou ainda, em questões mais pontuais, como a crise fi nanceira mundial, que impede uma postura mais efetiva na implementação daqueles mecanismos.

O caso do presente estudo envolve a proteção da biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado a ela, bem como a verifi cação sobre a possibilidade de alguns instrumentos de cunho internacional que estão sendo construídos, poderem ser aplicados nos Estados Plurinacionais latino-americanos, na medida em que se utilizam instrumentos clássicos do Direito, como o contrato, para o alcance dos objetivos da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Dentre estes objetivos se destaca a preservação da biodiversidade

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e a justa repartição dos benefícios econômicos pela utilização do patrimônio genética de determinado elemento da Natureza entre as partes contratante.

Parte-se, portanto, para a análise doutrinária acerca da questão da biodiversidade e da exploração do patrimônio genético com base em documentos internacionais, como a referida Convenção sobre a Diversidade Biológica, o Protocolo de Nagoya, e normas internas brasileiras sobre o tema.

Ato contínuo, é feita uma análise sobre o que vem se convencionando chamar de novo constitucionalismo latino-americano, onde a tônica é o reconhecimento da diversidade cultural dos diversos países do continente, e além deste reconhecimento formal, uma conquista material do poder por parte destes segmentos, contrariando uma lógica de dominação e submissão por setores da sociedade que tradicionalmente os alijaram do poder, inclusive com a utilização do Direito.

A relevância da pesquisa consiste em verifi car a validade da utilização de instrumentos internacionais, sabidamente difíceis de serem cumpridos, na preservação tanto da biodiversidade, como da autonomia dos povos originários dos países latino-americanos. Por meio do método hipotético-dedutivo pretende-se, com base em doutrina e legislação brasileira e estrangeira, comprovar a possibilidade da adoção daquelas normas internacionais no âmbito interno desses países, e, nesse sentido, promove-se uma abertura interpretativa na construção e implementação dos contratos relacionados ao tema, fugindo de conceitos pré-determinados e de estruturas fechadas no campo do Direito.

2 Proteção do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado

Em relação aos bens ambientais que mereceram especial proteção do legislador constituinte brasileiro de 1988, tem-se que é dever do Poder Público “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fi scalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”, nos termos do artigo 225, § 1º, ii, da Constituição Federal.

inserido que está no Capítulo dedicado ao Meio Ambiente, a diversidade a que se está referindo é a “biodiversidade” ou “diversidade biológica”, entendida como a “considerável variedade de genes, espécies vivas e diferentes ecossistemas” 3.3 MiLARé, édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 694.

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No processo de efetivação dos deveres ambientais, quando da realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecida como RiO/92 ou ECO/92, em relação à biodiversidade, o Brasil foi signatário da Convenção sobre a Diversidade Biológica4, que dispõe em seu Artigo 2:

Diversidade biológica signifi ca a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.

Com efeito, ainda o Artigo 2 da Convenção sobre a Diversidade Biológica (ou Biodiversidade) conceitua material genético como “todo material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade”, acrescentando que recurso genético é todo “material genético de valor real ou potencial”.

Como visto, fi cou evidenciado que a comunidade internacional já tinha conhecimento do valor fi nanceiro do patrimônio genético presente na biodiversidade. E mais, via de regra, será a comunidade local de onde estão situados estes patrimônios que possuem o conhecimento necessário para extrair toda sua potencialidade.

Esta diversidade de patrimônio genético, objeto de tutela, está, portanto, diretamente ligada ao modo pelo qual ele é utilizada. Tal modo de utilização é conhecido como conhecimento tradicional associado, bem imaterial igualmente objeto de tutela, defi nido pelo artigo 7º da Medida Provisória nº 2.186/2001 como sendo a “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético”.

A própria Convenção sobre a Biodiversidade prevê mecanismos para ao acesso a este conhecimento tradicional associado, tomando destaque a necessidade do consentimento prévio fundamentado para sua utilização (Art. 15.5) e a adoção de medidas legislativas, administrativas ou políticas para “compartilhar de forma justa e equitativa os resultados da pesquisa e

4 Convenção sobre a Diversidade Biológica. Disponível em: < http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/_arquivos/cdbport.pdf>. Acesso em 14 maio 2012. A Convenção sobre a biodiversidade foi internalizado no direito brasileiro por meio do Decreto Legislativo 2, de 03.02.1949, e promulgada através do Decreto 2.519, de 16.03.1998.

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do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de sua utilização comercial” (Art. 15.7).

Em relação a este Artigo 15 merece menção a crítica feita por Sarita Albagli5, apontando como um dos aspectos não claramente resolvidos, a atribuição ao governo do país provedor do material genético, na qualidade de Parte Contratante, a prerrogativa de decidir sobre o acesso ao recurso genético, não se fazendo qualquer remissão às comunidades tradicionais.

Note-se nesta observação da referida Autora, um primeiro ponto de confl ito com os fundamentos dos Estados plurinacionais latino-americanos, cujo desenvolvimento será efetuado ao longo do estudo.

Para Sandra Akemi Shimada Kishi6, esta observação, no entanto, parece atentar contra outros comandos constitucionais, em especial no que diz respeito ao acesso ao conhecimento dos povos indígenas, em face do artigo 231, § § 2º e 3º e artigo 232, ao observar que “o Estado não participa como parte sempre, em todos os contratos de acesso, porque não há relação jurídica de domínio estatal do bem acessado”, invocando ainda a atual redação do parágrafo único do art. 4º do Código Civil, que não mais cogita do FUNAi atuar como tutor.

Tal preocupação é compartilhada por Marie-Angèle Hermitte7 que, no entanto, sinaliza com a possibilidade das Conferências das Partes exercerem papel fundamental no reconhecimento das comunidades locais como protagonistas neste cenário, transportando para o cenário internacional a importância que lhes é deferida pelos Estados Plurinacionais latino-americanos, como se verifi cará em capítulo próprio mais adiante.

A função de cada interveniente neste processo (Estado, comunidades tradicionais, interessado economicamente) foi em boa parte objeto de regulamentação pela Medida Provisória nº 2.186/2001, conforme se verifi cará mais adiante.

5 ALBAGLi, Sarita. “Convenção sobre diversidade biológica: uma visão a partir do Brasil”. In BECKER, Bertha K.; GARAy, irene. Dimensões humanas da biodiversidade: o desafi o de novas relações sociedade-natureza no século xxI. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 119

6 KiSHi, Sandra Akemi Shimada. “Repartição de benefícios na atual legislação e nos projetos de lei no Brasil – críticas e dilemas”. In Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e Cidadania – v.5, n. 12, Fevereiro 2012. – Erechim, RS : Habilis, 2012. Disponível em: <http://www.reid.org.br/?CONT=00000254>. Acesso em 14 maio 2012.

7 HERMiTTE, Marie-Angèle. “O acesso aos recursos biológicos: panorama geral”. In PLATiAU, Ana Paula Barros; VARELLA, Marcelo Dias (Orgs.).Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 06.

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3 O protocolo de nagoya

Como visto, tem-se buscado uma forma de efetivar o comando do Artigo 15.7 da Convenção sobre a Diversidade Biológica, tornando justo e equitativo os resultados de pesquisas envolvendo recursos genéticos, inclusive os benefícios econômicos. Esta efetividade passa pela implementação de um Regime internacional de Acesso e Repartição de Benefícios, e nesse sentido o Protocolo de Nagoya8 pode trazer signifi cativa contribuição ao estabelecer parâmetros contratuais mais sólidos.

O prazo para a assinatura do Protocolo terminou no dia 1º de fevereiro de 2012, e contou com 91 países signatários (inclusive o Brasil) e ainda a União Europeia. Esperava-se que até a realização da Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro, no mês de Junho de 2012, 50 países tivessem ratifi cado o Protocolo para que ele entrasse em vigor, o que não aconteceu. Até o dia 28 de fevereiro de 2013 somente 15 países haviam ratifi cado (Albânia, Botswana, Estados Federados da Micronésia, Etiópia, Fiji, Gabão, índia, Jordânia, República Democrática Popular do Laos, Maurício, México, Panamá, Ruanda, Seychelles e África do Sul) 9.

O ponto que merece especial atenção neste Protocolo é a confi rmação do princípio em que “benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos bem como aplicações subsequentes e comercialização serão repartidos de modo justo e equitativo com a Parte provedora” (Artigo 5.1). E ainda, que estes benefícios sejam repartidos de modo justo e equitativo com as comunidades envolvidas, com base em termos mutuamente acordados (Artigo 5.2).

No que se refere ao efetivo cumprimento destes Protocolos, Calogero Pizzolo10 em seus estudos sobre globalização e integração aponta o surgimento de seis problemas decorrentes do confl ito de competência entre as normas internas e internacionais.

8 PROTOCOLO DE NAGOyA no âmbito da convenção da diversidade biológica sobre acesso a recursos genéticos e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes de sua utilização. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/sbf_chm_rbbio/_arquivos/cdbport_72.pdf>. Acesso em 15 fev 2013. O Protocolo de Nagoya foi aprovado no âmbito da Convenção da Biodiversidade, durante a 10ª Conferência das Partes (COP), realizada na cidade de Nagoya, no Japão, em outubro de 2010.

9 ONU – Organização das Nações Unidas. “Albania, Botswana and the Federated States of Micronesia ratify Nagoya Protocol”. Press release de 28/02/2013. .Disponível em: < http://www.cbd.int/doc/press/2013/pr-2013-02-28-abs-en.pdf>. Acesso 28 fev 2013.

10 PiZZOLO, Calogero. globalización e integración. ensayo de una teoria general. Buenos Aires: EDiAR, 2002. p. 188-189.

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O primeiro destes problemas seria o confl ito entre soberania interna e internacional, que se apresenta em verdade como uma questão de convivência normativa com problemas de implementação, em face de existência da difi culdade em admitir que uma nação soberana se encontra obrigada a tratados internacionais.

insta esclarecer que a soberania de um país não depende diretamente da primazia do direito interno ou do direito internacional. A soberania trata-se da liberdade de um Estado de expressar sua vontade, interna e externamente, inclusive através do direito internacional, que não é uma ameaça a esta soberania, mas a expressão da vontade jurídica do país no plano internacional, se apresentando como um elemento11.

Destarte, não se pode negar que os processos de globalização que desencadearam a internacionalização da economia e a criação de blocos regionais exigiram a reformulação do conceito clássico de soberania nacional, como observa Márcio Monteiro Reis:

A satisfação do interesse pessoal das partes depende da realização do escopo que compartilham. Assim, da mesma forma que não se pode dizer que os sócios de uma empresa perdem sua liberdade ao constituí-la, também não se pode dizer que os Estados-membros perdem sua soberania por participarem de uma ordem supranacional 12.

O segundo problema seria de integração normativa ante a difi culdade de integração entre o ordenamento jurídico interno e uma nova norma internacional, vez que a norma internacional recém-criada não detém um âmbito de aplicação autônoma.

O terceiro entrave encontra ligação direta com o anterior, tratando-se do problema da força normativa, gerado pela discussão da capacidade de força normativa de um tratado para criar direitos e estabelecer obrigações junto ao direito intraestatal.

A quarta difi culdade permite determinar o problema de hierarquia normativa, vez que o órgão constitucionalmente competente incorporou a norma internacional ao direito interno, restando defi nir que hierarquia as normas convencionais internacionais possuem frente às normas do ordenamento jurídico interno.11 DAUDT, Gabriel Pithan. “Os tratados internacionais e as isenções heterônomas”. Disponível em: http://

www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_77/artigos/Gabriel-rev77.htm. Acesso em: 10 maio 2012.12 REiS, Márcio Monteiro. Mercosul, união Europeia e Constituição: a integração dos Estados e os

ordenamentos jurídicos nacionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 41.

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O quinto problema reside em controlar a legalidade das normas internacionais, sendo questionado se a jurisdição local resta inabilitada para uma permanente revisão aos tratados internacionais.

Por fi m, o sexto entrave permite a observação do problema do confl ito, consistente na busca da solução de confl itos de interesses gerados a partir do desenvolvimento e adesão de um tratado internacional. A solução deste problema é fundamental para o êxito da internalização dos tratados internacionais com sua respectiva executoriedade.

Retornando à questão da efetividade do referido Protocolo, observe-se que o modo pelo qual o acordo entre os interessados no patrimônio genético será celebrado deve obedecer ao sistema jurídico de cada Parte contratante. Logo, serão as normas de Direito interno que irão trazer os parâmetros para a celebração de um acordo sobre esta repartição justa e equitativa.

Estes são, conforme se posiciona Cristiane Derani13, a grande inovação e o grande desafi o inserido no Protocolo de Nagoya: (i) a utilização de uma norma interna de cada país para a elaboração do contrato, tornando esta norma interna com validade internacional (na medida em que deve ser aceita, nos termos do Protocolo de Nagoya) e (ii) utiliza internamente uma norma internacional, na medida em que o contrato a ser realizado terá como base este Protocolo.

Com efeito, a solidifi cação deste instrumento contratual pode alterar signifi cativamente as relações internacionais no que se refere ao efetivo cumprimento dos Tratados celebrados entre os países.

Se, como se observou acima, existem diversos entraves para o cumprimento destes Tratados, o referido contrato será regulamentado por normas de direito interno, o que pode resolver, em tese, alguns dos problemas que se apresentam quando da necessidade de cumprimento de acordos internacionais.

Ainda que ultrapassadas essas premissas, e partindo-se para a formulação de um contrato com base no direito interno, note-se que a simples aplicação de instrumentos tradicionais de celebração de contrato, baseado na verifi cação dos elementos clássicos de validade do contrato: agente capaz, objeto lícito, forma não vedada em lei, já não são se enquadra em alguns modelos constitucionais

13 DERANi, Cristiane. Conforme palestra proferida no dia 10 de abril de 2012, com o título “Produção econômica e biodiversidade brasileira no protocolo de Nagoya”, por ocasião da I Conferência Internacional Direito Ambiental, Transnacionalidade e Sustentabilidade, evento preparatório para a Rio+20, realizado na cidade de itajaí/SC.

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contemporâneos, pois como será visto em seguida, em alguns países latino-americanos deve-se observar o modo de vida peculiar das diversas Nações que compõem um Estado.

4 A legislação brasileira. medida provisória nº 2.186/2001

Procurando dar-se concretude e efetividade ao disposto na Convenção sobre Diversidade Biológica, na data de 23 de agosto de 2001 foi promulgada a Medida Provisória (MP) nº 2.186-16, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, como uma das medidas voltadas para a efetiva implementação da Convenção sobre a Biodiversidade.

A MP traz a defi nição sobre conhecimento tradicional associado, em seu artigo 7º, ii: “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético”.

Traz ainda o referido diploma geral a previsão de um contrato visando regulamentar este processo de transferência do conhecimento relacionado ao material genético, conforme artigo 7º, Xiii:

Xiii - Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios: instrumento jurídico multilateral, que qualifi ca as partes, o objeto e as condições de acesso e de remessa de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, bem como as condições para repartição de benefícios;(negrito introduzido)

Não se trata, obviamente, como observou Sandra Akemi Shimada Kishi14, “de um instituto sujeito ao clássico regime do direito civil dos contratos”, pois:

Segundo a Medida Provisória nº 2186-16/01, que regula a matéria no Brasil, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) tem a atribuição de dar anuência aos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios e de registrá-los, numa instância ad referendum ou de ratifi cação para a validade e efi cácia do contrato. isso signifi ca que hoje esses contratos no brasil são regidos pelo regime jurídico de direito privado, ad referendum do Poder Público, visto que depende da anuência do

14 KISHI, op. cit.

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Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que tem natureza de autarquia federal, salvo quando a própria União for parte. Neste último caso, o contrato estará sob a égide do regime jurídico de direito público.

Diante da natureza do objeto do contrato, consubstanciado num bem de interesse público ou difuso, por óbvio não se trata de um negócio jurídico regido pelas normas do regime jurídico dos contratos, mas por um sistema jurídico sui generis contratual, dotado de elementos próprios de proteção de bem de interesse difuso ou coletivo lato sensu. Essa concepção é inevitável, pois em se tratando de acesso ao conhecimento tradicional, não apenas o objeto do negócio jurídico é bem de interesse difuso, mas também as partes – uma comunidade ou indivíduos ou grupos representativos de direitos coletivos – e ainda o tempo e o modo dessa relação contratual sui generis invocam diferentes dinâmicas e instrumentos, próprios do direito das minorias e dos povos tribais.(negrito introduzido)

A referida Media Provisória procura regulamentar diversos momentos do processo de acesso e utilização do patrimônio genético, atenta aos diversos interesses envolvidos na questão, bem como a não rara necessidade de proteção de determinadas populações.

Assim é que podem ser identifi cados os seguintes aspectos de regulamentação: (i) acesso ao patrimônio genético; (ii) acesso a eventual conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético; (iii) formalização de um contrato entre as partes interessadas.

O legislador (sic) reconhece, portanto, nessa relação, o interesse econômico na exploração do patrimônio genético, a necessidade de proteção das áreas de acesso e das populações envolvidas, e o reconhecimento do papel do Estado como interveniente para a salvaguarda dos interesses econômicos e dos interesses socioculturais.

Note-se que não se está falando de tutela, o que atentaria contra o espírito do novo constitucionalismo latino-americano, que reconhece a diversidade e a identidade dos diferentes povos que compõem o país, como será visto adiante.

O primeiro passo para o acesso e remessa do componente do patrimônio genético segue uma lógica muito simples, mas que nem sempre tem acolhida nos complexos sistemas jurídicos: pedir licença ao “dono” do local onde se encontra o produto ou àquele que sabe manipular este produto. A utilização desta linguagem coloquial é proposital, para que não haja dúvida quanto ao que pretendeu o legislador;

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Medida Provisória nº 2.186/2001.

Art. 16. O acesso a componente do patrimônio genético existente em condições in situ no território nacional, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, e ao conhecimento tradicional associado far-se-á mediante a coleta de amostra e de informação, respectivamente, e somente será autorizado a instituição nacional, pública ou privada, que exerça atividades de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afi ns, mediante prévia autorização, na forma desta Medida Provisória.

...

§ 8o A Autorização de Acesso e de Remessa de amostra de componente do patrimônio genético de espécie de endemismo estrito ou ameaçada de extinção dependerá da anuência prévia do órgão competente.

§ 9o A Autorização de Acesso e de Remessa dar-se-á após a anuência prévia:

i - da comunidade indígena envolvida, ouvido o órgão indigenista ofi cial, quando o acesso ocorrer em terra indígena;

ii - do órgão competente, quando o acesso ocorrer em área protegida;

iii - do titular de área privada, quando o acesso nela ocorrer;

iV - do Conselho de Defesa Nacional, quando o acesso se der em área indispensável à segurança nacional;

V - da autoridade marítima, quando o acesso se der em águas jurisdicionais brasileiras, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva.

(negrito introduzido)

Somente após esta prévia autorização é que poderá ser concedida uma autorização de acesso e de remessa de componente do patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado, fornecida pelo Poder Público Federal, por meio do órgão colegiado do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN (art. 16, caput, c/c art. 11, iV, a, b, ambos da MP nº 2.186/2001).

Cristiane Derani observa que aqueles que consentem com o acesso ao patrimônio genético não são proprietários deste, mas sim detentores, pois a informação genética não tem detentores: “os sujeitos provedores de recurso genético, o fazem, porque em seu território se encontram recursos

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biológicos, cuja informação genética apresenta algum interesse científico ou econômico” 15.

Este consentimento prévio para acesso ao patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado recebeu da legislação brasileira o nome de Termo de Anuência Prévia – TAP (descrito, por exemplo, nas Resoluções 5/2003, 06/2003 e 19/2005 do CGEN) e constitui-se como verdadeira garantia para a justa e equitativa da repartição dos benefícios, um dos princípios da Convenção sobre Diversidade Biológica.

Vale ainda observar importante dispositivo previsto na MP 2.186/2001, nos casos onde haja perspectiva de uso comercial do componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado (art. 16, §4º), quando as partes – provedor e usuário – devem fi rmar um Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios (CURB).

Em síntese, para o acesso e utilização do patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado deve-se primeiro obter o consentimento prévio do detentor do produto por meio do TAP – Termo de Anuência Prévia, depois deve fi rmar o CURB - Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios, para só então receber a autorização do CGEN.

Há, portanto, diversas etapas a serem ultrapassadas. São exigências formais que devem ser aplicadas de forma integrada com normas de caráter substancial, dentre as quais aquelas contidas nos ordenamentos constitucionais recentes de alguns países da América Latina, que reconhecem e asseguram os legítimos direitos das comunidades tradicionais, tema sobre o qual se desenvolverá em seguida.

5 Estados plurinacionais

A terminologia homenageada no presente capítulo é uma dentre tantas a indicar um modelo de Estado que torna efetivo o respeito e reconhecimento dos poderes deferidos aos diferentes grupos sociais que compõem uma Nação, entendida aqui como aquele conceito fi rmado por Luis Villoro16, com

15 DERANi, Cristiane. Estudos sobre Acesso aos Recursos Genéticos da biodiversidade, Conhecimentos Tradicionais Associados e Repartição de benefícios. Interpretação da Medida Provisória n. 2.186-16/2001. Florianópolis : Fundação Boiteux, 2012, p. 33, 34.

16 ViLLORO, Luis. Estado plural, pluralidade de culturas. México: Paidós, 1998, p. s. d., apud FAGUNDES, Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: estado plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 390.

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a existência de quatro condições: “uma comunidade de cultura, consciência de pertencer a esta comunidade, projeto comum e relação com um território”, mas, com a ressalva de Boaventura de Souza Santos17, para quem:

El primer concepto de nación es el concepto liberal que hace referencia a la coincidencia entre nación y Estado; es decir, nación como el conjunto de individuos que pertenecen al espacio geopolítico del Estado y por eso en los Estados modernos se llaman Estado-nación: una nación, un Estado. Pero hay otro concepto, un concepto comunitario no liberal de nación, que no conlleva consigo necesariamente el Estado.

Necessário se faz, portanto, uma breve conceituação de alguns modelos de Estado, de forma a tornar mais clara a mudança de paradigma que se pretende demonstrar.

5.1 Conceitos clássicos de estado

Diversos ramos do conhecimento procuram analisar e discutir as formas de organização da sociedade, desde seus mais remotos modelos de convivência social, até os atuais agrupamentos de países das mais diferentes culturas, motivados pela necessidade de sobrevivência em um mundo voltado para a economia, produção e produtividade. O caso da União Europeia é emblemático, quando se verifi ca a intenção de fortalecer a produtividade do bloco de países que a compõe.

Até a confi guração do cenário atual, em relação à organização dos Estados que reúnem uma maior ou menor diversidade de culturas, etnias, religiões, etc., a sociedade já passou por diversos modelos, desde a completa ausência de organização de uma unidade territorial e governamental, passando pela época dos grandes impérios e do feudalismo.

Um aspecto que sempre se fez presente nos arranjos institucionais, com menor um maior intensidade, foi a presença de diversidades conviventes em um mesmo território. Esta diversidade foi por vezes respeitada pelos governos, e por vezes foi silenciada em uma tentativa de manutenção do poder. Nesta última situação, ainda que temporariamente sem voz, as diferenças permaneceram, e por vezes, aumentaram.17 SANTOS, Boaventura de Sousa. pensar el estado y la sociedad: desafíos actuales. Buenos Aires:

Waldhuter, 2009, p. 202, apud FAGUNDES, Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: estado plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 390.

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Em geral, são os sistemas de governo autoritários que tentam manter a unidade territorial com emprego da força. Em estudo sobre regimes políticos e tipos de organização territorial de poder, Márcia Miranda Soares afi rma que “a resposta autoritária consiste em manter a unidade política silenciando a expressão dos interesses territoriais, o que requer o controle dos instrumentos de coerção física” 18.

Com efeito, até a Constituição dos Estados Unidos de 1787, considerada um marco do federalismo, os Estados organizavam-se ou de uma forma Confederada ou constituíam-se como Estados Unitários.

Em relação a estas formas de organização territorial do poder político, Márcia Miranda Soares afi rma:

Estas três formas se distinguem, em linhas gerais, pelo locus do poder político: o sistema unitário é caracterizado pela centralização do poder político (o governo central é que controla toda a vida política do Estado), enquanto o sistema federal se caracteriza por uma divisão igualitária do poder político entre o governo central e as sub-unidades territoriais, e o sistema confederal, ao contrário do sistema unitário, tem o locus do poder nas unidades territoriais que compõem a comunidade política19.

Pedro Estevam Alves Pinto Serrano afi rma que “Federação é antes de tudo forma de distribuição geográfi ca do exercício do poder político no plano interno” 20. Para Aspásia Camargo21, o modelo federativo é uma engenharia política e um modelo de organização do Estado, e para Márcia Miranda Soares, “uma forma de organização do Estado Nacional, caracterizada pela dupla autonomia territorial do poder político” 22. Afi rma ainda esta última autora que o sistema federal e o sistema unitário são formas opostas de organizar o poder político dentro de um Estado Nacional. Cabe neste particular uma ressalva em relação aos modelos formais e aos modelos reais de federalismo, como é o caso do Reino da Espanha, que sendo um Estado Unitário apresenta grandes

18 SOARES, Márcia Miranda. “Federação, democracia e instituições políticas”. In Lua Nova: revista de cultura e política. Nº 44, 1988, p. 14.

19 SOARES, Márcia Miranda, op. cit. p. 141.20 SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional. São Paulo:

Verbatim, 2009, p. 10.21 CAMARGO, Aspásia. “Federalismo cooperativo e o princípio da subsidiariedade: notas sobre a experiência

recente do Brasil e da Alemanha”. In Federalismo na Alemanha e no brasil Orgs. CARNEiRO, José Mário Brasiliense; HOFMEiSTER, Wilhelm. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, Série Debates, nº 22, Vol. i, abril 2001. p. 69

22 SOARES, Márcia Miranda, op. cit. p. 137, 138.

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características de uma Federação, e o da extinta União Soviética, que a despeito de prever em sua antiga Constituição a forma federativa de poder, em muito se distanciava deste conceito.

Fernando Luiz Abrucio23 destaca que a divisão territorial do poder, em especial sob o modelo federativo, facilita a descentralização do poder no plano nacional e promove a manutenção da integridade espacial de países grandes ou com heterogeneidades relevantes.

Para Aspásia Camargo, o federalismo seria uma “versão democrática e institucionalizada” dos grandes impérios24, ressaltando ainda que o federalismo tem um “efeito sanfona”, cuja maleabilidade e capacidade natural de adaptar-se às ondas de centralização e descentralização tem-lhe garantido assento formal em diversas Constituições25.

Estas transformações das diferentes conformações de poder vêm acompanhando as sucessivas mudanças das sociedades, principalmente europeias, com maior ou menor demanda da atuação do poder público nas questões coletivas. Assim é que tem no plano histórico tem-se a formação dos Estados liberais, seguido dos Estados sociais e mais recentemente, no fi nal do século XX e início do século XXi, o fortalecimento de Estados neoliberais, cuja transferência de atividades estatais aos particulares sugere, nas palavras de Zulmar Fachin26, a existência de um verdadeiro “Estado privado”, com a existência de novos leviatãs.

5.2 Demandas não atendidas

Como visto, alguns modelos de Estado foram sendo construídos ao longo dos anos, cada qual com seus objetivos específi cos.

O federalismo norte americano buscou conformar as forças centrípetas, que almejavam um governo central forte com poderio militar contra ameaças externas, a solidifi cação de um mercado mais amplo, dentre outros motivos, que duelavam com as forças centrífugas, que pretendiam manter a posição de

23 ABRUCiO, Fernando Luiz. “A reconstrução das funções governamentais no federalismo brasileiro”. In Federalismo na Alemanha e no brasil. Orgs. CARNEiRO, José Mário Brasiliense; HOFMEiSTER, Wilhelm. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, Série Debates, nº 22, Vol. i, abril 2001, p. 95.

24 CAMARGO, Aspásia, op. cit. p. 74.25 CAMARGO, Aspásia, op. cit. p. 70.26 FACHiN, Zulmar. Curso de direito constitucional. São Paulo: Método, 2008, p. 168.

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independência das ex-colônias que haviam conseguido sua independência27. Tratava-se de um esquema de solução de controvérsias28.

No Brasil, também se procurou com o federalismo dirimir controvérsias entre estas forças políticas e sociais. No entanto, se nos Estados Unidos o movimento federalista procurava criar uma unidade com o Estado Nacional, de forma a acomodar as tendências separatistas das ex-colônias, no Brasil o que se procurava manter era a unidade nacional com a manutenção de privilégios das elites locais.

No entanto, especifi camente no Brasil e em toda a América Latina, as formas de Estado e de governo que se formaram até o século XX procuravam privilegiar um determinado segmento social, em detrimento de outros. A independência das colônias permitiu uma reorganização da ordem social e econômica, mantendo-se os privilégios de pequenos grupos, geralmente grandes proprietários de terra, pois como afi rmam Fagundes e Wolkmer:

Poucas vezes, na história da região, as constituições liberais e a doutrina clássica do constitucionalismo político reproduziram, rigorosamente, as necessidades de seus segmentos sociais majoritários, como as nações indígenas, as populações afro-americanas, as massas de campesinos agrários e os múltiplos movimentos urbanos 29.

E como afi rmado acima, a diversidade e a pluralidade de uma Nação podem ser subjugadas por um modelo de Estado e de governo, mas ela não desaparece, e em algum momento e com variada força, estas vozes se fazem ouvir. Os recentes movimentos constitucionalistas latino-americanos dos últimos anos parecem reproduzir estas vozes, como brevemente se demonstrará em seguida.

5.3 A construção de um modelo constitucional latino-americano

As recentes alterações constitucionais promovidas principalmente por Venezuela, Equador e Bolívia indicam a resposta a uma demanda formulada pelas classes sociais historicamente alijadas dos processos decisórios, “dentro

27 SOARES, Márcia Miranda, op. cit. p. 139.28 BERCOViCi, Gilberto, Dilemas do Estado Federal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 12.29 FAGUNDES, Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. “Tendências contemporâneas do

constitucionalismo latino-americano: estado plurinacional e pluralismo jurídico”. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 377.

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de um contexto social de exigibilidade da concretização de políticas efi cazes em torno de necessidades fundamentais”30.

Trata-se de se apropriar de mecanismos utilizados pelas elites que predominavam até então, mas desta vez com um real comprometimento no atendimento das demandas das populações historicamente marginalizadas política, social e economicamente. é o que Boaventura de Souza Santos chama de “uso contra-hegemônico de instrumentos hegemônicos”31.

Alguns autores espanhóis citados por Fagundes e Wolkmer32 sustentam a evolução do “neoconstitucionalismo”, presente na década de setenta que apresenta normas materiais e substantivas que condicionam a atuação do Estado, passando pelo “novo constitucionalismo” que mais além de uma preocupação jurídica apresenta uma preocupação política com a legitimidade da soberania popular, e chegando fi nalmente ao “novo constitucionalismo latino-americano”, que busca atender as demandas vitais das comunidades que não experimentaram o Estado social, indo além da construção de um modelo jurídico garantidor dos direitos sociais e da formulação de mecanismos de legitimação popular, sem, no entanto negar estas conquistas.

Como exemplo cite-se a chamada “rigidez” constitucional boliviana, onde a alteração das normas constitucionais se dará pelo mesmo podes constituinte originário, ou ainda o Tribunal Constitucional Plurinacional, voltado a resolver confl itos entre as diferentes nacionalidades do país e cuja constituição deve representar esta mesma diversidade.

BOLíViA. Constitución Política del Estado.

artículo 411.

i. La reforma total de la Constitución, o aquella que afecte a sus bases fundamentales, a los derechos, deberes y garantías, o a la primacía y reforma de la Constitución, tendrá lugar a través de una Asamblea Constituyente originaria plenipotenciaria, activada por voluntad popular mediante referendo. La convocatoria del referendo se realizará por iniciativa ciudadana, con la fi rma de al menos el veinte por ciento del electorado; por mayoría absoluta de

30 MARTíNEZ DALMAU, Rubén. El nuevo constitucionalismo latinoamericano y el proyecto de Constitución del Ecuador de 2008. alter Justicia: estudios sobre teoría y justicia constitucional, ano 2, n. 1, p. 13-28, oct. 2008, apud FAGUNDES, Lucas Machado; WOLKMER, Antonio Carlos. “Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: estado plurinacional e pluralismo jurídico”. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011, p. 378.

31 SANTOS, Boaventura de Sousa. refundación del estado en américa Latina: perspectivas desde una epistemología del sur. Lima: instituto internacional de Derecho y Sociedad, 2010, p. 80.

32 FAGUNDES; WOLKMER, op. cit. p. 381-384.

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los miembros de la Asamblea Legislativa Plurinacional; o por la Presidenta o el Presidente del Estado. La Asamblea Constituyente se autorregulará a todos los efectos, debiendo aprobar el texto constitucional por dos tercios del total de sus miembros presentes. La vigencia de la reforma necesitará referendo constitucional aprobatorio.

ii. La reforma parcial de la Constitución podrá iniciarse por iniciativa popular, con la fi rma de al menos el veinte por ciento del electorado; o por la Asamblea Legislativa Plurinacional, mediante ley de reforma constitucional aprobada por dos tercios del total de los miembros presentes de la Asamblea Legislativa Plurinacional. Cualquier reforma parcial necesitará referendo constitucional aprobatorio.

artículo 197.

i. El Tribunal Constitucional Plurinacional estará integrado por Magistradas y Magistrados elegidos con criterios de plurinacionalidad, con representación del sistema ordinario y del sistema indígena originario campesino.

Com efeito, este movimento ainda está em curso, como afi rmam Dalmau e Pastor33:

“... el neo constitucionalismo es una corriente doctrinal, producto de años de teorización académica mientras que, como vamos a ver a continuación, el nuevo constitucionalismo latinoamericano es un fenómeno en el extrarradio de la Academia, producto más de las reivindicaciones de los movimientos sociales que de los profesores de Derecho Constitucional. Y, consiguientemente, carece de una cohesión y una articulación como sistema cerrado de análisis y proposición de un modelo constitucional”

No entanto, demonstra uma preocupação com as peculiaridades de cada sociedade, buscando atender efetivamente as demandas das camadas da sociedade que foram marginalizadas, e que constituem a própria formação desta sociedade, bem como sua maior parcela.

E considerar estes diferentes modos de vida signifi ca respeitar o modo de vivência e convivência destes grupos sociais. Se no campo da democracia efetiva e da legitimidade de um governo este movimento representa um forte avanço, no campo ambiental é possível vislumbrar também um sistema de

33 MARTíNEZ DALMAU, Rubén; PASTOR, Roberto Viciano. ¿se puede hablar de un nuevo constitucionalismo latinoamericano como corriente doctrinal sistematizada? Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf>. Acesso em 04 set 2012.

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governo mais preocupado com as práticas sustentáveis, na medida em que a relação destes grupos sociais, em especial os aborígenes das comunidades andinas têm forte respeito pela preservação dos ecossistemas.

E no Brasil, pode-se comentar a especial relação do homem campesino com a terra, que busca seu melhor aproveitamento com base em técnicas não predatórias, com a não utilização de agrotóxicos, por exemplo.

6 Considerações finais

A questão da biodiversidade envolve uma complexidade de aspectos e interesses que pode ser comparada com o signifi cado desta própria expressão. Biodiversidade envolve um plexo de elementos da Natureza, desde um pequeno inseto até o próprio Ser Humano, em cuja harmonia se encontra a base para uma vida digna e duradoura, o que em outras palavras também pode ser chamada de sustentável.

A preocupação com a biodiversidade toma contornos globais na medida em que movimentos até então isolados de preservação dos ecossistemas e das comunidades tradicionalmente exploradora destes recursos ganha expressão internacional, resultando, por exemplo, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo no ano de 1972. Este marco no tratamento da questão ambiental foi impulsionado pela constatação fática da degradação do meio ambiente produzida pelo modo de exploração dos recursos naturais, e que pode ser percebida em varais partes do planeta.

O desdobramento deste movimento, que constata o modo insustentável de lidar com a questão ambiental, é o surgimento de propostas para a construção de medidas concretas para utilização racional do meio ambiente. São construídos acordos globais, com uma abrangência global, mas sem desprezar a importância de ecossistemas locais, e especialmente, a relação do Homem com estes ambientes. Num dos pontos objeto de estudo deste trabalho apresenta-se o modelo que se encontra em construção para a proteção da biodiversidade. Proteção dos diferentes elementos que compõem ecossistemas locais (e de maior abrangência também) bem como da população que tradicionalmente interage com estes elementos, promovendo ao mesmo tempo a sua preservação e a exploração das potencialidades, sem que haja o esgotamento de seus recursos, como se verifi ca em outros segmentos.

Reconhece-se, portanto, a diversidade de culturas e interesses na exploração/preservação destes recursos, e busca-se a construção de modelos

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institucionais que permitam acomodar satisfatoriamente dos envolvidos. Neste sentido tanto a Convenção sobre Diversidade Biológica (1992) como o Protocolo de Nagoya (2010), documentos internacionais, tentam buscar este equilíbrio. No Brasil, a legislação avança no sentido de dar concretude a estas normas internacionais. Tais documentos não são a panaceia dos problemas de preservação ambiental e da biodiversidade, mas apontam (mais) um caminho na busca da almejada sustentabilidade.

Um fator que não pode ser alijado desta discussão, mais uma vez, diz respeito a uma parte da população especialmente interessada na preservação da biodiversidade, que são aquelas pessoas que possuem um vínculo histórico com o local onde residem e trabalham, fazendo do conhecimento acumulado por várias gerações para como os elementos da Natureza, a sua grande riqueza. Saber como manejar adequadamente a grande variedade de elementos naturais é considerado, hoje, um verdadeiro patrimônio de diversos países.

Neste sentido, o reconhecimento da diversidade e importância de parte desta população é objeto alterações sociais, políticas e jurídicas na América Latina.

Percebe-se no ambiente latino-americano o surgimento de um movimento a partir do fi nal do século XX direcionado ao reconhecimento da identidade e da diversidade dos diferentes povos que a compõe. Estes povos têm sido tradicionalmente subjugados pelos grupos sociais dominantes, chamados de elites sociais, e cujos instrumentos foram desde a simples força bruta até mecanismos menos violentos, como o Direito.

As Constituições que surgiram no continente procuraram então se estruturar no modelo europeu, cuja realidade tanto econômica quanto cultural sempre se distanciou da América Latina.

As demandas reprimidas destes segmentos sociais passam então a partir do início do século XXi a se apropriar deste instrumento jurídico (Constituição), para, sem rupturas traumatizantes, estabelecer uma nova ordem jurídica que contemple os interesses desta diversidade, mas preocupada em não construir um novo modelo hegemônico.

Neste sentido, o respeito às minorias constitui-se como elemento fundamental deste novo Estado, chamado de Plurinacional. E este respeito deve necessariamente se traduzir em mecanismos efi cazes de participação do poder.

Para além deste reconhecimento e efi cácia, faz-se necessária a criação e execução de mecanismos que permitam a manutenção destes diferentes tipos de vida da variadas identidades. Esta manutenção pode ser chamada de

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sustentabilidade, que dentre tantas defi nições e elementos conformadores, diz respeito à questão ambiental e à questão institucional, considerada aqui como mecanismos de preservação de uma determinada identidade, com base no respeito à diferença.

A construção de um modelo contratual com base em acordos internacionais pode ser apontado como um caminho a ser seguido na busca de princípios consagrados nestes mesmos acordos: preservação ambiental e da biodiversidade, respeito às comunidades tradicionais, repartição dos benefícios oriundos da exploração econômica do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado.

Não há que se falar em um modelo contratual clássico dos países ocidentais, com base na legislação civil. Em um primeiro momento, faz-se necessário, para preservação da biodiversidade, uma diversidade de elementos constitutivos do próprio contrato, promovendo uma integração entre os diferentes modos de viver e pensar a relação para com o outro e para com a Natureza.

Em um segundo momento, as instâncias decisórias e a legitimidade para celebrar acordos deve prever uma participação efetiva dos diversos segmentos de cada país, em especial aqueles tradicionalmente alijados do poder. Os órgãos estatais devem contemplar a participação destes segmentos, sob pena de se estar instaurando uma nova tutela dos interesses dos outros, que sempre tiveram capacidade de decidir o modo de vida que pretendem para sua comunidade.

Se o Protocolo de Nagoya, citado neste estudo, pretende utilizar-se das normas jurídicas internas de cada país para a formalização dos contratos, estes devem ser os dois parâmetros principais na conformação de sua legalidade, e, sobretudo, legitimação.

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POSSIbILIDADES DA ExTENSÃO uNIVERSITáRIA SOb O ENFOquE DAS TEORIAS CRÍTICAS DO DIREITO

Baruana Calado dos Santos1

Sumário: 1. introdução, 2. Necessidade da teoria crítica do direito, 3. O direito na universidade, extensão e assessoria jurídica, 4. Um breve relato do Lutas – projeto de extensão em assessoria jurídica 5. Alguns problemas e possíveis meios de soluções, 6. Conclusão.

Resumo: Este artigo se insere nos atuais debates referentes às teorias críticas do direito e seus alcances práticos, com o objetivo de discutir os meios de realização de uma prática extensionista universitária crítica no Direito. Com base no método dialógico de Paulo Freire, apresentam-se ideias de autores críticos do Direito, os quais Wolkmer, Luiz Fernando Coelho e Boaventura Sousa e Santos, questionadores, cada um a seu modo, do tema da necessidade de um direito vivo, que no meio acadêmico também é possível através dos projetos de extensões. Tais autores visam à superação do papel tradicional da prática jurídica, mantenedora do status quo, para a transformação social através de uma prática, neste caso, acadêmica e de cunho extensionista, centrada na luta dos movimentos sociais que liga a universidade à realidade social da qual também faz parte e permite o encontro do pensamento jurídico com sua atuação, cuja finalidade é a justiça social para além dos limites do Direito como monopólio estatal, comprometida ao ideal democrático, de transformação e de resistência. Os problemas enfrentados por este ideal se colocam como empecilhos à sua prática e meios de superá-los devem ser encontrados, situação esta que motiva a produção deste artigo.Palavras chave: teoria crítica do direito, extensão, assessoria jurídica.

Abstract: This article is part of the current discussions regarding the critical legal theories and its practical reach, and discusses the means of performing a critical extension practice in Law school. Based on Paulo Freire's dialogical method, it is presented ideas of critical legal authors, such as Wolkmer, Luiz Fernando Coelho and Boaventura Sousa Santos, who discuss, each one in their own way, the theme of the need for a living law, which in academia is also possible through extension programs. These authors aim to overcome the traditional role of legal practice, a maintainer of status quo, for social transformation through, in this case, an academic and extensionist practice, centered on the struggle of social movements that connects the university to the social reality of which it is also part of and allows the meeting of the legal thought with its practice, aiming social justice, beyond the limits of the law as a state monopoly, committed to the democratic, of transformation and resistance ideal. The problems faced by this ideal stand as obstacles to their practice and means of overcoming them must be found, an issue that motivates the production of this article.Keywords: critical legal theory, extension, legal advice

1 Graduada em Ciências Sociais (UEL), estudante de Direito (UEL), discente participante do Projeto integrado de Extensão nº 1680 - Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos. E-mail: [email protected]

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1 Introdução

Este artigo se direciona a iniciar o estudo do pensamento crítico do direito e seu alcance prático na extensão universitária, sem pretensões de análises profundas nem de teoria nem de caso concreto. Este pensamento, ainda em construção e presente em diversos países ocidentais, não tem consolidado uma base científi ca una, posto que “não se reduz a uma única e específi ca ‘teoria crítica’ do Direito, pois compreende inúmeras ‘concepções epistemológicas’ e uma gama demasiadamente ampla de ‘correntes metodológicas’, representadas tanto por ‘críticos dialéticos’ quanto por ‘antidogmáticos liberais e sistêmicos’” (WOLKMER, 2009). Este é um fato interessante que levará a primeira parte deste artigo ao questionamento dos motivos que fi zeram surgir essas teorias críticas do direito.

Busca-se inserir tal visão no meio jurídico universitário. Para tanto, recorre-se a Boaventura de Sousa Santos para elucidar as novas funções da universidade e suas práticas, o que incluiu um novo olhar para a prática de extensão, que busca superar o mero academicismo, levando o estudante a conhecer e interagir com a comunidade externa. No direito, tem-se a possibilidade da assessoria jurídica, que não se confunde com a assistência jurídica visto que parte de metodologia distinta. As experiências das SAJUs serviram de motivação para a formação do projeto de extensão Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos na Universidade Estadual de Londrina.

Para este estudo e a visualização de sua prática, em um movimento contra hegemônico que busca empoderar criticamente o indivíduo para atuar enquanto sujeito nas práticas jurídico-sociais, parte-se do método de cultura popular de Paulo Freire de conscientização e politização, que tem a educação como prática para liberdade2. Em seu livro Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire explica as pressuposições de tal método em que subjetividade e objetividade formam uma unidade dialética, ou seja, toma por base que não é possível estabelecer um sectarismo, seja ela do homem de direita ou de esquerda em que cada qual se encerra na sua verdade e considera mentira qualquer posição que escape seu “círculo de segurança”, tornando-se cada qual reacionário a sua maneira na medida em que detêm a verdade, a transmitem para o outro e são

2 Liberdade para Paulo Freire abarca tanto a do oprimido quanto a do opressor, pela conscientização da situação concreta de injustiça e a formação do homem enquanto sujeito transformador dessa realidade. Esta liberdade não se confunde com aquela cuja intenção é a manutenção do status quo. FREiRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 43º ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. Pg. 24-26

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fechados para o diálogo. Freire defende a postura radical que classifi ca como aquela que se insere na realidade para melhor conhecê-la e melhor transformá-la. Segundo o autor, o radical:

Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar. Se a sectarização, como afi rmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é próprio do revolucionário. (FREiRE, 2006, p. 28 e 29)

O processo de libertação parte do oprimido e visa a sua própria e a do opressor. No entanto, pergunta Paulo Freire, como pode este oprimido ser sujeito da sua libertação se ele não tem consciência da sua própria condição de oprimido, se ele “hospeda o opressor em si”?3 A pedagogia do oprimido é um dos instrumentos para que se revele criticamente a consciência de sua condição, para que superem o “medo da liberdade”. Esta pedagogia forja-se pelo método da dialogicidade, que se constrói a partir do uso da palavra refl etida com poder de denúncia, ação e transformação: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-refl exão.” (200., p.90). A palavra é direito de todos os homens e deve servir ao diálogo, entendido como o encontro entre eles e não como instrumento de dominação de um homem pelo outro:

(...) dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. (2006, p. 90 – 91)

Este artigo pretende tornar possível este encontro dialógico em busca de um primeiro entendimento acerca das teorias críticas do direito, que consoante a este método é intrinsecamente ligada à praxis crítica de superação

3 Chegando a conceitos diferentes, mas partindo de um mesmo olhar social, ver: MARX, K. Manuscritos econômico-fi losófi cos e outros textos escolhidos. Coleção Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1978; GONçALVES, L. P; PRAVATO, V. M. A luta pela autonomia anticapitalista: o pensamento ideológico de Hebert Marcuse e seus refl exos na sociedade contemporânea. in: Revista de artes e humanidades, N. 3, NOV-ABR 2009.

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da dominação do homem pelo homem através do movimento dialético entre teoria e prática4.

2 Necessidade das teorias críticas do direito:

O surgimento desta via de pensamento que proporcionou o campo das teorias críticas do direito pauta-se tanto na construção de um novo olhar, uma nova concepção do direito quanto na ramifi cação da teoria crítica das ciências sociais da primeira metade do século XX promovida pela escola de Frankfurt. Ou seja, as teorias críticas do direito decorrem do movimento das teorias críticas sociais, que marcaram a crise do positivismo, corrente da racionalidade instrumental5 do século XiX que pretende garantir a cientifi cidade de áreas humanas do conhecimento (sociologia, psicologia, direito), mas que acaba por formatá-las em a-históricas, atemporais, acríticas e repressoras6. GONçALVES e PRAVATO (2009, p. 8) afi rmam que: “A questão axial para essa corrente de pensadores é a afi rmação de um ideário que se contrapõe radicalmente à ordem vigente e à concepção positivista.”.

Sobre a teoria crítica frankfurtiana, WOLKMER (2009) esclarece que há diversidade de visões entre seus autores (entre eles Horkheimer, Adorno, Marcuse, Habermas) em relação à teoria tradicional a qual criticam, mas chega a uma conclusão geral de que a grande diferença entre a teoria tradicional e a crítica está no fato de que enquanto a primeira vincula a ideia de consciência e de razão ao mundo natural e ao presente em contemplação, para a segunda a ideia de razão está ligada ao processo histórico-social e à transformação social que supera constantemente a realidade. Wolkmer prossegue na afi rmação de que:

Epistemologicamente, a teoria crítica surge como uma “teoria” mais dinâmica e abrangente, superando os limites naturais das teorias tradicionais, pois não se atém apenas a descrever o estabelecido ou a contemplar equidistantemente os fenômenos sociais e reais. Seus pressupostos de racionalidades são

4 Fernando Luiz Coelho (2003) nomina a dialética da participação como método da dimensão crítica.5 Conceito de Weber para explicar a racionalização da vida moderna capitalista em que “Essa racionalização

intelectualista (…) devemos à ciência e à técnica-científi ca” (Weber, 1993, p.30). Weber postula “como racional toda a ação que se baseia no cálculo, na adequação de meios e fi ns, procurando obter com um mínimo de dispêndios um máximo de efeitos desejados, evitando-se ou minimizando-se todos os efeitos colaterais indesejados”. (FREiTAG, 1994, p.90).

6 “Essa racionalização, enquanto princípio organizativo, defi ne-se como racionalidade instrumental que não liberta, mas reprime, aliena e coisifi ca o homem.” (WOLKMER, 2009). COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 105 – 106.

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“críticos”, na medida em que articula dialeticamente, a “teoria” com a “práxis”, o pensamento crítico revolucionário com a ação estratégica. (2009, p.7)

A importância da teoria crítica encontra-se na demonstração que ela faz do modo como os indivíduos estão reifi cados perante os determinismos históricos e naturais e que são em maioria inconscientes de sua alienação ao domínio da hegemonia capitalista, das “falácias ilusórias do mundo ofi cial” que os envolve (2009, p.11). A mudança social e proposta de emancipação do homem da sua condição de alienado, as quais a teoria crítica se desdobra, fundamentam-se no materialismo dialético de Marx e na psicanálise de Freud.

A crise do positivismo que proporcionou novas formas de analisar a sociedade moderna, sendo a teoria crítica a que melhor representa este período, se deu também no âmbito jurídico com a crise do direito7, proporcionada pelo questionamento à dogmática jurídica8 impetrada até então. O positivismo jurídico, segundo COELHO (2003), é ramo do positivismo fi losófi co desenvolvido durante o iluminismo pela burguesia ascendente que consistia nas “normas do Estado voltadas para a manutenção de relações econômicas de tipo capitalista, centradas na propriedade privada e destinada a reproduzir a ordem social que a burguesia consolidara.” (COELHO, 2003, p. 196).

Nos estudos jurídicos, os culturalistas dialéticos Miguel Reale, Carlos Cossio e Goldschmidt, expostos por Luiz Fernando Coelho (2003, p.283-298), foram antecessores do pensamento crítico jurídico, pois foram os primeiros a pensar dialeticamente, em contraste com os paradigmas positivistas tradicionais. No entanto, tal perspectiva não era sufi ciente para a crítica e transformação de seu objeto, visto que se limitava à descrição dos fatores de estudo, à sua teorização, sem ingressar em sua objetividade:

é que as teorias jurídicas elaboradas pelas diversas manifestações do culturalismo dialético envolviam pressupostos idênticos aos inerentes aos paradigmas positivistas de caráter empírico ou analítico; e tais pressupostos, consubstanciados na preocupação descritiva e retrospectiva em relação a seu objeto, representam sério obstáculo à elaboração de uma teoria crítica, por levarem a considerar o objeto como algo pressuposto e acabado que se antepõe ao conhecimento e não que possa ser por ele construído (2009, p. 5-6).

7 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 299 – 308.8 Conforme explicita Coelho (2003, p. 196) a dogmática jurídica é uma das manifestações do positivismo

jurídico.

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Segundo WOLKMER (2009), a partir do fi nal da década de 60, surgem as primeiras teorias jurídicas de cunho crítico na Europa, infl uenciadas pelas teorias marxistas, frankurtianas e foucautianas, que a partir de então se alastram pelos países ocidentais e proporcionam até os dias atuais a variedade de concepções da teoria crítica do direito, conforme já mencionado. Essas novas teorias questionavam o pensamento juspositivista que predominava na academia e nas instituições. No Brasil, essas ideias se fi rmaram a partir de meados dos anos 80.

“Teoria jurídica crítica” é conceituada por Wolkmer da seguinte maneira:

(...) formulação teórico-prática que se revela sob a forma do exercício refl exivo capaz de questionar e de romper com o que está disciplinarmente ordenado e ofi cialmente consagrado (no conhecimento, no discurso e no comportamento) em dada formação social e a possibilidade de conceber e operacionalizar outras formas diferenciadas, não repressivas e emancipadoras, de prática jurídica. (2009, p.19).

COELHO (2003) apresenta um novo conceito de direito contrastante com o tradicional, para que seja fundamento para uma teoria crítica. Sobre o direito positivo ele afi rma que:

A partir da cosmovisão apresentada pelo positivismo – basilarmente um expressão epistemológica e historicista do empirismo-, cristaliza-se a noção comum do direito identifi cado pelo chamado direito positivo, primeiramente repelindo a ideia de uma ordem normativa de caráter metafísico – só o positivo é real – para então excluir como não-jurídicas as regras sociais de conduta que não se revistam dos caracteres formais do direito ofi cialmente considerado. Segundo o ponto de vista positivista, o direito fi ca portanto defi nido como conjunto das normas postas pelo Estado, ou ao menos as que por ele são reconhecidas como válida (...) (p. 197).

O direito crítico não pode partir do direito-em-si, direito alheio à ação social, à “participação consciente na construção e reconstrução do mundo humano”. Teoria e experiência não se destacam entre si:

A esse novo estatuto repugna a separação entre a teoria e a experiência, não mais consideradas como entidades separadas no plano teórico, mas como termos que refl etem uma dialecidade imanente, eis que ambas já não suportam a atribuição de estatuto ontológico estanque, como realidade em si (...) (p.8).

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A ontologia aceita pela teoria crítica é aquela do ser humano individual e social. Apenas esta serve de suporte para a teoria. Desta forma, Coelho defi ne o direito “nos quadros de um realismo voltado para o ser social, de que o fenômeno jurídico é somente um aspecto que não pode desligar-se da totalidade a qual pertence.” (2003, p. 8).

Não são mais sufi cientes as proposições de um direito emanado pelo Estado sem conexão social concreta. Por isso, faz-se imperativo repensar a razão de ser do direito, sua função e seu modo de operar. WOLKMER (2009, p.1-2) explica que:

Os paradigmas que produziram um ethos, marcado pelo idealismo individual, pelo racionalismo liberal e pelo formalismo positivista, bem como os que mantiveram a logicidade do discurso fi losófi co, científi co e jurídico, têm sua racionalidade questionada e substituída por novos modelos de referência.

Dessa forma, vê-se que a necessidade de teorizar criticamente o mundo jurídico se encontra no desgaste da racionalidade da teoria jurídica tradicional e sua limitação em responder às novas demandas sociais, culturais, políticas e jurídicas, causadas por confl itos cada vez mais complexos devidos, entre outras situações, à heterogeneidade social e econômica.

3 O direito na universidade, a extensão e assessoria jurídica

O século XX guardou a reformulação do papel da universidade no âmbito social. Conforme analisa SANTOS, B. de S. (2001), apesar da grande infl uência da vertente economicista e produtivista na universidade9, houve um apelo a sua responsabilidade social, fazendo emergir a extensão universitária como crítica ao isolamento da universidade do restante da sociedade, na tentativa de extrapolar o caráter elitista imperante na universidade.

Boaventura de Souza Santos a respeito das práticas de extensão nas universidades afi rma que:

As chamadas actividades de extensão que a universidade assumiu sobretudo a partir dos anos sessenta constituem a realização frustrada de um objectivo genuíno. Não devem ser, portanto, pura e simplesmente eliminadas. Devem ser transformadas. As actividades de extensão procuraram “extender” a

9 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 200-205.

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universidade sem a transformar; traduziram-se em aplicações técnicas e não em aplicações edifi cantes da ciência; a prestação de serviços à própria universidade. Tais actividades estiveram, no entanto, ao serviço de um objectivo genuíno, o de cumprir a “responsabilidade social da universidade”, um obectivo cuja genuidadade, de resto, reside no reconhecimento da tradicional “irresponsabilidade social” da universidade. (p.229).

FURMANN, i. (2006, p.2), consoante ao pensamento de Boaventura, considera que ainda que se espere que a universidade seja o lugar próprio da visão crítica da sociedade, dando ênfase à faculdade de direito, este papel é sublocado para dar lugar ao caráter tecnicista, em que se produzem operadores da lei esquecendo-se de formar seres humanos capazes de transformar, criar, reinventar soluções para ao meio que vivem, que deixem de lado a visão mercantilista de existência e se comprometam com o ser social que é. isto se refl ete no uso dos projetos de extensão, conforme José Humberto de Goés Junior:

(...) se a extensão universitária, aliada à pesquisa, é um valioso instrumento para despertar nos indivíduos a necessidade do envolvimento social, de participação e transformação, ao se tornar burocratizada e meramente produtivista, ela se perde e passa não só a legitimar, como a construir-se parte do arcabouço que aliena o ser e mantém as estruturas de dominação.

Dessa forma, é possível através da extensão a realização do paradigma democrático da universidade, tendo em vista que idealmente o papel da extensão, que não se desvincula do da pesquisa e ensino, é reconhecido como “indissociável do processo educativo” e são caracterizados como “um conjunto de atividades temporárias de caráter educativo, cultural, artístico e/ou científi co, desenvolvidos obrigatoriamente por docentes e discentes através de ações sistematizadas, voltadas a questões sociais relevantes”. 10 Para tanto, faz-se necessário escolher o método adequado se o que se pretende é uma extensão centrada na luta dos movimentos sociais que vincula a universidade à realidade social da qual também faz parte e permite o encontro do pensamento jurídico com sua atuação com vista à justiça social, para além dos limites do Direito como monopólio estatal, comprometida ao ideal democrático, de transformação e de resistência.

10 Universidade Estadual de Londrina. RESOLUçãO CEPE nº 274/2005.

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Resumidamente, FURMANN (2006) classifi ca dois métodos de extensão jurídica: o baseado no paradigma tradicional e o inovador. Em linhas gerais, o tradicional é o representado pela assistência jurídica enquanto o inovador, que se concilia com as teorias críticas do direito, é aquele que apresenta a assessoria jurídica como um contraponto político à índole “assistencialista”. Ambos os métodos se consolidaram por conta do problema do acesso à justiça. Porém, a assistência jurídica se envereda pela entrega da solução do confl ito a ela apresentado, seja materialmente, seja intelectualmente, e isto causa o fortalecimento da ideia do direito como produto do Estado, desvinculado das forças sociais. Já a assessoria jurídica, se preocupa com as causas que geraram os confl itos e buscam educar o indivíduo para o exercício da democracia tanto na compreensão de seus direitos, quanto na luta por novos direitos em uma participação ativa, pautando-se nos princípios de: negação ao individualismo, negação ao paternalismo e a subordinação, negação ao dogmatismo e o positivismo jurídicos e negação ao absenteísmo.

O método de assessoria presente nos projetos de extensão propostos encontram difi culdades de serem aplicados devido ao fato de precederem a teoria sobre educação e direito, o que a torna um método inovador, em constante busca por teorização. (p. 17) No Brasil, as experiências de assessoria jurídica se iniciaram na década de 50, enquanto que as teorias críticas do direito demoraram até meados dos anos 80 para aqui se estabelecerem. Por isso, ainda que as concepções ideológicas e políticas não possam ser conciliadas entre assistência e assessoria, essa difi culdade de aplicação concreta de um método de assessoria puro, levou alguns programas de extensão universitária a recorrerem projetos de cunho assistencialista. As SAJUs (primeiramente chamadas de Serviços de Assistência Judiciária Universitária e posteriormente Serviço de Assessoria Jurídica Universitária) da UFBA e UFRG foram aos poucos incorporando os princípios norteadores da assessoria. Apenas nos anos 80 e 90, com a chegada da teoria crítica no Brasil e dada a infl uência dos movimentos sociais, foi possível que as assessorias tomassem novas formas metodológicas. Furmann explica as novas formações de SAJUs, que já passam a nascer comprometidas com a metodologia da AJUP (Assessoria Jurídica Popular).

Cabe mencionar, conforme COELHO (2003), que uma forte expressão universitária no Brasil (e depois na iberoamérica) embasada na teoria crítica do direito e com objetivo de pô-la em prática foi o direito alternativo, um direito que se pretende acima da lei. Tal movimento surgiu em 1986 por um grupo de

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magistrados do Rio Grande do Sul que se recusaram em diversas sentenças a aplicar a lei injusta, defendendo a superação do legalismo e da naturalidade da lei na solução de casos concretos, em destaque sua evidente opção a favor dos oprimidos.

Coelho critica o uso da expressão alternativo11 para designar essa proposta jurídica, ainda que compartilhe de seus fundamentos. Ele sugere a simples expressão crítica do direito. Para além do que expõe Coelho, há ainda outra concepção de direito crítico, debutada por Eugen Ehrlich como direito vivo que, também como uma oposição ao direito positivo, vai além do âmbito jurídico na sua análise da realidade e relações sociais. Os códigos são importantes como fontes de conhecimento do que seja direito vivo, mas também a observação da vida, da conduta, dos costumes, do comércio e dos grupos sociais, nos pactos matrimoniais, nos contratos de créditos, nos testamentos, contratos de herança, estatutos de associações, posto que o direito apenas pode ser explicado a partir de um contexto histórico. Direito Vivo é diferenciado do Direito Legislado uma vez que representa o direito do dia a dia, aquele que emerge das ordens internas dos grupamentos sociais, dos usos, costumes, enfi m, dos (des)encontros nas relações intersubjetivas12. O i Congresso Direito Vivo, realizado em Abril de 2012 na UEL, nada mais é que o alargamento desta concepção, buscando afi rmar o ideal de luta contra a lógica do ordenamento jurídico positivista.

4 um breve relato do grupo Lutas – projeto de extensão em assessoria jurídica

De modo que ainda não se produziu bibliografi a ofi cial a respeito deste projeto universitário, tomam-se como referência as atas e o histórico publicados no endereço eletrônico do grupo. Não será detalhada a bibliografi a até então utilizada pelo grupo, as discussões de reuniões e especifi cidades das intervenções já realizadas, mas apenas um relato geral do que tem sido o grupo.

Anteriormente à formatação do projeto de extensão Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos, o grupo Lutas era denominado o Projeto de Pesquisa Atuação do Advogado nos Movimentos Sociais. Passou por processo de maturação nos anos de 2011 e 2012, até quando em novembro deste passou à nova confi guração.

11 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 330 – 331.12 MALiSKA, Marcos Augusto. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich. Curitiba: Juruá, 2001.

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Esta formação primária se deu no interior de um projeto de pesquisa em ensino, o Carreiras Jurídicas in Loco, que tem por objetivo estudar as carreiras jurídicas e os cargos privativos de bacharéis, realizando visitas em órgãos públicos bem como estreitando a relação entre teoria e prática das profi ssões jurídicas. Está cadastrado sob nº 00167 na UEL – Universidade Estadual de Londrina. Dentro deste contexto, o grupo Lutas se inscreveu para pesquisar as relações entre advogado e os movimentos sociais a partir da experiência de extensão jurídica universitária, com o objetivo inicial de sensibilizar os alunos para a demanda dos movimentos sociais e consequente abertura das atividades advocatícias. isto se deu através da apresentação da formação teórica e prática de advogados militantes em direitos humanos em Londrina e sua relação com os movimentos da região. Com esta aproximação do estudante à realidade dos movimentos sociais, baseada também na formação teórica inicial, trabalhados em textos envolvendo temáticas de Educação, Psicologia, Antropologia, Filosofi a, Filosofi a Jurídica, Ciência Política e Direito, uma nova visão de mundo e as possibilidades de contribuição para uma realidade social distinta tornaram-se fundamentais na motivação de grande parte dos integrantes permanecerem no projeto, apesar das difi culdades que foram e são enfrentadas pelo grupo.

A professora responsável pelo recorte do projeto, em vista do perfi l em maioria conservador de ensino jurídico de grande ênfase ao ordenamento jurídico positivo dominante também na Universidade Estadual de Londrina - que se dá tanto na escolha dos autores escolhidos pelos professores quanto na maneira como a disciplina é lecionada - arrojou o curso de direito nesta universidade, uma vez que possibilitou um projeto com outro olhar para as possibilidades do direito para além da manutenção do status quo a qual se rende e da restrita visão do advogado como máquina de fazer dinheiro. isto causou curiosidade no grupo por experiências concretas de formas alternativas de solução de confl ito e rotina de serviços legais populares e demarcou desde início seu compromisso com a intervenção na realidade, não se limitando às refl exões teóricas: refl exão e ação em conjunto.

Esta intervenção é pautada nas leituras de Paulo Freire e nas de teorias críticas do direito, que como já foi explicitado acima, nega a atuação unilateral. Comunidade e universidade aprendem e constroem em conjunto, na dialética de participação. De modo que nunca havia sido criada uma AJUP (Assessoria Jurídica Popular) na universidade em questão, o perfi l do grupo e as experiências de outras universidades brasileiras neste âmbito, assim como as

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ações do Direito Achado na Rua, motivaram o grupo Lutas a caminhar por si só em um projeto de extensão para a promoção da assessoria jurídica.

5 Alguns problemas e possíveis meios de superação

Podem ser observados alguns dos problemas que surgem com a tentativa de ir de encontro com o pensamento dominante em um espaço acadêmico jurídico tanto no interior da universidade quanto externamente. De modo que a prática de extensão crítica envolve um movimento contra hegemônico, questionador de muitas práticas já enraizadas, não é de se estranhar que sua realização encontre diversos obstáculos, cujas difi culdades por muitas vezes minam a vontade do professor, estudante ou advogado militante em lutar por uma sociedade mais justa, frustrando-o e o fazendo render-se ao modus operandi do capital13.

Alguns desses obstáculos são apresentados por SANTOS, B. de S. (2001, p. 202) ao apontar a forte tendência ao produtivismo nas universidades que revela dois riscos: o dos critérios de prioridade para o fi nanciamento dos estudos científi cos e o da perda da autonomia universitária. Dessa forma, os recursos destinados à produção acadêmica além de serem escassos, se destinam a projetos com maior possibilidade de rentabilidade, o que refl ete na ausência de bolsas e na não dedicação exclusiva ao projeto por parte dos estudantes, além da imposição de um limite às ações propostas. “(...) Pesquisa e Extensão, diretamente atingidas, passam a ter um processo seletivo cada vez mais rigoroso no sentido de favorecer diretamente certos tipos de Projetos. Sobretudo aqueles com grande possibilidade de arrecadação e acúmulo de fundos”, complementa José Humberto de Góes Junior, em seu texto sobre a mercantilização da educação. Não sendo o objetivo das Assessorias Jurídicas o de gerar rentabilidades, vê-se que é um tipo de extensão preterida nos moldes da atual conjuntura universitária. Para este problema há que se manter na luta contra a visão de mercado da educação, através da conscientização da comunidade acadêmica (alunos, professores, servidores) de que a universidade pública é de caráter gratuito, autônomo, de qualidade, que não deve fi car a mercê da vontade do capital de ideologia neoliberal, posto que este impede justamente a função da extensão comprometida com a construção do indivíduo como ser transformador dos paradigmas excludentes.

Luis A. Warat sugere, através de WOLKMER (2009), como proposta metodológica com o objetivo de solucionar barreiras à crítica universitária que se proporcione nas escolas de direito:13 GABEL, Peter and Paul Harris. 1982-3. “Building power and breaking images: Critical legal theory and the

practice of law”, p. 369.

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um instrumental pedagógico adequado para que os estudantes possam adquirir um modo diferente de agir, pensar em sentir, a partir de uma problemática discursiva que tente mostrar não apenas a vinculação do Direito com as relações de poder, mas também o papel das escolas de direito como produtoras de ideias e representações, que logo se entrelaçarão na atividade social como um valor a priori, pleno de certezas e dogmatismo. (p.21)

Este instrumento pedagógico adequado pode ser buscado na pedagogia de Paulo Freire, que institui a educação não bancária como ponto de partida para uma educação de liberdade. A educação não bancária é aquela em que não há transmissão de conhecimento do professor para o aluno, da universidade para a comunidade, do advogado para seu cliente em assessoria. Todos são sujeitos do conhecimento. Todos participam, dialogicamente, na construção do saber e na praxis de mudança social. FREiRE, P. (2006, p. 67) esclarece:

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que se julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.

O oposto disso é o que a extensão universitária crítica deve buscar na realização de suas atividades.

Os problemas dos estudantes em participarem mais ativamente na extensão por conta das formalidades a serem cumpridas para a formação em bacharel em direito (estágio curricular para os alunos de 4º e 5º ano, a elaboração e apresentação do trabalho de conclusão de curso, provas e exames) e mesmo os extracurriculares (estágio, participação em outros movimentos estudantis) são por vezes difi cultadores da realização da extensão universitária crítica de modo mais intenso. Ainda é baixo o número de estudantes que se disponibilizam a conhecer e militar nesta área, que buscam desvendar seus olhos perante o sistema que os oprime, e isto acaba por limitar a atuação deste tipo de extensão que por ser uma área pouco explorada necessita de esforços maiores para se estabelecer e dar continuidade. Porém, e aqui é levantada uma hipótese para a superação desta questão, se o estudante estabelecer uma relação íntima com a proposta do direito vivo, a prioridade dele deixará de ser sua mera individualidade, uma vez que se enxergue como representação social de um corpo acadêmico, para além das formalidades do academicismo. A preocupação

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do estudante de direito deve transcender as meras perspectivas de se passar em concurso público, passar na OAB, de status e/ou de altos salários. O direito é um instrumento que pode ser utilizado, segundo as teorias que embasam este artigo, de modo opressor ou libertador. Uma vez desmistifi cado o direito no sistema capitalista como um modo mágico de ganhar dinheiro e se passe a compreender as relações por detrás dessa “mágica”, aquelas que sustentam as desigualdades sociais, ou seja, uma vez no processo de desalienação14, é possível que mais estudantes se engajem de modo mais compromissado na caminhada do direito vivo e passem de opressores (pois fazem parte daquela ideologia) a partícipes da libertação de si mesmos e do outro, conforme o método já apresentado de Paulo Freire.

A não intimidação frente aos obstáculos que surgem ao pensamento e ação críticos, neste caso por meio da extensão universitária, deve permanecer fi rme, ainda que em alguns momentos tais obstáculos pareçam intransponíveis, posto que, conforme conclui COELHO (2003) “é compromisso de todos nós participarmos da construção de uma sociedade livre, de homens verdadeiramente livres, não-alienados. Por utópico que possa parecer, trata-se de um projeto político pelo qual vale a pena lutar” (p. 337).

Referências

COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

FREiRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 43º ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

FREiTAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1994

FURMANN, ivan. Assessoria jurídica universitária popular: da utopia estudantil à ação política. Curitiba: UFPR, 2006. 111p. Monografi a apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito, Curso de Direito, Setor de Ciências Jurídicas na Universidade Federal do Paraná. P. 41-71.

GABEL, Peter and Paul Harris. 1982-3. “Building power and breaking images: Critical legal theory and the practice of law”. New York University Review of Law ans Social Change. 11. Disponível em: http://www.law.nyu.edu/ecm_dlv4/groups/public/@nyu_law_website__journals__review_of_law_and_social_change/documents/documents/ecm_pro_070581.pdf

14 Sobre a alienação ver: Manuscritos Econômico-Filosófi cos de Karl Marx.

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GONçALVES, L. P; PRAVATO, V. M. A luta pela autonomia anticapitalista: o pensamento ideológico de Hebert Marcuse e seus refl exos na sociedade contemporânea. in: Revista de artes e humanidades, N. 3, NOV-ABR 2009. Disponível em: http://www.revistacontemporaneos.com.br/n3/pdf/lutaanticap.pdf

JUNiOR, Humberto de Goés. A mercantilização da educação e a extensão universitária. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/17897646/1731629217/name/Mercantiliza%C3%A7%C3%A3o+da+educa%C3%A7%C3%A3o+-+Betinho+G%C3%B3es.pdf

MALiSKA, Marcos Augusto. Introdução à sociologia do direito de Eugen Ehrlich. Curitiba: Juruá, 2001.

MARX, K. Manuscritos econômico-fi losófi cos e outros textos escolhidos. Coleção Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1978

SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mão de Alice. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2005.

WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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A MERCADORIZAÇÃO DOS DELITOS

Guilherme Cavicchioli Uchimura1

Sumário: 1. introdução. 2. Marxismo e direito. 3. A mercadorização dos delitos. 4. Conclusão.

Resumo: A linha de investigação do trabalho se inicia questionando um fato objetivo presente na linguagem carcerária. O que realmente significa dizer que um indivíduo condenado está pagando sua pena? Para revelar e compreender o fenômeno por trás desse comportamento, a pesquisa aborda a bibliografia marxista, desde a clássica até a mais recente. Além disso, orienta-se pela concepção dialética do direito, encontrando grande referência na obra de Roberto Lyra Filho. O artigo apresenta obras sobre a evolução histórica do controle social, o marginalizado e a universalização da forma mercantil, visando revelar as contradições existentes na relação entre o marginalizado e o sistema penal. Articulando os conceitos operacionais desenvolvidos, procura encontrar as sínteses dialéticas implicadas pelo enredo traçado, sem deixar de lado o comprometimento com uma práxis crítica desde o início. Conclui que, em função da estrutura da ordem social vigente, a mercadorização dos delitos é um fenômeno concreto existente na relação entre o marginalizado e o sistema penal. Ele se revela ao se perceberem as contradições que existem nessa relação, emergindo com um duplo caráter na luta de classes: por um lado contribui para a manutenção dos sistemas econômico e penal, por outro nos leva a questionar a ordem social vigente.Palavras-chave: Marxismo. Criminologia crítica. Mercadorização dos delitos.

Abstract: The investigation research line of this work begins questioning an objective fact present in the prison language. What does it really mean to say that a convicted individual is paying his sanction? To reveal and understand the phenomenon behind this behavior, the research deals with the Marxian literature, since the classic until the latest. Besides, it’s guided by the dialectic conception of the right (law), finding great reference in the Roberto Lyra Filho’s work. The article exhibit some studies about the historic evolution of social control, the marginalized and the universalization of the commodity trading form, in order to reveal the existing contradictions in the relation between the marginalized and the penal system. Articulating the operational concepts developed, it demands to find the dialectical synthesis implicated by the traced plot, without leaving aside the commitment whit a critical praxis since the beginning. The work concludes that, because of the structure of the actual social order, the crime commodification is a concrete phenomenon existent in the relation between the marginalized and the penal system. it reveals itself when the contradictions in this relation are perceived, emerging with a double feature in the class struggle: on one hand contributes to the maintenance of the economic and penal systems, on the other hand takes us to challenge the actual social order Keywords: Marxism. Critical criminology. Crime commodification.

1 Discente do 4º ano do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Participante do Projeto integrado de Extensão nº 1680 - Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos. Contato: [email protected].

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1 Introdução

Estudar o direito a partir do marxismo é uma forma de identifi car e questionar os elementos opressores presentes no direito positivo e nas práticas jurídicas.

Com essa mentalidade em foco, o presente trabalho visa pesquisar a existência de um fenômeno criminológico que, em sua estrutura, mimetiza as formas econômicas do sistema capitalista e, assim, gera contradições dentro do sistema penal.

A existência da mercadorização dos delitos em nossa sociedade, hipótese que será investigada, seria efeito da relação entre o comportamento criminoso do marginalizado social e a resposta que o sistema penal dá a esse comportamento.

Para compreender tal relação de forma crítica, a pesquisa será desenvolvida a partir da articulação de conceitos basilares do marxismo e de perspectivas críticas já consolidadas acerca da realidade do direito penal. Afi nal, ao analisar os fatos, a criminologia crítica não pode deixar de lado as questões estruturais da ordem social, lição bem ensinada por Roberto Lyra Filho2.

Assim, o objetivo geral do trabalho é, por meio da metodologia dialética, compreender o que é a mercadorização dos delitos e quais são seus efeitos sobre a sociedade.

No primeiro capítulo, será apresentada a pesquisa bibliográfi ca marxista relacionada ao tema abordado, permitindo a percepção das contradições existentes na relação entre o marginalizado e o sistema penal. Assim, no segundo capítulo, poderemos nos voltar à interpretação dialética dos fatos estudados, abordando, enfi m, a existência da mercadorização dos delitos e os seus efeitos sociais.

2 Direito e marxismo

Para compreender um fenômeno jurídico-social sob uma perspectiva crítica, parece ser quase inevitável estudar o direito sob a perspectiva dialética. Assim, no presente trabalho, que contará com a formação de intrincada pesquisa bibliográfi ca, precisamos manter as atenções sempre voltadas à 2 “O itinerário da criminologia crítica, atualmente em foco, deverá consumar-se, a meu ver, em criminologia

dialética. Nesta, evitando-se, tanto a alienação, quanto o comprometimento cego numa práxis acrítica, poderá ser visto o que ocorre, não só no palco, mas também nos bastidores da fi losofi a, da ciência e da política criminais” (LyRA FiLHO, 1997, p.24).

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concepção dialética do próprio direito em toda sua linha investigativa para podermos enredar todos os conceitos de forma clara.

Por esse motivo, a pesquisa adota desde o início a expressão conceitual de Roberto Lyra Filho (1982, p.120):

Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que defi nha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas.

Sendo o direito, dialeticamente, o campo de uma constante luta por libertação, este trabalho pretende, ao fi nal, revelar a mercadorização dos delitos, desenhada com os pincéis do controle social, enquanto um efeito da opressão de classes na área criminológica e, por outro lado, também como movimento positivo de desordenamento do controle social, estando em ambas as direções inserido na luta de classes.

Para iniciar a linha investigativa, questionamos algo que está objetivamente presente na realidade cotidiana, especialmente na linguagem carcerária. O que realmente signifi ca dizer que um indivíduo condenado está pagando sua pena?

O fato de condenados ligarem o instituto da pena à noção de preço indica que a lógica mercantil infl uencia as práticas do sistema penal, transformando seu conteúdo em algo distinto do discurso ofi cial (ideológico) das políticas penais.

A mercadorização dos delitos se situa nesse mundo de contradições. Trata-se do delito, instituição instrumental do controle social, metamorfoseando-se em mercadoria e ofertando-se principalmente para os marginalizados sociais, resultando em uma lógica de troca mercantil que banaliza o direito penal.

Para entender esse fenômeno de forma clara, é preciso antes compreender a conjuntura social a partir da articulação de alguns conceitos-chave do marxismo. O objetivo deste primeiro capítulo será explorá-los, direcionando a pesquisa bibliográfi ca ao embasamento teórico necessário à posterior construção do conceito da mercadorização dos delitos e da interpretação de seus efeitos.

Dessa forma, os próximos subcapítulos tratarão: da evolução histórica do controle social, do marginalizado e da universalização da forma mercantil.

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2.1 Evolução Histórica Do Controle Social

O sistema de controle social pode ser defi nido como um conjunto de instrumentos direcionados à manutenção da ordem. Sua instituição central é a prisão, e seus agentes principais são a polícia e a justiça criminal. Sob a aparência ideológica de proteção geral, ressocialização pessoal, prevenção e repressão de crimes, “objetivos” adotados pela política penal ofi cial, o controle social esconde os seus objetivos reais de dominação. Concretamente, a máquina funciona reprimindo a classe dominada e assegurando as condições materiais e político-jurídicas da sociedade capitalista (SANTOS, 2006, p.90).

A realidade das práticas penais, conhecida do nosso cotidiano, que vemos nas ruas e na mídia, descoberta nas delegacias e penitenciárias, e que chega a ser banalizada no senso comum, é o resultado de um complexo processo histórico. O sistema penal vigente, em particular, representa o estágio atual da história da punição.

“Todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondam às suas relações de produção” (RUSCH; KiRCCHEiMER, 1999, p.18). A história da punição também dialoga com a história da luta de classes: conforme se alteram as formas econômicas da sociedade, são adotados novos objetivos e métodos para o exercício de punir.

Seguindo essa lógica, o desenvolvimento do capitalismo, desde sua forma menos desenvolvida, gerou profundas transformações no sistema de controle social, readequando as suas normas e começando a direcioná-las à manutenção da ordem burguesa. Os autores Georg Rusche e Otto Kirchheimer, expoentes da Escola de Frankfurt, desenvolveram na obra Punição e Estrutura Social pesquisa histórica essencial para compreender como isso aconteceu.

A intensifi cação dos confl itos sociais (...) que marcaram a transição ao capitalismo entre os séculos XiV e XV levaram à criação de leis criminais mais duras, dirigidas contra as classes subalternas. O crescimento constante do crime entre os setores do proletariado empobrecido, sobretudo nas grandes cidades, tornou necessário às classes dirigentes buscar novos métodos que fariam a administração da lei penal mais efetiva (...). Como a maioria dos criminosos pertencia às classes subalternas, a palavra “vilão”, originariamente aplicada aos membros de uma classe social específi ca, passou a indicar um julgamento de inferioridade moral. (RUSCH; KiRCCHEiMER, 1999, p.28-29)

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No mesmo sentido:

Com o desenvolvimento dos portos, armazéns, ofi cinas de trabalho e de mercadorias a criminalidade patrimonial torna-se intolerável para a burguesia: a efi cácia do controle requer codifi cação das infrações e certeza da punição. (SANTOS, 2006, p.74)

Paralelamente, à medida que o sistema capitalista foi se consolidando nesse período histórico, modifi cava-se a visão em relação à valorização do trabalho e, consequentemente, em relação ao que os indivíduos desempregados representavam à sociedade.

Na idade Média, o tratamento dos pobres era tarefa da igreja. Pela doutrina vigente à época, a pobreza não era apenas tolerada, mas chegava a ser glorifi cada pela ética medieval. Cuidar dos pobres representava à nobreza a oportunidade de fazer bem e agradar a deus (RUSCHE; KiRCHHEiMER, 1999, p.53).

Já com a ascensão da burguesia nas relações de poder, a ética protestante de Lutero emergiu difundindo uma nova doutrina. A necessidade de trabalhar, antes rejeitada pelos nobres poderosos que viviam do trabalho alheio, tornou-se, pela lógica burguesa, medida de valor moral do indivíduo. A prosperidade passou a representar o resultado do trabalho árduo, atribuído diretamente à vontade de deus.

A condição dos pobres que não trabalhavam, do outro lado da moeda, sofreu rebaixamento moral. Por consequência, surgiram leis de repressão dirigidas a eles que, secundariamente, em benefício da burguesia, auxiliavam a maior exploração de mais-valia: “O novo programa tinha propósitos mais diretamente econômicos. Procurava prevenir que os pobres dispusessem de seu potencial de trabalho, preferindo mendigar a trabalhar por baixos salários” (RUSCHE; KiRCHHEiMER, 1999, p.60).

A partir do fi nal do século dezesseis, em diversos países da Europa, entraram em vigência diversas espécies legislativas estabelecendo punições a mendigos, arruaceiros e vagabundos. A imposição da obrigação de trabalhar constituía, na verdade, a medida adotada pelo Estado diante das necessidades econômicas da nova ordem social.

Até mesmo a utilização do cárcere envolvia a fi nalidade do lucro. Em diversos países europeus, foi adotado um sistema pelo qual, em troca de uma sub-remuneração, os prisioneiros eram obrigados a trabalhar e produzir, gerando riqueza aos “proprietários” das instituições penais.

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Nesse momento, o pobre passou a contar apenas com duas opções: trabalhar, aceitando o salário fosse ele qual fosse, ou aceitar o risco de sofrer a punição legal por sua vadiagem (que, de qualquer forma, levaria ao trabalho forçado na prisão). Ou seja, o controle social passou a direcionar os seus instrumentos coercitivos à obrigatoriedade de trabalhar para evitar a escassez de mão de obra, requisito essencial da manutenção do modo de produção surgido com a ascensão burguesa.

Ao fi nal do século dezoito, em decorrência das revoluções burguesas, com o crescimento da população à procura de emprego nas cidades, essa dinâmica repressiva foi alterada. Trata-se da mudança na estrutura social que, de forma radical, modifi cou o cenário político-penal e o tratamento dado aos pobres pelo controle social. A falta de mão de obra deu lugar ao seu excesso. Assim nasceu, em termos marxistas, o exército industrial de reserva.

Os efeitos foram evidentes. Gradualmente foram desaparecendo das casas de correção. Eram instituições que combinavam assistência aos pobres, ofi cinas de trabalho e punições penais, e vinham sendo utilizadas pelo Estado desde o século quinze como forma de “limpar as cidades de marginalizados” e obter lucro ao mesmo tempo. Com o excesso populacional, esse sistema, que se espalhava pela Europa, foi decaindo até desaparecer, visto que não cumpria mais seus objetivos.

A casa de correção surgiu em uma situação social na qual as condições do mercado de trabalho eram favoráveis para as classes subalternas. Porém, esta situação mudou. A demanda por trabalhadores fora satisfeita e, eventualmente, desenvolveu-se um excedente (...). O que as classes dirigentes estavam procurando por mais de um século era agora um fato consumado – uma superpopulação relativa. Os donos de fábricas não mais necessitavam laçar homens. Pelo contrário, os trabalhadores tinham que sair à procura de emprego. (RUSCHE E KiRCHHEiMER, 1999, p.115)

Adotada a doutrina liberal e fi siocrata, com a imposição do “laisser faire, laisser passer, le monde va de lui-même” a um mercado de trabalho saturado, ocorreu o empobrecimento da classe trabalhadora e, com isso, surgiu o proletariado moderno.

“O agravamento da luta pela sobrevivência colocou o nível de vida da classe trabalhadora num patamar incrivelmente baixo” (RUSCHE E KiRCHHEiMER, 1999, p.126). Esse pauperismo, que fez crescer a população de marginalizados, acabou elevando exponencialmente as taxas de crimes

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patrimoniais no início do século dezenove. Em resposta, a classe dirigente exerceu forte pressão por métodos de punição mais severos e efi cazes, levando a uma vicissitude de reformas no sistema penal.

O trabalho forçado, por exemplo, deixou de fazer sentido diante da existência de um enorme exército de reserva de desempregados. Os objetivos diretos do sistema penal passaram a ser a intimidação e o controle político-social (MELOSSi; PAVARiNi, 2010, p.80), conectando a punição a uma espécie de terrorismo de classes. Os relatos históricos demonstram que as instituições penais que deram continuidade ao trabalho no cárcere o faziam apenas de forma terrorista, visando aumentar a crueldade da pena ao adotar práticas similares ao castigo de Sisifo.

Pelas pesquisas históricas, começa a fi car bastante clara também a adoção pelo sistema penal do princípio da menor elegibilidade da prisão (less eligibility), preconizando que, para não perder o caráter intimidante, o cárcere deveria oferecer uma qualidade de vida inferior ao mínimo do trabalhador livre ocupado, assalariado. Contudo, em determinadas circunstâncias, até mesmo a prisão pode oferecer condições de vida melhores que as dos desempregados. Em razão disso, historicamente, em regimes de desemprego elevado é possível perceber o abrutamento dos métodos de punição, como recurso intimidante ligado à ideia de menor elegibilidade (MELOSSi; PAVARiNi, 2010, p.84).

Esse contexto histórico perdura até hoje. A relação entre cárcere e fábrica, entre o sistema penal e o modo de produção, determina a forma como o controle social trata o delito, a pena e o condenado. O sistema acaba existindo para atender as demandas do sistema capitalista:

O universo institucional [do cárcere] vive, assim, de forma refl exa, os acontecimentos do “mundo da produção”: os mecanismos internos, as práticas penitenciárias, fi cam assim oscilantes entre a prevalência das instâncias negativas (o cárcere “destrutivo”, com fi nalidades terroristas) e das instâncias positivas (o cárcere “produtivo” com fi nalidades essencialmente reeducativas). (...) A penitenciária é, portanto, fábrica de proletários (...). (PAVARiNi, 2010, p.212, grifou-se.)

Como foi visto, desde o seu nascimento, as medidas de controle social da ordem capitalista têm o objetivo de manter o sistema de produção como ele é: apropriado pela classe dominante. Se é necessário ao sistema produtivo que exista uma força de trabalho adequada a ele, a função do sistema penal é contribuir para o seu modelamento ideológico. Nas palavras de Juarez Cirino

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dos Santos (2006, p.64), expoente da corrente denominada Criminologia Radical:

O sistema penal representa uma estratégia de poder, defi nida nas instituições jurídico-políticas do Estado, explicável como política de classes dominantes para produção permanente de uma “ideologia de submissão” em todos os vigiados, corrigidos e utilizados na produção material.

As medidas de controle social, como se observa pela sua linha evolutiva, constituem o exercício de uma “ortopedia moral” aplicada à sociedade, a fi m de conseguir utilizar os seus membros, forjados dóceis e úteis, no aparelho produtivo. Em síntese, o objetivo real do sistema penal, revelado pela relação cárcere-fábrica no contexto da luta de classes, é servir ao modo de produção e à manutenção da ordem social capitalista.

2.2 O Marginalizado

No subcapítulo anterior, foi descrito o processo histórico do nascimento do exército industrial de reserva. A mercadorização dos delitos, tal qual se pretende investigar, é um fenômeno que tem um sujeito determinado. São os marginalizados/desempregados, os pobres, os autênticos membros do exército de reserva, dominados e explorados pelo sistema capitalista, que acabam se tornando mais suscetíveis a aceitar a vida criminosa por encontrar nela o seu grito de desespero e fome.

De forma mais genérica, podemos conceituar o marginalizado como o indivíduo que vive à margem da sociedade. isso signifi ca que ele não se integra ao grupo social hegemônico, consequentemente passando a desrespeitar as suas normas e tornando-se objeto de discriminação. No caso da mercadorização dos delitos, a pesquisa se direciona ao excedente da força de trabalho. Trata-se do grupo de marginalizados composto por indivíduos que não recebem remuneração regularmente, além de não possuírem capital ou bens sufi cientes para manter uma vida digna.

Em O Capital, Marx (1996, p.128) é enfático: “O mais profundo sedimento da superpopulação relativa [ou seja, o grupo de indivíduos desempregados] vegeta no inferno da indigência, do pauperismo”. O exército industrial de reserva, segundo a crítica marxista, é um “excesso populacional” necessário à manutenção do capitalismo, mas cujos “soldados”, à margem do sistema, sofrem os suplícios da privação material.

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é fácil perceber que, para sobreviverem sob uma ordem capitalista, os marginalizados fora do mercado de trabalho precisam usar meios distintos do convencional, que seria o uso de um salário para adquirir mercadorias essenciais, tais quais moradia, alimentação, higiene etc. isso leva uma grande parte deles a tornar-se delinquente, procurando a subsistência imediata (furto, roubo etc.) ou até mesmo uma fonte de renda na vida criminosa (estelionatários, pequenos trafi cantes etc.).

No atual estágio dos métodos de punição, comparando as condições do cárcere com as condições que o desemprego é capaz de gerar, a aplicação do princípio da menor elegibilidade (less eligibility) não é capaz de atingir esses marginalizados, pois optam pelo cárcere em detrimento da observância das normas penais. Conscientemente, fogem da privação material, aceitando os riscos da criminalização e, eventualmente, escondendo-se do pauperismo nas prisões.

(...) dado que o que está em jogo para o desocupado, para o pobre (...), é exatamente a sobrevivência, a possibilidade de matar a fome de si mesmo e da sua família, e não a aceitação ou a recusa de ser contratado em condições de exploração, o efeito intimidador torna-se extremamente difícil de ser alcançado, já que basta que o cárcere assegure o mínimo vital para que a situação de detenção se torne melhor do que viver em liberdade. (MELOSSi, 2010, p.95, grifou-se)

Fazendo uma breve comparação, a motivação da prática de delitos pelo desempregado/marginalizado é a mesma que leva o empregado assalariado a vender sua força de trabalho todos os dias. Da mesma forma que este se vincula ao seu trabalho para suprir suas carências, aquele delinque e aceita os riscos da criminalização para sobreviver (SANTOS, 2006, p.40). O crime, sendo a derradeira maneira de subsistência do marginalizado, representa uma verdadeira tentativa de evasão da fome e da pobreza.

Vale destacar que pesquisas empíricas, como se expõe na obra de Cirino dos Santos (2006, p.12), corroboram essa concepção

Nas sociedades capitalistas, a indicação das estatísticas é no sentido de que a imensa maioria dos crimes é contra o patrimônio, de que mesmo a violência pessoal está ligada à busca de recursos materiais e o próprio crime patrimonial constitui tentativa normal e consciente dos deserdados sociais para suprir carências econômicas. (grifou-se)

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O controle social, por seu lado, apropria-se dessa realidade e utiliza os marginalizados como parte de sua estratégia. A constituição da massa criminalizada serve como exemplo negativo à população não-criminalizada, gerando a dicotomia trabalhador-delinquente e a atribuição de rótulos sociais aos marginalizados. Tal prática integra o terrorismo do poder punitivo, servindo para docilizar a força de trabalho empregada. Assim, “a delinquência é, ao mesmo tempo, efeito do sistema e instrumento de controle social” (SANTOS, 2006, p.83-84).

Assim, não parece ser conveniente à manutenção da ordem capitalista extinguir a massa de criminalizados ou mesmo o exército industrial de reserva. O programa real do sistema não prevê a abolição do cárcere nem o atingimento do pleno emprego, mas investe na reprodução da relação cárcere-fábrica como forma de controle social.

2.3 A Universalização Da Forma Mercantil

“A troca de mercadorias e suas consequências estruturais são capazes de infl uenciar toda a vida exterior e interior da sociedade” (LUKÁCS, 2003, p.193). Assim se pode expressar a denúncia de que, com os avanços do sistema capitalista, a forma mercantil, antes aplicada apenas à troca de objetos, passou a gerar a compra e venda da força de trabalho, e agora afeta também as relações sociais diversas. Na sequência, veremos como a relação entre o marginalizado e o controle social se insere nesse fenômeno.

Uma das lições primeiras da economia marxista é a qualifi cação da mercadoria a partir do seu valor de troca. Um produto do trabalho humano torna-se mercadoria apenas quando apresenta esta relação econômica determinada: o valor de troca (MARX, 1978a, p.136).

Quando os indivíduos não atribuem valor de troca apenas às mercadorias, mas também aplicam sua lógica às relações sociais vividas, deturpam e esvaziam o conteúdo real dessas. Conforme indica Georg Lukács (2003, p.193), a forma mercantil infl uencia toda a vida exterior e interior da sociedade. é isso que se pode chamar de mercadorização, a forma mercantil que abrange não só objetos, mas também as pessoas e as relações sociais.

Em outras palavras, as ações de compra e venda vêm transcendendo a esfera da troca de objetos por dinheiro, na medida em que os indivíduos passaram a utilizar sua lógica para transformar elementos das relações sociais em

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mercadorias. Com isso, consolidou-se a capacidade comportamental de reduzir situações sociais complexas a atos de pagamento e recebimento.

isso leva os indivíduos à sujeição à universalidade da forma mercantil, ou seja, à imposição de que a sociedade aprenda a satisfazer todas as suas necessidades sob a forma de troca de mercadorias (LUKÁCS, 2003, p.207).

Expoentes da Escola de Frankfurt, na Dialética do Esclarecimento, abordam o mesmo assunto.

O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisifi cação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas [...] A partir do momento em que as mercadorias, com o fi m do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. (ADORNO, HORKHEiMER, 1985, p.40, grifou-se)

A observação acima se fundamenta no conceito de fetichismo3. Adorno e Horkheimmer construíram uma releitura da ideia inicial de Marx, indicando que, atualmente, ao mesmo tempo a forma mercantil transforma a mercadoria em “ser animado” e transforma as relações sociais em “coisas inanimadas”.

Pachukanis, teórico soviético, observa ainda que, do ponto de vista histórico, o ato de trocar mercadorias teve importância maior do que outros atos na construção do sujeito na sociedade capitalista.

Ao lado da propriedade mística do valor surge um fenómeno não menos enigmático: o direito. Ao mesmo tempo a relação unitária e total reveste dois aspectos abstratos fundamentais: um aspecto económico e um aspecto jurídico. No desenvolvimento das categorias jurídicas, a capacidade de realizar actos de troca é apenas uma das diversas manifestações concretas da característica geral da capacidade jurídica e da capacidade de agir. Todavia, historicamente, o acto de troca fez justamente amadurecer a ideia de sujeito, como portador de todas as possíveis pretensões jurídicas. (PACHUKANiS, 1977, p.144, grifou-se)

Podemos notar, com um simples olhar ao nosso cotidiano, que a universalização da forma mercantil está intensamente presente na práxis social.

3 Sobre o conceito de fetichismo: “(...) a mesa ainda é madeira, coisa prosaica, material. Mas, logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, fi rma sua posição perante as outras mercadorias e expande as ideias fi xas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria (...). Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias (...).” (MARX, 1996, p.159-161).

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Não é diferente na relação entre o marginalizado e o sistema de controle social. A universalização da forma mercantil é o motor da mercadorização dos delitos, é o gênero do qual ela é espécie, conforme será explanado na sequência do trabalho.

3 A mercadorização dos delitos

3.1 O Fenômeno e Seus Efeitos

Seguindo a lógica traçada, o marginalizado é capaz de aceitar os riscos da criminalização, ou seja, a possibilidade de ser preso, em troca da subsistência que pode encontrar cometendo delitos. A mercadorização dos delitos é o fenômeno que expressa essa ação consciente do marginalizado, realizada sob a forma mercantil.

O conjunto de fatores que torna isso possível se deu com o desenvolvimento do sistema penal da forma como foi mostrada, que levou o direito penal burguês-capitalista, como medida de modelamento da força de trabalho, a racionalizar os métodos de punição.

Assim, foi colocado em prática o princípio da retribuição equivalente, já teorizado por Pachukanis em sua teoria geral do direito. Trata-se da ligação da pena a um quantum de liberdade, uma medida calculada em unidade de tempo, sendo que essa determinação abstrata acaba sendo necessariamente embasada nos mesmos termos que o valor-trabalho (PACHUKANiS, 1977, p.236).

A utilização do tempo para punir parece ser uma genuína prática burguesa. A partir da Revolução Francesa, foi descoberta e aplicada em outras formas de controle social, tal qual a escola, o que pode ser compreendido de forma mais aprofundada na conhecida obra de Foucaut sobre o assunto4. A ideia geral é que a experiência do tempo escandido, aplicada como método de disciplina, visa adestrar os indivíduos e estruturá-los enquanto seres dóceis e úteis para o processo de exploração (MELOSSi, 2010, p.91).

Na prática penal, o fato de a punição ser quantifi cada em medida de tempo cria a impressão de que a condenação pode ser algo similar a um investimento, permitindo o cometimento do delito relacionado. Assim como o trabalhador assalariado emprega horas de seu tempo livre como força produtiva para receber um pagamento equivalente, o marginalizado é capaz de cometer

4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 33. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

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um delito para depois pagar o equivalente em horas de restrição à liberdade. A liberdade, de uma forma ou outra, é calculada em horas, dias e meses; é quantifi cada a fi m de tornar-se moeda de troca no mundo das mercadorias, seja no mercado de trabalho, seja no mercado dos delitos.

Essa lógica inversa, realizada conscientemente pelo marginalizado, dá a forma mercantil aos delitos por ele cometidos. Com isso, parece que o sistema penal adquire a capacidade de tornar-se fetiche, mimetizando o mundo das mercadorias. Pois, se é possível falar em pagar a pena, isso implica a existência da venda de um delito.

A origem da transição é identifi cada na forma mercantil de mediação das relações sociais: o fato do crime se confi gura como modalidade de circulação social e a instituição jurídica da pena como “equivalente geral” de troca do crime – assim como o dinheiro, equivalente geral de troca de mercadorias –, proporcionável em tempo com a mesma justeza da divisibilidade da moeda.(SANTOS, 2006, p.88)

Estando fora do mercado de trabalho, recrutado pelo exército industrial de reserva, o marginalizado não consegue vender sua força de trabalho, conforme dita a dança capitalista de reprodução da vida. A privação de liberdade é como um preço a ser pago para poder sobreviver ao desemprego. Assim, na consciência do marginalizado, delinquir não representa uma atitude ilegítima, já que seria uma alternativa concreta para sua sobrevivência, uma verdadeira alternativa ao inferno da indigência.

Colocando em termos da economia marxista, o que o marginalizado faz é atribuir valor de troca ao delito, acabando por concebê-lo como um produto circulável. é como se o Código Penal fosse um catálogo de crimes/produtos, cada qual com a pena/preço correspondente, e fossem quotas da liberdade do próprio criminoso a sua moeda, o seu dinheiro.

Na prática, trata-se ainda de uma questão de probabilidade de o marginalizado ser condenado após cometer um crime, uma chance que ele conscientemente aceita em troca da subsistência encontrada nos frutos do delito. Assim, ao internalizar as medidas de controle e a norma penal em geral, o marginalizado interpreta o sistema à sua própria maneira: ainda que seja condenado, ele compreende sua situação como se fosse uma loteria às avessas, em que teve o azar de ser pego.

Como foi explanado anteriormente, o sistema penal não intimida o marginalizado para que ele não cometa crimes. Pelo contrário, oferece-lhe

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os delitos, com segurança aritmética, em troca da sua restrição da liberdade, sujeita ainda ao fator de risco da efi cácia ou não do sistema.

Por tudo que foi dito, chega a ser vulgar reproduzir a ideologia dominante e dizer que a pena possui as funções de proteção social, prevenção geral e ressocialização do condenado. O objetivo real da pena é ser um instrumento de controle social voltado ao modelamento da força de trabalho produtiva, encarcerando parte do excesso populacional, criando a dicotomia maniqueísta trabalhador-delinquente, dirigindo o poder punitivo aos marginalizados5 e amedrontando a classe trabalhadora ativa.

3.2 A percepção dialética do fenômeno

O capítulo anterior abordou a forma como a mercadorização dos delitos existe e o que ela representa na relação entre o marginalizado e o sistema penal. Contudo, para além da área criminológica, esse fenômeno pode ser interpretado a partir da concepção dialética do direito e das relações entre desordem e processo.

A consciência jurídica do marginalizado, como foi visto, modifi ca o caráter proibitivo da norma penal e, ao revés, enxerga nela uma permissão, uma oferta de troca de delito por liberdade, de produto por preço. Essa distorção do direito posto representa uma forma de pluralismo jurídico, em que se polarizam o direito dos opressores e o direito dos oprimidos.

Nas sociedades classistas, (...) não há uma só consciência jurídica e, poristo (sic), “a regra de direito da classe dominante, fundada na consciência jurídica dessa classe, não é igual à que se funda na consciência jurídica da classe subordinada; sendo justa para a primeira, é injusta para a segunda. Cada classe social, esteja ou não no poder, tem sua própria concepção do direito, concepção que não pode ser, e geralmente não é, a que se extrai do direito positivo em vigor” (LyRA FiLHO, 1997, p.98)

A mercadorização dos delitos corresponde a uma forma de desordem6 protagonizada pelos marginalizados sociais. Em um sistema que prevê a necessidade econômica do exército industrial de reserva para assegurar o 5 Sobre a seletividade do poder punitivo: “[atualmente ] o sistema de controle social atua com todo rigor na

repressão da força de trabalho excedente marginalizada do mercado (o discurso de proteção ao cidadão ‘honesto’, ou de combate ao ‘crime nas ruas’, legitima a coação do Estado)” (SANTOS, 2006, p.41).

6 Segundo Lyra Filho (1986, p.264): “Temos, a qualquer momento, não o sistema de órgão e funções operando conforme um padrão fi xo (...), mas o efetivo enlace de elementos movediços, que simultaneamente desenham a ordem transeunte e realizam a des-ordem criativa de novos arranjos”.

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funcionamento da força de trabalho, é impossível imaginar que os “soldados” desse exército, famintos e miserabilizados, aceitem tal condição passivamente, como seria o ideal para a classe burguesa.

A desobediência às normas penais, ou pelo menos a adulteração de sua proposta punitiva, tornando-se uma prática normal e recorrente, representa um comportamento anômico, o que indica um avanço dos espoliados na luta de classes conforme defende Lyra Filho (1997, p.122-123):

a anomia, longe de representar, sociològicamente, a simples rejeição nihilista (sic) de toda e qualquer norma, denuncia a polarização de novos projetos de positivação normativa, conquanto ainda hesitantes ou somente implícitos. êsses projetos inspiram-se na práxis social (...). A anomia representa o prenúncio de mudança iminente, na estrutura institucionalizada.

Sob a perspectiva da criminologia dialética, a mercadorização dos delitos não pode ser vista de forma banal ou até mesmo com repúdio aos marginalizados delinquentes. Trata-se de fenômeno inserido em um sistema de dominação e repressão classista e na própria evolução histórica da luta de classes, cuja percepção acrítica seria a própria negação da possibilidade de se caminhar para um direito mais justo.

O desordenamento do controle social pelos marginalizados, ao contrário da percepção reproduzida no senso comum, constitui em última instância ato político contrário ao sistema capitalista, o que nos leva a questionar a ordem social vigente.

Contudo, há também o lado inverso dos efeitos da mercadorização dos delitos nas relações de força do sistema político-econômico. Seguindo a teoria marxista, a presença da forma mercantil no fenômeno revela nele o fetichismo das mercadorias e a alienação de seus protagonistas.

Em outras palavras, a imposição da forma da troca de mercadorias na consciência do marginalizado não deixa de ser efeito da dominação de classes. Os marginalizados projetam o fetiche das mercadorias dentro da prática de desobediência, alienando-se de seus propósitos socioestruturais; a falta de consciência da própria ação política que é conduzida, concretamente, acaba contribuindo para a manutenção das injustiças presentes nos sistemas econômico e penal.

Avaliando esses dois aspectos, podemos concluir que a mercadorização dos delitos apresenta duplo caráter na luta de classe, o de dominação e o de

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libertação, situando-se no processo dialético de ordem e desordem, no mundo das contradições do mundo jurídico e no enredamento de novas conquistas. é parte do processo dentro do processo histórico que, pela concepção dialética do direito, corresponde a ele próprio.

4 Conclusão

Reveladas as contradições na relação entre o marginalizado e o sistema penal, com base na pesquisa bibliográfi ca apresentada, foi possível utilizar o método dialético para compreender o fenômeno da mercadorização dos delitos em nossa ordem social.

No início, foi questionado o fato de, objetivamente, na linguagem carcerária ser utilizado o termo pagar a pena. A articulação dos conceitos operacionais demonstrou a existência de uma complexa estrutura social existente por trás disso: o estudo do controle social, do marginalizado e da universalização da forma mercantil, conjuntamente, ofereceram dados para a linha investigativa avançar e reconhecer a mercadorização dos delitos como fenômeno inserido na dialética do direito e nos processos sociais de ordem e desordem.

A compreensão da existência da mercadorização dos delitos e, portanto, também a própria proposta deste trabalho não deixam de ter caráter político-social. A ordem social está continuamente dividida entre os objetivos ideológicos e os objetivos reais do controle social. A revelação ou ocultação do que não é dito constitui um verdadeiro jogo de forças, inserido na luta de classes, entre a manutenção da ordem socioeconômica e a conquista de direitos pelos espoliados.

Nesse viés, o presente trabalho é encerrado expressando a esperança do seu autor de que, ao investigar a mercadorização dos delitos, conseguiu avançar na conscientização social da existência de um sistema penal estruturado por contradições, alienação, desobediência e pela própria luta de classes, com a esperança de ter colocado em xeque a banalização disso tudo isso e, enfi m, com a esperança de que possa despertar em seus leitores o anseio de, cada vez mais, eliminar as injustiças estruturais presentes na ordem social.

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O DIREITO E A CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO: uMA LEITuRA DA “LegisLação sanguinária contra os

expropriados” DE KARL MARx1*

Izabella Affonso Costa2

Sumário: 1. introdução. 2. A Transição Do Feudalismo Ao Capitalismo. 3. O Capitalismo Nascente e suas Legislações Sanguinárias. 4. Liberdade, igualdade e Exploração. 5. Conclusão.

Resumo: A pesquisa a ser desenvolvida visa analisar a relação do Direito com o surgimento e a consolidação do capitalismo. Embasada por um texto de Karl Marx acerca das primeiras leis criadas para garantir a exploração dos trabalhadores no período da transição do feudalismo para o capitalismo, busca-se encontrar a relação entre o Direito e o desenvolvimento de nosso atual modo de produção. Através do método histórico será resgatado o período do surgimento do capitalismo e, então, com aplicação do método dialético, discutir-se-á sua relação com o Direito. Os pensamentos desenvolvidos por Karl Marx e a teoria marxista do Direito de Pasukanis serão utilizadas como fundamentação teórica para o desenvolvimento da pesquisa. Através de toda essa análise, pretende-se constatar a marca profunda deixada pelo uso da força e da crueldade no surgimento do capitalismo. Também poderá ser observada a importância da igualdade e liberdade jurídicas, revelando-se como traços inerentes ao capitalismo, essenciais ao seu desenvolvimento, e ocultando o seu núcleo essencial – a exploração. O desenvolvimento da pesquisa leva a crer que essa exploração, característica marcante do capitalismo, depende intrinsecamente do Direito para que possa se perpetuar, sendo por ele legitimada.Palavras-chaves: Capitalismo. Exploração. Karl Marx.

Abstract: The research analyses the interaction of Law with the appearance and consolidation of capitalism. Based on a text from Karl Marx, which deals with the first laws to guarantee the exploration of workers in the transition of feudalism to capitalism, the research tries to find the relation between Law and developing of our currently production method. Through the historic method, analyses the appearance of capitalism and discusses your relation with Law. The thought developed by Karl Marx and the Marxist theory by Pasukanis are used as base to the developing of the research. After this analysis, intends to prove the signature of force and cruelty in the beginning of capitalism. Also, proves the importance of equality and freedom as juridical concepts and characteristics to the capitalism, essentials to the developing of it and, at the same time, to occult its objective: the exploration. The conclusion shows that the exploration depends on the Law to be legitimated and perpetuated. Keywords: Capitalism. Exploration. Karl Marx.

1 O presente artigo é resultado de uma pesquisa originalmente elaborada, sob orientação do prof. Ms. Celso Naoto Kashiura Jr., no âmbito da disciplina “História do Direito” (curso de Direito das Faculdades integradas Padre Albino – 1° semestre de 2009), e adaptada para apresentação no Congresso Direito Vivo da Universidade Estadual de Londrina – abril de 2013.

2 Graduanda do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. [email protected]

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1 Introdução

Esse estudo, que parte do texto “Legislação contra os expropriados desde o fi nal do século XV. Leis para o rebaixamento dos salários” 3 de Karl Marx, visa analisar o nascimento e a consolidação do capitalismo e a relação desse processo com o direito.

Será traçado um desenvolvimento histórico focado no período de transição do feudalismo para o capitalismo e nas mudanças gerais que essa transição acarretou nas esferas econômica, social, política e jurídica.

Com enfoque mais específi co nas mudanças ocorridas na esfera jurídica, será desenvolvida a análise do papel do direito para garantir a inserção dos trabalhadores e a adaptação a esse novo regime econômico. Todo o período da chamada “acumulação primitiva de capital”, que veio a gerar o desenvolvimento do capitalismo, foi perpassado pelas infl uências do direito. Ditando salários máximos, imputando pena aos “vagabundos”, favorecendo a burguesia em face dos trabalhadores, o Direito garantiu que os capitalistas explorassem para acumular capital e então fazer o capitalismo desenvolver-se. Por trás disso, revela-se, além dos interesses burgueses, a infl uência direta do poder dos monarcas absolutos que controlavam toda a produção legislativa na época do nascimento do capitalismo.

Por fi m, notaremos algumas características necessárias para o surgimento do capitalismo e para a sua conservação até a atualidade. Partindo do núcleo comum e visível de todas as relações de troca mercantil, composto por sujeitos de direito com igualdade e liberdade jurídicas, busca-se encontrar elementos ocultos nessa relação, que possam revelar traços cruéis do nosso modo de produção.

2 A transição do feudalismo ao capitalismo

inicialmente, é importante desenvolver uma localização histórica do período que o texto de Karl Marx aborda - o fi m da idade Média e início da idade Moderna. Um período marcado por acentuadas transformações econômicas, sociais, políticas e jurídicas em função do surgimento do capitalismo.

3 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol. ii. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 275-280.

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O feudalismo, sistema econômico da Europa Medieval, caracterizava-se pela economia de subsistência, na qual praticamente inexistiam as trocas e o capital. Entretanto, esse quadro vem a se alterar totalmente. Já a partir do século Xii, a Europa passa por um desenvolvimento do comércio e um simultâneo crescimento das cidades. Como consequência, surge uma classe de comerciantes que vêm a ser conhecidos como burgueses. E o aumento da demanda por diversos produtos fez com que o até então comerciante passasse também a produzir.

Assim, paralelamente a esse crescimento do comércio, observa-se uma mudança na forma de produção. Durante toda a idade Média, pela baixa procura pelos produtos, em razão da economia da época estar embasada mais nas trocas mercantis, desenvolve-se somente uma produção dita artesanal. Nessa forma de produção, um mestre-artesão era dono dos meios de produção, produzia e vendia diretamente ao consumidor em uma relação estritamente pessoal. Mas a produção artesanal não era mais compatível com o crescimento do comércio.

Surge então o modo de produção manufatureiro, no qual uma série de trabalhadores, em regime de cooperação, trabalha em troca de um salário e sem possuir os meios de produção. Modifi ca-se, portanto, a relação entre produtor e consumidor, porque passa a existir uma terceira pessoa a quem pertencem os meios de produção e que fi ca com aquilo que foi produzido e o vende.

Acompanhando essas mudanças a partir da “ruína” do feudalismo, a população começa a deixar seus velhos feudos em busca de oportunidades para iniciar uma nova vida nas cidades em progresso. A expansão do comércio e da produção manufatureira signifi cava trabalho para um maior número de pessoas e estas afl uíam para a cidade para obtê-lo. Entretanto, o contingente foi maior do que a demanda. As cidades não conseguiram suportar e receber tantos novos habitantes. O comércio e a indústria nascentes não conseguiam absorver, na mesma velocidade com que era liberada, tão grande quantidade de mão-de-obra.

Assim, a transição do feudalismo ao capitalismo foi marcada por importantes mudanças em várias ordens. Mudanças econômicas, em primeiro lugar: o fi m de um modelo de subsistência e o início de um modelo baseado nas trocas mercantis. Produz-se não mais somente para o consumo imediato, mas para comercializar os produtos e obter lucro com isso.

Mudanças sociais, especialmente pelo aparecimento de uma nova classe social, a burguesia, que “surge como produto dessas revoluções no modo de

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produção e troca” (NAVES, 2008a, p.67) e inicia a corrosão da imobilidade social da idade Média. E uma mudança política fundamental: a centralização dos poderes na monarquia absoluta. Findam-se as disputas pelo poder e o rei torna-se soberano, detém todo o poder dentro de seu Estado.

Essa mudança na esfera política foi claramente uma grande conquista burguesa, porque trouxe as vantagens oferecidas por um governo central forte (tributos unifi cados, condições de expansão externa, domínio sobre os trabalhadores etc.), e por um campo mais amplo de atividades econômicas. O rei sustentava-se com o dinheiro recolhido da burguesia e, em troca disso, através de seu poder soberano, garantia os interesses burgueses em seu governo.

Segundo MASCARO (2009, p.25):

O Estado moderno surge como necessidade burguesa à medida que necessita – dentre outras funções como unifi car territórios feudais a fi m de criar mercado consumidor – instituir uma nova forma de relação social, em cuja aparência esteja inscrita a igualdade. O direito moderno aqui se esboça, ao fazer com que, na instância da transação, na circulação mercantil, a forma de relação seja de iguais perante a lei.

Contudo, o que importa analisar mais de perto, por ora, é uma outra mudança fundamental: a jurídica. Toda a atmosfera do feudalismo era a da opressão, da relação de submissão dos servos aos senhores, ao passo que a atmosfera da atividade comercial exigia liberdade. A ordem e a justiça feudais se achavam fi xadas pelos costumes e eram difíceis de alterar, mas na cidade a vida era diferente, necessitava de novos padrões e, conforme eles foram sendo criados, através do desenvolvimento do direito, contribuíram para a ruína do feudalismo.

Era necessário que o Direito, até então em grande parte baseado nos costumes, positivasse as garantias para o desenvolvimento econômico da burguesia nascente através das leis e atuasse em todo o período chamado de acumulação primitiva de capital, garantindo a consolidação do novo modo de produção.

3 Capitalismo nascente e suas leis sanguinárias

O texto de Karl Marx ora analisado descreve exatamente as transformações ocorridas nesse período histórico, apontando um paralelo entre a nova situação econômica e as leis da época. Conforme já ressaltado, com o fi m do

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feudalismo uma massa de pessoas foi liberada dos antigos feudos e migrou, seja voluntariamente ou não, para as cidades que se mostravam como grande atrativo, tendo em vista o desenvolvimento econômico que observavam.

No entanto, como o comércio e a manufatura ainda eram nascentes, não conseguiram absorver todos aqueles que migraram para as cidades. Sem qualquer outra opção, eles transformam-se em uma “massa de esmoleiros, assaltantes e vagabundos”. Contra essa massa de trabalhadores livres e sem opções de trabalho surge a “legislação sanguinária contra a vagabundagem”.

Sobre esse período, KASHiURA JUNiOR (2009, p.54/55) afi rma:

Os trabalhadores, é evidente, tiveram que ser “educados” para a nova realidade – em último caso, “educados” à força. Camponeses foram expulsos de suas terras, levados a migrar em massa para os centros urbanos, forçados a se adaptarem à “disciplina da fábrica.” As resistências foram dobradas pela violência, não raro por violência aberta, e através da violência se consolidou uma nova formação social. O trauma dessa violência foi precisamente o marco inicial da história do sujeito de direito como tal.

Sem dúvida, essa foi a forma mais absurda de garantir e forçar que os trabalhadores, que agora estavam “livres”, se adaptassem à nova forma de produção, agora dentro das fábricas. O direito se desenvolvia nesse período para garantir a adoção do capitalismo como sistema de produção. é aquilo que NAVES (2005, p.104) elucida: “O capital escraviza para que a pessoa possa ser livre para o capital”.

Torna-se necessário adaptar esses trabalhadores para transformarem-se em mão de obra barata para as fábricas, uma vez que a baixa remuneração viria a garantir o lucro – a mais-valia – para os capitalistas, garantindo então, a expansão do novo modo de produção.

Nesse momento é que o governo absoluto mostra a que veio: para manter a exploração, manter os trabalhadores submetidos à burguesia e garantir a expansão do capitalismo. é o próprio governo que age para defender os interesses da burguesia. Sobre esse período do início da consolidação do capitalismo, BOiSSONNADE (1927, apud HUBERMAN, 1986, p.69) observa:

Um pacto tácito foi concluído entre ela [a realeza] e a burguesia industrial de empreendedores e empregadores. Colocavam a serviço do Estado monárquico sua infl uência política e social, os recursos de sua inteligência e riqueza. Em troca, o Estado multiplicava seus privilégios econômicos e sociais. Subordinava a ela os trabalhadores comuns, mantidos nessa posição e obrigados a uma obediência rigorosa.

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Para garantir os interesses do capitalismo e da burguesia, os monarcas utilizam-se do direito. O fi nal do feudalismo acarretou a perda de importância dos costumes como fonte do direito em face da ascensão das leis. Esse “novo direito” encontra na centralização política as condições para se estabelecer: é elaborado pelo rei e suas principais características são a forma escrita (em comparação com os costumes predominantemente orais) e o caráter legalista e voluntarista (o que signifi ca que as leis eram nada mais do que a vontade e o arbítrio do próprio monarca). Este instrumento é colocado à disposição da consolidação do capitalismo para garantir a exploração dos trabalhadores.

Em certo ponto de seu texto, MARX (1984, p. 277) refere-se a uma “natural” dependência do capital afi rmando que:

[...] na evolução produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes [...].

Pode-se observar que os trabalhadores são obrigados pelo próprio sistema de produção, as ditas “leis naturais”, a venderem sua força de trabalho para sobreviver. Eles não detêm os meios de produção e o único “bem” que possuem é sua força de trabalho que, pela estrutura do capitalismo, adquire valor e passa a ser remunerada em forma de “salários”.

No entanto, o excesso de mão de obra impõe aos trabalhadores aceitar as condições mais ínfi mas de trabalho e possibilita aos burgueses pagar o mínimo possível. Contudo, a força econômica da burguesia também exigia do Estado a criação de mecanismos de controle “legal” para que se aprofundasse a exploração do trabalhador. é assim que surgem as leis de regulamentação dos salários.

Na inglaterra, por exemplo, a Lei dos Trabalhadores de 1349, transcrita por BLAND; BROWN; TAWNEy (1914, apud HUBERMAN, 1986, p. 61) determinava que:

[...] nenhum homem pagará ou prometerá pagar maiores salários que os habituais... nem de qualquer forma receberá ou pedirá o mesmo, sob pena de ter de pagar o dobro do que pede... Seleiros, poleiros, curtidores, sapateiros, alfaiates, ferreiros, carpinteiros, pedreiros, tecelões e outros artífi ces e trabalhadores não receberão por seu trabalho e ofício mais do que costuma lhes ser pago.

Aqui, claramente transparece a ação do Estado em ditar os padrões para a economia em benefício à burguesia, uma vez que se fala de salário máximo,

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cujo pagamento acima desse valor acarretaria multa, mas nada é mencionado sobre um salário mínimo, de modo que a burguesia, através disso, alcançou extremos auges de exploração e conseguiu desenvolver a “acumulação primitiva de capital” que deu forças ao desenvolvimento futuro da maquinofatura e também do próprio capitalismo.

Através dessa fi xação de salários máximos, quando ocorria uma alta dos salários (como citado no texto de Marx, no século XV) isso não signifi cava benefício algum ao trabalhador, mas apenas que os preços das mercadorias haviam subido mais do que o salário e que cada vez mais o poder de compra dos trabalhadores diminuía, garantindo no máximo a mísera sobrevivência.

A acumulação primitiva de capital, a base histórica para a organização do capitalismo, usou das leis para perpetuar a exploração do trabalhador. O capitalismo se fi rmou pela força, obrigando pessoas a trabalharem nas piores condições, torturando, oprimindo, matando – e atualmente, ainda que indiretamente, continua fazendo isso.

PASUKANiS (1989, p.150/151) também descreve o mesmo momento histórico do texto de Karl Marx, reforçando a idéia de uma punição àqueles que não se adaptaram ao novo modo de produção:

A desagregação da economia natural e a intensifi cação consecutiva da exploração dos camponeses, o desenvolvimento do comércio e a organização do Estado baseado sobre a divisão em classes colocavam a jurisdição penal à frente de todas as outras tarefas. [...] a justiça penal já não é mais, para os detentores do poder, um simples meio de enriquecimento, mas um meio de repressão impiedosa e brutal, sobretudo dos camponeses que fugissem da intolerável exploração dos senhores e de seu Estado, assim como dos vagabundos pauperizados, dos mendigos, etc. [...] As penas transformam-se em meios de extermínio físico e de terrorismo. é a época da tortura, das penas corporais, das execuções capitais mais bárbaras.

Alguns exemplos dessas punições arbitrárias e cruéis são encontrados nas penas impostas pelas legislações citadas no texto de MARX (1984, p. 275):

[...] açoitamentos e encarceramento para vagabundos válidos. [...] aquele que for apanhado pela segunda vez por vagabundagem deverá ser novamente açoitado e ter a metade da orelha cortada; na terceira reincidência, porém, o atingido, como criminoso grave e inimigo da comunidade, deverá ser executado (Lei do 27º ano de reinado de Henrique Viii, monarca absoluto da inglaterra).

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Nota-se que alguém que não encontrasse emprego ou que não quisesse submeter-se ao regime de trabalho era considerado vagabundo e criminoso e poderia ser executado como “inimigo da comunidade”.

Na verdade, a “comunidade” em questão era o sistema capitalista, os que não queriam trabalhar estavam se voltando contra o princípio capitalista de que todos têm de vender sua força de trabalho e, por isso, eram considerados criminosos. O direito, expresso como lei, garante a exploração de uma classe sobre outra. A legalidade surge como garantia do domínio de alguns sobre outros.

Deve-se notar ainda que o texto observa que, em 1813, a legislação sobre a regulação de salários foi abolida, ou seja, depois do período das grandes revoluções, quando a burguesia já detinha o poder político e o poder econômico (a burguesia já estava sufi cientemente rica pela exploração dos trabalhadores). Foram, portanto, 464 anos, de 1349 a 1813, em que as leis que corroboravam a exploração, os salários ínfi mos, as penas desumanas e a miséria do trabalhador, vigoraram como garantia do Estado.

Entretanto, elas não saíram de ação por completo, apenas passaram do domínio imediato do Estado, na fi gura dos monarcas, para a esfera privada, com os donos de fábricas. A partir desse período, a legislação privada adotada nas fábricas incumbiu-se de prosseguir com a exploração. MARX identifi ca, por volta de 1868, quando publica “O Capital”, a existência de determinações do Estatuto dos trabalhadores que, por exemplo, permitem, em caso de quebra de contrato, apenas ações cíveis contra o patrão e ações criminais contra o trabalhador.

Mas o fi m dos castigos físicos e das torturas não signifi cou o fi m da exploração dos trabalhadores. Essa exploração continua vigente até hoje através de mecanismos ideológicos de exploração, mecanismos esses que se encontram muitas vezes ocultos pela ideia de suposta “equivalência jurídica”. é o que NAVES (2008b, p. 57/58) destaca:

O processo do valor de troca, assim, demanda para que se efetive um circuito de trocas mercantis, um equivalente geral, um padrão que permita “medir” o quantum de trabalho abstrato que está contido na mercadoria. Portanto, o direito está indissociavelmente ligado à existência de uma sociedade que exige a mediação de um equivalente geral para que os diversos trabalhos privados independentes se tornem trabalho social. é a idéia de equivalência decorrente do processo de trocas mercantis que funda a idéia de equivalência jurídica.

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Ao fi nal do texto, MARX (1984, p. 280) cita um decreto da burguesia francesa de 14 de junho de 1791 que declara “toda coalizão de trabalhadores como um atentado à liberdade e à declaração dos direitos humanos” e que, segundo ele “sobreviveu a revoluções e mudanças dinásticas”.

A burguesia, mesmo atingindo o poder, como ocorreu na França, ainda utiliza-se de meios do Estado (Estado-polícia) para frear os trabalhadores. Proíbem-se os trabalhadores de se associarem, para que, através dessa união, não se revoltem contra o sistema e contra a própria burguesia. Fica clara, assim, a incoerência de afi rmar que o direito de associação dos trabalhadores é um atentado aos direitos humanos, quando, na verdade, atentado é a situação de exploração e de miséria à qual eles estão submetidos desde o século XV.

4 Igualdade, liberdade e exploração

A análise do texto de Karl Marx revela que o direito burguês, supostamente o direito da liberdade e da igualdade entre os homens, teve papel determinante no modo brutal pelo qual foi consolidada a exploração do trabalhador no sistema capitalista. Sobre o tema, KASHiURA JUNiOR (2009, p.54) afi rma:

O capitalismo não nasceu como um conjunto de relações simplesmente ‘superior’ que, pela própria superioridade auto-evidente, suplantou o feudalismo. [...] A consolidação do reino da liberdade e da igualdade entre os homens não dispensou o derramamento de sangue.

Como foi observado, o desenvolvimento das relações de troca contribuiu para o fi m do feudalismo. Essas relações apresentam, independentemente do objeto ou mercadoria a serem trocados, fundamentos que se opõem àqueles que caracterizam as relações feudais. Como principais podemos citar a igualdade jurídica entre aqueles que trocam, a liberdade e a vontade para trocarem.

Para que possa haver uma troca mercantil, é necessário que haja liberdade (a troca deve ser uma manifestação de livre vontade de quem a faz) e igualdade (a troca precisa ser feita por pessoas juridicamente iguais, pessoas que se equivalem do mesmo modo como as mercadorias que serão trocadas), formando com isso sujeitos de direito, que fazem um contrato entre si, adquirindo direitos e obrigações. Destacando então a importância da igualdade jurídica no seio da sociedade capitalista, KASHiURA JUNiOR (2009, p.208) pontua que:

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Por isso a igualdade jurídica fi gura no interior da sociedade burguesa, perante o pensamento jurídico tradicional e perante o senso comum, ou como um postulado auto-evidente, ou, na “melhor” das hipóteses, como um atributo intrínseco à condição humana [...].

interpreta-se, tradicionalmente, que toda relação jurídica, especialmente as relações contratuais, são feitas sob uma condição plena de igualdade e liberdade. Todavia, é essencialmente mais do que isso.

Assim como se faz com as mercadorias, o trabalhador vende ao capitalista seu único bem, esse sim, um elemento intrínseco à personalidade humana, o trabalho. O trabalhador não é livre, porque não lhe resta alternativa que não vender sua força de trabalho; ele não conseguirá sobreviver na própria sociedade capitalista sem vendê-la e conseguir com isso seu salário (“sua dependência do capital que se origina das próprias condições de produção, e por elas é garantida e perpetuada” - MARX, 1984, p.277).

Essa liberdade universal é essencialmente formal, porque surge do contraste com a falta de opção que um escravo ou servo tinha ao se submeter ao seu senhor. A possibilidade de “escolher” a quem se submeter já é então considerada uma liberdade. Com isso, “a exploração deixa de ser um mando direto de um senhor sobre um escravo e passa a ser a igual vontade jurídica de patrão e proletário”. (MASCARO, 2009, p. 21).

No mais, o trabalhador também não tem igualdade com o capitalista. Enquanto este detém os meios de produção, explora o trabalhador e extrai a mais-valia, aquele só possui sua força de trabalho e a vende, recebendo em troca um salário que não corresponde ao valor real daquilo que ele produziu. Essa igualdade é ainda mais formal que a liberdade, porque se perpetua em uma sociedade extremamente desigual. é incoerente e angustiante observarmos as substanciais diferenças entre as condições de um patrão e um empregado e sabermos que, no plano jurídico, eles são perfeitamente iguais. isso nos leva a uma conclusão de que, na verdade, é o próprio direito que camufl a e, direta ou indiretamente, fundamenta as desigualdades do capitalismo e as “legaliza”.

O que propicia esta igualdade e esta liberdade jurídicas, garantindo as trocas e o desenvolvimento do capitalismo, é a universalização dos sujeitos de direito. Com o advento de uma sociedade de trocas, não poderia haver diferenças que impedissem o “natural” avanço dessas trocas. O senhor e o escravo não podiam trocar porque estavam dentro de uma relação de subordinação, o escravo era sempre “menos” que seu senhor. Na sociedade

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capitalista, entretanto, todos devem possuir os direitos e deveres iguais para que possam trocar entre si. Essa necessidade é que faz nascer o sujeito de direito, e, mais, faz com que todos se transformem em tal. Nesse sentido, afi rma KASHiURA JUNiOR (2009, p.177):

[...] o sujeito de direito não elimina, mas se sobrepõe a toda e qualquer desigualdade real que os homens possam manifestar em suas vidas concretas e as assimila sob a forma de uma igualdade jurídica. Não espanta, portanto, que o mesmo modo de produção capitalista que depende da igualdade jurídica dos indivíduos seja capaz de conviver sem maiores sobressaltos com quase todos os tipos de discriminação.

Ora, uma relação de trocas, realizada aparentemente entre sujeitos de direito, livres e iguais entre si, oculta em si mesma uma peculiaridade. Todos os elementos apresentados que fi zeram o capitalismo se desenvolver desde o processo de acumulação primitiva até a contemporaneidade, levam-nos a vislumbrar a exploração também como parte desse sistema econômico. Prosseguem as relações entre os sujeitos de direito, iguais e livres, garantidas pelo direito. O direito é, ainda hoje, o mediador dessas relações – portanto o mediador da exploração.

Muito conveniente à perpetuação do modo de produção capitalista manter a aparência de liberdade e igualdade, sendo que, na realidade, essas características somente ocultam a exploração. Exploração essa observada principalmente na posição materialmente desigual ocupada entre o trabalhador, que possui apenas sua força de trabalho, tendo que vendê-la, e o detentor dos meios de produção, que “paga” pela força de trabalho e obtém o produto para a venda, através da qual poderá extrair a mais-valia.

PASUKANiS (1989, p. 82) afi rma:

Por outro lado, o capitalismo transforma precisamente a propriedade fundiária feudal em propriedade fundiária moderna, liberando-a inteiramente das relações de domínio e servidão. O escravo é totalmente subordinado ao seu senhor e é precisamente por esta razão que esta relação de exploração não necessita de nenhuma elaboração jurídica particular. O trabalhador assalariado, ao contrário, surge no mercado como livre vendedor de sua força de trabalho e é por isso que a relação e exploração capitalista se mediatiza sob a forma jurídica de contrato.

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A questão principal posta à vista é que, ainda em uma análise superfi cial, já se pode detectar a injustiça dessa relação de troca da mão de obra e obtenção de mais-valia, marcada essencialmente pela exploração do trabalhador. O Direito, que surge nessa relação como “mediador”, é usado como forma de manutenção e legitimação de tal injustiça.

NAVES (2008b, p. 50), analisando a infl uência do Direito nas relações jurídicas capitalistas, afi rma que:

[...] podemos estabelecer uma relação entre as formas do direito e o modo de produção capitalista, precisamente porque só na sociedade burguesa a forma jurídica alcança o seu mais alto grau de abstração, o que permite que ela torne-se realmente verdadeira apenas no interior desse modo de produção, da mesma maneira que o trabalho só se torna trabalho realmente abstrato na sociedade capitalista.

Essa constatação de que somente através do Direito é que as formas capitalistas desenvolvem-se, pode nos levar a embasar a conclusão que Pasukanis traz em sua “Teoria Geral do Direito e o Marxismo” de que, tendo o Direito se desenvolvido por necessidade da sociedade capitalista, a superação do modo de produção capitalista poderá signifi car o consequente fi m do Direito.

5 Conclusão

Após a análise de todo o contexto histórico e textual depreende-se que a exploração da classe trabalhadora data de tempos longínquos e ainda hoje é perpetuada. O início dessa exploração coincide com o fi m do feudalismo e a “esperança” de que aquele momento signifi caria o fi m da dominação direta, do escravagismo ou da servidão feudal. De fato, a dominação direta não ocorreu mais, mas transformou-se em dominação indireta, ideológica, em mecanismos cruéis de dominação e dependência que permanecem até os dias atuais como garantias do sistema capitalista.

Justamente nesse período de transição do feudalismo para o capitalismo é que o Direito surge como consolidador do novo modo de produção, garantindo a acumulação primitiva de capital através de uma “legislação sanguinária” e perpetrando a exploração sobre os trabalhadores.

Atualmente, vivemos dentro de um plano jurídico formal que nega a realidade - onde todos são iguais, não há quaisquer diferenças que limitem ou favoreçam alguém. Os sujeitos de direito, iguais e livres, podem trocar entre si,

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uma vez que o mundo das trocas é o mundo da perfeita harmonia. Esse plano formal nos parece “imaginário” ou ao menos fantasioso, uma vez que não há, de fato, como simplesmente negar algo que sobressai de tal modo no mundo capitalista como as desigualdades sociais. é como cegar-se diante daquilo que é mais que óbvio.

Aquele que detém os meios de produção explora o trabalhador, que somente detém sua força de trabalho e tem que vendê-la. Não há liberdade, porque não resta outra alternativa ao trabalhador senão vender sua força de trabalho e também não há igualdade, uma vez que o trabalhador é sempre explorado para garantir a mais-valia, o lucro daquele que detém os meios de produção. O que se destaca nessa relação é a exploração, que, conforme demonstrado, continua sendo até hoje realizada através do Direito, ainda que atualmente de forma indireta, não mais através dos castigos físicos e sim através da dominação ideológica.

Seguindo a idéia de Pasukanis de que o direito surge com o advento da sociedade capitalista, é notável que a forma jurídica veio a difundir e “legalizar” a exploração e que somente o fi m do capitalismo, e conseqüentemente fi m do direito, poderia signifi car o fi m da exploração.

Referências

GiLiSSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3ª ed. Trad. A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

HUBERMAN, Leo. história da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

KASHiURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002.

MARX, KARL. O capital: crítica da economia política. Vol. i. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

NAVES, Márcio Bilharinho. Marx: ciência e revolução. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008a.

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______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008b.

______. “As fi guras do direito em Marx.” in: Margem esquerda, nº 5, 2005, pp. 97-104.

PASUKANiS, Evgeny B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.

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O DIREITO ALTERNATIVO E A juSTIÇA SOCIAL NA AMéRICA LATINA

Luiz Ernesto Guimarães1

Caroliny Freitas Máximo Guimarães2

Sumário: 1. introdução 2. Formulação do Direito Alternativo 3. Teoria e Direito Alternativo 4 - Considerações Finais.

Resumo: O contexto sócio-político da América Latina é marcado por ambigüidades e mazelas que fazem do continente uma região singular e com demandas próprias. Frente ao processo de colonização, sob uma perspectiva imperialista europeia, houve o desenvolvimento e enriquecimento de pequenas elites em detrimento do empobrecimento e espólio da grande maioria. Assim, a reflexão sobre a liberdade, sob diversas áreas do conhecimento como a Filosofia, Pedagogia, Teologia, Sociologia e Antropologia, começou a ganhar visibilidade, unindo teoria e prática, na transformação social. Essa discussão também ganhou espaço no Direito, com a formulação do Direito Alternativo – uma das expressões dessa luta emancipatória no continente. Assim, o presente artigo busca compreender como o Direito pode contribuir na emancipação das camadas populares no contexto latino-americano, a partir dos estudos de teóricos como Antonio Carlos Wolkmer e Amilton Bueno de Carvalho.Palavras-chave: Teoria crítica do Direito; Direito Alternativo; Justiça social.

Abstract: The socio-political context of Latin America is marked by ambiguity and blemishes that make the continent a region with unique and demands its own. Facing the colonization process under a European imperialist perspective, there was the development and enrichment of small elites at the expense of the impoverishment of the vast majority and booty. Thus, the reflection on freedom in various areas of knowledge such as Philosophy, Education, Theology, Sociology and Anthropology, began to gain visibility, linking theory and practice in social transformation. This discussion also gained ground in the law, with the formulation of the Alternative Law - one of the expressions of this emancipatory struggle on the continent. Thus, this article seeks to understand how the law can contribute to the emancipation of the working classes in the Latin American context, from studies theorists like Antonio Carlos Wolkmer and Amilton Bueno de Carvalho.Key-words: Critical theory of law; Alternative Law; social justice.

1 Introdução

Pode-se perceber na história do continente latino-americano, o desenvolvimento de uma sociedade dividida em classes. A colonização europeia

1 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e professor de Sociologia na rede estadual de educação. Colaborador do projeto de extensão Lutas: Formação e assessoria em direitos humanos da UEL. Pesquisador vinculado ao LERR (Laboratório de Estudos sobre as Religiões e as Religiosidades) da UEL. E-mail: [email protected].

2 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Colaborada do projeto de extensão Lutas: Formação e assessoria em direitos humanos da UEL. E-mail: [email protected]

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mostrou aqui as mesmas consequências desastrosas que o imperialismo norte-americano causou em diversos países nas últimas décadas, como: Vietnã, iraque, Afeganistão etc. As desigualdades sociais, tão agudas na América Latina, só podem ser compreendidas a partir da compreensão da interferência nociva do colonizador europeu, subjugando o homem que aqui já habitava, trazendo, com isso, prejuízo irreparável3, que até os dias atuais permanecem sem soluções claras.

Sob o contexto de uma prática colonizadora que tornou oprimida e desigual a maior parte da população brasileira e latino-americana desde o século XVi, desenvolveu-se no século XX formulações, nas variadas áreas do conhecimento científi co, que buscaram colocar em pauta a refl exão sobre a liberdade – tema pertinente ao contexto social, político e econômico do continente. Em algumas disciplinas o termo “libertação” tornou-se expressão quase obrigatória para identifi car o viés de investigação de tais disciplinas, identifi cando-as a um tema comum, embora pertencessem à áreas específi cas do conhecimento. Assim, aos poucos foram sendo formuladas a Filosofi a da Libertação, Teologia da Libertação, Pedagogia da Libertação, Antropologia e Sociologia da Libertação etc. Embora cada disciplina tenha sua especifi cidade e metodologia próprias, o que se evidencia nelas é o contexto latino-americano como ponto de partida das investigações que, sob esse viés, foram estabelecidos diversos caminhos teórico-metodológicos, de acordo com a área de conhecimento.

As ciências jurídicas, como àquelas já citadas, também receberam infl uência dessa perspectiva libertária latino-americana e propôs, a seu modo, contribuir com a possibilidade do rompimento de paradigmas formulados por setores dominantes e as desigualdades sociais historicamente constituídas no continente. O Direito, sob essa perspectiva crítica de libertação, por se confi gurar no campo das ciências aplicadas, exerceu papel importante no apoio aos movimentos populares de trabalhadores rurais, operários, estudantes, mulheres etc., na busca por direitos fundamentais à sobrevivência humana que, grosso modo, não eram contemplados pela prática jurídica normativa, herdada do positivismo científi co - associado a grupos hegemônicos e detentores do capital econômico, político, cultural e até mesmo científi co, fazendo o Direito advogar em prol da manutenção do status quo.

3 Como exemplo, a dizimação inteira de povos, que já não mais vivem na América Latina, como os Astecas e os incas, vencidos pelos espanhóis no século XVi.

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Assim, o presente artigo busca refl etir sobre o Direito Alternativo, movimento formulado especialmente no Brasil, nas últimas décadas do século XX, como uma construção teórica no campo das ciências jurídicas, rompendo com o paradigma positivista, possibilitando a refl exão e práticas jurídicas a partir das demandas das camadas populares que, além de serem expropriadas dos bens econômicos e culturais, também eram alijadas da busca por justiça social que, em grande parte, é intermediado pelo trâmite judicial.

2 Formulação do Direito Alternativo

A análise histórica do movimento do direito alternativo no Brasil recai na atuação dos magistrados gaúchos. inconformados com um Direito sinônimo de Lei e que em muitas situações era insufi ciente e suplantava verdadeiros direitos, esses juízes começam a pensar, aplicar e lutar por um Direito mais humano, mais democrático e justo.

Amilton Bueno de Carvalho, magistrado gaúcho, e um dos expoentes do início da formulação do movimento alternativo no Brasil, narra (Direito Alternativo – Teoria e Prática) que em sua atividade jurídica, no início da década de 80, notava, por vezes, que a “legalidade” aplicada em determinado caso não atingia um ideal de justiça, gerando em si um confl ito: ser juiz é aplicar a lei pura e simplesmente? (CARVALHO, 2004). A repetição de situações que geravam esse sentimento chegou ao limite quando se viu frente a uma lide em que os valores “legalidade” e “justiça” eram agressivamente antagônicos.

A situação ocorreu em 1983 na cidade de Guaporé quando o município concedeu aumento salarial aos funcionários da ativa, em dois momentos, e em percentual demasiadamente superior aos concedidos aos aposentados. Esses, então, foram a juízo buscando equiparação com os funcionários em atividade. Amilton destaca que na pequena cidade de Guaporé os aposentados eram pessoas que ele conhecia por encontrar no dia-a-dia e que muitos funcionários nem ousavam se aposentar com medo do futuro (CARVALHO, 2004).

A resposta judicante, segundo o próprio magistrado só poderia ser: fi car com a legalidade destruindo a vida econômica dos aposentados ou negar a lei em favor desses. A instrução que recebera era: obedecer à lei. E então? Amilton conta que levou mais de seis meses com o processo concluso para decidir e sua decisão foi a favor dos aposentados (CARVALHO, 2004).

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O desfecho dessa situação, porém, não teve o mesmo fi m. Houve recurso e a sentença foi reformada pelo Tribunal4.

importante salientar o momento histórico em que se inseria o país nessa época. Em 1964 se instalou no país um regime ditatorial militar. Nesse sentido destaca Lédio Rosa de Andrade:

Os aparelhos de violência do Estado funcionaram incessantemente, matando, torturando e perseguindo pessoas, em especial intelectuais, militantes políticos, operários e estudantes contrários à ideologia imposta. Também os aparelhos ideológicos foram ativados com abundância, disseminando no seio da sociedade civil a doutrina da segurança nacional, base teórica legitimadora do regime militar. As faculdades de Direito, nesse período, foram mais positivistas do que nunca, cingindo-se a transmitir os conteúdos das normas postas, sem qualquer discussão ou, até mesmo, sem maiores problematizações hermenêuticas. O bom aluno era quem decorava as leis. Fora dessa prática, caía-se em subversão. Nesse contexto histórico, ressalvados os magistrados anteriores ao golpe, foram recrutados os julgadores das décadas seguintes, até o fi m do regime de força, no ano de 1985 (ANDRADE, 1996, p. 107,108).

Mesmo nesse período, muitos juristas mostravam-se inconformados com tantas injustiças sociais e os magistrados, em particular, com a forma com que deviam julgar.

Findo o período ditatorial, teve início os debates do processo constituinte. A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul promovia encontros e debates para colher sugestões à elaboração da Constituição. Foi nesses encontros que muitos magistrados começaram a manifestar seus descontentamentos, frustações e angústias, e, quando pensaram estarem solitários, viram que existiam muitos outros em situação semelhante (ANDRADE, 1996).

Estabelecia-se na Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul um grupo de magistrados com um pensar comprometido para um atuar democratizante e com a intenção de formar uma base material para estabelecer bases teóricas para viabilizar essa democratização (CARVALHO, 2004). “Criou-se, então, um grupo de estudos, com eleição de uma espécie de coordenador. Ficou resolvido que uma vez por mês haveria encontro para debate de tema ou texto previamente defi nido”. (CARVALHO, 2004, p. 32).

Amilton Bueno de Carvalho conta que em outubro de 1990 recebeu o telefonema de um importante jornalista do “Jornal da Tarde” dizendo que 4 Apelação Cível nº 584028930 – 4ª Câmara Cível.

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havia tomado conhecimento da existência dos então conhecidos por juízes “orgânicos” e que pretendia conhecer o trabalho realizado para posterior publicação de matéria no jornal (CARVALHO, 2004).

O jornalista foi passar três dias em Porto Alegre juntamente com Amilton, coletando todos os elementos necessários à reportagem. Passados alguns dias foi publicado o artigo intitulado “Juízes gaúchos colocam direito acima da lei”, com o propósito de desmoralizar os juízes que buscavam discutir a Ciência Jurídica a partir de uma visão crítica, bem como debater novas formas de aplicação do Direito posto (ANDRADE, 1996). Publicou-se “frases desconectadas do todo, pinçadas em momentos isolados, foram publicadas com destaque: “Juízes negam a lei”; “Juízes querem fazer justiça” (CARVALHO, 2004, p. 43).

Mas, ao contrário do pretendido pelo referido jornal:

o artigo não desmoralizou, senão divulgou a existência de magistrados não ortodoxos, possuidores de uma percepção crítica do Direito, e o mais importante, de juízes de Direito inconformados com a prestação jurisdicional, com a prática tradicional do Poder Judiciário, em especial com o encaminhamento dos problemas sociais, com um mínimo de organização. Muitos outros juízes também descontentes com a “ordem estabelecida” começaram a comunicar-se com os magistrados gaúchos e também escreveram muitos artigos em outros jornais, em defesa dos mesmos (ANDRADE, 1996, p. 106).

A partir de então, esses juízes passaram a ser denominados de “juízes alternativos”.

Nesse ínterim, a nomenclatura Direito Alternativo acabou se dando por acaso, sem uma discussão teórica para defi nir o nome daquele novo Direito que emergia. Para Amilton Bueno de Carvalho, a expressão correta é realmente Direito Alternativo por “representar opção contra o usual predominante (...). é alternativa contra a opressão que o jurídico tenta (e tem conseguido) impor” (CARVALHO, apud, XAViER, 2006, p. 71). Lédio Rosa de Andrade prefere falar em “Movimento Social Alternativo” por acreditar que o movimento deve “transcender a prática jurídica” de forma a envolver toda a sociedade (ANDRADE, 1996).

Além de Amilton Bueno de Carvalho outro jurista que merece destaque é o professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Edmundo Lima de Arruda Jr. Organizador de diversos Encontros internacionais de Direito

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Alternativo, também organizou a coleção “Lições de Direito alternativo” e de outros livros sobre o tema. Faz uma distinção entre “os juristas do status quo”, aos quais chama de leguleiros, intelectuais orgânicos do bloco histórico dominante, ventríloquos do poder instituído, politicamente reacionários e juridicamente positivistas, e os juristas alternativos, comprometidos com a mudança de bloco histórico (ANDRADE, 1996).

Outros juristas críticos, cada qual em seu campo de atuação, já falavam de Direito Alternativo no ano de 1987, como: Antônio Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Clèmerson Merlin Clève, entre outros. Em congressos, os juristas apresentavam posições ideológicas comuns e compartilhavam o desejo de aproximar a prática jurídica dos movimentos sociais. Assim, o movimento transcendia a magistratura e se estendia a todas as demais esferas da atividade jurídica (ANDRADE, 1996).

Relacionado diretamente com o pensamento alternativo do Direito, alguns textos de grande relevância do professor Antonio Carlos Wolkmer são: “Contribuição para o Projeto da Juridicidade Alternativa”, “Direito Comunitário Alternativo: Elementos para um ordenamento teórico-prático”, “Teoria Crítica e Pluralismo Jurídico”, “Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do Direito”.

Andrade resume a visão do professor Wolkmer do movimento em questão:

Crê estar o modelo jurídico tradicional submetido a uma crise de hegemonia. Na formação do Direito Estatal contemporâneo há, segundo seu pensamento, duas matrizes político-ideológicas, quais sejam: o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. O positivismo é concebido como a expressão maior do racionalismo moderno, como a ciência das sociedades industriais avançadas, como, até mesmo, uma forma de vida. No âmbito do jurídico, o positivismo está caracterizado pelo legalismo dogmático e o cientifi cismo técnico-jurídico. O Estado “liberal-burguês-capitalista” produz um modelo de cultura (padrões de conduta da vida humana) delineada pelos paradigmas do idealismo individualista, racionalismo liberal e formalismo positivista. Para Wolkmer, esses paradigmas não mais atendem às necessidades da sociedade civil, principalmente nos países capitalistas periféricos, onde as demandas sociais, criadas pelos movimentos organizados, abalam-nos e questionam-nos, exigindo a criação de novos referenciais de conduta.

Bruno de Aquino Parreira Xavier resume de forma bastante clara o Direito Alternativo que

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pode ser entendido, como um movimento que, conectado com a realidade excludente da maioria da população, procura desmistifi car os dogmas de uma visão tradicional do direito, pretendendo transformar a sociedade e tornar efetiva a democracia material e a justiça social, consagradas constitucionalmente. Na construção deste ideal utópico procura historicamente – daí seu caráter dinâmico e evolutivo – novos paradigmas para o saber jurídico e o suporte teórico capaz de embasar uma ação prática que já ocorre no âmbito jurisdicional – declaradamente ou não – por parte de alguns juízes, e de advogados militantes nos movimentos populares (XAViER, 2006, p. 83)

Assim, o Direito Alternativo é aquele que busca meios de realizar justiça a partir da análise transcendente de uma realidade injusta, vendo o Direito não apenas como a aplicação das leis - sistema esse efi caz para perpetuar a opressão e a estrutura da dominação de classes, mas como um ramo que transcende as leis buscando formas de realizar justiça social.

Miguel Pressburger ao tecer comentários sobre o “direito insurgente”, ressalta:

O que se exige hoje, mais do que nunca, da ciência do direito, não é apenas o levantamento rigoroso da realidade jurídica, com explicação racional dos fundamentos lógicos do sistema: o que se impõe é também e sobretudo a invenção de um direito mais efi ciente e justo. Ou dito de outra forma, um direito que tenha em suas raízes a insurgência contra a perspectiva idealista e fragmentada do saber atualmente dominante; um saber que nunca considerou “os operários na fábrica, nunca foi ao campo saber como o lavrador dá duro de sol a sol, nunca subiu ao morro e conheceu a situação dos favelados” (Pressburger, 1995, s/p).

Novos paradigmas são necessários para a busca de uma cultura jurídica engajada e comprometida com a realidade social, a qual busca transformar e não perpetuar as práticas tradicionais que mantém uma ordem injusta e nada democrática. O Direito Alternativo surgiu, então, com uma manifesta indignação à perpetuação desse sistema, pretendendo tornar efetivas a justiça social e a democracia.

3 Teoria e Direito Alternativo

A formulação e desenvolvimento do conhecimento científi co envolvem pressupostos teórico-metodológicos, permeados por epistemologias que

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variam historicamente e de acordo com tendências e escolhas pessoais de cada pesquisador, a partir de sua área de atuação. Embora a discussão sobre alguns problemas que a subjetividade possa trazer nas pesquisas científi cas seja levantada, especialmente na vertente positivista, tal fato torna-se necessário na relação pesquisador/objeto. Afi nal, a escolha do objeto por parte do pesquisador já envolve pressupostos da subjetividade. No entanto, levando em consideração o envolvimento do cientista – já no início do processo de investigação – a presença da subjetividade em uma pesquisa pode ocorrer sem afetar os resultados encontrados, tornando assim, o trabalho objetivo e digno de aceitação na comunidade científi ca.

A subjetividade, nessa concepção, envolve não apenas a escolha do objeto pesquisado, mas também a perspectiva teórica estabelecida no processo de investigação. Diante da diversidade epistemológica na formulação do conhecimento científi co, surge a possibilidade de desenvolver hegemonias no campo científi co, por meio da utilização de teorias específi cas que são, dessa forma, perpetuadas aos novos pesquisadores sem a refl exão crítica e adequação necessária ao objeto de estudo, de acordo com interesses científi cos de grupos hegemônicos. Pierre Bourdieu afi rma existir uma hierarquia social dos campos científi cos, que resulta na hierarquia dos objetos e dos métodos. Para o pensador francês, os dominantes “são aqueles que conseguem impor uma defi nição da ciência segundo a qual a realização mais perfeita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem” (ORTiZ, 1983, p. 129).

Fica evidente a inefi ciência da chamada “neutralidade científi ca”, inclusive sob a perspectiva positivista, em que se defende o total “afastamento” do pesquisador em relação ao objeto. Como haver neutralidade se, no campo científi co, há interesses econômicos, políticos e até mesmo sociais, por trás da relação pesquisador/objeto? Nessa perspectiva, se a ciência não é neutra, surge o questionamento: a quem o conhecimento científi co serve? Especifi cando um pouco mais: a quem o Direito serve?

Por ser a sociedade dinâmica, a ciência não pode deixar de assumir essa mesma característica, acompanhando a realidade do homem e seu contexto social. Assim, a formulação teórica no conhecimento científi co não pode se eximir desse processo (re)criativo, o que pode trazer novos encaminhamentos e intervenções, fazendo com que haja a formulação de uma práxis articulada com o saber científi co.

Como em outras áreas da ciência, o Direito também possui especifi cidades em seu constructo, fundamentando-se em teorias que lhe fornecem identidade no campo científi co. No Brasil e na América Latina, o paradigma positivista

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de ciência preponderou em várias áreas do conhecimento, inclusive nas ciências jurídicas, a exemplo do que ocorreu no continente europeu, trazendo questionamentos quanto a sua neutralidade científi ca, visto existir forte infl uência ideológica, levando a um sério comprometimento com a burguesia insurgente no continente, desde a colonização europeia. Assim, “a ciência do direito não consegue superar sua própria contradição, pois, enquanto ‘ciência’ dogmática, torna-se também ideologia de ocultação e da manipulação” (WOLKMER, s/a, p. 176, 177).

De acordo com Antonio Carlos Wolkmer, esse caráter ideológico encontrado no Direito está comprometido “com uma concepção ilusória de mundo, que emerge das relações concretas e antagônicas do social” (WOLKMER, s/a, p. 177). Ou seja, o Direito e suas formulações teóricas, legitimam a sociedade formada em classes no continente latino-americano, bem como suas ambiguidades historicamente existentes. Pode-se comparar a contribuição da igreja Católica durante a idade Média para a manutenção do Estado, retirando da população possibilidades de exercer posicionamentos críticos ao poder estatal. No entanto, ao contrário da igreja que, com o processo de secularização iniciado com o iluminismo perdeu força, o Direito continua cada vez mais assumindo uma posição que garante ao Estado a sua principal característica de ser um instrumento ideológico fundamental no domínio e manutenção de uma parcela minoritária.

Nessa perspectiva, Wolkmer compreende o Direito como a “projeção lingüístico-normativa que instrumentaliza os princípios ideológicos e os esquemas mentais de estruturas e facções detentoras hegemônicas de poder, de coerção e de disciplinação” (WOLKMER, s/a, p. 177). Compreende-se, portanto, que a ciência jurídica na América Latina possui, historicamente, comprometimento com as classes dirigentes em detrimento das camadas populares que, materialmente, são as que mais necessitam de intervenção jurídica para lhes garantir os direitos básicos.

A relação de proximidade entre o Direito e alguns setores sociais tem sido tão nociva que Wolkmer assegura que

a ideologia do positivismo jurídico que se manifesta através de um rigoroso formalismo normativista torna-se o autêntico produto de uma sociedade burguesa solidamente edifi cada. Esse formalismo esconde as origens sociais e econômicas da estrutura de poder, harmonizando as relações entre capital e trabalho, e eternizando através das regras de controle o status quo dominante (WOLKMER, s/a, p. 177).

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Diante da inadequação da atual ciência jurídica positivista em responder às demandas da sociedade latino-americana na modernidade, Wolkmer (s/a) propõe uma hermenêutica crítico-emancipatória. Assim, os pressupostos epistemológicos das teorias tradicionais do direito devem ser submetidos a uma crítica desmistifi cadora, visando a superação do modelo jurídico hegemônico sob uma perspectiva de emancipação social.

Alinhado a essas considerações propostas por Antonio Carlos Wolkmer, houve na América Latina o desenvolvimento de um movimento nas ciências jurídicas denominado Direito Alternativo5, na “luta pela concretização dos direitos humanos e como forma de resistência aos regimes ditatoriais” (CARVALHO, 2004, p. 51).

No entanto, Amilton Bueno de Carvalho denomina o Direito Alternativo mais como um movimento, não sendo considerado essencialmente como uma teoria da ciência jurídica. Carvalho defi ne o Direito Alternativo mais como um “instrumental prático-teórico destinado a profi ssionais que ambicionam colocar seu saber-atuação na perspectiva de uma sociedade radicalmente democrática” (CARVALHO, 2004, p. 50).

O Direito Alternativo, na concepção de Carvalho (2004), está na junção entre teoria e prática, o que contribui na elaboração de uma nova teoria. Uma prática, no entanto, sem dissociar-se da realidade social e histórica regional, nesse caso, o Brasil e a América Latina. O Direito Alternativo não possui, na visão do autor, uma teoria estabelecida previamente; sua formulação é decorrente de práticas jurídicas que atendam aos interesses e demandas da maior parte da população, ou seja, democráticas, e que não perpetue o status quo, sob os interesses de uma pequena parcela.

Sem tratar de modismos, Amilton Bueno de Carvalho já em 1993 defendia ser o Direito Alternativo uma esfera de debate presente há mais de cinco anos, analisada por diversos teóricos, em encontros, artigos e livros sobre o tema, tendo não apenas o Brasil como recorte espacial, mas a América Latina e até mesmo alguns países europeus, o que traz ainda uma maior aceitação e legitimação do Direito Alternativo como teoria nas ciências jurídicas.5 Antes da formulação sistemática do Direito Alternativo, já havia no Brasil, na década de 1960, publicações

alinhadas a essa perspectiva (ANDRADE, 1996). é importante ressaltar que o Direito Alternativo não foi a única vertente das ciências jurídicas que teve a sua formulação por meio de uma concepção crítica do sistema capitalista e de suas desigualdades na América Latina. Além do Direito Alternativo, há também exemplos como o “Direito achado na rua”, de Roberto Lyra Filho, que buscava a aproximação do Direito com as demandas encontradas nos movimentos sociais, objetivando a transformação social; e o “Direito insurgente” elaborado também a partir da crítica ao capitalismo mas sem uma formulação academicista, com “práticas insurgentes contra o direito ofi cial do Estado, de cujo absolutismo decorre o dever genérico de submissão à lei dada” (BALDéZ, 2010, p.195).

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Ao escrever sobre essa nova concepção teórica do Direito, Wolkmer afi rma que ela não deve incidir “nem no jusnaturalismo, nem tampouco no positivismo, mas na elaboração de uma proposta jurídica alternativa que ofereça uma estratégia de participação e de libertação” (DiAZ apud WOLKMER, s/a, p. 180).

Para isto, Wolkmer propõe a obrigatoriedade de um projeto emancipador, que possibilite o surgimento de uma nova cultura jurídica, ou seja, a representação de novas forças produtivas diante do abandono das velhas relações de produção capitalista,

uma cultura orientada desde à utopia da igualdade (e da liberdade), que seja crítica das deformações ideológicas originadas na e pela sociedade de classes, cuja real superação se propõe. Uma cultura jurídica com base em um novo critério de racionalidade e de legitimidade que é [...] a libertação real de todos os homens (WOLKMER, s/a, p. 180).

Se para Carvalho o Direito Alternativo não constitui uma teoria sistematicamente construída no campo das ciências jurídicas, pela junção entre teoria e prática, Wolkmer considera que é justamente a aplicação de uma teoria em um contexto específi co, como o da América Latina, que ocorre a formulação alternativa e crítica na teoria do Direito, sendo esse processo dinâmico e ininterrupto, levando em consideração as mudanças na sociedade atual, bem como sua história marcada pela constituição de uma sociedade de classes.

4 Considerações finais

O debate sobre a construção teórica no campo científi co proporciona o desenvolvimento e a constante atualização mediante as demandas de uma sociedade em constante transformação. Além do mais, tal análise enriquece as possibilidades de compreensão e atuação social, contribuindo para democratizar a formulação teórica, rompendo com hegemonias e reproduções que nem sempre possibilitam uma construção do conhecimento científi co contextualizada com as demandas sociais e a realidade em que estão inseridas.

O Direito, com sua epistemologia teórica oriunda do positivismo científi co, em grande parte, tem reproduzido no Brasil e na América Latina, ideologias e interesses pertencentes às classes hegemônicas, legitimando o

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status quo, retirando das classes populares, não apenas o acesso ao direito, mas, sobretudo, sua percepção e conhecimento daquilo que lhes são outorgados pela Constituição, contribuindo em uma alienação enquanto cidadãos de direito.

Dessa forma, a elaboração de novos paradigmas é fundamental para a busca de uma cultura jurídica engajada e comprometida com a realidade social. Nessa concepção, surgiu o Direito Alternativo, como uma manifestação crítica à perpetuação desse sistema para a formulação de um Direito contra-hegemônico, que busca assegurar a justiça social de maneira democrática, levando em consideração as demandas emergenciais das camadas populares na América Latina.

Ao tentar estabelecer tais transformações sociais por meio das ciências jurídicas, é importante levantar o debate teórico-metodológico embora, sem buscar estabelecer um controle ao invalidar outras perspectivas. Mas, tendo em vista a construção das ciências jurídicas e sua epistemologia, é importante levantar o debate teórico para, a partir desses resultados, promover intervenções por meio do Direito que viabilize a defesa de direitos essenciais à vida humana, em oposição à dominação que há séculos vem sendo estabelecida no continente latino-americano e assimilada de forma natural por meio de ideologias disseminadas de diversas formas, ocultando as mazelas resultantes de uma sociedade cindida em classes.

Dessa forma, o presente artigo buscou analisar como o Direito Alternativo pode contribuir para a teoria crítica do Direito. Sua construção teórica, a partir de grupos dominados no Brasil e na América Latina por uma minoria constituída historicamente no continente, traz nova esperança àqueles que desejam e lutam por transformações sociais mais signifi cativas, a partir do viés jurídico que, fora dele, torna mais complexa e menos duradoura qualquer forma de reivindicação popular.

Mesmo não sendo uma teoria amplamente consolidada no campo jurídico, mesmo porque exige uma constante reformulação, o Direito Alternativo, juntamente com outras formas de refl etir as ciências jurídicas sob o viés da teoria crítica do Direito, estabelece um novo paradigma, em oposição à perspectiva positivista e normativa do Direito hegemonicamente desenvolvida na América Latina, auxiliando estudantes e profi ssionais da área em uma construção teórica vinculada à práxis libertadora, de grande relevância para os movimentos populares que, nessa época de redemocratização no Brasil e em alguns países latino-americanos, experimentam uma nova realidade: uma

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repressão velada, no lugar da antiga, que era explícita, no período da ditadura militar.

O artigo não tem como objetivo esgotar o tema estudado, requerendo maiores aprofundamentos e investigações que contribuam para uma melhor compreensão do Direito Alternativo e sua construção teórica nas ciências jurídicas.

Referências

ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

BALDéZ, Miguel Lanzellotti. Anotações sobre o direito insurgente. Captura crítica: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.3, v.1, jul./dez. 2010.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em movimento. 5 ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2003.

______. Direito Alternativo: teoria e prática. 5 ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2004.

LyRA FiLHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Fabris: Porto Alegre, 1983.

ORTiZ, Renato (org.). Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39. p. 122-155, 1983.

PRESSBURGUER, Th omaz Miguel. Direito, a alternativa. in: Ordem dos Advogados do Brasil – RJ. Perspectivas sociológicas do direito: 10 anos de pesquisa. Rio de Janeiro: Th ex Ed: OAB/RJ: Universidade Estácio de Sá, 1995.

WOLKMER, Antonio Carlos. Para uma concepção jurídica latino-americana emancipatória. s/l: s/a. p.176-181.

XAViER, Bruno de Aquino Parreira. Direito Alternativo: uma contribuição à teoria do direito em face da ordem injusta. Juruá: Curitiba, 2006.

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DIREITO COMO ELEMENTO CONSTITuÍDO E CONSTITuINTE DA EVOLuÇÃO SOCIOCuLTuRAL

Maria Carolina Silvestre de Barros

Sumário: 1. introdução. 2. Fundamento Axiológico da Norma. 3. Teoria Crítica do Direito. 4. Funções sociais do Direito. 5. Ensino Jurídica Tecnicista.

Resumo: O presente trabalho busca aludir, em um primeiro momento, a fundamentação axiológica das normas jurídicas, associando as interações da norma com a sociedade a partir de uma concepção e sentimento de justiça que variam de acordo com o espaço e o tempo. Destarte, apontando que o desenvolvimento social aprimora o conceito de justiça, sendo este a principal fonte de interação entre o Direito e o corpo social, ressalta-se a importância da existência de um Direito Crítico. Pois é preciso reafirmar o compromisso fundamental da ciência com o mundo dos fatos, de onde o Direito nasce e para onde se destina, tornando, desta forma, a aplicação do Direito fruto da reflexão e do questionamento dos paradigmas científicos tradicionais. A partir dessa linha de raciocínio, explana-se sobre as funções sociais do Direito, colocando-o como agente conservador, transformador e educador da sociedade. Deste modo, com a função transformadora do Direito, este se volta para a construção de uma ordem jurídica e social progressivamente melhor, que, consequentemente, proporcionará evolução sociocultural, a qual posteriormente servirá de base para a edificação dos institutos jurídicos. Assim, o incessante ciclo se concretiza rumo ao constante progresso jurídico social, posicionando o Direito como ente constituído e constituinte. Por fim, lembrando que as funções do Direito são efetivadas pelos intérpretes deste, ficam, portanto, evidenciadas as más consequências para a sociedade do ensino tecnicista da dogmática jurídica, fazendo o Direito carecer de sua função de engajamento na constituição de um mundo mais humano. Palavras-chave: Axiologia da norma. Funções sociais do Direito. Ensino jurídico de cunho humanístico.

Método: Pesquisa bibliográfica

Problema de pesquisa: Ensino tecnicista da dogmática jurídica contribui para a efetivação das funções sociais do Direito? O Direito, quando distante de um posicionamento crítico de sua aplicação, é capaz de transformar e edificar a ordem social e jurídica?

hipótese de trabalho: alentar a importância da interação consonante entre normas jurídicas e o mundo dos fatos.

Resumen: Los intentos presente estudio para aludir en primer lugar, el fundamento axiológico de las normas jurídicas, laregla de la asociación de interacción com La sociedad a partir de undiseño y un sentido de la justicia que varían com el tiempo y el espacio. Por lo tanto, teniendo em cuenta que el desarrollorealzael concepto de justicia social, que es la fuente principal de la interacción entre el derecho y el cuerpo social, se hace hincapiéen la importancia de un golpe crítico derecha. Porque debemos reafirmar el compromiso fundamental de la ciencia para el mundo de los hechos, donde la ley vieneyadóndeva destinado. Hacien dolo que el resultado de aplicar la ley de la reflexión y el cuestionamiento de los paradigmas científicos tradicionales. Desde esta línea de razonamiento, explica las funciones sociales de la ley, haciéndo sepasar por

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un preservativo y la sociedad educadora transformadora. Así, com la función transformadora de la ley, este se convierte em la construcción de un marco jurídico y social cada vez mejor, que por lo tanto proporcionar evolución sociocultural, que luego servirá de base para la construcción de las instituciones jurídicas. Así, el ciclo incesante materializa el progreso constante hacia la social legal. Colocación de la ley como siendo constituido y constituyente. Por último, tras recordar que las funciones de laleyen vigor por los intérpretes de ésta es, por tanto, evidentes consecuencias negativas para la enseñanza dogmática de la sociedad de la técnica jurídica, lo que hace la ley, si su falta de participación em función de la formación de un mundo más humano.Palabras clave: Axiologíala norma. Las funciones sociales Del derecho. La enseñanza del Derecho de inclinación humanista.

Método: Literatura

Problema de investigación: aspectos técnicos de la enseñanza dogmática jurídica contribuye a la realización de las funciones sociales de laley? La derecha cuando está lejos de su crítica una aplicaciónes capaz de transformar y construir el? Social y legal

hipótesis de trabajo: fomentar la importancia de la interacción entre las normas jurídicas de los hechos de consonantes y el mundo.

1 Introdução

Frente a uma análise da função desempenhada pelos fatores extranormativos na produção das signifi cações jurídicas e principalmente dos efeitos que delas decorrem dentro do corpo social, foca-se a correspondência existente no valor justiça, isto é, na concepção e no sentimento de justiça intrínseco a cada evolução sociocultural com a norma jurídica posta para interpretação e validação no mundo dos fatos. Destarte, relaciona-se a fundamentação axiológica das normas baseada na concepção de justiça que, ao variar de acordo com o espaço e o tempo, encontra-se intimamente ligada à vivência cultural que tem como elemento propulsor a convivência civil moral e harmoniosa. Por sua vez, esse espaço de manifestação, em estado de civilização, se sujeita às consequências da contribuição do intérprete de Direito a partir de sua função social.

Dessa forma, verifi ca-se o papel crítico do Direito como agente transformador, educador e conservador da sociedade. Partindo da premissa de que a função jurídica na qual se manifesta o Direito é constituída por órgãos que, por sua vez, constitui-se por indivíduos, percebe-se assim que a efetivação dos papéis do Direito para com o corpo social dependerá da efi ciência de intérpretes conscientes para com os princípios do Direito e para com sua própria função dentro do paradigma de um Estado de grande desigualdade

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social, econômica e cultural. Sobressai-se, portanto, a relevância da formação humanística do aplicador do Direito, efetivando a excelência em sua função social e garantindo o adequado papel do Direito.

Está presente no seguinte trabalho, primordialmente, o intuito de despertar a refl exão sobre os efeitos da aplicação do Direito no plano fático, partindo da perspectiva de suas funções para uma sociedade apta ou progressivamente apta a se desenvolver.

Dada a importância da atuação jurídica efi caz, delimitam-se os fatores que venham a contribuir para potencializar seus resultados diante da sociedade, na medida em que o bom uso do Direito na adequação e interpretação das normas às relações reais vivenciadas no seio da vontade coletiva propicia o Direito à evolução das relações humanas e contribui para o processo de dignifi cação do homem. Consequentemente a esse movimento progressivo no decurso das interações humanas se dá o aperfeiçoamento dos valores contidos nessa sociedade, os quais, posteriormente, serão utilizados para exponenciar o próprio Direito. Destarte, descreve-se uma linha de transformação cujo agente do primeiro impulso é o detentor do último alcance. Portanto, observa-se inquietamente as consequências negativas para todo o corpo social quando o seu Direito encontra-se detido por si mesmo, pelas suas defi ciências hermenêuticas, confi gurando um “Direito lobo do Direito”.

2 fundamento axiológico de justiça consoante à cultura

Perante uma análise quanto à validade ética da norma jurídica, percebe-se que esta é uma tentativa de concretização de valores que visam a consecução de objetivos necessários ao homem e ao seu meio. Diante do fundamento axiológico da norma, pode-se perceber que sua razão de ser é o alcance de um propósito que é irrefutavelmente a fi nalidade de implantar uma ordem justa na sociedade. E a diretriz do que se entende por uma ordem justa está justamente no sentimento de justiça, pois esta é a condição transcendental para que todos os demais valores se legitimem, é a ratio júris, ou seja, a essência da base principiológica de toda e qualquer norma.

Não se pode olvidar que à justiça compete a harmonia na vida social, a igualdade nas relações humanas, a seguridade do que é devido a cada um. Porém, a determinação do que é devido é papel da função política do Estado através do poder legiferante. Destarte, se faz imprescindível que a norma jurídica esteja em sintonia aos ideais e ao sentimento de justiça da comunidade

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que rege, pois é a norma o meio necessário para alcançar a fi nalidade de justiça aspirada e objetivada pelo corpo social.

Empresto neste momento as palavras da ilustre professora Maria Helena Diniz para melhor esclarecer a associação pertinente entre norma e valor:

Assim sendo, a norma do direito é real, algo que tem consigo o seu valor; é um ser cultural a que corresponde um valor (dever ser). A norma é um ser devido; não é valor, mas meio de sua expressão, porque os valores não são entes in se, não são objetos, e sim qualidades do objeto, pois dão-lhe um signifi cado. (DiNiZ, 2001, p. 395).

inexorável é a compreensão de que o caráter axiológico da norma emerge da ideia viva na sociedade daquilo que se acorda como justo. Assim, a efetivação dos preceitos normativos funda-se na satisfação pela coletividade.

Em face do que fora asseverado até então, conclui-se, em primeira instância, que a norma é um objeto, antes de tudo, cultural - é que seu sentido é servir de instrumento para a realização do valor justiça, valor este compatível ao anseio popular. Portanto, a norma deve ser expressão de justiça e ela alcançará sua fi nalidade de auxiliar e instrumentalizar o fi m quisto quando for útil à conservação e ao aperfeiçoamento do convívio humano.

Presente a discussão, necessário se faz apresentar a abordagem sobre a concepção de justiça estar intrínseca às relações concretas do social, pois destas emerge o assentamento do justo. Eis a razão pela qual estudar a história do Direito é perceber que seus preceitos estiveram interligados a todo o momento ao concebimento cultural e histórico de cada momento. isso ocorre justamente porque o ideal de justo se dá conforme à mentalidade e à evolução social e cultural de cada época. Ou seja, depende das condições sociais de certo momento e lugar.

Desenrolado o raciocínio entre justiça ancorada no âmago popular, conclui-se que a norma jurídica adentra-se para a questão de que o desenvolvimento da sociedade direciona o Direito, que vê na base de seus preceitos as exigências sociais. Assim, a evolução do Direito é, em primeiro lugar, a evolução sociocultural.

Depara-se neste instante com a indagação sobre a possibilidade do Direito incentivar a evolução sociocultural para, após a realização desta, receber e reconhecer essas novas demandas. Esse incentivo existe e é efetivado pela concretização das funções sociais do Direito, e, desta forma, o Direito se torna elemento constituído e constituinte da evolução sociocultural.

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3 teoria crítica do direito

A norma de direito deveras legítima incorpora em sua essência a realidade social a que ela se refere, manifestando na axiologia da norma os valores sociais a ela correspondentes.

Todavia, o saber jurídico tradicional vem reduzindo a ciência do direito à mera descrição de enunciados linguísticos, afastando-se da realidade para focar-se tão somente na defi nição normativa da conduta. Eis a problematização do ensino jurídico que será abordado posteriormente neste trabalho.

é preciso reafi rmar incessantemente o compromisso fundamental da ciência com o mundo dos fatos, de onde o Direito nasce e para onde se destina, tornando a aplicação do Direito fruto da refl exão e de questionamento dos paradigmas científi cos tradicionais, priorizando aquilo que se confi gura ser melhor ao homem.

Para melhor explanar sobre a explicação do direito perante a teoria crítica faço luz à explicação de Luiz Fernando Coelho:

Considerando que a realidade não é universal, mas particular e individualizada, que não é eterna, mas transitória, e que não é necessária, mas contingente, verifi ca-se o paradoxo de que a ciência só consegue aprender seu objeto pela sua destruição objetiva e reconstrução conceitual.

Tal paradoxo é o grande enigma da epistemologia, e está presente nas avaliações que a fi losofi a da ciência tem levado a efeito em torno da validade do método científi co e dos critérios de verdade do discurso da ciência tradicional.

Entre essas avaliações, ressalta-se a de Karl Popper, o qual anatematizou a pretensão de verdade absoluta e defi nitiva das teorias científi cas, estabelecendo que elas são sempre provisórias com os fatos mais a aceitação da comunidade científi ca.

Outro epistemólogo a questionar as condições de verdade da ciência foi Gaston Bechelard, para quem o progresso das ciências é sempre uma correção dos erros do passado; e que a ciência só evolui quando o cientista não se deixa seduzir pelo saber já estratifi cado, mas o questiona e rompe com ele, partindo sempre de novas hipóteses. (COELHO, acesso via internet, p. 214 e 215).

Considera-se, portanto, a teoria científi ca provisória, por estar sempre suscetível de evoluir. Pelo mesmo motivo, também o é a realidade que constitui

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e fundamenta as normas de direito. Destarte, a ciência não pode mais ser encarada como descrição da realidade, mas como ordenação racional da realidade que visa transformá-la.

Percebe-se que, nesse instante, o Direito assume sua função política, atuando com compromisso à realidade social e voltando-se para a construção de uma ordem jurídica e social progressivamente melhor, servindo como um instrumento de transformação social, disposto a abarcar as exigências sociais de uma sociedade em permanente transformação.

Os conceitos que defi nem experiência jurídica devem ser encarados como ideias em evolução cuja vocação jurídica é a de serem complementadas e ampliadas em função das necessidades reais da vida. (COELHO, acesso via internet, p. 220).

A teoria crítica se determina a reelaborar a teoria geral do direito, adequando os conceitos gerais à experiência dinâmica do direito e vedando veementemente qualquer tipo de manutenção do status quo em detrimento das camadas da população que dele não se benefi ciam, mas que contribuem com seu trabalho para que permaneçam no poder aqueles que se benefi ciam da situação social.

Abandonou-se assim a noção de primado da lei, que passa a ser encarada no mesmo plano das demais fontes, como um dos critérios da decibilidade, permitindo-se ao magistrado adaptá-la ou mesmo ir contra ela, nos casos de notória injustiça. inspirando-se nos usos e costumes, na justiça e na equidade, no direito natural e no saber jurídico. E a legitimidade do direito ganha nova força e novos contornos, admitindo-se o jurista como guardião dos critérios da legitimidade. Não se trata de legitimar o direito positivo através da ideologia ou da ciência, dogmatizando princípios gerais racionalmente construídos, como sustentáculo de um sistema normativo, mas de legitimar a atuação do direito como instrumento de sua própria renovação crítica e dialética. Em outras palavras, não é a economia e nem a tecnocracia que vão modifi car o direito, mas é o direito que vai transformar a economia e colocar a ciência e a técnica a serviço da humanidade. (COELHO, acesso via internet, p. 220)

Pela presente, os valores jurídicos passam a integrar o direito como instância de aperfeiçoamento deste, para que assim possa acompanhar o desenvolvimento do ser humano. A Teoria Crítica do Direito posiciona o jurista em um papel ativo e constitutivo quanto ao próprio direito, fazendo da experiência jurídica um processo de engajamento.

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As instituições jurídicas que representam ou até mesmo camufl am a realidade necessitam ter instinto renovador, não se contendo com meras descrições, pois o saber jurídico se amplia assumindo posicionamento crítico ao que já se encontra impregnado no mundo dos fatos sem representá-lo. Portanto, os operadores do Direito se servem da política jurídica, da ciência política e das demais ciências do homem e da sociedade não para descrição de prováveis nexos causais, mas para a constituição de melhorias ansiadas pelas manifestações sociais.

Tal é a nova dimensão que se atribui ao direito, tal é o papel da interpretação jurídica, que assim passa a confi gurar instância crítica do que ocorre no mundo, e não mero espectador do que os outros fazem. A crítica do direito incorpora a visão do presente, mas voltada para o futuro; assim ela se vale do saber teórico acumulado, não para dogmatizá-lo em seus postulados, mas para superá-lo na medida em que tal se evidencia necessário para a reconstrução do homem e da sociedade. (COELHO, acesso via internet, p. 223)

Propõe-se, nesse sentido, uma concepção de ciência do direito que restaura sua dignidade política, sem liquidar sua dignidade científi ca.

A maior preocupação da teoria crítica é pois com a educação jurídica objetivando preencher uma lacuna na medida em que se almeja tornar o jurista apto a desempenhar com êxito seu papel de agente da transformação social, com a vantagem de que a assimilação teórica dos valores intersubjetivos que a nova ciência do direito propõe, tornará o jurista responsável, perante a humanidade e sua própria consciência, pela efetiva realização desses valores integrados numa ótica humanista. (COELHO, acesso via internet, p. 224).

Não se pode permitir que o Direito resuma-se a um resquício de pensamento do passado, atuando como protetor de mitos construídos no pretérito, mas sim a força propulsora da evolução do presente e edifi cação do futuro, já que o Direito perde sua essência quando não engajado na obra de um mundo mais humano.

interliga-se, neste momento, o que já fora certifi cado em capítulo anterior com o conteúdo no que neste consta, parte-se do pressuposto de que se o Direito acompanha as novas demandas de uma sociedade em constante desenvolvimento, não pode se contentar a um saber estratifi cado, tradicional e imutável, permitindo-se alterar para melhor atender as necessidades sociais,

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porém sem perder sua essência. Assim esculpi a necessidade de atuação mais refl exiva e atenta do jurista, que não pode apenas ater-se à técnica e ao mero legalismo, e sim à legitimidade. Atentando-se para não permitir a redução da legitimidade à legalidade, pois ainda corre o risco de distorcer a legalidade para o caos do legalismo. Esta é uma ideologia jurídica que posiciona as normas legais a uma condição de indiferença ao fato social, justifi cada pelo acatamento da lei. é uma estratégia autoritária que se veste na autoridade da lei para possuir validade.

Basear-se em argumentos legalistas para justifi car decisões judiciais injustas signifi ca contribuir para subjugar e não dar efetividade à “essência da função judicante”, para submeter-se ideológica e politicamente ao legislador. (MOREiRA, acesso em internet)

Nota-se que o Direito só é capaz de incentivar a evolução e o desenvolvimento da vida social quando for capaz de efetivar suas funções sociais e estar sempre observando a sintonia entre seus preceitos e o anseio popular. E, não obstante, vale lembrar que o Direito se realiza através dos juristas, de seus intérpretes que necessitam ter um comportamento mais ativo frente às manifestações da sociedade, direcionando a legitimidade conforme também aos interesses populares.

4 funções sociais do direito

Dentre todas as defi nições dadas para o Direito pelas perspectivas das Escolas Sociológica, Racionalista, Positivista e Histórica, tem-se um denominador comum entre as diversas concepções que consiste na afi rmação irrefutável de que o Direito tem a função de regular as condutas do homem dentro da sociedade, quer seja limitando a liberdade, quer seja dando orientações ou relacionando à organização das associações humanas.

A função social do Direito, ao elencar valores reconhecidamente relevantes às condutas humanas e instituir limites para tais, tem como fi m a prevenção de confl itos na ordem social de um dado momento histórico e conforme a ideologia preponderante.

Se o Direito é condicionado pelo fato social, pelos costumes, pela sociedade, também exerce um papel condicionante. As normas de conduta, de tão repetidas aplicações, acabam por introjetar nos indivíduos os conceitos

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de certo ou errado, de bem ou mal, enfi m, a dicotomia que permeia as condutas humanas, seja estabelecida por valores morais ou religiosos, seja estabelecida pela própria lei. isto não ocorre, necessariamente, pelo caráter coercivo das normas de conduta, mas pelos valores, estrutura axiológica, que estão presentes nas mesmas. (THEMiS, acesso em internet, p. 15)

Mister trazer o entendimento sobre controle social como um conjunto de dispositivos sociais (costumes, instituições, leis), cujas fi nalidades residem na integração social, manutenção da ordem, preservação da estrutura social baseada nos valores impostos pelo consenso grupal ou pela vontade da classe dominante.

Entre as diversas formas de controle do corpo social nas sociedades complexas, o Direito se caracteriza como a forma mais poderosa de coerção por conta de seu caráter sancionatório que inibe condutas contrárias às determinações legais.

Dentro da esfera de atuação preventiva do Direito, destacam-se as funções: educativa, conservadora e transformadora.

4.1 Função Educativa

A função educativa é manifestada a partir do condicionamento que o Direito exerce sobre o Estado social, introduzindo e interiorizando as noções valorativas que encaminham os indivíduos a ater-se e agir com conformidade às determinações legais, induzindo-os a acreditar ser a melhor e mais justa forma de atuar como cidadãos. Por vezes, historicamente é possível perceber que a sanção nem sempre é a maior responsável pela obediência às normas, mas sim o conteúdo axiológico desta.

Com outras palavras, a atribuição educativa do direito opera na moldação de opiniões e comportamentos desenvolvidos pela aprendizagem e condicionamento ao que é socialmente correto, útil, justo e bom.

O efeito educativo evidencia-se até mesmo empiricamente, com a comprovação de que muitos assuntos foram conhecidos pelo grupo social após serem reconhecidos legalmente. Assim, pela disciplina da lei a opinião pública vai se educando e se esclarecendo.

Um exemplo para contextualizar o que fora corroborado é o direito de família, que, ao tratar do casamento e implicitamente da emancipação da mulher, demonstra historicamente as alterações de cunho inovador e transformador

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das disposições legais que não trouxeram de imediato a melhoria da ordem social, pois o costume e a mentalidade machista ainda eram obstáculos para a concretização da norma que estava em consonância com as manifestações sociais. Dessa forma, a norma dá o direcionamento, o ponto de partida para a evolução da sociedade, e a edifi cação do futuro.

4.2 Função Conservadora

No que tange à função conservadora, vale asseverar a necessidade de cautela para manter o que deveras for digno de permanecer em nosso quadro jurídico e social. Do contrário, é fundamental que seja destinada à exclusão ou à transformação. Eis a importância de uma atuação refl exiva do jurista para ter a responsável e correta discricionariedade, pois embora não caiba a ele a produção de leis, cabe a ele a hermenêutica e a escolha pela razoabilidade. Visto que nem sempre a conservação exercida é pejorativa, seria prejudicial imaginar que o ordenamento jurídico defenda tão somente os interesses de uma classe predominante. Ocorre que o poder legiferante trata de preservar valores e instituições das quais almejam ver resguardados e, em muitas vezes, usufruem de tal posição, porém seria incrédulo supor que sua atuação estivesse sempre voltada para fi ns direta e indiretamente egoísticos. Serve-se de exemplo para tal assertiva os momentos em que, por políticas afi rmativas, resolveu-se dar maior proteção à mulher, quando se buscou acudir o consumidor hipossufi ciente, quando elencou o princípio da dignidade humana, quando se voltou ao abrigo intempérie do Estado de Direito Democrático.

O efeito conservador liga-se diretamente à manutenção de parâmetros e diretrizes para a sobrevivência da ordem social existente. Eis o motivo pelo qual há necessidade de proteger, organizar, conservar e tutelar determinados bens da vida social.

4.3 Função Transformadora

A partir de mecanismos de garantias de direitos e preservação de princípios fundamentais, o Direito como conjunto de normas abstratas, universais e mutáveis precisa ater-se ao anseio social presente. Eis o motivo de ser esta uma das funções mais signifi cativas. Destarte, o Direito pode modifi car a sociedade alterando o sistema de controle e direcionando sua atuação e interpretação de normas em respeito às alterações sociais.

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Esta função está diretamente ligada às transformações culturais, nas quais se encontram a necessidade de reconhecimento legal para atender à conscientização precisa para a mudança de conduta.

As transformações do Direito se sucedem no âmago do Poder Judiciário, que acaba por representar o papel de atualizador da lei, já que a sociedade se desenvolve em tal velocidade que muitas vezes a legislação não acompanha. Portanto, a transformação e atualização no âmbito interno do Direito Moderno são decorrentes da constatação por parte do Estado de um problema social desassistido ou de pressão de grupos desfavorecidos.

O efeito transformador manifesta-se através do caráter incisivo do Direito perante a sociedade, que legitima novas orientações a partir das necessidades advindas do seio popular. Essa legitimação se dá através da interpretação, o Direito fi xa princípios a serem considerados, determinando modifi cações na ordem jurídica e paulatinamente na ordem social.

5 ensino jurídico tecnicista

O ensino jurídico vem extinguindo-se do modelo de ensino superior em grau de excelência e realmente científi co. As causas para esse fenômeno são inúmeras, podendo mencionar a massifi cação do ensino, a proliferação descontrolada de faculdades de direito, ausência de um programa de formação docente, o baixo nível do ensino secundário, queda da qualidade técnica do ensino jurídico, a crise do direito e das carreiras jurídicas. Sobretudo, essencialmente a fraca conjuntura estrutural nos aspectos culturais e científi cos condiciona a uma hipervalorização do conhecimento técnico e avalorativo de normas e procedimentos, obstando uma inquirição minuciosa acerca dos fundamentos do direito, da função social da dogmática jurídica, de se promover uma distribuição igualitária dos direitos fundamentais da pessoa humana, inerentes ao ato de edifi car uma democracia progressivamente democrática.

Esse instar com porfi a numa pedagogia tecnicista com propósitos meramente profi ssionalizantes impossibilita a consideração deste ensino em verdadeiramente superior, uma vez que o conhecimento profi ssionalizante e técnico pertence à esfera do conhecimento de nível secundário.

Além do que, a pedagogia técnica e normativista sempre favorece uma formação de cunho autoritário, quer porque o ensino normativo naturalmente alimenta nos estudantes de direito, como diria Marilena Chauí, o “gosto ou a tendência pela autoridade”; quer porque o tecnicismo supõe a completa

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ausência de crítica pelo desprezo que dedica ao ensino das humanidades. Portanto, esse é o modelo, que no fundo, atende plenamente às exigências de um mercado que se desenvolve dentro de uma ordem mantida pela autoridade e não tolera nenhuma espécie de razão crítica, muito menos aquelas críticas humanísticas que pudessem embaraçar a ação e o resultado dos negócios estabelecidos no âmbito desse mercado. (MACHADO, 2009, p. 53)

A transmissão do conhecimento dogmático por forma de proceder unidisciplinar abordando a manifestação jurídica distante da realidade social, econômica e cultural, exaurindo o conhecimento analítico e obedecendo a uma racionalidade formal, na qual se estranha indagações éticas e morais do direito com a ilusão da convicção de que o fato por si evidente é sufi ciente à construção de uma racionalidade jurídico-material concretamente democrática e eticamente sustentável.

Evidencia-se, dessa forma, a rejeição da interdisciplinaridade mediante a conexão entre o mundo jurídico e o contexto sócio histórico com a fi nalidade de propiciar o questionamento de ideologias, inclusive a liberal burguesa, na qual as formas de dominação se camufl am no manto da isonomia pelo ordenamento jurídico e principalmente pelas leis.

Nesse contexto, fi cam evidentes as relações entre o saber e o poder que o discurso ideológico pretende ocultar a partir do ensino acrítico do direito. Fundada no argumento de autoridade (abautoritatem), a sistematização da ciência jurídica permanece ordenada nas cátedras segundo um modelo conservador que mantém o saber jurídico à sombra das relações de poder, projetando essas relações na forma de conceitos, categorias, normas e procedimentos vazios de qualquer conteúdo socioeconômicos. A relação saber/poder evidencia que o ensino do direito não se resume apenas a um problema setorizado e de ordem meramente educacional. Trata-se, na verdade, de uma problemática cuja compreensão está vinculada a “questões políticas, à legitimação de poder e a democratização das estruturas socioeconômicas”. (MACHADO, 2009, p. 55)

O papel do professor, nessa estrutura de ensino, consiste em delegar o chamado “lugar da fala”, inexistindo espaço algum para o lugar do diálogo. Assim, a própria maneira de se instruir ou adestrar o graduando de direito sugere um saber totalitário no qual não há admissão à contestação dentro da ordem e do discurso estabelecido.

O dogmatismo caracterizado por essa abalroação formalista depaupera as virtudes do direito na legalidade por não conceber o jurídico na sua totalidade

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sociopolítica, atrelando mecanicamente o universo do jurista ao da norma por meio do método lógico-formal esterilizado. Esse saber formalista revelado por um sistema fechado e autossignifi cante não é apto para proporcionar ao jurista consciência crítica necessária para aplicar conscientemente a sua ciência. Nesse sentido, pode ocorrer uma grave desmoralização ou desfi guração do papel do jurista pelo esvaziamento do conteúdo social e político de sua atuação, haja vista que o conhecimento jurídico-formal persegue uma justiça também formal e se deprecia frente o profundo confl ito de sua formação abstrata profi ssional do direito e o meio social onde atua. Essa indiferença do papel do jurista explica a descrença nos órgãos incumbidos da aplicação do direito.

No entanto, apesar da desqualifi cação experimentada pelo ensino jurídico superior, reduzido ao nível de conhecimento formal e meramente técnico, é curioso notar que, mesmo perdendo parte daquela aura de autoridade que esse ensino sempre manteve tradicionalmente, trata-se ainda de uma campo do conhecimento vinculado ao poder, quer pelo modo autoritário com que é transmitido, quer porque a sua transmissão tecnicista é, no fundo, uma transmissão da ideologia dominante no campo político, social, econômico e cultural. Com efeito, na medida em que o conhecimento tecnicista se esvazia de qualquer conteúdo humanístico, desaparece também qualquer possibilidade de crítica acerca do sistema político e da ideologia dominante, o que, evidentemente, é muito útil aos projetos do poder estabelecido. (MACHADO, 2009, p. 58)

O traço distintivo do ensino verdadeiramente superior está na capacidade de percepção das relações de poder estabelecidas em cada área e forma do saber, aprimorando um movimento de democratização advindo das universidades vinculadas a projetos políticos de desenvolvimento. Destarte, o ensino dogmático imponente produz um efeito de aprendizagem de “curto alcance”, diferente de um saber consistente e defi nitivo que se pauta numa visão abrangente, do ponto de vista social, político, econômico e cultural, sobre o próprio saber. Constituindo, assim, uma formação cultural humanística, interdisciplinar, crítica o sufi ciente para tornar o operador do Direito apto para o desempenho de suas funções sociais que, muitas vezes, supõem o enfrentamento das estruturas de poder.

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6 Conclusão

A função conscientizadora do presente trabalho consiste no despertar para a relevância do ensino jurídico de cunho humanístico, visando a função sociopolítica do intérprete, já que o Direito não é uma dimensão à parte da realidade, estanque e distante do mundo dos fatos, inacessível e elitizado. Para uma efetiva e signifi cativa atuação do Direito na vida social, pressupõe um desempenho crítico e ativo daquele que infl ui na área jurídica.

A fi losofi a e pedagogia do ensino jurídico orientam a postura do jurista no decorrer de sua carreira, infl uenciando-o em toda a sua vida profi ssional. Destarte, um ensino meramente tecnicista formará um operador do Direito voltado à legalidade, caminhando ao lado do caos do legalismo, ignorando a legitimidade social. Há, nesse momento, a distorção do papel discricionário responsável do jurista, que a partir da hermenêutica valoriza princípios reconhecidos constitucionalmente em desfavor de uma interpretação que não atenda o anseio social e que não assista a indivíduos desfavorecidos.

Uma vez que a base esteja sem alicerces para a manutenção da qualidade da formação de pessoas humanas aptas para defrontarem um espaço social imbuído na submersão de ondas de informações midiáticas, nos sistemas alienantes de comunicação, no adestramento político-social das estruturas de poder, não se pode ter a pretensão de ansiar por um ensino de excelência.

A disfuncionalidade do ensino meramente tecnicista impede o processo de desenvolvimento de um projeto social humanista por visar à transformação social no momento de propiciar melhoria nas condições de vida para aqueles que necessitam de soluções do Direito para o alcance de tal fi m, que acaba por incentivar a evolução nas estruturas sociais. Destarte, a não percepção, através da dogmática tradicional, da estrutura normativa do Estado tem graves refl exos nos modelos de ensino jurídicos conservadores que se encontram na ativa hodiernamente, justamente porque afastam a possibilidade de adequação social pelo Direito. Este se manifesta através de seus intérpretes e o alcance de suas funções sociais, que foram abordadas nesse trabalho, dependem incisivamente de juristas bem formados e preparados para que seja atingido o objetivo primordial, que é estabelecer uma ordem justa, conforme o ideal de justiça do meio social, assim como o de estabelecer ambiente propício ao desenvolvimento e evolução sociocultural.

O presente serve também como alerta para o processo ininterrupto da evolução do homem dada pelos fatores e agentes sociológicos, axiológicos,

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antropológicos, históricos e psicológicos que o Direito implica. Esclarecendo que sem a garantia de direitos fundamentais não há como evolucionar a sociedade e a mentalidade social. Logo, estacionam-se os valores, e o Direito segue recluso na involução social dada pela defi ciência em sua própria função em transformar, educar e conservar a sociedade. Portanto, há de se perceber e se preocupar na afi rmativa de que o desenvolvimento humano e o desenvolvimento do Direito seguem comumente.

Referências

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DiNiZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

FORTiUM, Grupo Educacional. As Funções Sociais do Direito. Disponível em: <http://fortium.edu.br/blog/anamaria_amorim/files/2010/05/Func%C3%B5es-do-Direito-confl ito-e-mudan%C3%A7a-social1.pd>. Acesso em: 10 de março de 2013.

MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

MOREiRA SiLVEiRA, Júlio. Legalidade e legitimidade. A busca do direito justo. Disponível em:<http://jusvi.com/colunas/35755>. Acesso em: 12 de março de 2013

THEMiS, Aline. Função Social do Direito. Disponível em: <http://www.ugf.br/editora/pdf/voxjuris_2/espaco_professor_artigo1.pdf>.Acesso em: 07 de março de 2013.

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AO POVO O POVO

Sócrates Fusinato1

Sumário: 1. Povo. 2. Povo – um corpo jurídico formalmente conceituado. 3. Povo – um corpo político visceralmente governado. 3.1. Povo – corpo impolítico que precisa ganhar movimento. 3.2. Povo – corpo cujo impolítico deve ser politizado. 4.Povoar-se refugiando-se: ao Povo apenas povo.

Resumo: Um dos elementos indispensáveis para se falar em Estado-nação, o Povo é um conceito-pilar que habita o pensamento jurídico ocidental. O presente estudo assume como tarefa a produção da crítica do conceito povo, analisando o referido conceito em sua dimensão política e jurídica. Na contemporaneidade, uma problemática central se suscita: em que medida povo e biopolítica entram em relação nas práticas de governo do Estado de Direito? De instrumento que assegura aos indivíduos vínculos jurídicos com o Estado de Direito a elemento impolítico que precisa ser protegido e sustentado, o povo leva consigo uma fratura biopolítica fundamental. E é na obra de Giorgio Agamben que essa leitura ganha relevo através de uma metodologia de trabalho que consiste em articular e desarticular conceitos que alimentam a máquina biopolítica produzida pelo Direito ocidental. De um lado, Povo como unidade política e de outro, povo como conjunto de indivíduos que formam uma “classe inferior”, desamparada, eis uma dicotomia que o governo biopolítico dos homens insiste em ativar.Palavras-chave: Povo. Biopolítica. Estado de Direito.

Resumen: Uno de los elementos indispensables para hablarse de Estado-nación, el Pueblo es concepto-pilar que habita el pensamiento jurídico occidental. El presente estudio asume como tarea la producción de la crítica del concepto pueblo, analizando referido concepto en su dimensión política y jurídica. En la contemporaneidad una problemática central es suscitada: cómo pueblo y biopolítica entran en relación en las práticas de gobierno del Estado de Derecho? De instrumento que asegura a los individuos vínculos jurídicos con el Estado de Derecho a elemento impolítico que necesita ser protegido y sustentado, el pueblo lleva consigo una fractura biopolítica fundamental. y es en la obra de Giorgio Agamben que esa lectura gana relieve a través de una metodología de trabajo que consiste en articular y desarticular conceptos que alimentan la máquina biopolítica producida por el Derecho occidental. Por un lado, Pueblo como unidad política y, por el outro lado, pueblo como conjunto de individuos que forman una “clase inferior”, desamparada, he aquí una dicotomía que el gobierno biopolítico de los hombres insiste en activar. Palabras-clave: Pueblo. Biopolítica. Estado de Derecho.

1 Povo

A fábrica de ideologias produzidas pela razão moderna leva até vitrines de todos os cantos conceitos-mercadorias. Vendem-se conceitos na espera de operá-los rumo a um sentido que sirva para muitos, para tudo, que habite a boca de todos como uma só canção.

1 Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor do curso de Direito da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (UNiARP) - e-mail: [email protected]

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Conceitos são comprados no mercado das ciências que exigem serem elas mesmas. Para isso, cada Ciência produz um corpo conceitual que habita um único território: o mundo da linguagem técnica. Mundo das razões sem memória, dos conceitos sem história, mundo vendido à prestação em bancos escolares, em gabinetes profi ssionais. Com propriedade conceitual, a ciência fala por todos.

O Direito, para se entender Ciência, ainda aposta no isolamento, ainda almeja isolar tudo que não seja jurídico, que não seja próprio de um corpo conceitual que é uno. O Direito que se quer científi co substantiva-se, adjetiva-se numa raiz comum. Aqui e ali, um ajuste e outro retoque, mas os conceitos seguem passo fi rme rumo à realização de um imponderável: longe do calor da história que é constante visita do presente, congelar um mundo de coisas a fi m de que tudo que precisa ser explicado caiba ali. Refrigera-se a cor daquilo que em vida desbota.

A Ciência do Direito quer um defi nitivamente dado para todo conteúdo, uma natureza só dele que estava já ali desde sempre. A Ciência do Direito quer também uma forma única para seus conteúdos dados pela natureza racional do homem.

Um conceito que a Ciência do Direito vende com a forma contida, com o conteúdo formado, é o conceito Povo. Os cursos de graduação em Direito limitam um espaço muito restrito para a sua discussão. Algumas disciplinas específi cas, como Teoria Geral do Estado e Ciência Política, reservam espaço para estudo do tema.

Povo é um conceito que é pressuposto necessário, independentemente do que Povo possa signifi car. O Direito nas democracias ocidentais se diz vindo do Povo, para o Povo, em nome do Povo. E já não há poder que não emane do Povo, nem lei que não seja sua voz. Povo forma um conceito-pilar que sustenta o edifício do Direito Moderno.

Assim como Estado, Sujeito de Direito, Povo é uma pura forma que ilude porque pressupõe ter uma explicação em si mesmo. Deixando de lado a história de tudo que um dia vem a ser, dizendo que as coisas são assim porque não há nada mais natural do que seu “ser assim” (“porque a Constituição prevê!”), priorizando a técnica, fecha-se a crítica em nome da efi ciência de um mercado que, para não ofuscar o brilho das mercadorias, para não colocar em xeque a si mesmo, cria um mundo de formas que projetam uma sociedade abstrata.

Eis um “liberalismo universitário” que, admitindo uma multiplicidade de opiniões e festejando a liberdade de pensamento, não coloca em questão o conjunto do edifício jurídico que reproduz de fachada (MiAiLLE, 2005, p. 21).

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Quase ninguém entra nos edifícios onde o Direito se diz proprietário. Pergunta-se: como se produz o conhecimento no Direito, quais são as fontes dos conceitos adjetivados jurídicos? Aquele que se diz porta-voz da Ciência do Direito ancorada em uma lógica formal não diz, omite a justifi cação e não presta contas sobre a fundamentação do seu método de trabalho.

Não em nome de, nem vindo de, nem para isso ou aquilo, não um ideal, uma representação de um mundo à imagem e semelhança de si mesmo. O Povo que se coloca em questão nas linhas que seguem explica a história de um mundo que se vive no agora. Um mundo que já não se contenta em responder o que Povo é, mas pergunta como ainda é possível algo como um Povo?

E nesse solo que é de passos fi rmes, a Ciência do Direito assume a lógica de um pensamento crítico. Que o corpo-conceito Povo possa vir à tona com suas contradições, com sua complexidade, a fi m de que se possa indagar até que ponto o referido conceito ainda interessa aos homens em sua relação com aquilo que se intitula Direito e com as perspectivas de um novo espaço político que no pensamento de Giorgio Agamben já se anuncia.

2 Povo – um corpo jurídico formalmente conceituado

Em seu âmbito jurídico, Povo é conceito que fundamenta as democracias modernas, fundamenta o Estado-nação que é rebento da modernidade. Na teoria do direito do século XX, imperou o pensamento de Hans Kelsen, pensamento fomentado por uma construção científi ca de conceitos que operam em nome da unidade de uma forma que se quer perfeita.

Sendo o Direito uma fortaleza que pode ser estudada por uma Ciência específi ca, priorizando a forma, o positivismo jurídico permite entrever no rosto da fi gura Povo uma opacidade quando se trata dos contornos de uma face democrática.

A forma piramidal do ordenamento jurídico que alça ao topo uma norma fundamental, nas democracias ocidentais de agora, atribui ao Povo um poder imediato de soberania, pois no topo, o Povo formaria um corpo de ecos legíveis que teceriam de forma genérica o conteúdo da norma fundamental. E dessa voz múltipla que narra em uníssono, nasce uma espécie de Carta de Direitos, no Brasil nomeada Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O Povo é a voz que diz e aplica o Direito. No direito brasileiro, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (CF/88, art 1˚, parágrafo único). Povo é corpo político que, na

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unidade assegurada pelo ordenamento jurídico, edifi ca e justifi ca um Estado de Direito.

Na teoria tradicional, o Estado de Direito só vem a existir quando presentes três elementos: Território, Povo e Poder Soberano. Cada Estado de Direito possui um Território que forma sua unidade jurídica e não natural; cada Estado de Direito possui um Povo que forma uma unidade jurídica e não natural. Em nome do Povo que carrega já no nascimento o peso quase-aleijante da soberania, surge em cada um de nós um nós que fala e age como se Povo fosse, ou seja, fala em nome de.

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífi ca das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTiTUiçãO DA REPÚBLiCA FEDERATiVA DO BRASiL (CF/88, Preâmbulo).

De poder constituinte a poder constituído, o Povo é a unidade a partir da qual se irradiam os vínculos jurídicos estabelecidos entre cidadãos e Estado. Quando o Estado se edifi ca, os indivíduos deixam de ser quaisquer e se tornam cidadãos que participam da produção da lei e dela recebem proteção jurídica contra ações que extrapolem a moldura de direitos e deveres estabelecida pelo ordenamento jurídico nacional.

O Povo como elemento do Estado diz respeito aos “seres humanos que residem dentro do território do Estado”. Mas um indivíduo só pertence ao povo de um determinado Estado “se estiver incluído na esfera pessoal de validade de sua ordem jurídica. Assim como todo Estado contemporâneo abrange apenas uma parte do espaço, ele também compreende apenas uma parte da humanidade”. O Povo é “constituído pela unidade da ordem jurídica válida para os indivíduos cuja conduta é regulamentada pela ordem jurídica nacional”, ou seja, o Povo é “a esfera pessoal de validade” da ordem jurídica” (KELSEN, 1992, p. 230).

Escrevendo na primeira metade do século XX, século entrecortado em sua infância por duas grandes guerras mundiais, Kelsen preocupa-se em delimitar a fi gura do Povo como forma que prescinde de conteúdo determinado para existir.

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Quando Kelsen pensa a fi gura do Povo juridicamente e não politicamente, a fi delidade ao Estado por parte dos cidadãos e a proteção jurídica dos cidadãos por parte do Estado “não signifi cam nada mais além do fato de que os órgãos e os sujeitos do Estado têm de cumprir as obrigações jurídicas a eles impostas pela ordem jurídica” (KELSEN, 1992, p. 234). Nenhum amor à bandeira ou jura eterna ao fundador é requisitado quando Kelsen trata de pensar juridicamente um conceito farto em explicações históricas, sociológicas, antropológicas, artísticas.

Povo como forma que ativa e desativa vínculos jurídicos estabelecidos entre indivíduos, entre indivíduos e Estado, a partir das prescrições de um ordenamento jurídico escrito. O Povo que forma o Direito se faz Povo através do Direito.

O Povo é aquilo que cria o que deve ser obedecido em obediência a uma norma pressuposta sem fundamento. E aí petição de princípio tem vez ao impedir a crítica quando se trata de ler a forma pela forma. E se diz “todo poder emana do povo” porque nas mãos do povo reside todo poder. Quem fundamenta o poder do povo? Silêncio. O que interessa saber é que não se deve buscar um fundamento. Onde já se viu uma norma fundamental com fundamento? Acima da norma fundamental nada paira. Aquilo que a norma fundamental diz é dito como é e pronto. Se a norma é fundamental não lhe peça um fundamento, pois assim a norma que está no topo desce um degrau da pirâmide e deixa de ser fundamental. Aqui o Povo como voz da democracia cuja afasia é a ausência de voz do Povo.

A forma Povo surge estarrecida e como um trovoar de voz divina que ecoa, por todos é ouvida e por todos deve ser seguida, pouco importando os fundamentos que alicerçam os caminhos da política.

Por que Povo? E mais, como é possível algo como um Povo? Essas são questões que fogem às preocupações nada históricas de um pensamento jurídico que prioriza a técnica da forma à crítica do conteúdo formado, da forma contida.

Nos manuais brasileiros de Teoria geral do Estado e de Ciência Política, a apresentação da categoria Povo se dá, no geral, de forma descritiva e técnica. Senso comum nos manuais a delimitação do conceito Povo por sua ligação imediata com a existência do Estado por via do direito. Pelo Direito, o Povo se faz diferente da população e não é nação.

A população é um dado genérico e quantitativo, pois “todas as pessoas presentes no território do Estado, num determinado momento, inclusive

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estrangeiros e apátridas, fazem parte da população”. A população, para existir, não depende de qualquer “laço jurídico de sujeição ao poder estatal. Não se confunde com a noção de povo, porquanto nesta, fundamental é o vínculo do indivíduo ao Estado através da nacionalidade ou cidadania” (BONAViDES, 2010, p. 72).

Nesse sentido, “só o direito pode explicar plenamente o conceito Povo. Se há um traço que o caracteriza, esse traço é sobretudo jurídico [...], o povo exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico” (BONAViDES, 2010, p. 81).

O vínculo do indivíduo com o Estado se efetiva com a cidadania. Participando da cidadania, uma pessoa constitui fração de um Povo. Ser cidadão, parte do Povo, é entrar na relação de cidadania, que nada mais é do que um “status que defi ne o vínculo nacional da pessoa, os seus direitos e deveres em presença do Estado” (BONAViDES, 2010, p. 82).

Nação não é Povo. Não se fala em Povo sem Estado, mas fala-se em nação sem Estado. A nação existe para além de laços formais estabelecidos pelo ordenamento jurídico de um território. A nação envolve elementos de língua, etnia, história e cultura de um modo de habitar o mundo compartilhado por uma coletividade.

Onde o Povo pede lei escrita e posta por autoridade competente, a nação afi rma consciência moral num coexistir regado pelo sentimento de estar mutuamente unido. Onde o Povo dá forma a uma lei, a nação lapida línguas, sentimentos e crenças.

Aos olhos de um direito que faz questão de não justifi car o que lhe sustentaconhecimento formado é forma para cada coisa dadaforma Povoforma populaçãoforma naçãotecnicamente bem divididos frações conceitualmente demarcadas escondem no visceral dar-se a ver daquilo que já ésonho de uma noite incansavelmente possível

ser Povoconstituindo em nação toda a população –

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sonho quimérico de uma humanidade que com ou sem piedade aposta nos galanteios da idéia de unidade política

a voz que acalenta desesperada buscapor um tesouro perdido um lema ainda ecoa-governar para unir toda naçãopopulação todatudo em um Povo só

3 Povo – um corpo político visceralmente governado

Para além de um conceito jurídico que defi ne o que Povo é, a Filosofi a do Direito permite pensar de que forma um Povo se torna possível como unidade política (?); de onde/de quem vem este “poder que emana do Povo” (?); que justifi ca agir em nome do Povo, falar em nome do Povo (?); que signifi ca governar um coletivo que se constitui Povo (?).

Povo é conceito que sobrevive ao próprio esvaziamento, sobrevive aos irreparáveis deslocamentos que abalam a consistência do signifi cado único; isto em um contexto histórico que tende a dicotomizar o discurso, pensando a política ainda em termos de categorias antagônicas: o homem e a natureza; o humano e o animal; a ciência e a política; a regra e a exceção; o caos e a Constituição; a democracia e o totalitarismo. Assim, uma dicotomia fomenta o conceito Povo já em sua vinda ao mundo que ainda é. O Povo e o povo que levará o Povo ao povo.

Em 1789, a Revolução Francesa se dá com a bandeira da soberania popular, e o povo aparece aí como classe excluída que, com a Revolução, passa a ter voz soberana, outrora monopólio do rei. O povo fl oresce como sinônimo de legítimo depositário da soberania.

Em 1863, o presidente dos Estados Unidos, Abraham Liconln, proferiu discurso que invocava o fortalecimento de um “governo do povo, pelo povo e para o povo” (discurso de Gettysburg). Perceptível aí um outro povo contraposto ao primeiro Povo.

Trata-se de construção histórica de um conceito polarizado que se mantém, polarizando-se: Povo como corpo político integral e povo como fragmento de desamparados.

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Nesse sentido, Povo é o conjunto de cidadãos em sua condição de corpo político unitário. Já povo é conjunto de indivíduos que formam uma “classe inferior” (os necessitados). Para além da defi nição de Povo fomentada pelo formalismo jurídico, o signifi cado político do termo permite entrever uma fratura na unidade pressuposta, localizando no Povo o povo, os desamparados, as minorias.

Num agora, povo é conceito que designa tanto o “sujeito político constitutivo” quanto a “classe que, de fato senão de direito, está excluída da política” (AGAMBEN, 2010, p. 31).

3.1 Povo – corpo impolítico que precisa ganhar movimento.

Em 1850, Lorenz von Stein escreve a obra “História do movimento social na França”. O conceito de movimento é construído na obra em contraposição ao conceito de Estado. Este é elemento estático, legal, sendo que o movimento é elemento dinâmico, é a expressão das forças dinâmicas na sociedade, é sempre movimento social (STEiN apud AGAMBEN, 2006, p.2).

Em 1933, o jurista nazista Carl Schmitt escreve ensaio intitulado “Estado, Movimento, Povo: a tripartição da unidade política”. A obra tem como objetivo defi nir a função político-constitucional do movimento, defendendo assim a estrutura constitucional do Reich nazista, cuja política se funda sobre três elementos: Estado (parte política estática – aparato das repartições); Povo (elemento impolítico que cresce à sombra sustentado pelo movimento); Movimento (verdadeiro elemento político, elemento dinâmico, autônomo – no caso do regime nazista, o Fuhrer seria a personifi cação do movimento). (SCHMiTT apud AGAMBEN, 2006, p.3-4).

Duas consequências são extraídas das considerações acima. Primeira: “o primado da noção de movimento é em função do fato de o povo se tornar impolítico”. Assim, o movimento surge como “conceito político decisivo quando o conceito democrático de povo, como corpo político, já está ultrapassado”. Atesta-se o fi m da democracia com o nascimento dos movimentos; e já não há movimento democrático, pois “os movimentos estabelecem o fi m do conceito de povo como elemento político” (AGAMBEN, 2006, p. 4).

A segunda consequência diz respeito ao fato de que “o povo é um elemento impolítico cujo crescimento o movimento precisa proteger e sustentar”. E quando “o povo deixa de ser corpo político constitutivo e se transforma em população, em entidade demográfi co-biológica”, o impolítico vem à tona e o movimento se torna uma necessidade (AGAMBEN, 2006, p.5).

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Mas se o povo é corpo impolítico, o governo do movimento é biopolítico por excelência, num movimento de politização dessa vida impolítica.

Se o elemento político não for o povo, mas o movimento como entidade autônoma, de onde o movimento pode tirar sua politicidade? A politicidade do movimento poderá basear-se unicamente na sua capacidade de identifi car no interior do povo um inimigo, ou seja, um elemento racialmente estranho – no caso de Schmitt. Onde há movimento há sempre uma cesura que corta o povo, que divide o povo, nesse caso identifi cando um inimigo. (AGAMBEN, 2006, p.6)

Em Schmitt, o movimento é um órgão vital, é uma “decisão política sobre o impolítico, sobre o que é impolítico no político” (AGAMBEN, 2006, p.6). Essa “decisão política sobre o impolítico” pode “ter a forma de uma cesura étnica ou racial, mas também, como acontece hoje, a forma de indicar uma tarefa de gestão e de governo daquele elemento impolítico que são as populações, o corpo biológico da humanidade, dos povos, que o poder hoje deve governar” (AGAMBEN, 2006, p.7).

Mas, em território de governo biopolítico, os movimentos do Povo (político) em nome do povo (impolítico), que (P)povo há de formar? E até que ponto deve-se insistir nessa obrigação de identifi car uma cesura no corpo impolítico do povo, criando uma identidade de espécie que transforma o Povo em povo?

3.2 Povo – corpo cujo impolítico deve ser politizado.

O governo do Estado-nação, pautado pela lógica formal de um poder que emana do Povo, da soberania popular, realiza a constituição da espécie humana em corpo político por meio de uma ruptura fundamental. De um lado, povo como vida nua, imersa em seu mero existir, em seu sobreviver, pautada pela lógica da exclusão. De outro lado, Povo como vida política, existência qualifi cada, em sua identidade jurídico-social, pautada pela lógica da inclusão (AGAMBEN, 2010, p. 32, 33).

Se a biopolítica é esse debruçar-se insistente sobre a mera existência dos indivíduos, sobre uma tal “vida nua”, para politizá-la, torná-la vida cidadã e no limite vida digna de ser vivida, o povo é espaço de governo biopolítico que revela essa ruptura, pois o povo “é a fonte pura de toda identidade mas que deve redefi nir-se e purifi car-se permanentemente por meio da exclusão, da língua, do sangue ou do território” (AGAMBEN, 2010, p. 33).

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O povo carrega consigo uma fratura biopolítica fundamental: “não pode ser incluído no todo do qual faz parte e não pode pertencer ao conjunto em qual já está incluído sempre” (AGAMBEN, 2010, p. 33).

O projeto biopolítico, que alimenta esta cisão (Povo X povo), historicamente revela-se tentativa desenfreada de colocar um fi m ao “povo dos excluídos”. E aí direita e esquerda, países capitalistas e socialistas, empenham-se rumo à produção de “um povo uno e indivisível”, uma vez que o ápice do projeto biopolítico é a produção de “um povo sem fratura alguma” (AGAMBEN, 2010, p. 34).

A biopolítica moderna orienta-se pelo princípio que em dupla face revela seus planos de ação: onde há vida nua (povo) deve advir um Povo e onde há um Povo deve advir a vida nua (povo).

Na Alemanha nazista, o governo biopolítico sustentou-se na ruptura entre Povo e povo para fomentar o projeto de produção de um Povo alemão, livre dos indesejáveis. O judeu, “símbolo vivente do povo”, caracteriza essa vida nua que a modernidade cria em seu interior e cuja presença é pouco tolerável (AGAMBEN, 2010, p. 35).

Os judeus foram alvo do intento nazista de costurar a fratura biopolítica fundamental. A estratégia era eliminar judeus, defi cientes, ciganos e outros não integráveis, como homossexuais e prostitutas, a fi m de trabalhar para o futuro dos demais Povos europeus. Assim, os chefes nazistas atribuíam para si, via eliminação do povo, a tarefa de produzir um Povo.

A “costura” da fratura biopolítica com a eliminação de indesejáveis, com a eliminação do povo, em verdade coloca todo o povo alemão na condição de “vida sacra consagrada à morte” e corpo biológico que deve ser constantemente purifi cado (daí também a eliminação de doentes mentais e portadores de enfermidades hereditárias). (AGAMBEN, 2010, p. 35).

Hoje, o projeto democrático-capitalista almeja pôr fi m, pelas vias do desenvolvimento, à existência de classes pobres (fi m ao povo dos excluídos), transformando em vida nua as populações dos países ditos primitivos, subdesenvolvidos, em desenvolvimento, ou seja, aqueles recantos que não evoluíram com o andar da caminhada civilizatória.

Ao povo o Povo a povoar-se

vai reúne num canto só canto orgulho-ressentido na gargantavai diz que é de muitos para todos o que já é o que virá

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brado que é grito juntado pulmão de muitos em uníssono entoar

um consolo que é lágrima encontroum rio de olhos salgados ciceroneia feridas

um corpo que pesa sei lá tantoque carrega sei lá quantocurvado de tanto arcar

com forma que com restrição tudo nele cabecom fama que todo conceito-esquadro manchetavai costura bandeirainfl a peito de nóspor um nós que caminha para lá para cá desde lá aqui dizem

caminha rebanho que é passo afoitoque é peito encolhido por ver escolhido um rumar de mil pésde tão sem abrigo já só calalembrança de voz que canta hino hasteando bandeira na esperança de um dia que seja para todoscada voz informe salva suspiro de vida diário

solve dissolve

alejando desaleja

num tempo entre muitos como cada ponteiro urgenum tudo entre todos como cada qual pode

de povo

povoar-sepovoarde-sepovo-ar-de-serpovo-há-de-ser-um-povoar-seaté o fi m sem fi m

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de tanto povo pouco apreço

de tanto povo caro preço

de tanto povo tudo é pouco

de tanto tudo povo rouco

4 Povoar-se refugiando-se: ao povo apenas povo A metáfora do povo como corpo é elemento interessante para pensar a

biopolítica que assumirá sua forma letal nos Estados totalitários. Porque será o “corpo biológico da nação” que estará em primeiro plano nos intentos do Reich nazista que, eliminando indesejáveis, buscará costurar a fratura biopolítica.

Apenas um Estado fundado “sobre a própria vida da nação podia identifi car como sua vocação dominante a formação e tutela do ‘corpo popular’”. A política passa a ser “o dar a forma à vida de um povo”, ainda que a lógica desse “dar a forma à vida” revele-se política de extermínio vivenciada em campos de concentração (AGAMBEN, 2002, p. 155).

A biopolítica moderna assinala uma espécie de zona de indiscernibilidade entre vida e política. “A vida que, com as declarações dos direitos humanos tinha se tornado o fundamento da soberania, torna-se agora o sujeito-objeto da política estatal” (AGAMBEN, 2002, p. 155).

E já não há Povo que não seja povo, vida nua incluída por exclusão. Diante da incontornável “decadência do Estado-nação” e da “corrosão geral das categorias jurídico-políticas tradicionais”, o refugiado é “a única fi gura pensável do povo” no tempo de agora (AGAMBEN, 2010, p. 21).

Assim, enquanto não findo o “processo de dissolução do Estado-nação e de sua soberania, o refugiado é a única categoria” que permite “entrever as formas e os limites da comunidade política que vem” (AGAMBEN, 2010, p. 21).

O que se observa é uma emancipação do Estado-nação de categorias que pareciam sólidas e efetivas como as noções de povo e cidadão. O refugiado é elemento inquietante uma vez que assinala a ruptura do vínculo entre “homem e cidadão”, entre “nascimento e nacionalidade” e coloca, portanto, em crise o conceito de Povo, de soberania.

Os Estados industrializados cultivam uma “massa residente estável de não-cidadãos, que não podem nem querem ser naturalizados nem repatriados”

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(AGAMBEN, 2010, p. 28). O refugiado que deveria encarnar os direitos do homem assinala justamente a crise desse conceito “direitos do homem”.

O refugiado mostra-se então terreno para “renovação categorial”. A tarefa consiste em abandonar os conceitos fundamentais até agora usados para representar os “sujeitos do político” (homem e cidadão com seus direitos; povo soberano) e reconstruir a fi losofi a política a partir do refugiado (AGAMBEN, 2010, p. 21).

Enquanto a trindade Estado-Povo-Território conviver com suas rachaduras, sobreviver de estilhaços, o refugiado, aparentemente marginal, será fi gura central da história política de agora (AGAMBEN, 2010, p. 27).

imaginar um continente não como conjunto de Povos, de Estados-nação, e sim como “um espaço aterritorial ou extraterritorial”. Todos os cidadãos e não-cidadãos seriam indivíduos em situação de êxodo ou de refúgio. O “estar-em-êxodo do cidadão” permitiria uma separação irredutível entre nascimento e nação, e o conceito de povo (sempre minoria) voltaria a encontrar um sentido político.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. homo sacer: o poder soberano e a vida nua i. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

__________. Medios sin fi n: notas sobre la política. Trad. Antonio Gimeno Cuspirera. 2. ed. Valencia: Pre-textos, 2010.

__________. Movimento. Trad. Selvino José Assmann. in: Revista internacional interdisciplinar iNTHERtesis – PPGiCH. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/748. Acesso em: março de 2013.

BONAViDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

BRASiL. Constituição da República Federativa do brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: março de 2013.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MiAiLLE, Michel. Introdução crítica ao direito. 3. ed. Trad. Ana Prata. Lisboa: Estampa, 2005.

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ORÇAMENTO PARTICIPATIVO à LuZ DA FILOSOFIA DA LIbERTAÇÃO DE hENRIquE DuSSEL

Alexandre Alberto Trannin1

Sumário: 1. introdução. 2. O Modelo Democrático de Estado na Constituição de 1988. 2.1. O controle popular como modelo de participação direta. 3. O Orçamento Participativo. 3.1. Dados estatísticos do orçamento participativo de Porto Alegre. 4. Filosofia da Libertação. 5. Análise do Orçamento Participativo sob a Luz da Filosofia da Libertação. 6. Conclusão.

Resumo: Este artigo começa estabelecendo a relação existente entre o modelo Democrático de Estado na Constituição de 1988 e a participação direta por meio do Orçamento Participativo (OP) para, então, apresentar alguns dados estatísticos do OP de Porto Alegre e traçar as linhas centrais da Filosofia da Libertação. O escopo desta pesquisa foi investigar se o Orçamento Participativo, analisado à luz da Filosofia da Libertação de Henrique Dussel, pode contribuir para inclusão crescente da sociedade periférica nas tomadas de decisões do governo local, tornando-se instrumento para atingir o bem comum. A pesquisa possibilitou concluir, segundo os dados estatísticos pesquisados e à luz da Filosofia da Libertação, que o OP permite transpor a semiótica da dominação, aceitando o âmbito de exterioridade em que se encontra o outro, e possibilita a superação do formalismo das leis do Sistema de Planejamento e Orçamento, engendrando uma legalidade libertadora, enquanto legitimação da exterioridade do Outro.Palavras-chave: Orçamento Participativo. inclusão. Filosofia da Libertação.

Abstract: This paper begins establishing the existing connection between the Democratic State model in the 1988 Constitution and direct participation through Participatory Budgeting (PB) to then present some statistics of the OP in Porto Alegre and draw the centerlines of the Philosophy of Liberation. The purpose of this research was to investigate whether the Participatory Budgeting, analyzed in light of the Philosophy of Liberation of Henry Dussel, could contribute to an increased inclusion of the peripheral society in the local government’s decision-making, becoming an instrument for achieving the commonweal. This research allowed me to conclude, according to statistic data researched and in light of the Philosophy of Liberation, that the PB allows transposing the semiotics of domination accepting the scope of externality where the other stands, as well as allowing the overcoming of the formalism of Planning and Budgeting System laws, engendering a liberating legality, as the legitimization of the exteriority of the Other.Keywords: Participatory Budgeting - inclusion - Philosophy of Liberation

1 Introdução

No Brasil, a democracia representativa nunca conseguiu fazer da política algo público. A tradição colonial, escravista, coronelista e populista é marcada

1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná/Campus Curitiba. Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Direito Administrativo, pela Universidade Estadual de Londrina. Mestrando em Ciência Jurídica na Universidade Estadual do Norte do Paraná-UENP. Ocupante do cargo de Corregedor-Geral do Município de Londrina – Prefeitura do Município de Londrina.

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pela privatização da coisa pública, apropriada por oligarquias e excludente das maiorias pobres. Ao invés do direito e da cidadania, a história brasileira foi marcada pelas prerrogativas dos privilegiados e pela exclusão. A política estatizada e limitada aos círculos ofi ciais excluiu a sociedade civil sempre impedida de constituir-se, uma vez que as manifestações e organizações sempre foram tratadas como caso de polícia. Viveu-se, durante longo período, uma cidadania negada, outorgada, concedida, regulada.

As demandas sociais foram severamente coibidas em um momento extremo da história que foi o regime militar instaurado em 1964. A seguir, as décadas de 70 e 80 marcam a emergência vigorosa de movimentos sociais, protagonistas da construção de uma nova sociedade civil autônoma que vem, desde então, articulando-se e enraizando-se por toda a sociedade brasileira, contribuindo no alargamento e fortalecimento da democracia, tradicionalmente tão frágil e restrita.

Mas o anseio do homem pela democracia, a qual é fruto do labor da humanidade ao longo de sua trajetória no tempo, ainda hoje persiste. Tal constatação se apresenta, se não como prova, pelo menos como forte indício de que há algo de relevante para o ser humano enquanto indivíduo e enquanto membro de uma sociedade não apenas a ideia de democracia, mas a efetiva realização desta no mundo fático.

A conquista de uma democracia mais apurada leva à vivência de uma cidadania cujo sentido ultrapassa os conceitos tradicionais do direito ao voto, fazendo emergir suas múltiplas dimensões: a cidadania civil, buscada nas lutas pela anistia e pela recuperação de direitos políticos; a cidadania social, conquista das reivindicações sociais por políticas sociais; a cidadania política, expressa na reivindicação da participação popular. A participação, que aparece desde então na fala dos movimentos sociais, exige mais do que o direito de inclusão na sociedade, exige o direito de participar da defi nição do tipo de sociedade em que se quer ser incluído.

Esta conquista cidadã do direito de participar da gestão dos destinos da sociedade, expressou-se no processo constituinte que se seguiu a esse forte momento de mobilização social após o enfraquecimento da ditadura, à custa de muito sangue derramado nas masmorras brasileiras.

A Constituição Federal de 1988 erigiu o Estado Democrático e Social de Direito, cujas colunas mestras são os direitos fundamentais e a democracia, cujo desiderato é a realização da dignidade da pessoa humana. Ademais, constitucionalizou-se o direito dos cidadãos de participar diretamente da

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política, indo além da democracia representativa. Para tanto, foram criados canais de participação junto ao Legislativo, a iniciativa Popular Legislativa e as Audiências Públicas; junto ao Executivo, os Conselhos; junto ao Judiciário, a Ação Popular. Constituem-se em instrumentos a possibilitar uma efetiva participação paritária entre Estado e sociedade.

A redemocratização do país implica um ideário democrático e participativo com a implementação de políticas de participação popular. Entre essas políticas, destaca-se o chamado Orçamento Participativo (OP), com aplicação nacional e internacional. Trata-se de uma forma de participação social sobre o orçamento público e como metodologia de gestão pública participativa ganhou destaque nacional e internacional com a experiência de Porto Alegre-RS, iniciada em 1989.

O escopo desta pesquisa é o de analisar o OP à luz dos fundamentos da Filosofi a da Libertação. Para tanto, buscar-se-á contextualizar o OP no modelo de Estado pós Constituição de 1988, para, em seguida, apresentar dados teóricos do OP, bem como alguns indicadores da participação popular no OP de Porto Alegre, destacando como referencial teórico Luciano Fedozzi, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Vencida esta fase, serão apresentados os fundamentos da Filosofi a da Libertação de Henrique Dussel, para, ao fi nal, analisar o OP sob esses fundamentos a fi m de concluir se o OP contribui para o diálogo entre os que fi caram à margem das construções ideológicas sociais e das estruturas de poder.

2O Modelo Democrático de Estado na Constituição de 1988

No parágrafo único do Artigo 1º da Constituição de 1988 está estabelecido: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ainda, determina o constituinte:

Art. 14 – A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:- plebiscito;- referendo;- iniciativa popular.

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Por estes dispositivos constitucionais, pode-se extrair duas espécies de participação: a direta e a indireta. A participação indireta ou democracia representativa refere-se ao sufrágio universal para a escolha de representantes que exercerão o poder político em nome do povo. O voto do cidadão, então, representa a titularidade do poder estatal ao povo; e, constituindo como direito, o voto é um exercício de cidadania.

No entanto, além disso, a Constituição de 1988 reconheceu como fundamental a liberdade de participação política do sujeito no poder, de forma direta (democracia participativa), nos casos previstos no próprio texto constitucional, pelo que pode se denominar como reserva de poder. isto é, a despeito da tendencial concentração do poder em instituições legitimadas, há uma reserva de poder com exercício direto do cidadão, essencial à dignidade humana.

Tratando do assunto, SiLVA escreveu:

é no regime da democracia representativa que se desenvolvem a cidadania e as questões da representatividade, que tende a fortalecer-se no regime da democracia participativa. A Constituição combina representação e participação direta, tendendo, pois, para a democracia participativa. é o que, desde o parágrafo único, do art. 1º, já está confi gurado, quando, aí, se diz que todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos (democracia representativa) ou diretamente (democracia participativa). Consagram-se, nesse dispositivo, os princípios fundamentais da ordem democrática adotada. (1988, p. 141-141)

Nesse sentido, a Constituição de 1988 assegurou canais de participação direta que dizem respeito tanto aos limites (reserva de ação), quanto ao controle (reserva de reação). São estes, por exemplo, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Além destes, há também outros mecanismos como o das ações populares.

Os canais mencionados constituem em exercícios eventuais de participação que não se refere ao cotidiano da sociedade. Mas também há, no texto constitucional, outros canais de participação mais efi cientes, efi cazes, de maior abrangência e de legitimidade, capaz de garantir a interação popular com a atividade do poder estatal sob as perspectivas da participação do cidadão na formação e controle de determinadas políticas públicas.

Constitui-se em exemplo de participação de ação na Constituição: as ações e serviços públicos de saúde (Art. 198, iii); as ações governamentais

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de assistência social (Art. 204, i e ii); e as ações relacionadas aos direitos da criança e do adolescente (art. 227).

Ainda, a participação popular na formulação e controle (reserva de ação e de reação) das políticas públicas, previstas na Constituição, torna real a norma estatuída no parágrafo único do artigo 1º da CF, supra citado, permitindo o exercício do poder popular de forma direta.

Todavia, infelizmente, os mecanismos para a participação direta não fazem parte do cotidiano político do cidadão brasileiro, o qual, na maioria das vezes nem os conhece. é necessária uma educação cidadã para que esses instrumentos integrem a realidade do povo brasileiro.

3 O controle popular como modelo de participação direta

A participação popular possui conceitos que se vinculam ao poder político, entretanto convém salientar as prerrogativas da Administração Pública que se exprimem por meio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado na atividade administrativa; mas, essas prerrogativas suportam limitações. Com efeito, sendo a atividade administrativa o desempenho de função, quem a exerce se sujeita ao dever de buscar o interesse público de outrem, e para se desincumbir desse dever necessita manejar poderes, logo, quem exerce função tem deveres-poderes, residindo a tônica na idéia de dever e não de poder, como salienta MELLO (2001).

O sistema de controle de poder é essencial à existência de um Estado de Direito, e a sua abertura a ampla participação política confi gura, por seu turno, um Estado de Direito Democrático. As regras, por sua vez, que estabelecem a convivência democrática pressupõe a existência de um Estado submetido à legalidade, pois a legalidade é pré-condição para que se alcance plenamente a legitimidade.

SiLVA (1998, p. 165) identifi ca entre os direitos coletivos na Constituição outra forma de direito de participação, denominado-a de direito de participação da comunidade, do qual se extrai o direito de fi scalização popular das contas do Município, pelo contido no § 3º do artigo 31 da Constituição, proporcionando uma participação de natureza comunitária, não corporativista.

Com um aperfeiçoamento do Estado de Direito Democrático se ampliou os mecanismos que integram o controle social na Administração Pública, especialmente no que se refere à atuação do Tribunal de Contas e às funções afetas ao Ministério Público neste âmbito.

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é possível, então, vislumbrar um aperfeiçoamento da gestão fi scal. Para tanto, cumpre destacar o papel das organizações não-governamentais na capacitação da população que possibilita a integração entre o controle estatal e o controle social que se origina na sociedade civil organizada. E, como valioso instrumento de efetividade do controle social, merece destaque a experiência de interação popular com orçamento público que inclui a formulação das políticas públicas e a fi scalização das ações governamentais, visando a maior participação popular nos centros do poder.

4 O Orçamento Participativo

A redemocratização do país implica um ideário democrático e participativo com a implementação de políticas de participação popular. Entre essas políticas destaca-se o chamado Orçamento Participativo, com aplicação nacional e internacional.

O Orçamento Participativo (OP) é uma forma de participação social sobre o orçamento público que teve início com o Conselho Popular do Município de Vila Velha-ES, que, no período de 86-88, realizou o debate do Orçamento Municipal. Como metodologia de gestão pública participativa, ganhou destaque nacional e internacional com a experiência de Porto Alegre-RS, iniciada em 1989, sob a administração do PT (PONTUAL, 2000).

Para FEDOZZi, o Orçamento Participativo trata-se:

[...] de uma experiência inovadora de gestão local baseada no exercício da democracia participativa, isto é, na complementaridade entre as formas tradicionais de representação política e a participação popular para a confecção do orçamento, especialmente na escolha das prioridades dos investimentos. (2001, p. 92).

Transcorridos alguns anos após a implantação do OP, outras cidades brasileiras adotaram esta forma de participação popular no orçamento, sendo que no Brasil são quase duzentas cidades. Essa experiência também se verifi cou em outras cidades dos países da América Latina, como em Montevidéu, San Salvador e Rosário. Na Europa, registra-se Barcelona, Córdoba e Rubi na Espanha; Saint-Denis, Morsang-sur-Orge e Bobigny na França; Pieve Emanuele na itália; Palmela em Portugal; Manchester na inglaterra e Mons na Bélgica, todas sugeridas como modelos de democracia participativa que estão

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relacionadas ao exemplo de Porto Alegre (PONTUAL, 2000).

Dados estatísticos do orçamento participativo de Porto Alegre (OP-PoA)

Os dados estatísticos ora apresentados foram pesquisados na 6ª publicação intitulada “Observando o Orçamento Participativo de Porto Alegre, perfi l social e associativo, avaliação, formação de uma cultura política democrática e possíveis inovações”, organizada pelos técnicos do Observatório da cidade de Porto Alegre (ObservaPoA) em conjunto com Luciano Fedozzi, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Tabela 1: Participação Percentual no OP-PoA, por sexo

Sexo 1993 1995 1998 2000 2002 2005 2009Feminino 46,7 46,8 51,4 57,3 56,4 52,8 54,7Masculino 46,6 52,2 48,4 41,5 43,3 47,2 44,8NR 5,7 1,0 0,2 1,3 0,4 - 0,5Total 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Nuñez e Fedozzi (1993); Fase, PMPA, Cidade e Abers (1995); Cidade (1999, 2002 e 2003); Fedozzi (2005); Fedozzi/UFRS e ObsrvaPoA(2009).

Os dados permitem constatar que na média dos anos apresentados, o

percentual de participação de mulheres foi de 52,3% e de homens foi de 46,28%, sendo a participação feminina superior à masculina em 6,02%.

Tabela 2: Participação percentual no OP-PoA segundo raça/etnia declarada

Raça/Etnia 1995 2000 2002 2009Negra/Parda 11,8 20,9 23,0 27,7branca 71,4 62,3 55,7 56,4Indígena - 3,6 6,6 2,7Amarela - 0,5 - 0,2Outras 14,1 4,4 14,8 2,6NR 2,7 8,3 0,1 0,4Total 100 100 100 100

Fonte: Fase, Cidade, PMPA, Abers (1995); Cidade (2002,2003), Fedozzi/UFRS e ObsrvaPoA(2009).

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Para análise da tabela será considerada somente a etnia branca e negra/parda, desconsiderando-se as demais em razão da baixa participação. Os dados consolidados na tabela demonstram que a população participante das assembleias do OP, na sua maioria, declarava ser de cor branca. No decorrer dos anos, aumentou em 15,9% o percentual dos que se declaravam ser negros/pardos e diminuiu em 15% o percentual dos que se declaravam brancos.

Dados do iBGE apontam que a população negra/parda residente em Porto Alegre era de 16,56% segundo o Censo/2000 e 20,24% - Censo/2010. A população branca residente era de 82,41% em 2000 e de 79,23% em 2010. Analisando o total das populações negra/parda e branca residente em Porto Alegre, e daquelas participantes das assembleias, denota-se que a participação das etnias no OP é diretamente proporcional, em termos percentuais, à população total por etnia residente na cidade, com pouca diferença para mais ou para menos.

Tabela 3: Participantes do OP-PoA segundo renda familiar, por faixa de salários mínimos.

Faixa de Salários Mínimos 1998 2000 2002 2005 2009Até 1 salário - - - - 19,6Até 2 salários 30,9 24,9 39,4 49,8 52,5De 2 a 4 salários 26,1 29,3 29,9 26,4 28,7De 4 a 8 salários 21,1 22,7 18,4 13,0 12,7De 8 a 12 salários 9,7 10,0 5,1 4,3 2,9Mais de 12 salários 12,2 13,1 7,2 3,4 2,0Sem rendimento - - - - 0,7NS - - - - 0,1NR - - 0,4 3,1 0,3Total 100 100 100 100 100

Fonte: Cidade (1999, 2002, 2003); Fedozzi (2005); Fedozzi/UFRS e ObservaPoA (2009).

Tabela 4: Classe Social segundo SM

Classe social Salário mínimo - SMA Acima de 20 SMb 10 a 20 SMC 04 a 10 SMD 02 a 04 SME Até 02 SM

Fonte: iBGE (dados organizados pelo autor)

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Os dados demonstram, claramente, que o maior percentual de participantes, em todos os anos analisados, é proveniente das classes D e E, com expressiva participação desta no ano de 2009.

5 Filosofia da Libertação

Na introdução deste estudo, afi rmou-se que a história brasileira foi marcada pelas prerrogativas dos privilegiados e pela exclusão, resultado de uma tradição colonial, escravista, coronelista e populista. O início da história brasileira não se deu com o descobrimento pelos portugueses, o que se iniciou a partir desse fato foi a exploração e dominação das culturas indígenas que aqui estavam há milênios.

A cultura colonialista de dominação foi incorporada pela política estatizada e limitada aos círculos ofi ciais excludentes da sociedade civil, e ainda hoje esse modelo metodológico da dominação tem seus refl exos na realidade concreta do povo brasileiro, em que pese a Constituição Federal de 1988 ter erigido o Estado Social e Democrático de Direito.

é preciso superar os métodos etnocêntricos europeus centrados em uma refl exão ontológica que, até hoje, continuam justifi cando as relações de dominação, a partir da construção de métodos que privilegiem a dimensão ético-antropológica, sendo este o projeto da Filosofi a da Libertação de Henrique Dussel.

Henrique Dussel iniciou seu pensamento na tradição fi losófi co-hermenêutica, preocupando-se com o desenvolvimento de uma visão hermenêutica da América Latina, cujo ponto de partida era a história antiga da Ásia e da Europa a partir de 1492 (DUSSEL, 1995). Quando Dussel descobre a obra de Emmanuel Lévina, Totalité et Infi nit. Essai sur l’Exteriorité, que falava do outro como ‘pobre’, ele deixa a ética ontológica, inspirada em Heidegger, e adota uma ética da libertação latino-americana. Então, a preocupação inicial da Filosofi a da Libertação consistiu em “[...] descobrir o ‘fato’ opressivo da dominação em que sujeitos se constituem ‘senhores’ de outros sujeitos ...”. (DUSSEL, 1995, p. 18).

Essa dominação se dá de várias formas porque o outro é o pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulações ideológicas e, acima de tudo, esse outro é a origem e a raiz da afi rmação do “eu próprio”, porque é no ato de justiça para com o outro

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que o nosso próprio EU se auto-compreende, refl exivamente, como um valor. (DUSSEL, 1995).

Ao apelo do outro deverá ser dada uma resposta responsável, e isso é uma questão de consciência ética, que permite abrir-se para o que é exterior a ela, diferente da consciência moral, por meio da qual se aplica somente os princípios do sistema vigente. Mas, para responder com responsabilidade ao sofrimento do outro é necessário, primeiramente, ter se comovido com a dor e o sofrimento do outro. (DUSSEL, 1995).

A Filosofi a da Libertação tem como fi m maior alcançar a razão do outro excluído, à margem de um sistema hegemônico, que não permite diferenciar o rosto humano do próprio sistema, passando a ser visto como uma coisa. A libertação é enxergar o rosto do outro em sua total exterioridade, como outro humano e não como um mero instrumento do sistema . Ao se revelar como exterioridade, ou seja, livre, o outro foge da totalização instrumental, e no seu mistério não pode ser possuído, está incondicionado ao sistema.

O outro excluído também tem suas razões para propor, para interpelar contra a exclusão e defender sua inclusão na comunidade, afi nal, tem o direito de participar e poder levar a cabo esse direito.

“Este é o tema da fi losofi a vigente no mundo da periferia, isto é, no ‘Sul”, é o tema da Filosofi a da Libertação, libertação da exclusão, da miséria, da opressão: este é o fundamento (Grund), ‘a razão do Outro’, que tem o direito de apresentar as suas razões”. (DUSSEL, 1995, pg. 78).

Vale dizer então, que a libertação se opera para além da quebra do jugo dominante versus dominado ou inclusão do excluído, realizando-se, em última análise, quando o outro, na comunidade, expõe suas razões e alcança o direito de não somente ser incluído, mas escolher a sociedade na qual quer ser incluído, participando das instituições, das decisões e do processo político.

As instâncias do poder político recebem infl uência, e porque não dizer controle, daqueles que detém poder econômico, os quais têm acesso direto aos gabinetes dos representantes do povo eleitos pelo voto da maioria - aqui se verifi ca a exclusão do povo dos centros do poder, onde as decisões são tomadas em detrimento de uma maioria e a favor de uma minoria que controla o capital e o mercado.

Neste processo, o Estado Social pode tornar-se um ente assistencialista, e em nome de uma pretensa inclusão social, distribuir alguns benefícios sociais, mas, a bem da verdade, manter o povo bem distante das instâncias de poder,

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onde as decisões são tomadas, impedindo o recrudescimento da democracia participativa.

O processo histórico de dominação pelo qual passaram os povos da América Latina repercute hodiernamente na participação negativa dos cidadãos na ordem política vigente, na formulação das leis e no acesso à justiça. Para mudar esse processo, o conceito de libertação, extraído da ética da alteridade de Dussel, revela-se como importante ferramenta fi losófi ca para a análise crítica do sistema político, legislativo e jurídico instaurados, os quais existem para manter o lucro e o poder. Na perspectiva de Dussel, é imprescindível a inserção do paradigma da vida humana na ordem política, jurídica e legislativa vigente a fi m de restaurar a dignidade negada da vida do excluído.

6 Análise do OP sob a Luz da Filosofia da Libertação

O Estado não dispõe de recursos próprios; por isso, arrecada-os da sociedade por meio dos tributos. A receita arrecadada fará frente às despesas para atender às políticas públicas, e todo esse processo deverá ser articulado pelo Sistema de Planejamento e Orçamento. A Carta Magna criou três instrumentos de planejamento e distribuição dos recursos na Administração Pública, os quais se ligam, hierarquicamente, em etapas diferentes. Dispõe o texto constitucional:

Art. 165 – Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:i – o plano plurianual; (PPA)ii – as diretrizes orçamentárias; (Lei de Diretrizes Orçamentária – (LDO)iii – os orçamentos anuais. (Lei Orçamentária Anual – (LOA).

A partir desse dispositivo, o legislador constituinte criou um sistema orçamentário composto por instrumentos que impõe ao Administrador não somente uma estimativa de receitas e despesas para o exercício seguinte, mas criou um elo entre esses instrumentos cuja fi nalidade é a integração entre orçamento e planejamento.

O PPA, a LDO e a LOA constituem os instrumentos de planejamento que dão suporte à elaboração e à execução orçamentária brasileira. Pela análise conjunta desses três instrumentos, depreende-se que a concepção do processo de planejamento e orçamento no Brasil confere ao PPA, à LDO e à LOA uma atuação integrada.

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A Constituição Federal atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pelo sistema de planejamento e orçamento, o qual tem a iniciativa para elaboração dos projetos de leis do PPA da LDO e da LOA, que são encaminhados ao Poder Legislativo para deliberação e votação.

A importância do sistema de planejamento e orçamento é inconteste, pois por meio dele a receita arrecadada pelo Estado, por meio dos tributos, é gasta segundo as metas e objetivos constantes do PPA, LDO e LOA. Entretanto, esse sistema é articulado nos centros do poder, distante da participação popular, e o diagnóstico da execução orçamentária não passa pelo controle social.

Nesse contexto, o Orçamento Participativo (OP) surge como importante instrumento para que o povo participe mais diretamente das escolhas de políticas públicas que irão integrar o sistema, bem como, para exercer um controle social do gasto público com vistas à aplicação dos recursos arrecadados de forma a atender as necessidades da comunidade.

Na perspectiva da Filosofi a da Libertação o OP não esta dentro da totalidade, mas é uma exigência que parte da exterioridade contra as falácias do formalismo legalista do Sistema de Planejamento e Orçamento que representa as escolhas do centro do poder, e, ao romper com a hegemonia desse sistema, o OP transforma-se em instrumento democrático-pedagógico de controle social.

é certo que o OP contribui para atenuar a dominação política exercida pelos poderes instituídos, pois o poder central (Executivo/Legislativo) tem diminuída a sua hegemonia a partir da ação da sociedade organizada que passa a eleger as políticas públicas a serem inseridas na peça orçamentária e a controlar o resultado do gasto público.

Na perspectiva de Dussel a libertação legitima-se enquanto luta dos excluídos por seus direitos, e essa luta desenvolve-se em diversas frentes, pois o excluído é o pobre, são as raças discriminadas, são os sexos oprimidos, são os velhos descartados, as crianças subjugadas, e tantas outras. Mas, indubitavelmente, os pobres são as maiores vítimas do sistema social capitalista.

As tabelas do tópico dois deste estudo apresentam dados estatísticos que revelam algumas características dos participantes das assembleias do OP de Porto Alegre, e, ao analisá-las, conclui-se que:- a partir do ano de 2000 o número de mulheres participantes no OP foi

superior ao de homens (tabela 1);- a participação das etnias negra/parda e branca no OP é diretamente

proporcional, em termos percentuais, à população total por etnia residente na cidade de Porto Alegre, com pouca diferença para mais ou para menos, sendo que no decorrer dos anos foi crescente a participação da raça negra/

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parda e decrescente da branca (tabela 2);- o maior percentual de participantes, em todos os anos analisados, é

proveniente das classes D e E, com expressiva participação desta última no ano de 2009 (tabelas 03 e 04).

Os dados revelam que o OP de Porto Alegre tem auxiliado a participação, no sistema político local, de categorias historicamente excluídas como os negros e as mulheres. Mas, acima de tudo, apontam que o grande número de participantes é proveniente das classes D e E, portanto, pessoas pobres, que adquiriram a consciência da necessidade de participar do Orçamento, revelando-se como uma forma de luta contra a ordem política vigente e injusta.

O OP tem possibilitado que o outro excluído apresente suas razões para a escolha das políticas públicas locais, defendendo sua inclusão na comunidade a partir do seu direito de participar e interpelar contra a exclusão.

7 Conclusão

Diante da questão formulada no presente estudo, evidencia-se a possibilidade do Orçamento Participativo ser um instrumento idôneo para a participação social em área restrita formalmente ao Estado, como é o caso do Sistema de Planejamento e Orçamento. Contudo, não só. Os dados estatísticos pesquisados, os quais apontam as características dos participantes do OP de Porto Alegre, revelam, à luz da Filosofi a da Libertação, que o OP permite transpor a semiótica da dominação aceitando o âmbito de exterioridade onde se encontra o outro.

O negro, a mulher e o pobre, participantes do OP, expõem suas razões na eleição das políticas públicas e marcam esta forma de participação social no orçamento com a alteridade, que possibilita a superação do formalismo das leis do Sistema de Planejamento e Orçamento, engendrando uma legalidade libertadora, enquanto legitimação da exterioridade do Outro.

A partir deste estudo pode se extrair também a idéia de que OP rompe com a dicotomia entre Estado e sociedade, viabilizando a democracia participativa, cujo conceito está intimamente ligado com o conceito de libertação proposto por Henrique Dussel.

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Referências

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DUSSEL, Henrique. Critica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

FEDOZZi, Luciano. et al. Observando o OP de Porto Alegre, perfi l social e associativo, avaliação, formação de uma cultura política democrática e possíveis inovações. 6. ed. Disponível em:

http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/livreto_virtual_para_pdf_portugues_ultimo.pdf - acesso em 20/02/2013.

______. Orçamento participativo. Refl exões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial; Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal, 2. ed., 1999.

____________. Práticas inovadoras de gestão urbana: o paradigma participativo. Revista paranaense de Desenvolvimento - IPARDES, Curitiba, n. 100, p. 93-107, jan./jun. 2001, disponível em: http://www.ipardes.gov.br/publicacoes/revista_pr/revista_pr.htm, - acesso em 27/02/2013.

GiACOMONi, James. Orçamento público. 14. Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2007.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

PONTUAL, Pedro de Carvalho. O processo educativo no orçamento participativo: aprendizados dos atores da sociedade civil e do Estado. 2000. Tese (Doutorado em Educação) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

SiLVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

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ESTÃO DEMOCRáTICA DAS CIDADES: OS MOVIMENTOS SOCIAIS COMO INSTRuMENTO DO EFETIVO

ExERCÍCIO DA CIDADANIA1

Ivan Martins Tristão2

Caroline Gonzalez Castro3

Sumário: 1. introdução. 2. Trajetória da Reforma Urbana e os Movimentos Socais. 3. Novidades apresentadas pelo Estatuto da Cidade. 3.1. Estatuto da Cidade e Gestão Democrática. 4. Novos Desafios para a Concretização de uma gestão efetivamente democrática. 5. Conclusão.

Resumo: Aprovado em 2001, com o intuito de regulamentar o artigos 182 e 183 da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade surge trazendo a esperança de uma efetiva gestão democrática com a criação de novos instrumentos e mecanismos que visam enfrentar as desigualdades que marcam o cenário urbano brasileiro. A atuação dos Movimentos Sociais, neste contexto, é de fundamental importância para incrementar a gestão democrática das cidades, pois refletem o poder da sociedade organizada e legitimam seu desenvolvimento em prol de uma melhor qualidade de vida para a coletividade. O problema se verifica em razão da falta de iniciativa efetiva da população em participar dos rumos da cidade. Com efeito, pretende-se demonstrar a vital importância da cultura de participação popular, assim como as dificuldades de implementação do estatuto devido aos poderes econômicos envolvidos na sociedade brasileira e sua consequente pressão em detrimento dos direitos e necessidades da maioria esmagadora da população. Com base doutrinária e exemplos de casos reais, busca-se analisar a situação, por meio do método lógico dedutivo, e demonstrar que os Movimentos Sociais, que já contribuíram sobremaneira para a consolidação de direitos os quais hoje se encontram disciplinados em diversos textos legais, como o Estatuto da Cidade, precisam continuar sendo aprimorados para efetivar ainda mais suas potencialidades, promovendo democracia e bem-estar social, com o objetivo de contribuir com uma gestão equilibrada das cidades, proporcionando efetividade dos direitos já conquistados e também a contínua luta para a consolidação de mais direitos. Palavras-chave: Estatuto da Cidade. Democracia participativa. Movimentos Sociais.

Abstract: Approved in 2001 for the purpose of regulating the articles 182 and 183 of the Federal Constitution, the City Statute arises bringing hope of an effective democratic management with the creation of new instruments and mechanisms to address the inequalities of the Brazilian urban setting. The role of social movements in this context is of fundamental importance to increase the democratic management of cities, since they reflect the power of organized society and legitimize its development towards a better quality of life for the community. The problem occurs because of a lack of initiative effective of population to participate in the direction of the city. indeed, we intend to demonstrate the vital importance of the culture of popular participation, as well as the difficulties of implementation status due to economic powers involved in Brazilian society and its consequent pressure over the rights and needs of the overwhelming majority of 1 Pesquisa decorrente dos estudos do Projeto de Pesquisa: “07329 - Acesso à Justiça: A instrumentalidade

do Processo Frente à Jurisdição” (UEL).2 Mestre em Direito Negocial (UEL). Especialista em Direito Empresarial (UEL). Professor Universitário

(UEL). Advogado.3 Graduanda em Direito na Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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the population. Based in doctrine and examples of real cases, we try to analyze the situation, through logical deductive method, and show that the social movements, which have contributed greatly to the consolidation of rights that today are disciplined in several legal texts, as the City Statute, must continue to be improved further to eff ect their potential, promoting democracy and welfare, in order to contribute to a balanced management of cities, providing realization of the rights already won and also the continuing struggle for the consolidation more rights.Keywords: City Statute. Participatory Democracy. Social Movements.

1 Introdução

Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, ocorreram grandes problemas urbanos provocados principalmente devido a uma migração camponesa de difícil absorção pelas cidades, o que culminou em uma situação de vida insustentável à população e, logo, no surgimento de movimentos sociais em todo país. Estes, juntos com setores da academia, trouxeram críticas fundamentais ao planejamento urbano tecnocrata que vigia na época e ao modo de tratar e intervir do governo no âmbito municipal.

A infl uência dos movimentos sociais foi intensifi cada a partir do fi nal da década de 70 e início dos anos 80, por conta do processo de redemocratização vivenciado no país. Surgiram novos paradigmas, principalmente os relacionados à exigência de um padrão de gestão pública de base democrática em oposição ao tradicional modelo implantado historicamente e aprimorado no regime militar de traço centralizador e impositivo.

Com a Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986, o ideário da reforma urbana ganhou corpo conceitual e maior consistência política, haja vista que admitia a realização de audiências públicas e apresentação de propostas de iniciativa popular. Por meio das chamadas “emendas populares”, o tema da política urbana incorporou-se ao processo constituinte com maior expressão social, o que ensejou seu reconhecimento político que teve seu ápice na promulgação da Constituição de 1988.

Sendo assim, o marco histórico desse processo de reestruturação de premissas fundamentadoras da intervenção estatal nas cidades foi justamente a Constituição de 1988, que enfatizou a descentralização político-administrativa e atribuiu ao município o papel de ativo executor de Programas Sociais, delegando-lhe responsabilidades até então inusitadas, o que não é de se surpreender, tendo em vista que a promulgação da referida Constituição ocorreu quando as cidades já abrigavam 80% da população brasileira. Além disso, a nova Constituição abriu possibilidades para que se criassem mecanismos

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de participação e democratização como plebiscitos, referendos, projetos de iniciativa popular, controle do Orçamento Público e outras medidas as quais privilegiam as Câmaras Municipais e fortalecem o município.

Fruto das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade, aprovado treze anos depois, trouxe aplicabilidade às normas constitucionais, especialmente em relação aos princípios da função social da cidade e da propriedade urbana disciplinados nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal.

Após anos de inúmeras movimentações em prol de uma cidade mais justa e equilibrada, em junho de 1989, o Senador Pompeu de Souza, jornalista e professor, apresentou um projeto que vislumbrava consolidação da função social de municípios e propriedades privadas, identifi cou-o como “Projeto de Lei do Senado (PLS) n° 181, de 1989 (Estatuto da Cidade)”. Tal projeto foi aprovado no Senado exatamente um ano depois e enviado à Câmara dos Deputados, onde permaneceria por 11 anos e seria reformulado por diversas vezes.

Na justifi cação de seu projeto, Pompeu de Sousa afi rmava que pretendia conter a

[...] indevida e artifi cial valorização imobiliária, que difi culta o acesso dos menos abastados a terrenos para habitação e onera duplamente o poder público, forçado intervir em áreas cuja valorização resulta, na maioria das vezes, de investimentos públicos, custeados por todos em benefício de poucos.

Doze anos após sua aprovação, muitos foram os avanços conquistados, porém ainda há muito a se percorrer para a conquista de uma gestão efetivamente democrática. Em todo este histórico de luta, os Movimentos Sociais tiveram papel de destaque tanto no pleito de novos direitos como na efetivação dos já consolidados.

Pretende-se demonstrar o papel da sociedade ativa como instrumento da emancipação política da população e de efetivação do Estatuto da Cidade, as barreiras percorridas e as difi culdades em tornar a administração pública uma aliada da população e não uma mera representante dos interesses dos poderes preponderantes como se tem observado ao longo da história.

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2 Trajetória da reforma urbana e os movimentos sociais

O sociólogo ilse Scherer Warren conceitua movimento social como a organização de um grupo em busca de libertação, ou seja, a união de um determinado número de pessoas para superar alguma forma de opressão e para atuar na produção de uma sociedade modifi cada, fazendo isso de forma ativa (WARREN, 1984). Segundo o autor, o termo “movimentos sociais” surgiu com Lorenz Von Stein, por volta de 1840, quando este defendia a necessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, tais como o movimento proletário francês e do comunismo e socialismo emergentes.

Desde então, alguns critérios têm sido utilizados repetitivamente na caracterização dos movimentos sociais: referem-se a um grupo mais ou menos organizado, sob uma liderança determinada ou não; possuindo um programa, objetivos ou plano comum; baseando-se numa mesma doutrina, princípios valorativos ou ideologia; visando um fi m específi co ou uma mudança social.

Os movimentos sociais no Brasil têm sua história marcada, pelos grandes embates realizados contra os governos autoritários, sobretudo ainda nas lutas pela liberdade e democracia, foi na década de 70 e parte da década de 80 que os movimentos sociais ganharam força e visibilidade no Brasil.

Com a urbanização desenfreada das cidades, ocorrida principalmente na década de 60 e seguintes, emergiram discussões sobre as questões urbanas, já que os municípios começaram a sofrer com a forte e rápida demanda de pessoas não estando aparelhados pelo Estado para tanto. Assim, problemas como falta de água tratada, redes de esgoto, coleta de lixo entre outros eram frequentes, para não dizer regra nos bairros mais carentes.

Sabe-se que a ocupação do espaço urbano brasileiro é historicamente marcada por intensa desigualdade, discriminação e exclusão social. A ausência de um planejamento para as cidades intensifi cou a expansão desordenada das periferias, em especial nas áreas metropolitanas, consolidando, por sua vez na cidade formal, um mercado imobiliário restritivo e especulativo. isso retrata a modernização incompleta de um país em desenvolvimento, e, por consequência, a sua desagregação no contexto global. Não se planejaram as cidades para classes mais pobres; pelo contrário, para estas, restou ocupar o espaço informal das periferias, muitas vezes situados em áreas de risco.

Essa situação de gritantes injustiças sociais resultou na organização de movimentos sociais e populares voltados para reivindicação de conquistas e

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direitos sociais, culminando na formação de diversos tipos de mobilizações: movimentos de gênero, feminista, ambientais, moradores da favela, pelo custo de vida, loteamentos clandestinos, além das associações de moradores, amigos de bairro e federações comunitárias, entre outros. Tais mobilizações eclodiram especialmente nos grandes centros a partir da década de 1970. Dentre estes movimentos, destacam-se o Movimento Sem Teto e de luta por moradia, pois desenvolveram práticas sócio-territoriais voltadas para a conquista da justiça social, tendo sido forte meio pressão para a melhoria das condições de vida nas cidades.

A primeira proposta de reforma urbana formulada no Congresso ocorreu em 1963, promovida pelo instituto dos Arquitetos do Brasil. Porém, a realização dessa reforma foi inviabilizada devido ao golpe militar de 1964, que constituiu um regime político autoritário (o qual se estendeu até 1984), impedindo assim o avanço das discussões. Entretanto, mesmo sob a ordem ferrenha do Ai-5, a luta por uma vida digna nas cidades não cessou. Se, por um lado, o Ato institucional número 5 representou o ápice de opressão do Estado, por outro fez que as mobilizações se tornassem mais estratégicas e organizadas e menos espontâneas.

Os temas da reforma urbana ganharam mais evidência nos anos 1970 e 1980, época de abertura lenta e gradual da liberdade de expressão, em que os movimentos sociais aos poucos ganhavam mais visibilidade e relevância política e eram capazes de construir um discurso e uma prática social marcada pela autonomia. As suas reivindicações eram apresentadas como direitos, com o objetivo de reverter as desigualdades sociais com base em uma nova ética social, cuja dimensão importante era a politização da questão urbana, compreendida como elemento fundamental para o processo de democratização da sociedade brasileira.

A igreja Católica teve um importante papel na afl oração dos debates sobre a situação dos municípios neste período, pois lançou o documento “Ação Pastoral e o Solo Urbano”, no qual defendia a função social da propriedade urbana, lembrando as graves injustiças e os estoques de terra com fi ns especulativos no espaço urbano. Esse texto foi um marco muito importante na luta pela reforma urbana, tendo contribuído sobremaneira no fortalecimento das lutas já então travadas por diversos movimentos sociais.

A Assembleia Nacional Constituinte também foi fundamental para a articulação e união das demandas das forças populares, pois se estabeleceu no regimento interno Constituinte a utilização do mecanismo da iniciativa popular

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para a elaboração de emendas populares para o então projeto da Constituição Federal de 1988. Ao todo foram apreciadas e votadas 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas4, no total foram colhidas 12 milhões de assinaturas , o que a prova efi cácia da participação popular durante a Constituinte, motivo pelo qual a atual Magna Carta ser chamada de “Constituição Cidadã”.

Para tanto, os movimentos populares e instituições centradas na mudança da realidade cruel das cidades tiveram um árduo trabalho tanto para unir suas demandas como no embate com poderosos lobbies das forças conservadoras. Em meio ao percurso que culminou na Constituição de 1988, movido pelas discussões da constituinte, foi criado, em janeiro de 1985, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Ele adveio de uma série de organizações não-governamentais, sindicatos e entidades como a Federação Nacional dos Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros, Federação de órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento dos Favelados, Associação dos Mutuários, instituto dos Arquitetos, Federação das Associações dos Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ), Pastorais, movimentos sociais de luta pela moradia, entre outros.

Tais entidades fi caram incumbidas da tarefa de elaborar uma proposta de lei a ser incorporada na Constituição Federal, com o objetivo de modifi car o perfi l excludente das cidades brasileiras, marcadas pela precariedade das políticas públicas de saneamento, habitação, transporte e ocupação do solo urbano, assim confi guradas pela omissão e descaso dos poderes públicos.

Nelson Saule Junior e Karina Uzzo relatam a importância desta união da sociedade civil que culminou no Movimento Nacional pela Reforma Urbana na mudança de velhos paradigmas, asseverando os aspectos urbanos vigentes que o movimento condena:

Em 1986, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana defi ne o conceito da reforma urbana como uma nova ética social, que condena a cidade como fonte de lucros para poucos em troca da pobreza de muitos. Assume-se, portanto, a crítica e a denúncia do quadro de desigualdade social, considerando a dualidade vivida em uma mesma cidade: a cidade dos ricos e a cidade dos pobres; a cidade legal e a cidade ilegal. Condena a exclusão da maior parte dos habitantes da cidade determinada pela lógica da segregação

4 informações disponíveis em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/destaque-de-materias/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte. Acesso em: 25 mar. 2013.

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espacial; pela cidade mercadoria; pela mercantilização do solo urbano e da valorização imobiliária; pela apropriação privada dos investimentos públicos em moradia, em transportes públicos, em equipamentos urbanos e em serviços públicos em geral (SAULE JÚNiOR, UZZO, 2009, p. 85).

é possível constatar que a bandeira da reforma urbana se consolida não somente na perspectiva da articulação e unifi cação dos movimentos sociais por meio de uma plataforma urbana que ultrapassa as questões locais e abrange as questões nacionais, mas também na crítica da desigualdade espacial da cidade dual. Com isso, inaugura-se no país um projeto que reivindicava uma nova cidade e propunha a quebra dos privilégios de acesso aos espaços das cidades.

Confi gura-se uma politização que vai além da questão urbana porque se estende para o âmbito da justiça social e da igualdade. Tem como centro a questão da participação democrática na gestão das cidades, tão discriminada pela lógica excludente dos planos tecnocráticos dos anos 1960 e 1970, apoiados apenas em saberes técnicos, dos quais a população era considerada incapaz de saber, agir e decidir. Sobre esse período, Cláudia Correia relata:

Movido por compromissos com uma Gestão Urbana democrática, organizou-se o Movimento pela Reforma Urbana, que, após um intenso debate onde confrontara-se diversos posicionamentos técnicos e políticos, elaborou a Emenda popular encaminhada à Assembleia Nacional Constituinte em agosto de 1987 com o apoio seis entidades e cerca de 150 mil assinaturas (CORREiA, 2003).

Apesar da conquista se resumir a dois artigos (182 e 183 da Constituição Federal), foi a primeira vez na história constitucional do país que se obteve um capítulo intitulado “Da Política Urbana”, sob o Título “Da Ordem Econômica e Financeira” em uma Carta Magna. Em linhas gerais, para o Movimento Nacional pela Reforma Urbana a Constituição de 1988 representou, apesar de não atender a todos os anseios, um avanço signifi cativo ao estabelecer, pela primeira vez, uma política pública que tratasse a questão urbana voltada a atender os objetivos da reforma urbana.

Após a Constituinte a luta popular não parou, visto que se organizou o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), com o objetivo imediato de pressionar o Congresso Nacional para regulamentar o Capítulo da política urbana, conquistado na Constituição Federal de 1988. Durante árduos doze anos, foi esta uma de suas tarefas principais, até a promulgação da então lei

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federal denominada Estatuto da Cidade, que será melhor estudada ao longo do texto.

Após a análise histórica dos primeiros passos da Reforma Urbana no Brasil é possível constatar que as pequenas vitórias alcançadas na transição de velhos paradigmas ocorreram após a população se enxergar como agente social e exercitar sua cidadania por meio da união e enfrentamento das oligarquias veladas, típicas de países em desenvolvimento, como o Brasil.

3 Novidades apresentadas pelo Estatuto da Cidade

A formalização do interesse público na Constituição de 1988 no tema política de desenvolvimento urbano (arts. 182 e 183), conquistado, conforme visto, pela união da sociedade civil representada por diversos segmentos da sociedade, apontou a necessidade de novos regramentos que garantissem os direitos contidos nos respectivos artigos regulamentando-os.

Desse modo, o Estatuto da Cidade emerge de um contexto de lutas e reinvindicações pela reforma urbana, de movimentos que antecederam à aprovação da Constituição de 1988 e que, após aprovada, não se deram por satisfeitos de modo a pleitear meios para a efetivação da prometida garantia de bem estar para todos no meio urbano. Nelson Saule Júnior e Karina Uzzo esquematizam de maneira didática os instrumentos que o Estatuto da cidade proporcionou aos municípios e em especial a uma gestão democrática:

Com base no princípio da função social da propriedade e gestão democrática da cidade, a lei contém normas de ordem pública e interesse social regulando o uso da propriedade urbana de modo a garantir o bem coletivo, a segurança e o bem-estar dos cidadãos. O Estatuto da Cidade trata, em especial:• dos instrumentos voltados a garantir o cumprimento da função social da propriedade o imposto progressivo no tempo sobre a propriedade urbana e a desapropriação para fi ns de reforma urbana;• dos critérios para a elaboração e execução do Plano Diretor pelos municípios;• dos instrumentos de regularização fundiária das áreas urbanas ocupadas por população de baixa renda;• Dos instrumentos de gestão democrática da cidade: audiências públicas, conselhos e conferências das cidades nas esferas nacional, estadual e municipal. Mais uma das tantas ações praticadas pelo FNRU, sem desmerecer a importância das demais, a aprovação do Estatuto da Cidade foi um passo fundamental para a reforma urbana no Brasil (2009, p. 85).

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3.1 Estatuto da Cidade e Gestão Democrática A Gestão democrática da cidade pode ser entendida como uma forma

de planejar, produzir, operar e governar as cidades de modo que as decisões sejam sempre submetidas ao controle e participação da população, destacando-se como prioritária a participação social.

O Brasil, assim como grande parte dos países latino-americanos, tem sua história marcada por gestões clientelistas, em que apenas uma minoria abastada tem suas opiniões levadas em consideração. As cidades representam esse histórico de exclusão e falta de participação, a ponto dessa situação ter de tornado insustentável gerando os mais diversos movimentos sociais que unindo forças conseguiram adicionar dois importantes artigos na Constituição sobre Reforma Urbana.

Os próprios meios utilizados para a consolidação destes dois artigos constitucionais (182 e 183) que tratam da reforma urbana, como união da sociedade civil, abaixo assinado com cerca de 150 mil assinaturas, Emenda Popular, já inauguraram uma nova forma de compreender a gestão das cidades em seu contexto interno e nacional.

Com a intenção de continuar a luta contra o processo vertical de urbanização de caráter autoritário, sem respeito às manifestações populares coletivas, o Estatuto da Cidade prevê uma série de normas disciplinadoras concernentes ao modo de participação na gestão urbana da população que marcam assim o período pós constituição.

Em seu art. 2º, o Estatuto defi ne como política urbana: a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (inc. ii); audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processo de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população (inc. Xiii); e a isonomia de condições para os agentes públicos e provados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social (inc. XVi).

O Estatuto da Cidade dá um grande passo ao resgatar a necessária articulação entre o orçamento, instrumento essencial de gestão urbana, e o planejamento como um todo, de modo a possibilitar a transparência necessária entre os projetos realizados e o dinheiro dispendido.

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A fi m de reforçar a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 04.05.00), o Estatuto prevê situações em que o Prefeito pode incorrer em improbidade administrativa, por exemplo, ao deixar de assegurar meios de promover debates públicos sobre o Plano Diretor Urbano ou deixar de divulgar amplamente informações e documentos referentes ao Plano, que deverá orientar o Plano Plurianual, as diretrizes orçamentárias e o Orçamento anual. Ou seja, o gestor público, incluindo os Poderes Executivo e Legislativo, fi ca sujeito a punições em decorrência da falta de transparência político-administrativa.

Além disso, o Estatuto da Cidade em seu art. 4° (inciso iii), prevê a gestão orçamentária participativa, o que contribui sobre maneira para a destinação correta do dinheiro público de acordo com as necessidades reais da população, possibilitando, assim, a melhor destinação das fi nanças públicas. Já o art. 44 do mesmo Estatuto estabelece ainda que esta gestão orçamentária participativa incluirá “[...] a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal”.

Ressalta-se que a contribuição da população na gestão pública vai além do auxílio no gerenciamento do dinheiro público nas áreas mais necessitadas, ela também fundamental para a garantia que as fi nanças públicas estejam sendo destinadas para sua fi nalidade adequada, como bem assevera Mattos:

A garantia da participação popular, a par de conferir legitimidade à gestão das cidades, tem uma outra faceta, qual seja, a de funcionar como o mais efi caz aparato de fi scalização dos atos da administração e do legislativo municipal. Esse controle social é importantíssimo para assegurar a efetiva aplicação dos instrumentos de reforma urbana trazidos pelo Estatuto da Cidade, ainda mais quando outras modalidades de controle, previstos na Constituição, sobretudo a legislativa e judiciária, têm-se mostrado de duvidosa operacionalidade e efi ciência. As normas contidas no Capítulo iV do Estatuto preveem, assim, diversas formas de participação que dão concreção a essa dupla função social da participação popular: a de aferir legitimidade às ações municipais e a de exercer o controle dessas mesmas ações (MATTOS, 2002, p. 301).

Um louvável instrumento descentralizador que colabora na participação popular na gestão das cidades são os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Urbano, órgãos colegiados de política urbana em nível local, os quais podem ser constituídos de representantes do governo ou da população a fi m de formular e acompanhar ações da política de desenvolvimento no município, no estado

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e no país. No entanto, como bem salientado pelos Professores israel Kujawa e Henrique Kujawa, o Estatuto por si só não garante efetividade aos direitos urbanos consolidados na Constituição:

O Estatuto das Cidades promulgado em 2001, não assegurou automaticamente o interesse público, mas apontou para a necessidade de constituírem-se novas ferramentas, novos instrumentos, entre os quais podem ser destacados os Planos de Diretores de Desenvolvimento integrado (PDDi). A construção do PDDi de uma cidade deveria motivar e assegurar a participação do conjunto dos moradores da cidade para que de forma conjunta e paritária construir ferramentas que assegurem a Justiça da Polis. (KUJAWA & KUJAWA, 2011, p.)

Como se observa, a gestão democrática e a própria aplicação dos instrumentos descritos dependem de um conjunto de políticas públicas, de modo que, a construção de novas políticas são condições necessárias para efetivar a gestão democrática.

Espaços acessíveis para as reuniões dos governantes com a população, bem como ampla divulgação dos temas a serem discutidos são fundamentais para começar a se pensar em gestão democrática. Porém, como se verá mais detalhadamente, para superar o distanciamento do governo da população é necessária a quebra de dois paradigmas, um do próprio governante, que deve entender que seu serviço não tem que ser feito apenas PARA a população, mas também COM ela, que vive todos os problemas urbanos, sentindo na pele onde a inserção de fi nanças públicas são mais urgentes.

Outro paradigma a ser quebrado é o da própria sociedade que não deve atribuir a responsabilidade de toda organização de seu cotidiano única e exclusivamente ao governante, o modelo de governo adotado no Brasil é democrático, sendo assim não há dúvidas que se as coisas não vão tão bem como esperado o problema não é apenas do governante, mas também da população que não se dispõe a cobrar uma postura diferente.

4 Novos desafios para a concretização de uma gestão efetivamente democrática

Após 12 anos de vigência do Estatuto da Cidade, foi possível constatar avanços no sentido de o tema democracia participativa ganhar a atenção da população e das autoridades, mas também inúmeras barreiras à real participação de todos os âmbitos da sociedade e não só de alguns grupos organizados.

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O doutor em planejamento urbano João Telmo Oliveira Filho, assim disserta sobre o assunto:

As inovações legislativas trazidas pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade e outros dispositivos legislativos ainda são, na prática, muito limitadas em relação à efetividade da participação popular nos processos. As administrações municipais, embora incorporem, por força de lei, a ideia de participação popular na elaboração dos planos diretores e na formalização de ‘instâncias participativas’ como fóruns, conferências e conselhos, pouco avançam no sentido de ampliar e qualifi car esta participação (OLiVEiRA FiLHO, 2011, p. 292).

Como se vê as discussões atuais tem se voltado a questionar a qualidade da participação da sociedade, ou seja, se essa participação não acaba sendo mero cumprimento de um requisito formal sem qualquer comprometimento com as demandas dos mais carentes e menos organizados.

é comum, por exemplo, a presença maciça de empresários e construtoras unidos por interesses pessoais, como o sucesso de seus empreendimentos, em audiências públicas sobre zoneamento, e a participação ínfi ma da população, que, ou por falta proposital de divulgação ou por mera falta de união e organização de sua demandas acabam se tornando vozes solitárias, o que proporciona decisões fi nais aparentemente democráticas, mas que não representam o interesse popular, mas sim o interesse de uma minoria poderosa e organizada presente no momento.

A argumentação cética em relação ao potencial dos processos participativos considera que o estabelecimento dos fóruns participativos não necessariamente favorecem a democratização, a transparência e a publicização dos processos decisórios no âmbito da gestão pública (CôRTES, 2005, p. ).

De acordo com Cleber Ori Cuti Martins e Clovis Schmitt Souza o ceticismo em relação a pretensa participação popular exigida constitucionalmente tem dois argumentos centrais. No primeiro, há uma desconfi ança sobre a legitimidade dos participantes dos fóruns participativos enquanto representantes políticos da sociedade. A tendência é considerar que apenas participariam os setores mais articulados e organizados, com maior poder de mobilização, negociação e barganha. A situação não ampliaria a democratização pelo fato de que os grupos não capazes, por motivos diversos, de mobilização continuarem sendo alijados do processo.

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Outro fator que pode ser depreendido refere-se à questão de que os mais organizados possam falar, e decidir, em nome dos demais, sendo que as organizações, em boa parte, têm características e interesses setoriais e corporativos e não passaram pela escolha geral da sociedade. Ou seja, os grupos sociais, e mesmo gestores públicos, que dispõem de mais recursos de poder terão mais condição para deliberação, difi cultando a equanimidade. Além disso, há a impossibilidade da universalização da participação.

O segundo argumento contesta a democratização interna dos fóruns, no seu processo político, colocando-os como sendo controlados por organizações e gestores públicos que passam a controlar o sistema decisório. O que demonstra a necessidade de se distinguir as reinvindicações de caráter corporativo, que colocam como sendo gerais interesses setoriais e específi cos, das reinvindicações de viés includente, que tem por objetivo dar possibilidade de uma efetiva intervenção no governo das classes costumeiramente excluídas da gestão urbana.

importante ressaltar que grande parte dos fóruns municipais de discussão da gestão pública apenas permite a manifestação da população presente, sem qualquer compromisso de união efetiva de ideias ou intervenção desta na gestão. isso ocasiona uma democracia em que os governantes só escutam o que é de seu interesse, sobre esta barreira à democracia Souza explicita:

Com isso, algumas experiências de participação nos processos decisórios governamentais podem fi car restritas a dar voz, apenas proporcionando a manifestação; outras tem por objetivo incorporar atores sociais tradicionalmente excluídos do processo decisório, reduzindo desigualdades sociais e políticas (SOUZA, 2005).

Além das difi culdades acima mencionadas, é importante salientar também a falta de cultura de participação da população brasileira em construir democraticamente seu próprio destino, devido, principalmente, a uma história de comandos autoritários de mandatos legais baseada muito mais no direito na força do que na força do direto. A sociedade brasileira é, muitas vezes, dominada pela inércia produzida pela sensação de impotência, o que gera conformismo, falta de perspectivas e a incapacidade de enxergar novas possibilidades. Assim, são poucos os que se unem em prol de sua comunidade, que se abstém de afazeres pessoais para lutar por direitos coletivos, o que torna a democracia apenas um modelo de gestão de faixada, já que a grande parte da população tem suas mentes dominadas pela tirania do “nada adianta”.

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Neste sentido, Paulo Freire já afi rmava que como seres políticos, os homens não podem deixar de consciência do seu ser ou do que está sendo, de modo que:

[...] é preciso que se envolvam permanentemente no domínio político, refazendo sempre as estruturas sociais, econômicas, em que se dão as relações de poder e se geral as ideologias (FREiRE, 2001, p. 7).

Para vencer o obstáculo da democracia aparente é imprescindível a organização da população, principalmente da mais carente, focando suas demandas principais e participando ativamente da gestão municipal. Para tanto, é fundamental a cobrança de uma oportunidade efetiva da população de intervenção no executivo e legislativo, denunciando falsas reuniões “democráticas” que não representem interesses da maioria e pleiteando sempre maior abertura do governo às necessidades dos seus representados.

Mesmo com tantos obstáculos para gestão democrática, o Estatuto da Cidade não deve ser visto com menos importância, reconhecer suas limitações não pode culminar no desprezo do que já foi alcançado especialmente em termo de mobilizações em torno de ideais de democratização e busca por cidades mais justas e inclusivas. Nas palavras do Professor Dr. Saboya:

Muitos cursos de capacitação (de técnicos e da população em geral) foram realizados, assim como muitas audiências públicas, encontros de mobilização, livros, artigos, congressos etc. O desenvolvimento urbano atraiu atenções como há muito tempo não acontecia, e o simples compartilhamento de informações e de conhecimentos gerados já pode ser considerado um resultado positivo (SABOyA, 2011, p.).

Desse modo, cabe a cada cidadão consciente utilizar os instrumentos já alcançados em prol do bem comum da sociedade. A união das pessoas, seja por meio de entidades, instituições, seja por movimentos sociais se demonstrou extremamente importante ao longo da história e ainda hoje impede várias injustiças se concretizem, mas ainda é preciso ir mais longe, os confl itos no direito urbano são constantes e exige luta diária dos cidadãos comprometidos com a realização de uma cidade melhor.

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5 Conclusão

O cenário da reforma urbana no Brasil é repleto de lutas sociais, de combate entre as classes dominantes e as dominadas. A união da população, de suas demandas e anseios foi a chave do sucesso conquistado, dois artigos constitucionais que tratam do valor social da propriedade e da democracia participativa. Essas observações são de grande importância na medida em que colaboram para a visualização de como conquistar mais direitos e efetivá-los futuramente. Observando a História, vê-se que tudo é feito pelo suor e a união de pessoas que se disponibilizam a gastar suas energias em prol do bem comum, no caso, uma cidade mais justa.

Após a vigência do Estatuto da Cidade, ampliaram-se os instrumentos de democracia participativa nas decisões urbanas. No entanto, essas determinações democráticas para tornarem-se efetivas dependem, e muito, da organização e pressão da sociedade civil, de um comportamento ético democrático do administrador, bem como da efetividade do controle do Ministério Público e do Poder Judiciário e da ampliação da vinculação normativa das administrações municipais.

Conforme visto, disponibilizar espaços de participação não é sufi ciente para a garantia da qualidade de participação. A não transformação da participação em um novo tipo de autoritarismo a serviço de interesses políticos particulares e demandas de grupos mais organizados da sociedade, talvez seja o maior dilema a ser enfrentado para a efetivação de uma política urbana realmente democrática.

Evidencia-se, assim, a relevância de uma cultura de união, seja para a formação de movimentos sociais, seja para criação de entidades ou instituições, a união é a chave da mudança, pois ela permite diálogo, debates, conscientização e, o mais importante, luta por dias melhores.

Desse modo, os novos embates de efetivação de direitos já consolidados, deve se dar da mesma maneira que ocorreu para a consolidação de tais direitos: luta e conscientização. Cabe a cada cidadão consciente das difi culdades do meio urbano unir forças com outros que assim também se sintam e participar ativamente dos meios que o Estatuto prevê, seja por meio de plebiscitos, referendo ou reuniões públicas.

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O PRObLEMA DA FALTA DA GESTÃO DEMOCRáTICA DAS CIDADES NA GESTÃO DE uM bEM DE uSO COMuM

Deíse Camargo Maito1

Sumário: 1. introdução; 2. Considerações sobre a Praça do Jardim igapó; 3. Atuação dos alunos do curso de Direito da UEL na Praça; 4. Gestão democrática da cidade; 5. Estudo de caso da Praça a partir do conceito e dos instrumentos da gestão democrática da cidade e outras questões legais; 6. Conclusão; 7. Referências.

Resumo: Em 2011 foram feitas várias reformas em uma praça localizada no bairro Jardim igapó, na cidade de Londrina. Ocorre que essas mudanças não foram feitas com a consulta da população, mas fomentada somente por uma parcela da população: os idosos. Essas reformas ocuparam um espaço historicamente dedicado às crianças e às mulheres, fazendo com que esses segmentos da população não tivessem mais onde ficar no bem público, caracterizando, portanto, a exclusão social dessa parcela da comunidade. Dessa forma, parte da população deixou de usar aquele bem público, pois, de forma simbólica, transformou-se o público em particular. Após ocorrida a reforma, houve várias tentativas de participação, o que restou infrutífero. Dessa maneira, o trabalho analisa quais os problemas que isso acarreta, a exemplo da exclusão popular e o sentimento de não-pertencimento a um local. Por meio de pesquisa e atividade em campo, foram coletadas todas as informações do presente trabalho, a fim de dar uma solução à questão. Por meio do estudo de obras de Direito Administrativo, verificou-se a falta de legitimidade das reformas realizadas, bem como a utilização de instrumentos errados para tanto e, através do estudo de obras de Direito Urbanístico inferiu-se como a Gestão democrática da cidade teria contribuído para o êxito das transformações. Por consequência, deduziu-se que vários mecanismos da Gestão democrática da cidade teriam garantido a participação popular, intrínseco a um bem público e que a falta dela acarretou em vários problemas. Por derradeiro, concluiu-se que a comunidade, para reverter a situação pode se organizar e lutar conjuntamente para que seja ouvida e atendida no que diz respeito a um bem destinado à ela.Palavras-chave: Gestão Democrática; Bens de Uso Comum; Estatuto da Cidade.

Abstract: in 2011, many reforms were made in one square located in the quarter Jardim igapó, Londrina city. These changes haven’t preceded by the hearing of population, but promoted by one single parcel of the population: the old ones. These reforms occupied a place historically designated to children with their mothers, which results the exclusion of this parcel of the community. Thereby, part of population has not been using that place, because, symbolically, the public was transformed in particular. After this reform, the community tried to participate in the decisions, which doesn’t happen. Thus, this paper analyzes what are the problems that it have been creating, exemplified by the popular exclusion and the belongness feelings of a place. Using researches and local working, all the information of this paper were collected, aimed to solve the question. Studying Administrative Law, the illegitimacy of the reforms were verified, as the wrong use of methods to do the reform and, studying Urbanistic Law, it was verified how “democratic

1 Aluna do Quarto Ano do Curso de Direito, colaboradora no projeto de pesquisa e extensão: Lutas: formação e assessoria em Direitos Humanos e no projeto de pesquisa Direito à Moradia: Aplicabilidade e Efetividade Dos instrumentos Jurídicos na Região Metropolitana De Londrina/PR; Universidade Estadual de Londrina; E-mail: [email protected];

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management of the city” would have been contributed to the success of those transformations. Consequently, it was deduced that many mechanisms of “democratic management of the city” would have guaranteed popular participation, intrinsical to a public place and the lack of it leads to many problems. By ultimate, it was concluded that the community, to revert the situation can organize itself and struggle together to be heard and answered in what is related to a place belonged to it.Keywords: Democratic Management; Common Use Property; Estatuto da Cidade.

1 Introdução

A partir de uma denúncia recebida através de uma liderança comunitária do Jardim igapó na cidade de Londrina-PR, tomou-se conhecimento de alterações que estavam sendo realizadas em uma praça no mesmo bairro. Essas alterações consistiam na construção de uma quadra de bocha e uma cancha de maia, bem como passarelas e canteiros de fl ores em local antes utilizado pelas mães e crianças para a recreação.

A questão de fundo do presente estudo de caso consiste na expansão imobiliária, valorização dos imóveis no entorno da praça e exclusão dos antigos moradores, que não mais “combinavam” com a paisagem pretendida para o espaço. Perpassa o problema a questão racial, de gênero, direitos da criança e gestão democrática da cidade.

Entende-se, para o desenvolvimento de uma análise crítica dos fatos, como gestão democrática da cidade, o princípio orientador da participação popular na escolha de como deve crescer a cidade. Este princípio consubstancia-se em uma democracia direta e está vinculado à representatividade e às medidas que garantem que as propostas de Política Urbana Municipal sejam realizadas de forma opinativa, consultiva e deliberativa.

Os mecanismos para efetivar a participação popular na escolha de como defi nir a fi nalidade dos espaços públicos e expansão urbana previstos no Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 e artigos 1º, caput e artigo 29, Xii da Constituição Federal, além de princípios e regras de Direito Administrativo, são o marco teórico do presente estudo de caso.

2 Considerações sobre a Praça do jardim Igapó

Estudantes de Direito da Universidade Estadual de Londrina, participantes do projeto de ensino “O Papel dos Advogados nos Movimentos Sociais”, atual projeto de ensino e extensão “Lutas: formação e assessoria em

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direitos humanos”, por meio de sua professora coordenadora, tiveram contato com Tereza Mendes de Souza, moradora do bairro Jardim igapó. Em frente sua casa, há uma grande praça, na qual os moradores das adjacências sempre frequentam, o que a torna ponto de encontro e, consequentemente, fi rmadora de raízes.

A praça, por ser grande e plural, sempre abarcava todos os segmentos da população: o campo de futebol existente nela era de uso dos homens aos fi nais de semana e crianças da escola Maestro Andrea Nuzzi para a prática de Educação Física ou outras atividades escolares, uma cancha de malha era utilizada pelos idosos e, ao lado desse campo, havia um espaço destinado às mães com suas crianças, local esse sombreado e longe das ruas, portanto seguro aos infantes.

No entanto, o espaço seguro e sombreado antes destinado às mulheres com seus fi lhos pequenos foi dizimado pelo líder do segmento idoso masculino da população, que, fi nanciado por uma empresa particular conseguiu ampliar os campos de malha, construir um campo de bocha e mesinhas para a prática de jogos como xadrez e baralho.

indignada com essa exclusão, a moradora Tereza foi à busca de informações e buscou também ser ouvida, a fi m de que um segmento inteiro de uma comunidade não fosse ignorado. Tudo começou com uma notifi cação na Secretaria do Meio Ambiente acerca da construção irregular de uma cancha de maia na praça, o que resultou no posterior embargo da obra por ser construída sem projeto algum.

O poder público municipal foi provocado desde então, porém a solicitação de voz e participação restou ignorada. Foram protocolizados diversos pedidos em vários órgãos municipais da cidade de Londrina, quais sejam: Secretaria Municipal de Obras, Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização (CMTU), Secretaria Munição do Meio Ambiente, Fundação de Esportes de Londrina. Além disso, cartas e abaixo-assinados foram entregues ao prefeito de Londrina e a dois vereadores, declarações foram prestadas no Conselho Tutelar, na 20ª Promotoria de Justiça da Comarca de Londrina, no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais de Curitiba, e uma moção de repúdio foi apresentada no Viii Encontro Estadual de Educadores Negros do Paraná, tudo isso em busca da participação nas decisões que lhe dizem respeito. 2 2 25/01/2010 - Pedido de providências realizado na Prefeitura acerca da invasão da praça e construção

de uma cancha de maia, protocolizado sob nº 5853/2010; 30/03/2010 - Portaria de Abertura do

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Outro episódio paralelo vale frisar: certa vez, em comemoração ao Dia da Árvore, crianças da Escola Municipal Maestro Andrea Nuzzi foram levadas até a praça para que fi zessem atividades culturais e de cidadania. Porém, visto que a praça estava em reforma, foram impedidas por uma moradora de ocuparem o espaço, até que a CMTU e a Guarda Municipal de Londrina chegaram, de forma a reprimir e intimidar as pessoas que participariam das atividades. Percebe-se que as pessoas ali presentes estiveram diante do cerceamento do direito de locomoção, e os alunos, da educação e cultura.

Assim, além de violações de direitos por parte da administração pública, a população teve a participação negada nas decisões que lhes dizem respeito. Portanto, para que se possa reivindicar algo, vale descobrir qual a natureza jurídica de uma praça, bem como a da reforma em questão, a fi m de descobrir mecanismos garantidores da participação popular.

Conforme dispõe o artigo 99 do Código Civil, praças são bens públicos, de uso comum e domínio público3. A praça, como bem de uso comum, é um bem inalienável, imprescritível e insuscetível de servidão, assim como os rios, mares, estradas e ruas, que por sua própria natureza de bem, não possuem um valor patrimonial, estão destinados a atingir fi ns públicos, ou seja, o interesse coletivo.

Di PiETRO (2006, p. 632) considera “bens de uso comum do povo aqueles que, por determinação legal ou por sua própria natureza, podem ser utilizados por todos em igualdade de condições, sem necessidade de consentimento individualizado por parte da Administração.”.

Procedimento Preparatório nº 04/10 pelo Ministério Público do Estado do Paraná; 27/05/2010 - Pedido realizado na Prefeitura para o fechamento de um buraco na praça (realizado para a construção de mais uma quadra de maia), protocolizado sob nº 41088/2010; 06/04/2011 -Solicitação de restauração do solo e plantio de grama na área da praça que foi alterada sem autorização para a construção da cancha de maia, protocolizada na Prefeitura sob nº 24531/2011 e 24555/2011.Solicitação de recuperação da praça e vistas do projeto de alteração, protocolizada na CMTU sob nº 109520 3/3 e solicitação, na prefeitura, de resposta ao processo 24531/2011; 05/08/2011 - Solicitação da cópia do Termo de Convênio assinado entre Prefeitura e imobiliárias, protocolizado sob nº 113781-2/3; 11/08/2011- Abaixo-assinado encaminhado para a CMTU, protocolizado sob nº 114090-3/3; 12/08/2011 - Solicitação da paralisação das obras na praça, protocolizada na prefeitura sob nº 54980/2011 e solicitação ao iPPUL a paralisação imediata das obras na praça, protocolizada na prefeitura sob nº 54876/2011; 24/10/2011 - Resposta do Prefeito Homero Barbosa Neto ao Presidente da Câmara Municipal Gerson Moraes de Araújo, através do Ofício nº 1118/2011-GAB.

3 Segundo Di PiETRO (2006, p. 611 a 634), bens públicos são conjuntos de patrimônios, bens necessários à Administração Pública para atingir os fi ns coletivos de propiciar o bem estar e a satisfação dos habitantes de seu território.

Bens de Uso Comum são destinados à coletividade. Domínio Público trata-se do uso de bens indistinto das pessoas, são locais abertos à utilização pública, que

adquirem o caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo.

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Já para MELLO (2007. p. 898), bens públicos são simplesmente os pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público interno e os utilizados por estas para a prestação de qualquer serviço público. Dentro dessa classifi cação, uma praça é um bem de uso comum, ou seja, destinado ao uso indistinto de toda e qualquer pessoa.

Quanto à utilização dos bens de uso comum, ela deve ser livremente usada por todos, porém, isso pode levar a um confl ito de interesses, como no caso em estudo. Assim, como o próprio nome indica, os bens de uso comum devem ser utilizados indistintamente por quaisquer sujeitos, em concorrência igualitária e harmoniosa com os demais, de acordo com o destino do bem e condições que não lhe causem um uso indevido.

MELLO (2007. p. 899) diz que, tratando-se de uma praça, todos têm o direito de sentarem em seus bancos, transitarem por ela, ou seja, utilizarem-na para o lazer, sem que para isso deva haver comunicação à administração pública. No entanto, além do uso livre dos bens de uso comum, pode ocorrer que determinadas pessoas necessitem fazer deles usos especiais, ou seja, que implique sobrecarga do bem, transtorno ou impedimento para a concorrente e igualitária utilização de terceiros ou ainda por demandarem até mesmo o desfrute de uma exclusividade no uso sobre parte do bem. Nessas situações é imprescindível a autorização da administração pública ou, dependendo da atividade, ciência da mesma para que, se preciso for, vetá-la.

Outra hipótese, citada pelo mesmo autor, é quando o uso do bem, comportado em suas destinações secundárias, implicar a ocupação de parte dele com caráter de exclusividade em relação ao uso propiciado pela sobredita ocupação, como bancas de jornal em uma praça ou calçada, por exemplo. No último caso é necessária a permissão de uso de bem público, ou seja, um ato unilateral, precário e discricionário quanto à decisão de outorga, pelo qual se faculta o uso de um bem público. A outorga será mediante licitação ou, no mínimo, através de procedimento que assegure um tratamento isonômico a todos que querem realizar determinada atividade.

Para MELLO (2007, p. 514), licitação é um certame que a administração pública deve promover e no qual abrem disputa entre os interessados em travar com ela relações patrimoniais, para que se escolha a proposta mais vantajosa ao interesse público. A base é a ideia de competição, que deve ser travada isonomicamente aos que preencham os atributos e aptidões necessários ao cumprimento das obrigações que se propõem a assumir. Para que haja essa

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competição, tais atributos devem ser preenchidos na chamada habilitação e posterior apuração da melhor proposta, ou seja, o julgamento.

Já para Di PiETRO (2006, p. 325), licitação é o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados que se sujeitem às condições do instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais se selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de um contrato.

Portanto, no caso em tela, demonstra-se obvia a previa autorização da administração pública para a realização de reformas que possam, por ventura, prejudicar a utilização de todos em igualdade de condições do referido bem público. Além disso, para que haja uma obra na qual alguém tirará vantagens econômicas, a licitação é imprescindível. Vale agora saber o meio pelo qual foi feita a referida reforma.

Segundo informações dos administradores e moradores, a reforma da praça do Jardim igapó, assim como vários outros locais de Londrina, foi feita pelo “Projeto Quem Ama Cuida” do governo municipal da gestão 2009-2012. O edital do “projeto” previu anuências para as construções nos bens públicos através de autorizações e um convênio entre órgãos da administração municipal e a pessoa jurídica de direito privado, por um termo de convênio. A autorização (Autorização nº 011, Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD) referente à Praça do Jardim igapó, assim como todas as outras, está subordinada ao edital do “projeto”. Segundo o edital de chamamento (Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD), o “projeto” consiste na realização de convênios para fazer reformas e melhorias em espaços públicos.

Sobre o objeto do contrato, diz-se: (Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD, item 1.) “é objeto deste edital a seleção de empresas para celebração de convênio com o objetivo de implantar e manter jardins e outros elementos paisagísticos em rotatórias, canteiros e demais espaços públicos.”

Já o critério de seleção de empresas é o seguinte (Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD, item 6.1.6.):

Terá a preferência de escolha a empresa que efetuar o protocolo da proposta do item de interesse primeiro. Se duas empresas protocolarem os envelopes no mesmo horário, para o mesmo item, o critério de escolha será por sorteio, em ato público, durante a sessão de abertura dos envelopes.

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Conforme o próprio edital (Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD, anexo i, itens 1.3.2. e 1.3.3.), a obra e conservação do espaço público garantem à pessoa jurídica de direito privado colocar sua logomarca em uma placa localizada no referido bem e, por outro lado, divulgar a parceria realizada com a prefeitura municipal em campanhas publicitárias.

Segundo MELLO (2008, p. 654), convênios são contratos administrativos nos quais todas as partes têm interesses em comum, sendo todas pessoas de direito público interno. Segundo o entendimento do autor, há a possibilidade de fi rmar convênios entre uma pessoa de direito público interno e uma entidade privada se esta for uma pessoa jurídica sem fi ns lucrativos. Se a contraparte tivesse objetivos lucrativos, sua presença na relação jurídica não teria as mesmas fi nalidades do sujeito público, visto que seu objetivo no vínculo seria a obtenção de um pagamento ou vantagem.

Dessa forma, para que se tenha um convênio com entidades privadas – salvo quando o convênio possa ser travado com todas as interessadas – o sujeito público terá que utilizar-se da licitação, ou, quando impossível, utilizar-se de outro recurso que assegure o princípio da igualdade.

Já Di PiETRO (2006, p. 314) diz que, apesar de um convênio não constituir uma modalidade de contrato, é o meio pelo qual o Poder Público utiliza para associar-se com outras entidades, públicas ou privadas. No entanto, o convênio também é um acordo de vontades, com particularidades cruciais. Em um convênio as partes não têm vontades contrapostas, mas vontades convergentes, almejam o mesmo fi m. Além disso, os objetivos institucionais são comuns, como por exemplo, o convênio entre uma universidade pública e uma instituição privada para realizar um estudo de interesse de ambas. Por outro lado, através do convênio deve haver a mútua colaboração, como o repasse de verba, tecnologia, dentre outros, sem o ganho ou perda de uma das partes.

Quanto à licitação, a autora afi rma que não há exigência para a celebração de convênios, pois não há viabilidade de competição, visto que se trata de mútua colaboração, sob várias formas.

Já MAZZA (2011, p. 395) entende que convênio é um acordo administrativo multilateral formado entre entidades públicas de qualquer espécie ou entre estas e organizações particulares, visando à cooperação recíproca para alcançar objetivos de interesse comum a todos conveniados.

Segundo infere-se do acima transcrito, para que haja realmente um convênio, as partes devem ser pessoas jurídicas de direito público, entidades

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sem fi ns lucrativos, ou, mesmo sendo pessoas jurídicas de direito privado, devem ter os mesmos interesses do ente da administração pública.

3 Atuação dos alunos do curso de Direito da uEL na Praça do jardim Igapó

Percebendo a discriminação ocorrida na reforma da praça, a repressão às atividades escolares e o descaso no fornecimento de informações, o projeto de ensino buscou entender o porquê disso e realizar algumas ações.

A militante Teresa foi ouvida diversas vezes pela professora e alunos, o que resultou no memorial aqui contado. Com isso em mãos, o primeiro passo foi buscar reafi rmar as raízes dos moradores do bairro e sua relação com a praça, através de entrevistas fi lmadas, nas quais os moradores contavam sua história no bairro e a relação com aquele bem público, a exemplo de Silva Helena da Silva, uma antiga moradora:

A praça assim, na parte da minha adolescência eu passei ali (...) dos 11 aos 18 foi ali, né, então a gente brincava ali, jogava futebol americano. Meu irmão tem um time de futebol que há mais de 30 anos joga ali, até hoje. Hoje de manhã ele tava jogando, né. Assim eu cresci ali naquele campo, hoje fi ca mais difícil. Ali sempre foi muito bom. (...) Os moradores cuidam da praça, mas no futebol, quem cuida geralmente são eles. (...) Quase todo domingo eu vou lá porque meu fi lho e meu irmão jogam bola. (...) E tem a escola também que meu sobrinho estuda lá e a educação física eles fazem no campo.4

Além dessa identifi cação dos moradores com suas próprias histórias, os protocolos e processos abertos nos órgãos administrativos municipais foram constantemente exigidos, não só mais pela militante, mas pelos alunos.

Certo dia, o projeto de ensino deparou-se com uma oportunidade única: uma conversa com o então prefeito, na Escola Municipal Maestro Pedro Nuzzi, através de uma atividade que o então governo municipal fazia nos bairros da cidade: atender a população local pra ouvi-la. O atendimento iniciava-se às 6h da manhã, e alguns alunos do projeto lá foram a fi m de obter do prefeito esclarecimentos sobre o projeto de reforma da praça.

4 informação oral obtida por entrevista realizada pelos alunos do projeto moradores do bairro, no dia 27 de novembro de 2011, em Londrina – PR.

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Em conversa com o prefeito, assessores e secretários, os estudantes puderam perceber que, para os administradores, tudo estava certo. A presidente da época de uma divisão governamental, instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Londrina (iPPUL), disse que até mesmo a oitiva da população ocorrera, principalmente do segmento idoso, o qual, como citado no item 2, era o segmento que excluía os demais. A presidente da divisão aconselhou também os estudantes, antes mesmo de buscarem a conversa com os administradores, a ouvirem a população, sobretudo os idosos.

Em verdade, o que o projeto de ensino procurou foi ouvir o segmento excluído da comunidade: a militante Teresa, algumas crianças, a escola, representada por uma professora e moradores antigos. Em unanimidade, foi verifi cada a exclusão da população em qualquer debate acerca da reforma da praça. Ainda a entrevistada Silva Helena da Silva relatou:

O que tava acontecendo na praça, eu fi quei sabendo disso né, fi quei bem triste até porque uma coisa que sempre foi nossa, das crianças. (...) Ali é um lugar que a gente conhece, conhece as pessoas que moram ali e pode deixar as crianças mais livres.

Perguntada se houve alguma consulta acerca das mudanças na praça, disse:

Nunca ouvi e nunca ninguém veio aqui e amigos que eu conheço não foram informados sobre mudança alguma. Acho que isso ta acontecendo com algumas pessoas só ali que acho que querem destruir ali, mas não é o bairro todo não.

Para que mais um segmento da comunidade fosse representado, o projeto entrevistou Lucas Moreira Lopes5, uma criança, que sobre a praça e os confl itos, relatou:

Não vou jogar mais bola lá porque se a bola cai no campo os velhos que jogam baralho falam que vão furar a bola (...) A gente começou a falar que eles estavam fazendo jogatina lá. Os velhinhos começaram a fi car bravos.

5 informação oral obtida por entrevista realizada pelos alunos do projeto moradores do bairro, no dia 27 de novembro de 2011, em Londrina – PR.

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A fi m de saber mais sobre a exclusão popular, o projeto entrevistou a professora da escola Maestro Andrea Nuzzi, Altina Aparecida Rocha Assis , que, com muita tristeza, relatou6:

Preparei uma semana da árvore, tivemos toda uma ação, trabalhamos, fi zemos convite a algumas pessoas para participar. Como trabalho com contação de história, preparamos alguns alunos com poesia, música. A gente acreditando que seria um dia de bastante alegria. Reunimos a comunidade. (...) Novamente a gente estava preparando, as crianças chegando, íamos preparar uma ciranda e aparece a polícia, a guarda municipal. Só que nesse momento, uma pessoa da guarda municipal desceu, veio e conversou a responsável pela escola. E logo em seguida a responsável pela escola pediu para que nós fossemos, saíssemos desse espaço e fossemos mais para o meio do campo. Fomos levando as crianças para a escola e para as crianças não perceberem aquela ação, começamos então a cantar para elas não perceberem: ‘Alecrim, alecrim dourado ...’ e fomos tirando as crianças. Mas, fomos pedindo... as senhoras de idade que estavam, que são moradoras do bairro inclusive, tinha uma pessoa que é defi ciente visual, fomos tirando, tirando. Fomos recuando: ‘Vamos recuar gente! Vamos!’ E cantamos essa ciranda com as crianças. (...) E quando eu olhei ele disse: ‘de quem é essa tenda?’ eu falei: ‘é minha!’ e ele falou se eu poderia tirar, então eu falei: ‘eu não posso retirar agora, eu estou com as crianças. Eu tiro depois.’ E quando eu olho para trás, todo o meu material de trabalho. Cada como se fosse uma coisa, jamais irei esquecer dessa cena. Era algo meu, comprado com o meu dinheiro, era meu trabalho, sendo levado assim como se fosse levado pelo vento. (...) Então eu tinha preparado toda a tenda, porque a gente iria fazer contação de história dentro dela, porque acredito que seria algo bem bacana, mágica. Eu tinha um objeto muito especial meu que eu trouxe de Bueno Aires era uma vagem assim toda , que eu iria até contar a história dela. Levaram com tudo e até hoje não tive retorno.

Após a oitiva desses segmentos excluídos, teve-se motivação para o presente trabalho e a pretensão garantir a participação popular. Porém, além de verifi car as circunstâncias fáticas, os alunos buscaram entender as circunstâncias jurídicas da mudança da praça. Foram novamente aos órgãos governamentais na busca de respostas e buscaram até mesmo ver algum registro da participação popular alegada pelos administradores. No entanto, o projeto de ensino não conseguiu acesso a documento algum que provasse o alegado, e, conseguiram tão somente a autorização e o termo de convênio pelos quais a reforma foi realizada.

6 informação oral obtida por entrevista realizada pelos alunos do projeto moradores do bairro, no dia 27 de novembro de 2011, em Londrina – PR.

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Paralelamente a esses fatos, Teresa requisitou providências junto ao Ministério Público do Estado do Paraná da Comarca de Londrina, através da 24ª Promotoria de Justiça – Promotoria de Direitos e Garantias Constitucionais. A Promotoria, portanto, iniciou um processo administrativo para apurar o caso. O projeto de ensino participou de forma ativa desse processo, participando das reuniões bem como ajudando a moradora a atuar no processo através de petições e juntada de documentos.

No Ministério Público, em 26/04/2012, foi feita a primeira reunião para apurar as irregularidades. Na reunião, estiveram presentes dois integrantes da CMTU, representantes do projeto de ensino e a moradora Tereza. Nessa oportunidade, os problemas foram ditos e fi cou acordado que o Ministério Público solicitaria dos órgãos da prefeitura o envio dos projetos de revitalização da praça e dos processos de participação popular, aguardaria encaminhamento por parte da comunidade e dos alunos do projeto de ensino, ofícios retratando as ações da Guarda Municipal e analisaria a possibilidade de realização de audiência pública com a comunidade para falar sobre a praça.

No mesmo órgão, em 09/06/2012 foi feita uma segunda reunião, na qual estiveram presentes quatro pessoas da comunidade, representantes do projeto de ensino, um estudante de jornalismo da UEL, um advogado da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, uma professora de pedagogia da UEL e dois militantes de Direitos Humanos. Devido à divergência entre os próprios membros da comunidade quanto à participação das mudanças feitas na praça, fi cou decidido que o iPPUL realizaria uma pesquisa junto aos moradores para eles se posicionarem acerca das mudanças ocorridas e do projeto de revitalização na ocasião apresentado pelo iPPUL.

A pesquisa foi realizada pelo iPPUL, que entrevistou 105 moradores, um de cada domicílio, na qual a comunidade, por maioria esmagadora (95 contra 8, em média) aprovou as mudanças feitas, bem como pedia por novas revitalizações. Em face dessa pesquisa, o Ministério Público encerrou o procedimento e arquivou o processo.

No entanto, o projeto de ensino, ao solicitar e analisar a pesquisa feita, concluiu que as perguntas foram feitas de forma direcionada, levando a população a responder se concordavam com a atividade praticada pelos idosos (malha, bocha, etc), ao invés de perguntar se a reforma trouxe melhoras ou pioras no bem público. Dessa forma, tendo consciência de que o problema não acabara, o projeto de ensino achou por bem resolver esse problema de forma alternativa, sem acionar órgãos públicos por hora.

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A partir dessa pesquisa, o projeto pensou juntamente em quais seriam as causas dessas respostas dos questionários. Concluiu-se que as pessoas talvez não mais usassem a praça, devido ao episódio com a Guarda Municipal e a falta de espaço para todos os seguimentos da população. Considerando isso, o projeto elaborou um evento de recreação para ser realizado junto com a população no bem público.

inúmeras reuniões foram feitas entre o grupo e com a comunidade para decidir no que a atividade iria consistir e qual dia seria realizada. Após isso, decidiu-se que o evento seria em 04/11/2012 e que uma gincana para as crianças seria uma atividade principal, com atividades paralelas para os adultos. Antes da realização do evento, fez-se uma ampla divulgação nas escolas do bairro, igreja e comércios para contar com a ajuda e presença de vários segmentos da população.

O evento foi muito proveitoso e atingiu os objetivos aos quais se propôs. A praça foi lotada pelos moradores e foi possível fazer uma interação entre os idosos – que ocuparam somente uma quadra daquelas construídas – e o restante da população, que ocupou a parte sombreada restante e parte da área construída. Com isso, buscou-se criar um sentimento na população de que aquele bem era de todos e por isso, deveria ser amplamente utilizado.

Naquela ocasião, o projeto de ensino soube que algumas pessoas estavam interessadas em montar uma associação de moradores do Bairro Jardim igapó. Dessa forma, o projeto irá ajudá-los com isso, ministrando cursos práticos sobre associações de bairro, com o método da educação popular elaborada por Paulo Freire. isso será de suma importância para que a comunidade saiba resolver seus confl itos e buscar uma atuação participativa democrática na Administração Pública.

Vale salientar também que o cenário político de Londrina da época mudou totalmente. Aquela gestão, na pessoa do seu prefeito, Homero Barbosa Neto, foi cassada devido a várias investigações acerca da prática de crimes contra a administração pública. Após isso, mais dois prefeitos passaram pela administração da cidade e, com as eleições realizadas em 2012, foi possível a entrada de uma nova administração municipal, o que pode mudar a forma como essas reformas são feitas. A busca de participação democrática nesse início de mandato será imprescindível para que a comunidade busque sempre ser ouvida.

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4 Gestão democrática da cidade O princípio da gestão democrática da cidade encontra base no art. 1º,

parágrafo único da Constituição Federal, que permite o exercício direto do poder emanado do povo, nos termos determinados pela Constituição. A Carta Magna, em seu art. 29, Xii, prevê a cooperação no planejamento municipal, uma forma de participação direta. Com essa permissiva constitucional, foi criado o Estatuto da Cidade - Lei n. 10.257/2001, que tem como a gestão democrática uma de suas diretrizes.

Para FRANCiSCO (2001, p. 40), a gestão democrática da cidade, prevista no art. 2º, ii do Estatuto da Cidade, é uma clara forma de participação direta da população no governo da cidade, sem intermediação de representantes. Além da previsão do art. 2º, ii, como uma regra geral de implementação da política urbana, o capítulo iV do Estatuto da Cidade é totalmente dedicado à gestão democrática da cidade, sendo que o art. 43 especifi ca como ela se dará:

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:i – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;ii – debates, audiências e consultas públicas;iii – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;iV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

Logo, a gestão democrática da cidade implica na participação dos seus cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e avaliação das políticas urbanas, garantido assim, quando implementadas, a cidade para todos os cidadãos.

De acordo com FRANCiSCO (2001, p. 266 e 267), no art. 43, i, o Estatuto impõe que os órgãos de política urbana sejam colegiados, portanto, tendo componentes da administração pública e cidadãos escolhidos pela população. Vale lembrar que essa previsão se dá em todas as esferas da federação, no sentido de gerenciar a política urbana. Quanto à previsão de debates e audiências públicas – art. 43, ii – o Estatuto impõe que isso deve ocorrer no processo de elaboração, acompanhamento e controle da polícia urbana, sendo que essas práticas devem estar previstas também no plano diretor.

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O mesmo autor, ao explicar o art. 43, iii, diz que as conferências sobre assuntos de interesse urbano são obrigatórias em todos os entes da federação. As conferências seriam debates realizados no mundo técnico e acadêmico, mas conferências essas abertas à população, com vistas a trazer o conhecimento científi co à elaboração da política urbana. Já no art. 43, iV, o Estatuto prevê não só a iniciativa de lei que é prevista constitucionalmente, mas a apresentação de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

Vale salientar que a Lei 10257/2001 não é uma lei autoaplicável, sua efetividade depende da aprovação do Plano diretor. é este que, desdobrado em leis, regulamentos e normas administrativas, interferirá na vida cotidiana dos cidadãos. De acordo com o art. 40, § 4º e seus incisos, os Poderes Legislativo e Executivo tem o encargo de garantir a participação da comunidade e a transparência na elaboração e implementação do Plano diretor. é nessa participação popular do Plano diretor que se dá também a gestão democrática da cidade, pois o plano garante que a população decida, diretamente, o que vai querer para si.

Segundo MEiRELLES (2008, p. 550), o Plano diretor deve ser a aspiração da população local para a defi nição dos objetivos de cada município e, por isso mesmo, tem supremacia sobre os outros instrumentos administrativos do município. Além disso, é um instrumento norteador dos futuros empreendimentos da prefeitura, para o atendimento das necessidades da comunidade, a exemplo de locais e custos a serem feitas obras públicas.

Devido ao fato de o Plano diretor dever ser a aspiração da própria população, ele é um instrumento para a efetivação da gestão democrática da cidade na qual a União, os Estados e Municípios deverão se atentar para que suas decisões estejam voltadas a uma fi losofi a de transparência e cooperação. Segundo o artigo 2º, em seu inciso ii o Estatuto da Cidade traz, respectivamente, as diretrizes da formação e o âmbito dessa gestão: “participação da população e de associações representativas” e “na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos”.

Vistos todas essas previsões constitucionais e mecanismos legais garantidores da gestão democrática da cidade, é necessário analisar a efetividade deles. Para SABOyA (2008), muitas vezes, há dominação disfarçada de participação. Projetos pré-aprovados são submetidos à votação, para que a população pense que decidiu algo. Ademais, horários inadequados para as audiências públicas, utilização de vocabulário excessivamente técnico, tempo insufi ciente para resolução dos problemas e até mesmo um consenso forçado

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são táticas de alguns governantes para distanciar a população de seu plano diretor, portanto, da Democracia.

Os alunos do projeto de pesquisa, na ocasião da conversa com os administradores públicos municipais puderam perceber essa dominação disfarçada de participação. Primeiramente, o horário marcado para a conversa com a população foi totalmente inadequado: seis horas da manhã. é sabido que nesse horário muitos trabalhadores estão acordando, quando não já estão no trabalho ou a caminho dele. Além disso, o tempo de conversa com o prefeito era demasiadamente reduzido: 5 minutos por pessoa, quando sozinha na sala, e, no caso de mais pessoas, o tempo era somente dobrado, não importando o número de pessoas.

Ademais, a conversa consistiu em somente ouvir e debater os problemas, sem respostas consistentes às indagações, e os administradores, apesar dos estudantes mostrarem a evidência de exclusão de toda uma parcela da população, afi rmavam sempre que houve consulta prévia, sem que pudessem provar. Por outro lado, o mais importante nunca foi feito pela administração pública: a efetiva participação popular, por meio dos mecanismos previstos no Estatuto da Cidade. Ocorre que o simples atendimento à população foi uma prática com viés assistencialista, totalmente divergente do que é sabido como participação popular.

Outros problemas também são vistos na elaboração do plano diretor, que, segundo PÁDUA, são inefi cazes, a exemplo dos planos da cidade de São Paulo e Rio de Janeiro. Entre os anos de 2004 e 2007, foi observada uma participação elitista desses planos, o que resultou na exclusão da maior parte da população, na hora da execução das políticas urbanas. Dessa forma, nas duas maiores cidades do país verifi cou-se uma ilegitimidade de seus planos diretores.

Dessa forma, é evidente que a gestão democrática da cidade não tem sido aplicada, mas, caso fosse, resolveria vários problemas, a exemplo do da praça do Jardim igapó.

5 Estudo de caso da Praça a partir do conceito e dos instrumentos da gestão democrática da cidade e outras questões legais

Os instrumentos mínimos obrigatórios para efetivar a participação social são, indubitavelmente, as audiências e debates públicos, a publicidade

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dos documentos e informações produzidas, com acesso a todos. Portanto, não há dúvida que o ocorrido na reforma da Praça do Jardim igapó é um descaso com a gestão democrática defendida na Carta Magna e o Estatuto da Cidade.

No caso em questão, ocorreu a pior forma de não participação da sociedade na tomada de decisões que lhes dizem respeito: a negação de informações e participação. Ora, ao Estatuto da Cidade e à Constituição Federal preverem que todos os entes da federação devem não somente garantir, mas promover a participação popular na elaboração da Política Urbana e do Plano Diretor de cada cidade, é uma afronta direta a esse preceito negar a participação popular.

A participação popular é importante para a condução de toda a atividade legislativa e executiva da cidade, conforme já visto no capítulo anterior, mas, ao se falar de bem de uso comum e domínio público, essa participação deve ter um especial destaque, pois é para a coletividade que esse bem é destinado, sendo que ela deve tomar as decisões pertinentes a esse bem.

Além da falta de participação popular na reforma da praça, verifi cou-se também o desrespeito a regras de direito administrativo. isso pode ser percebido quando, ao iniciar a obra, não se pediu autorização à prefeitura e, ao continuá-la utilizou-se de um mecanismo ilegítimo – o programa “Quem Ama Cuida”.

A ilegitimidade do mecanismo supramencionado se dá em vários pontos, de acordo com o Estatuto da Cidade e regras de Direito Administrativo. Primeiramente, as reformas realizadas nos espaços públicos não precederam de consultas à população que potencialmente utiliza o local, a exemplo de moradores das adjacências e frequentadores da praça.

Por outro lado, a participação popular nas reformas dos bens públicos além de não ser incentivada pelo programa, foi constantemente negada quando solicitada, ferindo, portanto, um princípio basilar da administração pública: o princípio da Publicidade, previsto no art. 37, caput da Constituição Federal (BRASiL, 1988).

No entanto, uma das maiores afrontas tanto ao edital que regia a reforma quanto a preceitos da Administração Pública foi o uso de força coercitiva para impedir a escola de realizar atividades no bem público. Nesse episódio houve uma clara tentativa de utilização de forma exclusiva da praça, o que, como já visto no capítulo 3, deveria preceder de expressa autorização do órgão público, o que não ocorreu.

Além disso, a própria reforma da praça, ao atender apenas um segmento da população, retirando um espaço antes utilizado por todos, implicou em

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exclusividade de uso de um bem público. Vale salientar, de forma exaustiva, que inicialmente a reforma sequer tinha previsão de ocorrer perante a administração pública, o que foi feito posteriormente, de forma a tentar legitimá-la.

Conforme já delineado no item 3, para que ocorresse uso exclusivo de um agente particular em um bem público, deveria ocorrer prévia licitação ou outro instrumento que garantisse a igualdade de condições de competição entre os interessados em realizar a reforma. Observa-se que esse procedimento não ocorreu, mas o critério de escolha da empresa que realizaria a reforma do bem público, não era um critério que permitia à administração pública a contratação da proposta mais vantajosa, visto que esse critério era a ordem de chegada da proposta, ou seja, a empresa que primeiro protocolasse a proposta teria direito de construir no bem público (Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD, item 6.1.6.).

Além disso, foi utilizado um convênio para a realização da reforma. Quanto isso são pertinentes as seguintes indagações: Mesmo que se considere que pode haver convênio entre pessoa jurídica de direito público e a outra privada, onde estaria o interesse em comum nesse caso? Teria a Administração Pública interesse em fazer propagandas de empresas? Caso positivo, seria totalmente contra um dos princípios basilares do Direito Administrativo, qual seja, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

Corroborando com esse entendimento, em um convênio, tanto a pessoa de direito público quanto a de direito privado devem ter um objetivo em comum, o que não ocorreu no caso em questão, pois a empresa ganhou o direito de propaganda enquanto a administração pública ganhou o bônus de não cuidar de um espaço público (Edital n.º 001/2011 – CMTULD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTULD, anexo i, itens 1.3.2. e 1.3.3.), ou seja, fi ns totalmente diferentes foram visados.

O atentado contra o interesse público também se observa na ausência de pré-aprovação do projeto das reformas pela população destinatária desses bens. O que ocorreu em Londrina, além dessa ilegitimidade de atos administrativos, foi a padronização de obras, o que, consequentemente, não considerava as peculiaridades de cada local e população, o que, de forma funesta, pode dizimar a cultura, identidade de um local.

Dessa forma, verifi cou-se uma afronta a garantias constitucionais e presentes também no Estatuto da Cidade. Porém, para que essas garantias sejam respeitadas, cabe aos cidadãos, representantes comunitários ou grupos e movimentos sociais buscarem a Justiça. Uma forma de a comunidade facilitar

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e legitimar sua participação nas decisões que lhes dizem respeito é através de associações de moradores. A participação das associações de moradores está prevista nos próprios mecanismos garantidores da gestão democrática da cidade7 e, por isso, devem ser incentivadas. Dessa forma, conforme clarifi cado no item 3, o atual projeto de ensino e extensão “Lutas: formação e assessoria em direitos humanos” irá auxiliar a comunidade do bairro Jardim igapó a criar uma associação de moradores, através de cursos sobre essa temática.

6 Conclusão

O confl ito presente na Praça do Jardim igapó leva ao seguinte questionamento: quanto tempo ainda precisa o Poder Público atentar por uma administração pública participativa? A participação popular nas decisões em que lhes dizem respeito já está positivada na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e várias outras leis. Dessa forma, o único problema é a não aplicação das referidas leis que consubstanciam o referido princípio.

Confl itos e divergências sempre irão existir, mas é através de uma política participativa em que todos os segmentos sociais terão a chance de opinar qual será a melhor forma de atender a necessidade de quem frequenta o espaço urbano em discussão.

Além disso, para que haja uma verdadeira Gestão Democrática da Cidade, deve se ater primeiramente à validade de atos administrativos. O poder público, além de suas funções típicas, tem o dever de proporcionar mecanismos para a participação popular, portanto, da Democracia, cabendo ao Poder Municipal de Londrina informar e dar publicidade quanto à reforma da Praça do Jardim igapó. Dessa forma, após isso, a população deve ser conscientizada e empoderada, para que saiba sua legitimidade de atuação e participação, para assim exercer seus direitos, inerentes à condição de cidadão.

Uma forma de empoderamento dessa comunidade, sem dúvidas é a formação de uma associação de moradores. Através dessa associação, o bairro poderá participar da elaboração do plano diretor, reivindicar melhorias para o bairro e participação nas decisões que lhes dizem respeito de forma mais efi caz.

Portanto, conclui-se que, mesmo que a administração pública negue participação popular, cabe à própria população reivindicar isso e fazer seus direitos valerem para que a tirania – maquiada de democracia – não mais ocorra.

7 Os artigos em questão são os já mencionados: art. 2º, ii, art. 40, §4º, i e art. 45, todos do Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001.

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Referências

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BRASiL. Constituição da República Federativa do brasil. Brasília: Assembleia Constituinte, 1988.

BRASiL, Código Civil – Lei 10.406/2002. Brasília: Congresso Nacional, 2002.

BRASiL, Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001.

Di PiETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Edição. São Paulo: Atlas, 2007.

FERNANDES, Pádua. A efi cácia da gestão democrática das cidades e os instrumentos jurídicos de ação coletiva. São Paulo: instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Disponível em: http://www.ibdu.org.br/imagens/Aefi caciadagest%C3%A3odemocraticadascidadeseosinstrumentos.pdf.

FRANCiSCO, Caramuru Afonso. Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.

LONDRiNA. Edital n.º 001/2011 – CMTuLD, Processo Administrativo n.º 001/2011-CMTuLD. Londrina: Prefeitura Municipal, 2011.

LOPES, Lucas Moreira. Morador do bairro Jardim igapó – Londrina/PR, em entrevista concedida aos alunos participantes do projeto de ensino “O Papel dos Advogados nos Movimentos Sociais”, no dia 27 de novembro de 2011.

MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011.

MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2008.

MEiRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal brasileiro. 16ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

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SABOyA, Renato. Gestão democrática ou democracia maquiada? urbanidades. Florianópolis. Disponível em: http://urbanidades.arq.br/2008/06/gestao-democraetica-ou-democracia-maquiada/

SiLVA, Silvia Helena da. Moradora do bairro Jardim igapó – Londrina/PR, em entrevista concedida aos alunos participantes do projeto de ensino “O Papel dos Advogados nos Movimentos Sociais”, no dia 27 de novembro de 2011.

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DIREITO FuNDAMENTAL à MORADIA E AO MEIO AMbIENTE: CONFLITO DE PRINCÍPIOS SuSCITADO

PELA LEI 11.977/2009

Guilherme FaracoHumberto Bunshi Arakawa Júnior1

Sumário: 1. introdução; 1.1. A regularização fundiária de assentamentos urbanos - lei 11.977/2009; 2. Desenvolvimento; 2.1. Direito fundamental à moradia; 2.2. Direito fundamental à qualidade do meio ambiente; 2.3. Áreas de preservação permanente; 2.4. Questão da pobreza e o déficit habitacional; 2.5. Os problemas da regularização em APP´s; 3. Conclusão; 4. Bibliografia.

Resumo: O trabalho versa sobre a regularização fundiária de interesse social de assentamentos irregulares em áreas de preservação permanente localizadas dentro de perímetros urbanos, prevista na Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. A lei tem por escopo regulamentar o programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), plano habitacional lançado no dia 25 de março de 2009 que visa beneficiar diversas famílias de baixa renda. Nela, porém, inseriu-se um dispositivo controvertido que trata das regularizações urbanas inclusive em áreas de preservação permanente. O objetivo do trabalho é apontar o conflito entre o direito fundamental à moradia e ao meio ambiente equilibrado, deflagrado pela Lei 11.977/2009, e a sua repercussão no que diz respeito à situação precária de moradia no Brasil e ao dever do Poder Público de assegurar e proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações presentes e futuras. Palavras-chave: conflito de princípios; constituição; programa minha casa minha vida; APP; assentamentos irregulares.

Abstract: The work is about the regularization of irregular settlements of social interest in permanent preservation areas within the urban perimeter, pursuant to the Law 11.977 of July 7, 2009. The law is to regulate the Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) housing plan, launched on March 25, 2009, that benefit many low-income families to achieve homeownership. Here, however, one controversial issue comes to surface, which deals with urban settlements in areas of permanent preservation. The objective is to point out the conflict between the fundamental right to inhabit and the environment, triggered by Law 11.977/2009, and its impact regarding the precarious situation of housing in Brazil and the duty of the Government to ensure and protect an ecologically balanced environment for present and future generations.Key-words: conflict of rights; constitution; housing plan; permanent preservation areas; irregular settlements.

1 Graduandos em Direito pela Universidade Estadual de Londrina.

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1 Introdução

A regularização fundiária de assentamentos urbanos - lei 11.977/2009

A lei 11.977 de 7 de julho de 2009 dispõe, em seu Capítulo iii, sobre a regularização fundiária de assentamentos urbano. Tal projeto consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 46), a ser promovida pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal, Municípios e também pelos seus benefi ciários e cooperativas habitacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público ou outras associações civis que tenham por fi nalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regularização fundiária (art. 50).

Para tanto, a lei, em seu art. 47, considera alguns conceitos, aqui selecionados como mais importantes para o que neste artigo se pretende explanar:

assentamentos irregulares: ocupações inseridas em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fi ns de moradia (inciso Vi); área urbana consolidada: parcela da área urbana com densidade demográfi ca superior a 50 habitantes por hectare e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais urbanas; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; ou e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos (inciso ii); legitimação de posse: ato do poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identifi cação do ocupante e do tempo e natureza da posse (inciso iV);Zona Especial de Interesse Social – ZEiS: parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou defi nida por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específi cas de parcelamento, uso e ocupação do solo (inciso V);interesse social: para Maria Helena Diniz (apud MACHADO, 2005, p. 357), no sentido empregado pela legislação urbanística e ambiental, stricto sensu, portanto, pode signifi car as “atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, tais como: prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasores e proteção de plantios

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com espécies nativas, conforme resolução do CONAMA” como também as “demais obras, planos, atividades ou projetos defi nidos em resoluções do CONAMA”. A resolução do CONAMA nº369/2006, art. 2º, ii entende por interesse social a regularização fundiária sustentável de área urbana (alínea c);regularização fundiária de interesse social: (inciso Vii) -regularização fundiária de assentamentos ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, nos casos: “(...) c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social.”

A Seção ii do Capítulo iii trata da regularização fundiária de interesse social. O art. 54, § 1º, é o ponto capital do argumento deste artigo, pois nele é mencionada a questão da regularização de assentamentos em Áreas de Preservação Permanente. Segue o mencionado dispositivo:

O Município poderá, por decisão motivada, admitir a regularização de interesse social em Áreas de Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas em área urbana consolidada, desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior.

Verifi ca-se, destarte, que é da competência dos Municípios, decidir, apresentando bons fundamentos, sobre a regularização de assentamentos irregulares em Áreas de Preservação Permanente inseridas em área urbana consolidada, ocupadas até determinada data (de modo a não incentivar novas ocupações), em nome do interesse social, a fi m de garantir o direito social à moradia, disposto no art. 6º da Constituição brasileira. Deverá ser realizado estudo técnico (regulado pelo art. 54, § 2º) demonstrando que poderá haver uma melhoria nas condições de sustentabilidade urbano-ambiental (V) e na habitalidade dos moradores (Vi), além da recuperação de áreas degradadas (iV), no caso de uma intervenção efetiva na área ocupada.

Para que haja a supracitada melhoria, o poder público fi cará encarregado de implantar sistema viário e infraestrutura básica, previstos no § 6º do art. 2º da Lei nº 6.766/79 (art. 55).

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2 Desenvolvimento

2.1 Direito Fundamental à Moradia

O artigo 6º da Lei Maior brasileira assim reza:  “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (BRASiL, 1988).

Morar remete ao estabelecimento de residência com ânimo defi nitivo, ou seja, ali estabelecer seu domicílio, como bem defi niu o Código Civil de 2002 em seu artigo 70. Porém, quais as dimensões que essa habitação deve possuir? E, além das dimensões, quais outros predicados devem estar presentes nessa moradia?

A Constituição portuguesa, em seu artigo 65, prega que a habitação deve possuir “dimensões adequadas, em condições de higiene, conforto e que preserve a intimidade pessoal e privacidade familiar”. Já o Magno Texto espanhol prevê uma moradia “digna e adequada".

Embora não sejam encontradas de forma explícita na Constituição brasileira tais especifi cações, elas são facilmente deduzidas, por analogia, dos termos dos artigos 1º, inciso iii, e artigo 5º, incisos X e Xi, os quais rezam pela dignidade da pessoa humana, direito à intimidade e privacidade e pelo caráter inviolável da moradia.

Contudo, é a dignidade da pessoa humana, presente no artigo 1º, iii, o núcleo essencial do direito à moradia, visto que é humilhante a qualquer homem não possuir ao menos um teto para abrigar a si e a sua família, ferindo, assim, gravemente esse princípio constitucional, o qual juntamente com a vida e a liberdade confi guram-se nos pilares para a fundamentação de todo o ordenamento jurídico vigente no Brasil.

Portanto, ao regulamentar habitações irregulares em áreas de preservação permanente, o legislador tem por base justamente esse princípio que visa propiciar ao gênero humano condições para o seu pleno desenvolvimento e satisfação, apesar do risco que isto possa apresentar a saúde do meio ambiente, que também compreendida no rol dos direitos fundamentais.

O direito à moradia possui duas dimensões que merecem destaque, uma negativa e outra positiva. Esta última obriga o Estado a prover moradia digna e adequada aos cidadãos, enquanto a primeira diz respeito ao fato de que qualquer cidadão não pode ser privado de uma moradia, muito menos de

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ter acesso a uma, isto é, a ele não pode ser negado o direito a obter um local adequado para ali estabelecer sua residência e sua vida em sociedade.

3 Direito fundamental à qualidade do meio ambiente

O eminente jurista português Jorge Miranda (2000, p. 535) é pontual quando afi rma:

O ambiente surge a nível das tarefas fundamentais, de incumbência e de formas de organização do Estado e a nível de direitos e deveres fundamentais [...] não tanto pelo seu lugar no texto constitucional quanto pela dinâmica que coenvolve e pelo sentido das normas que rege.

Destarte, não nos resta dúvida quanto à importância do direito à qualidade do meio ambiente e sua destacada posição no ordenamento jurídico brasileiro como princípio constitucional.

O abalizado professor José Afonso da Silva vai ainda mais longe, quando associa o direito ao meio ambiente ao direito à vida:

As normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de qualquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida humana (2009, p. 547).

Essa afi rmação decorre da própria defi nição dada pela Carta Magna brasileira de 1988, em seu art. 225, no qual o meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Ainda de acordo com José Afonso da Silva,

(...) a qualidade do meio ambiente se transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornaram num imperativo do Poder Público, para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento (2004, p. 123).

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Assim, o direito ao meio ambiente acaba por se sobressair até mesmo ao direito de propriedade e ao desenvolvimento que, apesar de garantidos pelo texto constitucional, não podem primar sobre o direito à vida, que “está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente” (DA SiLVA, 2004, p. 123).

Paulo Aff onso Leme Machado, na mesma toada, diz que “a sadia qualidade de vida só pode ser conseguida e mantida se o meio ambiente estiver ecologicamente equilibrado. Ter uma sadia qualidade de vida é ter um meio ambiente não poluído” (2005, p. 58), posto que a saúde dos indivíduos esteja intrinsecamente ligada ao estado dos elementos da natureza: águas, solo, ar, fl ora, fauna.

Essa interpretação extremamente acertada e coerente era inconcebível há poucas décadas atrás, e ainda sofre para ser aceita hodiernamente, já que o capitalismo vem demonstrando a sua incapacidade de conviver harmoniosamente com o meio ambiente, e os ditos países “em desenvolvimento” relutam em ceder parcelas de seu crescimento em prol de atitudes efetivas para a preservação ambiental.

O tema ambiental, por ser uma questão não só de interesse mas de necessidade global (os problemas ecológicos só se resolverão por meio de uma colaboração de caráter internacional), não pode ser analisado somente pelo prisma da Constituição brasileira, mas deve-se procurar uma abordagem mais ampla no que diz respeito aos tratados internacionais de colaboração em prol do meio ambiente, dentre os quais destacam-se a Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência da Nações Unidas, em Estocolmo, no ano de 1972, e a Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, fruto da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida por ECO/92.

A Declaração de Estocolmo, de 1972, proclama que “os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artifi cial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida” (ONU, 1972). O Princípio 01 determina que:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida diga e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. (ONU, 1972)

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São considerações que muito infl uíram na elaboração do capítulo sobre meio ambiente da Lei Maior brasileira, ao colocar o direito à vida em relação de interdependência com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como já foi analisado aqui anteriormente, além de formalizar o comprometimento das gerações presentes para com as futuras, reafi rmado também no Princípio 02. O Princípio 04 coloca o homem como responsável pela preservação e administração do patrimônio ambiental, que se encontra em perigo por diversos fatores, tais como a descarga de substâncias tóxicas (Princípios 06 e 07), o subdesenvolvimento (Princípios 09, 10 e 11), e o alto crescimento demográfi co (Princípio 16). O Princípio 08 e outros seguintes fazem a importante menção do desenvolvimento econômico e social para a concretização do ideal da preservação ambiental.

A Declaração do Rio/92 reafi rma os princípios enunciados acima e adiciona outros relativos ao desenvolvimento sustentável. Em seu Princípio 03, declara que “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras”. (ONU, 1992) é a própria defi nição de desenvolvimento sustentável.

As supracitadas declarações elencam princípios fundamentais de proteção ambiental. J.J.G. Canotilho (2008, p. 251), em sua acepção de princípios, os descreve como “normas jurídicas impositivas”. O célebre constitucionalista é categórico ao dizer ainda que esses “são padrões juridicamente vinculantes”. Dessa forma, pode-se afi rmar que os princípios constitucionais que dizem respeito ao meio ambiente não devem fi car apenas no plano teórico, mas sim concretizados por meio de sua aplicação pelos operadores do Direito, ou seja, devem ser Direito Positivo, impondo-se à regulação da conduta humana ao mesmo tempo em que vinculam a legislação.

3.1 Áreas de Preservação Permanente

A defi nição de áreas de preservação permanente (APP) está contida na lei 12.651, de 25 de maio de 2012, ou Novo Código Florestal, que veio substituir o ultrapassado texto do código antigo, de 1965 (Lei 4.771). Vale frisar, que o código revogado, antecipando-se à Constituição Federal de 1988, já considerava o meio ambiente como bem de uso comum do povo, disposição mantida pelo novel diploma em seu artigo 2º, caput.

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Não houve alteração do conceito de Área de Preservação Permanente (APP), na defi nição dada pelo art. 3º, ii, do novo Código Florestal de 2012, que assim regula:

área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fl uxo gênico de fauna e fl ora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas

O percuciente jurista Paulo Aff onso Leme Machado faz duas ressalvas: “Na defi nição legal de fl orestas de preservação estão abrangidas não só as fl orestas como as demais formas de vegetação nativa, primitiva ou vegetação existente sem a intervenção do homem”, além disso, “a ideia da permanência não está vinculada só à fl oresta [...]. Se a fl oresta perecer ou for retirada, nem por isso a área perderá sua normal vocação fl orestal” (2005, p. 738).

As APPs podem ser divididas em dois grupos: o primeiro está explicitado no extenso e taxativo art. 4º, e diz respeito à situação das áreas e da vegetação; o segundo tipo, exposto no art. 6º, possui relação com a fi nalidade das mesmas:

Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com fl orestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes fi nalidades:(...).

O art. 4º elenca as condições físicas observáveis da área a ser considerada de preservação permanente, por exemplo, quando situadas em “áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfi ca, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros” (art. 4º, inciso iV); enquanto o art. 6º arrola situações tanto objetivas quanto subjetivas para a caracterização de APP, vide gratia, quando destinadas “a assegurar as condições de bem-estar público” (inciso Vii).

A supressão de vegetação em APPs, nos termos do art. 225, § 1º, iii da Carta Magna brasileira, institui que a alteração e a supressão são permitidas somente através da lei. No antigo Código Florestal, eram duas as situações em que se permite a supressão de vegetação em APPs, a saber, no caso de utilidade pública (atividades de segurança nacional e proteção sanitária; obras essenciais de infraestrutura destinadas aos serviços públicos de transporte, saneamento e energia; demais obras, planos, atividades ou projetos previstos em resolução do

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CONAMA) e de interesse social (artigo 4º, caput). A partir de 2012, o tema foi tratado com maior profundidade no artigo 8º e incisos do novo Código. Vale destacar a inovação contida no §2º:

A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente de que tratam os incisos Vi e Vii do caput do art. 4o poderá ser autorizada, excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.

3.2 Questão da pobreza e o défi cit habitacional

Quase quarenta milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, eis o dado que o instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (iPEA, 2009) fornece ao público. Decorrente de tal pobreza, que atinge aproximadamente 4,2% da população brasileira, existe no país, de acordo com levantamento feito pela Fundação João Pinheiro em conjunto com o Ministério das Cidades (FJP, 2007), há um défi cit de habitação na casa dos 6,273 milhões de domicílios. Esta é a principal causa da invasão de morros, fundos de vale, manguezais e outros locais tidos como APPs.

Tendo em vista essa questão de interesse público, posto que, ao degradarem áreas de preservação permanente ou reservas de mata Atlântica, há a diminuição da qualidade de vida de um direito de todos, a saber, o meio ambiente (consagrado pelo artigo 225 da Constituição Federal), o governo federal implementou o “Programa Minha Casa, Minha Vida”.

Ao Ministério das Cidades compete tratar do desenvolvimento dos municípios e das políticas setoriais de habitação, ou seja, organizar as políticas públicas para a promoção de um ambiente urbano bem disposto em relação aos aspectos físicos de cada município e o pleno desenvolvimento dos moradores das cidades, dentre os quais a moradia é um dos pilares.

Entretanto, o fato de existir ainda, em um país que fi gura entre as 10 principais economias da Terra, um défi cit de moradias é alarmante. Devido ao inchaço das cidades decorrente do intenso êxodo rural na segunda metade do século XX, o Brasil é um país eminentemente urbano. Em decorrência dessa urbanização acelerada, as cidades do país se tornaram centros desorganizados e mal planejados.

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3.3 Os problemas da regularização em APPs

No tópico 2.3, analisou-se os casos em que a supressão da vegetação das APPs era permitida. Um desses casos era a alegação de motivo de interesse social. O conceito de interesse social é demasiadamente amplo, como já foi demonstrado, pois se consideram as obras, planos, atividades, ou seja, o que o administrador julgar procedente ele poderá realizar sob o motivo de interesse social. Portanto, há de se ter muita cura quando na utilização desta justifi cativa, de modo a não por em risco a segurança e o próprio ideal do que seria uma Área de Preservação Permanente. Nesse sentido, fi guram-se absurdas as considerações feitas pelo Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Venício Salles (2009), que defende uma fl exibilização da legislação urbanística e ambiental para fazer-se superar as difi culdades da população de baixa renda, no ato da regularização. In verbis:

(...) por se tratar de regularização fundiária, que tem como propósito primeiro fazer superar as difi culdades da população de baixa renda, não há como se cobrar maior rigor na confecção do projeto ou no atendimento das exigências. Portanto, as disposições legais devem ser pensadas e lidas com uma carga de fl exibilização, própria do sentido da ‘função social da propriedade’, relativizando o cumprimento das posturas urbanísticas e prescrições ambientais, em atenção ao propósito da regularização que é o de obter a melhoria ou o aprimoramento dos núcleos habitacionais consolidados (SALLES, 2009).

Para onde vai a tão prezada segurança jurídica nesse caso? Este é um exemplo de como a alegação de interesse social pode vir a distorcer e ameaçar o ordenamento jurídico. é fato que a questão habitacional, juntamente com a pobreza, são problemas que merecem um enfoque especial; não obstante, desprezada a legislação, não demorará muito até ela ser posta novamente de lado por motivos muito menos nobres.

Foi levantada também a importância do meio ambiente para a vida humana, no tópico 2.2. Direito ao meio ambiente e o direito à vida encontram-se em pé de igualdade. Trata-se de uma visão deveras atual, haja vista o intenso debate acerca do futuro do meio ambiente, intrinsecamente ligado ao próprio futuro da raça humana. é por isso que instrumentos jurídicos, tal qual a APP, são de importância fundamental: a proteção do meio ambiente tornou-se, hodiernamente, tarefa primordial; instrumentos para a consecução desses

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objetivos devem ser criados e implementados com o maior rigor possível. E o papel do Brasil nessa luta é vital, dado a imensidão das riquezas ambientais do país.

Há de se ter em mente, outrossim, que, uma vez regularizados esses assentamentos e desenvolvida a infraestrutura local, como quer a lei (se realmente haverá esse desenvolvimento, é outro mérito), não será mais possível reaver essas áreas para que se faça uma recuperação da vegetação suprimida. A ocupação será irreversível. Uma APP é, por defi nição, uma área essencial para a saúde humana e para o próprio meio ambiente. Nunca deveria ter sido ocupada ou suprimida, e se foi, dever-se-ia fazer todo o possível para reverter o processo (obviamente respeitando a dignidade humana, que é o que se põe em discussão neste artigo).

O custo da terra urbana em geral, no Brasil, em especial nas cidades médias e pequenas, não é tão signifi cativo que possa constituir-se em impeditivo para a adoção de políticas habitacionais públicas em áreas apropriadas para esse fi m. As APPs são também, por natureza, áreas insalubres, inapropriadas à habitação. Por tais fatos, não se pode, em virtude de um problema da realidade socioeconômico atual, comprometer em defi nitivo áreas de incomensurável valor para a sobrevivência do ser humano e para a natureza.

O governo brasileiro é muito bem sucedido em implantar medidas que, em verdade, não resolvem o problema, mas servem de paliativos, ou seja, resolvem apenas uma parte da questão (nunca a mais essencial, e, portanto, mais complexa). A questão da habitação, e até mesmo a pobreza, em certa escala, decorrem de fatores econômicos, em primeira medida, mas também é grande o papel da administração pública brasileira no contexto dessas mazelas sociais. A regularização de assentamentos irregulares não resolverá o problema habitacional brasileiro. é somente mais um paliativo.

4 conclusão

A questão da pobreza e da habitação é, sem dúvida, uma das mais complexas e exigentes das que estão em evidência no Brasil hodierno, e não são poucas. A ocupação desenfreada e desregulada de determinadas áreas, sejam elas de preservação ou não, chegou a um ponto crítico, e quem arcará com o prejuízo por esse fenômeno socioeconômico não é apenas o meio ambiente, mas a própria raça humana.

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Destarte, programas governamentais de caráter duvidoso, dado a inclinação da presente administração por obras e programas faraônicos, realizados às pressas para que lhes sirvam de base eleitoral, não são a resposta para essa profunda mazela. Motivos sociais estão sendo utilizados descaradamente para se rejeitar o ordenamento jurídico e impor medidas condizentes com as aspirações eleitoreiras da situação. é certo que não se pode comprometer em defi nitivo espaços essenciais e necessários à natureza e à raça humana por uma realidade grave, porém transitória.

Referências

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CANOTiLHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ªed. Editora Almedina, 2008

MACHADO, Paulo Aff onso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 13ªed. Malheiros Editores. São Paulo, 2005.

MiRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV. 3ª ed. Coimbra Editora, 2000.

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_____. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1992

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SiLVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 32ªed. Malheiros Editores. São Paulo, 2009.

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_____- Direito urbanístico brasileiro. 2ª ed. Malheiros Editores. São Paulo, 1995.

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A quALIDADE DO MEIO AMbIENTE VISANDO O PLANEjAMENTO uRbANO, A LuZ DA

CONSTITuIÇÃO FEDERAL

Luca de Campos Carrer1

Sumário: 1. introdução. 2. A qualidade do meio ambiente visando o planejamento urbano. 3. Conclusão

Resumo: O meio ambiente tratado como um bem coletivo ganhou notório espaço no contexto global e no mundo jurídico nas ultimas décadas. Concomitantemente a crescente econômica e o desenvolvimento das cidades precisam de um marco regulatório para não ultrapassar o limite ambiental. Assim a Carta Magna e as leis visam proporcionar uma interação harmônica entre o ambiente sadio e a economia, buscando a qualidade de vida das presentes e futuras gerações. O presente trabalho visa abranger: as políticas públicas, as normas constitucionais, leis infraconstitucionais que tratam sobre o meio ambiente; tanto na preservação, como na regulamentação do mesmo; o planejamento das cidades para se adequar às políticas ambientais e a inserção do homem nesse novo contexto de Estado Ambiental. Vale ressaltar os objetos e princípios das políticas ambientais, como por exemplo, a consideração do meio ambiente como patrimônio público, a racionalização das matérias (água, solo, subsolo, ar), o planejamento e fiscalização dos recursos ambientais, a proteção a ecossistemas e a áreas em degradação, incentivos às pesquisas e educação ambiental entres outros. Enquanto, o planejamento das cidades visará às garantias sociais das cidades e o bem-estar de seus habitantes. Este planejamento deve ser elaborado através de um Plano Diretor, o qual delimita a cidade em zonas para estabelecer como será feito o uso do solo. O zoneamento tende a acatar as exigências do município, no caso uma cidade turística, o zoneamento será feito a atender o turismo local, em uma cidade na qual a economia esta voltada para a indústria, o Plano Diretor atentará para as infra-estruturas necessárias e os locais adequados para as instalações das mesmas. Esse modo de planejar as cidades brasileiras deve visar exclusivamente o bem-estar dos habitantes, deixando de lado interesses políticos e particulares. Por fim, a referida pesquisa, se dará por meio de uma análise literal sobre o tema proposto, “A qualidade do meio ambiente visando o planejamento urbano, a luz da Constituição Federal”, e como as leis visam garantir o direito ao meio ambiente às presentes e futuras gerações.Palavras chave: PNMA; Planejamento Urbano; Constituição Federal

Abstract: The environment treated as a collective good has received a notorious space in the global context and in the legal world in the last decades. Concomitantly the economic growth and the development of the cities need regulatory framework not to surpass the environmental limit. Thus, the Great Charter (Magna Carta) and the laws aim to provide a harmonic interaction between a healthy environment and the economy, seeking welfare in the present and future generations. This work seeks to embrace: public politics, constitutional norms, infra-constitutional norms about the environment; in the preservation, as in the regulation of them; the cities’ planning to fit into the environmental politics and the insertion of the men into this new context of Environmental State. it’s valid highlighting the objects and principles of the environmental politics, for example, consideration of the environment as a public heritage, the 1 Acadêmico do terceiro ano do curso de Direito da UEL.

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rationalization of substances (water, soil, subsoil, air), the planning and supervision of natural resources between others. Th erefore, the planning of the cities will aim social guarantees of them as well as the welfare of its inhabitants. Th is planning must be created through a “Plano Diretor”, which bounds the cities into zones to establish how the use of the soil will be done. Th e zoning tends to attend the local tourism, in a city in which economy is faced to industry, the “Plano Diretor” will attempt to infrastructure needed and suitable locations for the installation of it. Th is way of planning Brazilian cities must aim exclusively the welfare of its inhabitants, leaving aside private and politic interest. Ultimately, this research, will be done through a literal analysis of the suggested theme, “Th e environment’s quality aiming urban planning, in the light of the Federal Constitution”, and how the laws seek to ensure environmental laws to the present and future generations.Keys words: PNMA; Planning of the Cities; Federal Constitution

1 Introdução O escopo deste artigo visa trabalhar a ideia de um meio ambiente

ecologicamente equilibrado, em que seja respeitada a qualidade de vida e a dignidade da pessoa humana. Para se falar em meio ambiente ecologicamente equilibrado é preciso deixar a ciência jurídica de lado e remeter-se aos estudos das ciências naturais, as quais têm um maior domínio sobre o tema. A natureza não é um sistema previsível e estático, ela está em constante transformação, é um sistema dinâmico. E a proposta de manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado é no sentido de deixar a natureza manter o seu próprio sistema dinâmico, com milhares de interações entres os seres que vivem nesse meio ambiente. Quando se fala em qualidade de vida e dignidade da pessoa humana – duas expressões que o legislador brasileiro faz questão de ressaltar – é no intuito de se oferecer as condições adequadas para a vivência humana, pois o homem não pode ter sua vida apenas voltada para a luta pela sobrevivência, a de se respeitar a sua dignidade garantindo direitos e deveres para uma melhor convivência social além de garantir uma vida mais digna.

Na Constituição Brasileira quando se alude ao sentido de qualidade de vida esta estritamente voltada a qualidade de vida do homem, uma visão antropocêntrica, mas numa interpretação ampla, pois o texto só fala em qualidade de vida e não qualidade de vida do homem. Pode-se indicar a uma qualidade de vida, numa perspectiva ambiental, de todo o meio ambiente garantindo assim o equilíbrio ecológico. Além disso, a Constituição Federal trata o meio ambiente de acordo com a necessidade do homem, ou seja, não vê o meio ambiente como algo que está inerente ao homem, como um bem coletivo que deve ter direitos garantidos para preservar o seu equilíbrio. A lei maior

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também não adota uma visão na qual o meio ambiente não tem valor nenhum, muito pelo contrário, a questão ambiental vem ganhando notório espaço nos trabalhos legislativos, além de toda proteção resguardada na constituição. Quando foi tratar do tema ambiental o legislador já tinha a noção de que os recursos naturais eram escassos, e que esses mesmos recursos eram necessários para a manutenção harmoniosa da vida e garantia da qualidade da mesma, logo decidiu preservar esses recursos, regulamentar a extração e uso deles e punir aqueles que não respeitassem as riquezas naturais. Assim o legislador protegeu a natureza, porém com o intuito dela ser um instrumento pelo qual o homem faz uso para melhorar a sua vida.

Ademais, o referente trabalho também trata o tema do planejamento urbano, da organização das cidades brasileiras e dos instrumentos utilizados para essa organização. No Brasil, as políticas urbanas têm o objetivo de garantir o pleno desenvolvimento das cidades e proporcionar o bem-estar de seus cidadãos, como consta na Constituição Federal. Logo os governantes e aqueles que detêm o poder devem proporcionar para toda a população das cidades segurança, em que os indivíduos não tenham medo de sair de casa, não tenham que se esconderem atrás de muros altos, cercas elétricas e outros meio de segurança encontrados atualmente; além disso, disponibilizar uma educação de qualidade, tanto para o ensino fundamental e médio, como para o ensino superior, para as crianças e adolescentes ensinar a ler e escrever, as matérias de um modo geral, ensinar a ter uma visão critica do mundo para saber escolher os melhores caminhos para si e não deixar que os outros imponham seus pensamentos, e para aqueles que cursarem o ensino superior propiciar condições de estudos e pesquisa para investimentos em projetos de pesquisa e tecnologia. Também não se pode esquecer-se da saúde, na qual as pessoas devem ter um atendimento digno, devem ter um tratamento adequado para as suas doenças com as melhores tecnologias disponíveis para a manutenção de suas vidas.

Essas tarefas designadas aos governantes e delegadas por eles a outras pessoas também fazem parte de um contexto em que há de ser ter um planejamento urbano, delimitando áreas para a construção de residências, para a instalação de indústrias, criação de ciclovias, para onde a cidade tende-se expandir, gerenciar o deslocamento urbano, dentre outras coisas, e tudo com uma fi nalidade: garantir o bem-estar do cidadão. E por fi m é tratado a ideia de um Estado de Direito Ambiental, uma visão utópica de um mundo em que o meio ambiente seria respeitado por todas as pessoas e nações. Um Estado em

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que a natureza tivesse direitos garantidos, em que o homem estivesse integrado com a natureza em uma convivência harmoniosa, não fazendo apenas o uso dela para si próprio.

2 A qualidade do meio ambiente visando o planejamento urbano

As sociedades modernas estão crescendo cada vez mais, e de uma maneira incontrolável; o planejamento das cidades, o abastecimento de água e comida, as instalações de infra-estrutura, a coleta de lixo, o trânsito de veículos, nada mais é estudado e direcionado para que haja um desenvolvimento na qualidade de vida e preserve a dignidade da pessoa humana. E nesse contexto o meio ambiente também vem sendo brutalmente desfrutado do modelo adotado pela vida humana. O homem desde sua origem vem interagindo com o meio ambiente. As primeiras civilizações surgiram com o desenvolvimento da agricultura, localizando-se a beira dos rios, tendo como exemplo a Mesopotâmia, que signifi ca entre rios, no caso os rios Eufrates e Tigres, no sudoeste da Ásia. Novas relações surgiram com a natureza, como o manuseio da fl ora para criação de medicamentos, o aproveitamento de animais para trabalhos e também na convivência doméstica, a alimentação vinda de vegetais e animais, e nas sociedades modernas o aproveitamento de bacias hidrográfi cas para a produção de energia, o usufruto de minérios para criação de bens de consumo – fabricação de jóias, e metais nas indústrias – além da utilização de combustíveis fosseis.

E nesse sentindo, nas ultimas décadas o homem vem usando de recursos ambientais de acordo com o modelo de vida adotado. As sociedades capitalistas em muitos casos vêm à natureza apenas como um meio para se chegar a um objetivo, que seria a obtenção de lucros para o acúmulo de riquezas. Tendo como exemplo um empresário rural, um latifundiário que desmata milhares de alqueires sem respeitar lei ou norma alguma, sem pensar nos danos ambientais simplesmente para aumentar a sua produção e conseqüentemente o seu faturamento. E enxergam ao mesmo tempo o meio ambiente como um fi m, na qual podem obter recursos de maneira ilimitada, tendo no caso, a obtenção de madeiras, minérios e combustíveis fosseis. O que não se pode concluir como verdade, pois a limitação para a exploração ambiental tem sido cada vez mais notável no mundo de hoje.

Mas voltando ao modelo de vida seguido pelo homem, os valores econômicos ainda estão muitas vezes acima, de valores sociais, individuais e

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ambientais. Dividindo assim o ideal de utilização do meio ambiente, segundo José Rubens Morato Leite, 2012, em duas correntes: a ecologia profunda e o antropocentrismo. A primeira corrente citada tem em seu ponto de vista o homem sendo integrado a natureza. Um ambiente onde ambos estão interligados na qual tanto o homem como a natureza, estão em comunhão para se manterem vivos. A ecologia profunda considera a natureza como um sujeito de direitos, que deve ser respeitado. Criando assim uma proteção jurídica ao meio ambiente, defendo nesse sentido animais e plantas. Logo o homem quando faz uso de algum recurso ambiental, não está pensando em valores econômicos ou apenas em um bem estar individual, esta em busca de uma melhor qualidade de vida para si, mas também para natureza. A segunda corrente, o antropocentrismo, como o próprio nome já diz “o homem no centro”, pode ser dividida em duas novas visões, que seriam o economicocentrismo e o antropocentrismo alargado, que serão analisadas a seguir.

O economicocentrismo tem como a economia no centro do universo, ou seja, todas as ações do homem estão voltadas para o crescimento econômico, independente das conseqüências. Assim, o pensamento no meio ambiente, a sustentabilidade, a preservação ambiental, a limitação das riquezas ambientais, nada disso é levado em conta na busca do seu objetivo principal – o crescimento econômico. Já o antropocentrismo alargado, não deixa de ter as ações voltadas para o homem, mas também não tem um pensamento voltado inteiramente para o crescimento econômico. Esse modelo de visão de utilização do meio ambiente, não adota a postura da ecologia profunda, na qual o ser humano está totalmente integrado a natureza, e sim assume a posição de um homem que interage com a natureza. Em outras palavras, o homem utiliza-se do meio ambiente para melhorar a sua qualidade de vida, apurar seus aspectos econômicos, científi cos e sociais, no entanto não deixa de ser sabedor que os recursos naturais são limitados. Assim o ser humano busca no meio ambiente os recursos que lhes são necessários para sua sobrevivência, e aprimorar o seu estilo de vida, ou seja, sendo o homem no centro do universo, porém a preservação ambiental far-se-á necessária para garantir a dignidade da pessoa humana, e a sobrevivência das futuras gerações. Baseando-se na idéia de antropocentrismo alargado, o poder constituinte originário e o legislador criaram normas para proteger e preservar o meio ambiente e ainda regularizar o modos de utilização dos recursos naturais.

A constituição Federal de 1988 instituiu a idéia de o meio ambiente ser um bem coletivo, nesse sentido tomamos as palavras de José Afonso da Silva,

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“O dever de defender o meio ambiente e preservá-lo, no entanto, é imputado ao Poder Público e à coletividade; O meio ambiente é um bem de uso comum do povo e essencial á sadia qualidade de vida, portanto é um bem que não está na disponibilidade particular de ninguém, nem de pessoa privada nem de pessoa pública”. (José Afonso da Silva, 2004)

Portanto, o meio ambiente é um bem abstrato de valor peculiar, na qual a sociedade tem um interesse específi co. A Carta Magna como já dito antes não adotou uma visão totalmente ecológica, pois o meio ambiente ainda é refém das necessidades econômicas, diante de uma sociedade liberal, e a globalização do mercado tornar-se-á imprescindível à utilização de recursos naturais para o desenvolvimento econômico, no entanto, a preservação e o uso adequado dos recursos naturais, esta contido na Constituição Federal, como se observa:

“Diante de tal situação não se poderia esperar que a Constituição da República, em que pese a sua avançada concepção de ambiente e a sua busca pela formação de um Estado de Direito Ambiental, não se direcionasse também por uma visão antropocêntrica do ambiente. é interessante observar, contudo, que ela não se ateve a uma visão antropocêntrica de matiz economicocêntrica de meio ambiente. Assim, não contemplou o ambiente como mero instrumento para o proveito econômico e a geração de riquezas. Os fortes delineamentos econômicos de ordem constitucional são conformados com a proteção ambiental.” (José Rubens Morato Leite, 2012)

Pode-se notar esta proteção diferenciada, no artigo 170, inciso Vi, na qual intitula como princípio a ser observado para a ordem econômica o meio ambiente, e depois a emenda 42 de 2003 vem reiterar, esse inciso levando em conta a questão do impacto ambiental a ser gerado. Outro artigo em que se denota a preocupação com o meio ambiente é o artigo 186, inciso i e ii, quando regulamenta o uso dos recursos naturais quanto à função social da terra. Além disso, o capitulo Vi – Do Meio Ambiente, da Constituição Federal, que contém o artigo 225, e seus respectivos parágrafos, tratam apenas sobre as questões ambientais.

Ademais, os artigos 22, inciso iV, e artigo 24, incisos Vi e Viii, e artigo 225, falam sobre a quem compete legislar as referidas matérias de meio ambiente inseridas nos respectivos incisos. Fora a Constituição da República, o Brasil conta com uma Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA – que visa dar tratamento global e unitário a defesa do meio ambiente. Essa Política esta contida na lei 6938/81, porém a PNMA não é uma norma rígida que visa delimitar

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sanções específi cas, e sim orientar a União, Estados, Municípios e o Distrito Federal a formular normas, planos, políticas governamentais que protejam o meio ambiente e sejam compatíveis com o desenvolvimento econômico, social, urbano e tecnológico. A ação do Poder Público, que advém da PNMA, esta pautada em princípios que serão abordados na seqüência: consideração de que o meio ambiente é um patrimônio público, volta-se a idéia do bem coletivo, que o meio ambiente deve ser assegurado para todos, tanto as presentes como futuras gerações, sendo assim deve ser protegido; racionalização do uso do solo, do subsolo, da água, e do ar, logo o Estado pode interferir na utilização desses recursos, quando perceber que existe abuso, imprudência ou negligência de alguma parte na utilização dos recursos ambientais; planejamento e fi scalização dos recursos ambientais, cabe essa tarefa ao Estado, nos casos já citados no princípio anterior; proteção dos ecossistemas, princípio contido no artigo 225, parágrafo 1º, inciso i, da CF; controle e zoneamento das atividades potencial ou efetivamente poluidoras, assim como a fi scalização esse princípio é um instrumento, um meio de atuação do Poder Público; incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais, esse principio tem o intuito de proteger e orientar a utilização dos recursos naturais para as futuras gerações; acompanhamento do estado da qualidade ambiental, nesse sentido é que há de se verifi car os resultados da políticas e normas ambientais em vigor e avaliar os respectivos desempenhos dessas na proteção e preservação do meio ambiente; recuperação de áreas degradadas e proteção de áreas ameaçadas de degradação, podem ser considerados dois objetos da PNMA; e por fi m educação ambiental em todos os níveis de ensino, contido no artigo 225, parágrafo 1º, inciso Vi, da CF, que é um princípio preventivo, na qual tem como objetivo conscientizar as presentes e futuras gerações da limitação dos recursos naturais e da sua essência para a sobrevivência do homem.

Destarte, a PNMA além de ser baseada em princípios tem objetivos fi xos, que muitas vezes podem se confundir com os próprios princípios. Com a palavra José Afonso da Silva, ao falar dos objetos da PNMA,

“A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objeto a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, com a fi nalidade de assegurar, no país, as condições adequadas ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da pessoa humana.” (José Afonso da Silva, 2004)

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Os objetos que valem ser ressaltados sobre a PNMA são: a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico, ou seja, deve-se haver uma mediana quanto a utilização dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente, a aplicação das riquezas ambientais na indústria não deve ser feita em demasia, ao ponto de afetar a natureza, e a proteção ambiental não pode prejudicar o desenvolvimento econômico, deve-se de haver assim um meio termo; outro objeto é a defi nição de áreas prioritárias de ação governamental relativa à qualidade e ao equilíbrio ecológico, atendendo aos interesses da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, constitui a ideia de recuperar e atender as cidades onde a poluição está alarmante, logo, o planejamento deve prover as zonas na qual a qualidade de vida e ambiental está em maior decadência. E por fi m o objetivo do estabelecimento de critérios e padrões da qualidade ambiental e de normas relativas ao uso e manejo de recursos ambientais, sendo um instrumento da PNMA, na qual através de decretos, resoluções há de adequar e fi scalizar a utilização das riquezas naturais. Não obstante, existem outros objetivos que podem ser classifi cados quanto a PNMA, no entanto, ao entendimento dessa pesquisa eles se confundem com os princípios já mencionados, além do que em muitos casos os princípios, objetivos e instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente se misturam entre si na mesma idéia e modo de agir.

Dos instrumentos da PNMA, ou melhor, a maneira que Política Nacional do Meio Ambiente se utiliza para manter, melhorar e recuperar o ambiente ecologicamente equilibrado. Podem ser classifi cadas em três tipos de ações de intervenção: as de intervenção ambiental, na qual são os meios que o Poder Público, cria através de normas para regular e condicionar o aproveitamento dos recursos naturais; as de controle ambiental, que seria a fi scalização dada pelo Poder Público ao cumprimento das normas ambientais – derivando-se em três momentos: o controle prévio, antes da possível ação de dano ambiental, por meio de estudos e avaliações de impacto ambiental; o controle concomitante, durante a possível ação de dano ambiental, que se daria através de fi scalizações e inspeções; e o controle sucessivo, após a possível ação de dano ambiental, na qual serão feitos exames e vistorias a fi m de verifi car se houve dano ao meio ambiente e se as normas ambientais foram respeitadas – e voltando as ações instrumentais da PNMA, a ação de controle repressivo, que visa corrigir atrás de sanções administrativas, civis e penais a falta de observância das normas ambientais.

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A Constituição Federal de 1988, também contempla em seu corpo normas sobre Políticas Urbanas, na qual em alguns artigos delega competências como é o caso do artigo 21, inciso XX. E em outros casos tem o intuito de guiar os órgãos públicos para fazerem a melhor administração municipal de acordo com a Carta Magna, como no artigo 182, na qual visa garantir a realização do pleno desenvolvimento das funções sócias da cidade e garantir o bem estar dos seus habitantes. Tanto a Política Urbana quanto a Política Nacional do Meio Ambiente, devem estar em harmonia em relação as suas normas, pois ambas tem como fi nalidade garantir a dignidade da pessoa humana, o meio ambiente equilibrado, e o desenvolvimento sócio-econômico.

As políticas urbanas, no Brasil, seguem duas linhas, a de um desenvolvimento adequado das cidades, num âmbito nacional, regional, que caberia a União e aos Estados-Membros legislar sobre a matéria de Direito Urbanístico e ainda criar ações de integrações entre cidades e pólos urbanos, planejando o crescimento das cidades dentro dos estados e do próprio país. E ainda o desenvolvimento urbano na perspectiva municipal, cabendo a competência ao município para legislar e por em praticas atos normativos que visem à melhor qualidade de vida dentro da cidade, entre outras ações como, a adaptação das calçadas das cidades a defi cientes físicos, a questão do deslocamento urbano, a instalações de indústrias, problemas como o escoamento de água, o fornecimento de energia, a criação de pólos tecnológicos entre outras matérias. Logo, para que as ações que buscam a melhor qualidade de vida e o bem-estar do cidadão far-se-á necessário a criação de um Plano Diretor, como consta no artigo 182, parágrafo 1º, da CF. Este seria instrumento pelo qual os governantes se utilizariam para promover a política de planejamento e desenvolvimento urbano.

Em décadas passadas à atenção das políticas urbanas era apenas na questão quanto à utilização do solo, com o crescimento da corrente ambientalista e o destaque da PNMA, o cuidado com o solo não foi deixado de lado, mas outros elementos da natureza ganharam espaço, como o ar, a água, as plantas além da preocupação com o próprio ser humano e o seu futuro. Hoje em dia, os modos de poluição estão sendo objetos das políticas urbanas, dentre as formas de poluição seguem alguns exemplos. A poluição sonora, causada por ruídos, trânsito, obras, que pode causar danos futuros é assunto dos Planos Diretores atuais; a poluição visual, causada por propagandas e merchandising já é um tema em que o legislador se aprofundou, tendo como exemplo as cidades de Londrina e São Paulo, na qual existe a Lei Cidade Limpa, que estabelece

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parâmetros para a publicação de propaganda nas vias públicas e ainda sanções para aqueles que não respeitarem as normas; a poluição do solo e das vias públicas, que pode gerar danos a plantações e interromper bueiros e vias de escoamento da água causando enchentes, além do que a coleta seletiva do lixo, que em muitas cidades existe um tratamento adequado para o lixo reciclável, o lixo comum e o lixo especial - neste caso há de se falar tanto em lixo hospitalar, como lixo nuclear e ainda o lixo derivado de novas tecnologias como baterias, pilhas e eletroeletrônicos, que devem ter um tratamento diferenciado – e ainda a poluição atmosférica e poluição das águas na qual existem normas e resoluções dos órgãos ambientais competentes regulamentando a quantidade máxima para emissão de gases na atmosfera, a utilização das águas de rios, córregos e lagoas.

Outrossim, com a PNMA e a Política Urbana, os projetos de lei tende a se adaptar a essas normas. Logo a Política de Desenvolvimento Urbano inclui como objetivos e parâmetros a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente, e também ao patrimônio histórico, artístico e cultural. Para que a atividade urbanística gere efeitos é necessária à ordenação dos espaços urbanos, que classifi cam dois elementos essenciais: as unidades edilícias, que seriam todas as construções na qual o homem faz uso, seriam os espaços urbanos fechados tendo como exemplo, as casa, indústrias, igrejas, hospitais, etc. E os equipamentos públicos, que seriam os bens públicos destinados a utilização e satisfação da população, tendo como exemplo as ruas, praças, canalizações áreas verdes, etc. Os dois elementos anteriormente citados fazem parte de uma maneira de regular a utilização do solo pela atividade urbanística, com essa classifi cação a de se adequar a melhor maneira para o escoamento da água, por exemplo, regulamentar as áreas destinadas para cada tipo de construção, determinar a altura e o local de construção de prédios, delimitar áreas verdes de preservação do meio ambiente. Nas palavras de José Afonso da Silva:

“Em suma, o que se está vendo é que a atividade urbanística tem um sério compromisso com a preservação do meio ambiente natural e cultural, buscando assegurar, de um lado, condições de vida respirável e, de outro lado, a sobrevivência de legados históricos e artísticos e a salvaguarda de belezas naturais e paisagísticas de deleite do Homem. Ao inverso, em certos casos a ação urbanística incide em áreas envelhecidas e deterioradas, procurando renová-las com o mesmo objetivo de criar condições para o pleno desenvolvimento das funções sócias da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes.” (José Afonso da Silva, 2004)

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A ordenação dos espaços urbanos faz uso de um instrumento chamado zoneamento, que seria o meio jurídico para regularizar o uso e a ocupação do solo. O zoneamento urbano tem basicamente dois objetivos, a repartição do território municipal, relativo ao uso do solo; e a divisão do município em zonas de uso, em outras palavras, seria colocar cada coisa em seu devido lugar, adequar as atividades urbanas - inclusive as incômodas – nos lugares propícios para o bem-estar do cidadão, sem afetar o desenvolvimento econômico da cidade. O solo urbano é o local onde se desenvolve as atividades econômico-sociais da cidade, sendo essas: industriais, comerciais, turísticas, residenciais, religiosas, entre outras. Logo, o zoneamento urbano é feito de acordo com essas atividades, algumas regiões sendo destinadas exclusivamente ou preponderantemente a residências, indústrias, entre outras atividades. Um exemplo é uma cidade que tem sua economia voltada para o turismo, logo o município adéqua as zonas de uso ao turismo, qualifi cando a infra-estrutura da cidade, delimitando zonas para a rede hoteleira, preservando a área turística a ser explorada. Outro exemplo é a instalações de grandes indústrias em uma cidade, geralmente sua sede, onde se desenvolverá a atividade industrial fi ca afastada da cidade, pois se leva em conta as mudanças que aquela indústria realizara no município, modifi cações físicas, visuais, geração de lixo, utilização de água e energia, além da poluição sonora e atmosférica. Muitas cidades têm leis que determinam os locais propícios para essa instalação respeitando assim o meio ambiente ao redor, e a qualidade de vida da população local. No entanto, o zoneamento urbano, é usado atualmente como um mecanismo de fazer política e agradar interesses particulares, ou seja, um político permite a instalação de uma indústria em um local inapropriada para garantir votos em uma próxima eleição ou permite a construção de um shopping, por exemplo, em local inadequado para gerar especulação fundiária e assim promover o enriquecimento particular de algumas pessoas. Esse modo de se utilizar das políticas urbanas para fi nalidades particulares não faz jus a seu objetivo principal, assim essas atitudes devem ser fi scalizadas e punidas. A política de zoneamento deve atender ao bem-estar da população e ao favorecimento do desenvolvimento econômico. O zoneamento pode ser dividido em zoneamento urbano; industrial; para pesquisas ecológicas; nas áreas de proteção ambiental; nos parques públicos, porém todos podem ser considerados como ambiental, pois todos têm o meio ambiente como meio.

As normas constitucionais, as leis infraconstitucionais, os princípios ligados ao meio ambiente, as políticas ambientais e urbanos, os instrumentos

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de planejamento urbano, de uso do solo, de regulamentação da cidade, todo esse contexto em harmonia e operado da maneira correta, está designado à ideia de Estado de Direito Ambiental. Esse modelo de convivência social tem como fundamento um Estado na qual os bens coletivos teriam tantos direitos como os bens individuais, o desenvolvimento ocorreria de maneira sustentável, buscando uma igualdade entre os cidadãos e preservando as riquezas naturais. Para se alcançar essa ideia de Estado de Direito Ambiental, não é necessário apenas à regulamentação de normas jurídicas com uma visão mais ambiental, faz-se preciso o envolvimento de toda a sociedade, no entendimento dessa nova visão de mundo, e ainda a adequação da economia capitalista e consumista em que vivemos para uma economia que acima de tudo que respeita as limitações da natureza. Quando se fala em toda a sociedade, tende a se reportar a ideia de toda a sociedade num contexto global, pois o meio ambiente está totalmente interligado, e como um bem coletivo pertence a todos, independente da distribuição territorial, assim a ideia de se criar um Estado de Direito Ambiental fi ca cada vez mais longe, pois fora a conscientização populacional e a adequação da economia a de se criar “normas internacionais”, ou seja, como o meio ambiente pertence a toda população mundial as normas que regulamentam seu uso, os instrumentos de preservação, dentre outras coisas, devem ser reportadas para todos os seres humanos, e como o mundo que vivemos existem vários tipos de governos, confl itos éticos, históricos, religiosas, para se chegar a um denominador comum torna-se uma tarefa muito difícil, para não se dizer impossível. Por mais utópico que possa parecer à criação de um Estado de Direito Ambiental, essa idéia não pode ser deixada de lado, pois esse modelo de Estado deve ser traçado como meta, para o desenvolvimento do ser humano e do Estado Democrático de Direito.

3 Conclusão

Para concluir o trabalho a de se ressaltar alguns pontos como a dignidade da pessoa humana e a qualidade de vida em um ambiente ecologicamente equilibrado. Todo o contexto normativo, os princípios, os instrumentos de atuação do Estado, tudo está basicamente voltado para esse dois objetivos. O homem ao pensar em si próprio, repara a esgotabilidade dos recursos naturais, e percebe que para sua sobrevivência é imprescindível o meio ambiente equilibrado. Logo para garantir a sua preservação e a de futuras gerações far-se-á necessário a proteção ao meio ambiente. Nos dias de hoje, é inegável a

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todos os seres humanos que o meio ambiente tem suas limitações e que em algum tempo elas apareceram de maneira defi nitiva, se os devidos cuidados não forem tomados. Mas a questão principal, e confl itante é aonde que chega essa limitação? Quanto o homem pode extrair ainda dos recursos naturais? Tecnologias futuras poderão suprir a ausência de algum recurso natural? Entre outras perguntas, que por mais estudos e pesquisas que tenham sido feitas a resposta com o tempo e espaço exato, não foi ainda determinada, assim o ser humano continua o seu uso continuo do meio ambiente. Porém se chegou a um ponto em que o movimento ambientalista ganhou força e as pessoas começaram se conscientizar cada vez mais que os recursos ambientais estão se esgotado e dessa maneira a preservação vem ganhando cada vez mais força. infelizmente, é inegável que a quantidade de desmatamento, de poluição, de extração de minérios, de deteriorização do meio ambiente é maior do que a quantidade que se consegue preserva, mas aos poucos isso vem mudando, principalmente com a ideia de Estado de Direito Ambiental.

O Estado de Direito Ambiental, pode também ser compreendido como uma nova postura do ser humano em relação às questões ambientais. Com as pesquisas e estudos sobre meio ambiente que surgem cotidianamente o homem está se preocupando com o dano ambiental ocasionado pela sociedade – o dano que já foi causado e com o que ainda pode estar por vim, quando se fala em possível dano, ou risco para o meio ambiente tende a se delimitar dois tipos de risco, o risco concreto que é aquele em que o homem consegue prever o risco que causará com uma intervenção no meio ambiente, tendo como um exemplo a pesca de peixes que é limitada a certos períodos do ano, no caso na época da piracema, quando existe a reprodução dos peixes,é proibido a pesca de peixes que estão se reproduzindo, prevendo assim o risco que seria caso houvesse a pesca nesse período, e o risco abstrato aquele em que o homem não consegue prever o risco tendo como um exemplo o alagamento de uma área para a construção de uma represa, exemplo itaipu, pelo máximo de estudos que podem ser feitos é impossível prever o risco total de um alagamento desse nível – e voltando a ideia do dano ambiental o meio ambiente sadio é condição para vida em geral.

E por fi m, e como já dito anteriormente, o Estado de Direito Ambiental por mais utópico que possa parecer deve ser um objetivo de toda a sociedade. Pois se esse ideal fi car somente no mundo das idéias, e não for efetivado em normas concretas, e nem mesmo a população tomar conscientização de um Estado na qual é possível ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado,

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o Estado de Direito Ambiental vai ser mais uma utopia. Logo, conclui-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é inerente para se ter uma boa qualidade de vida e para que se respeite a dignidade da pessoa humana no meio em que vive, assim a prevenção, a preservação e a regulamentação do uso dos recursos naturais é necessário para garantir as presentes e futuras gerações um mundo, pelo menos habitável, na qual não haverá guerra por recursos naturais e nem pessoas morrerão pela falta deles.

Referências

CANOTiLHO, José Joaquim Gomes; LEiTE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.

LEiTE, José Rubens Morato. Dano ambiental na sociedade de risco. São Paulo: Saraiva: 2012.

MUKAi, Toshio. Direito Urbano – Ambiental Brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002.

SiLVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

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A LEGITIMIDADE DEMOCRáTICA DO PODER POLÍTICO E O DOMÍNIO DO MERCADO ECONôMICO: COPA DO MuNDO

NO bRASIL EM 2014 E A SObERANIA POPuLAR

Rodrigo Camargo da Cruz1

Sumário: 1. introdução; 2. A legitimidade democrática do poder político e o domínio do mercado econômico: copa do mundo no brasil em 2014 e a soberania popular; 3. Considerações finais; 4. Referências bibliográficas

Resumo: Objetiva-se demonstrar, a partir da contribuição do jurista italiano Luigi Ferrajoli, como se configura o entrelaçamento entre Estado, Democracia e Direitos sociais diante das consequências causadas pelo conflito entre o Estado nacional e os processos de globalização sobre a legitimidade democrática do poder político e sobre as formas tradicionais do Estado de Direito. inicialmente apresentar-se-á que o controle do mercado econômico em um mundo globalizado, por meio de agentes econômicos minoritários, mas hegemônicos, afeta a soberania do Estado nacional, e, assim, implica no deslocamento dos poderes e das funções públicas, que tradicionalmente eram resguardadas aos Estados, e que, agora, está além do controle estatal e do Direito positivado. Apresentar-se-á, portanto, que as decisões dentro de um Estado de Direito são geridas em sedes políticas supranacionais ou por poderes econômicos globais, e que há um amplo déficit de representatividade democrática e de garantias constitucionais. O aporte teórico dar-se-á na obra A soberania no mundo moderno e no artigo Direito sem Estado de Ferrajoli com a ilustração da interferência externa na economia brasileira, no caso da Copa do Mundo de 2014, e o reflexo disto no modelo de instituição estatal adotado no Brasil. Tal modelo de instituição foi inspirado no europeu e se acreditava que este proporcionaria maior independência e autodeterminação frente ao mundo globalizado e aos problemas decorrentes do afluxo econômico, porém o que se constata é uma dependência crescente das decisões conduzidas por fatores externos à vontade popular. As políticas governamentais adotadas pelos Estados devem estar respaldadas pela vontade popular e não por forças do mercado global, entretanto, dado o controle decisório na interação econômica há uma interferência no poder democrático e na soberania nacional.Palavras-chaves: Direito, Economia. Soberania nacional.

Abstract: it aims to demonstrate, from the contribution of the italian jurist Luigi Ferrajoli, the configuration of the intertwining of State, Democracy and Social Rights on the consequences caused by the conflict between the nation state and globalization processes on the democratic legitimacy of political power and on traditional forms of rule of law. initially it will submit to the control of the market economy in a globalized world through economic agents minority, but hegemonic, affects the sovereignty of the nation state, and thus implies the displacement of the powers and functions of government, traditionally were guarded to the States, and that now is beyond state control and law. introduced will therefore that decisions within a rule of law are managed in seats supranational policies or global economic powers, and that there is a broad deficit democratic representation and constitutional guarantees. The theoretical yield will work

1 Graduando em Economia pela Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Filosofia Política e Jurídica na Universidade Estadual de Londrina.

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on Sovereignty in the modern world without law and article Estate without Law of Ferrajoli with illustration of external interference in the Brazilian economy, in the case of the World Cup of 2014, and the refl ection of this in the model state institution adopted in Brazil. Th is model was inspired by the European institution and it was believed that this would provide greater independence and self-determination against the globalized world and the economic problems caused by the fl ood, but what we see is an increasing dependence on decisions driven by factors external to the popular will. Government policies adopted by the states must be backed by popular will and not by global market forces, however, given control decision-making in economic interaction there is an interference with the democratic power and national sovereignty.Keywords: Law. Economics. National Sovereignty.

1 Introdução

A partir da contribuição do jurista italiano Luigi Ferrajoli em sua obra A soberania no mundo moderno e no artigo Direito sem Estado, pretende-se demonstrar como se confi gura o entrelaçamento entre Estado, Democracia e Direitos sociais diante das consequências causadas pelo confl ito entre o Estado nacional e os processos de globalização sobre a legitimidade democrática do poder político e sobre as formas tradicionais do Estado de Direito. O controle do mercado econômico em um mundo globalizado, por meio de agentes econômicos dominantes, afeta a soberania do Estado nacional, e, assim, implica o deslocamento dos poderes e das funções públicas, que tradicionalmente eram resguardadas aos Estados, e que, agora, está além do controle estatal e do Direito positivado.

Para confi rmar tal situação ilustra-se o exemplo pertinente da realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, situação na qual se observa a interferência de agentes econômicos supraestatais, no caso, a FiFA e empresas patrocinadoras do evento, na articulação política e jurídica com o fi m de transpor a legislação vigente e conseguir melhor proveito da atuação econômica sem barreiras legais. Destacar-se-á, portanto, a estrutura constitucional brasileira, no que tange à atuação do Estado no domínio econômico, com o fi m de afastar de pronto a legitimidade de poder político de grupos econômicos no âmbito das questões sociais e econômicas no Brasil. Também se explanará a respeito da infl uência de empresas e entidades transnacionais que detêm o domínio do mercado econômico global, as quais não podem suplantar a soberania nacional e a vontade popular garantidas por lei.

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2 A legitimidade democrática do poder político e o domínio do mercado econômico: copa do mundo no brasil em 2014 e a soberania popular

Segundo Ferrajoli (2011, p. 3), inicialmente existe um problema no que concerne ao entrelaçamento entre Estado, Democracia e Direitos sociais, pois, diante dos “[...] efeitos produzidos pela crise do Estado nacional e dos processos de globalização sobre a legitimidade democrática do poder político e sobre as formas tradicionais do Estado de direito” (idem, ibidem), ocorre uma crise da soberania do Estado nacional. Essa crise implica a “[...] transferência de cotas crescentes de poderes e funções públicas, tradicionalmente reservadas aos Estados, para fora de seus limites territoriais” (idem, ibidem). Portanto, as decisões são tomadas em sedes políticas supranacionais ou por poderes econômicos globais.

A crise na economia mundial em 2008 acarretou a bancarrota dos Estados e bancos europeus e criou uma profunda dívida com a qual os governos nacionais tiveram de arcar. A União Europeia, que é uma entidade supranacional na Europa, no intuito de socorrer os países afetados pela crise econômica, possibilitou empréstimos fi nanceiros, mas exigiu corte de despesas e austeridade fi scal. O corte de gastos sociais e do aparelho público foi a primeira medida requerida pela União Europeia, o que provocou um confl ito interno nos países com economia mais frágil.

A Grécia foi um dos países mais afetados pela crise econômica de 2008, e, para não sucumbir e entrar em profunda recessão, o governo grego sujeitou-se às medidas impostas pela União Europeia, porém a população daquele país não concordou com a política adotada e foi para as ruas protestar e reivindicar seus direitos garantidos por lei.

Os representantes eleitos pelo povo para a legislatura e o governo grego tiveram que tomar medidas contrárias a vontade popular, e este, impasse, estremeceu as relações com a Alemanha que detinha o controle fi scal do órgão da União Europeia na época e era responsável pelo planejamento econômico de toda Europa. Ocorre que a Alemanha foi o país que menos sofreu com a crise, pois obteve melhores resultados econômicos e cresceu diante da quebra de países europeus como Portugal, Espanha, irlanda, Grécia, entre outros.

A Alemanha. como principal articulador e país mais rico da Europa, desempenhou papel central, ditando para os demais países a maneira como

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deveriam se portar diante da crise econômica e exigindo que medidas impopulares fossem tomadas a todo custo. Observa-se que a participação no destino dos países participantes da União Europeia fi cou restrita ao parecer alemão sobre a economia, ou seja, a força da democracia, que garantiria a participação igualitária no processo, se enfraqueceu.

Tendo isso em vista, Ferrajoli (2011, p. 2) comenta que, na Constituição europeia, há um grande défi cit de representatividade democrática e de garantias constitucionais, e que este modelo de instituição foi exportado para países de economia mais frágil e que não estão plenamente desenvolvidos socialmente e economicamente, o que agrava tal situação para estes. Esta condição se dá porque os países em desenvolvimento não têm um aparato econômico que lhes garanta proteção efi caz frente às turbulências globais. Além disso, o exercício democrático é uma novidade recente. Estes países, como os latinos americanos, passaram por décadas de ditadura, com a consequente não participação popular nos destinos do Estado. Com o fi m da ditadura, a experiência democrática fl oresceu inspirada no modelo de instituição estatal europeu.

Acreditava-se que tal modelo de instituição estatal proporcionaria maior independência e autodeterminação frente ao mundo globalizado e aos problemas decorrentes do afl uxo econômico. Porém, constata-se uma dependência crescente das decisões conduzidas por países de economia mais forte, ou seja, o controle sobre os rumos da economia global pertence a uma minoria rica. As implicações das políticas econômicas no mundo são geridas para satisfazer a quem tem o controle decisório; assim, a captação dos bônus e ônus do mercado global são desproporcionais as necessidades dos países, o que ocasiona um vácuo democrático.

A constituição e a legislação dos Estados nacionais que aderiram o modelo de intuição citado foram concebidas democraticamente a fi m de proporcionar um melhor ajuste das necessidades sociais internas, o que transforma a democracia em força pujante e centrada no âmago da sociedade destes países. Então, as políticas governamentais adotadas pelos Estados devem estar respaldadas pela vontade popular e não por forças externas do mercado global, entretanto dado o controle decisório na interação econômica há uma interferência no poder democrático.

As políticas econômicas globais carecem de um sentido democrático mais amplo, pois, segundo Ferrajoli (2011, p. 3), há uma ruptura entre o “[...] nexo democracia/povo e poder decisional/Estado de direito, tradicionalmente mediado pela representação e pelo primado da lei e da política através da qual

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a lei se produzia”. Demonstra-se, assim, uma “mutação de paradigma da esfera pública e privada”.

Os poderes na democracia política estão vinculados às leis criadas pela vontade popular, ou seja, da participação de todos os sujeitos capacitados para este fi m. Ferrajoli explana (2011, p.4) que:

Todos os poderes estão, direta ou indiretamente, sujeitos à lei aprovada por instituições representativas da vontade popular. Por isso a democracia política se realiza com o sufrágio universal, quer dizer, com a participação de todos os sujeitos interessados nas decisões legislativas, ou na eleição dos representantes competentes para tomar tais decisões. é dessa forma que a democracia pode confi gurar-se como autogoverno, ou seja, como participação direta ou indireta de cada um no processo decisional que produz as normas a ele destinadas. (FERRAJOLi, 2011, p. 7)

Conforme Ferrajoli (2011, p. 5), o Estado de Direito presente no modelo de instituição estatal é “[...] baseado no nexo entre Estado e direito positivo que tem permanecido, até poucos anos, como um dos postulados do positivismo jurídico e, portanto, da modernidade jurídica e da ciência do direito.” O Estado de direito e a democracia política no ocidente estão em crise, pois a democracia representativa, inspirada no princípio da representação, tem um lapso entre a relação do poder político e a participação popular. Desse modo, de acordo com Ferrajoli (2011, p. 5), “[...] as decisões relevantes não competem mais aos poderes estatais, mas sim a poderes supra-estatais, a poderes de outros Estados ou, pior ainda, aos poderes econômicos do mercado: em todos os casos existem poderes subtraídos a qualquer controle popular”.

Logo, o Estado de Direito se torna amainado, porque, como se indica, há uma submissão do ordenamento jurídico pátrio a um enquadramento de resoluções legais supranacionais e ao domínio econômico dos agentes mais poderosos. As fontes do direito não derivam exclusivamente do manejo democrático da legislação pátria, existem tratados e convenções que os países podem ou não participar, mas o que ocorre é um infl acionamento das diretrizes supranacionais de órgãos internacionais, como, por exemplo, FMi (Fundo Monetário internacional) e OMC (Organização Mundial do Comércio), que imperam sobre os Estados nacionais, modifi cando a legislação vigente.

No Brasil, por exemplo, haverá a Copa do Mundo em 2014, da qual participarão várias seleções ao redor do mundo. A FiFA (Fédération internationale de Football Association), organizadora do evento, impôs ao

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Brasil determinados procedimentos que ferem frontalmente a legislação vigente. Em 2007, foi aprovada uma diretriz junto à CBF (Confederação Brasileira de Futebol) que impedia a comercialização de bebidas alcoólicas dentro dos estádios e em seu entorno. Desse modo, um dos patrocinadores da Copa do Mundo, a Budweiser, uma das maiores cervejarias do mundo, não poderia vender seus produto. Todavia, um acordo entre o congresso nacional e a FiFA permitirá a tal empresa transacionar normalmente nos estádios. Então, uma entidade supranacional conseguiu suprimir a legislação vigente em um país a fi m de possibilitar a uma empresa com grande capital fi nanceiro vender seus produtos sem qualquer ato proibitivo em desfavor.

Ferrajoli (2011, p. 6) afi rma que, no ordenamento estatal, não há qualquer mediação formal de uma lei que ratifi que tal procedimento, assim, estas intervenções supranacionais “[...] diminuem consequentemente as possibilidades de controle dos Estados sobre a economia, sempre mais autônoma no mercado global”. O autor esclarece que o processo de mitigação da soberania nacional causa, particularmente, “nos países mais pobres, a relação entre esfera pública e esfera privada, entre Estado e mercado, entre política e economia (idem, ibidem)” uma inversão, ou seja:

A política já não controla a economia, mas ao contrário. Os Estados já não podem garantir a concorrência entre as empresas. Ao contrário, são as empresas multinacionais que colocam em concorrência os Estados, almejando menos impostos, diminuição das garantias para os direitos dos trabalhadores, diminuição dos gastos sociais, redução dos limites e vínculos para seus interesses, como condições para suas inversões. (FERRAJOLi, 2011, p. 6)

A teoria da democracia solapa diante da redução do Estado nacional, no que transparece em um declínio da democracia política e do Estado de Direito perante o domínio exercido pelas empresas e entidades transnacionais. O vínculo institucional da democracia junto ao Estado não está mais sujeito a competência jurídica da lei como expressão da vontade popular, mas sim ao controle econômico do mercado.

Uma possível contração da função do Estado como garantidor dos interesses comunitários da nação comprova uma profunda crise na própria instituição. Ferrajoli (2011, p. 7) elucida haver a necessidade de se “[...] repensar o Estado dentro da nova ordem internacional e repensar a ordem internacional sobre a base da crise do Estado”. O jurista esclarece ainda que a ordem internacional deve se dar conta da

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[...] ausência de uma esfera pública internacional à altura dos novos poderes extra e supra-estatais, entendendo como “esfera pública” o conjunto das instituições e das funções que estão destinadas à tutela de interesses gerais, como a paz, a segurança e os direitos fundamentais e que formam, portanto, o espaço e o pressuposto tanto da política como da democracia. (FERRAJOLi, 2011, p. 7)

Desse modo, a consequência da crise no Estado no plano internacional é o vazio de direito público, tal qual a ausência de regras e limites dos interesses econômicos globais não assegura os direitos fundamentais e humanos diante dos novos poderes transnacionais. A regulação da economia no plano jurídico global pode adequar os efeitos da globalização econômica, tendo em vista a não substituição da plenitude dos direitos garantidos pelo Estado à população por uma lei que refl ete os interesses de grupos economicamente dominantes.

Ressalta-se que a defi ciência de regras dá vazão a uma nova ordem econômica e política, o que sujeita a esfera pública do Estado a total impotência, permitindo, assim, o encargo gradativo dos bens e garantias fundamentais ao poder privado. Ou seja, os interesses abordados não se restringem apenas aos negócios de trato econômico, mas também aos fi ns da esfera pública, como segurança, educação, saúde, entre outros. Esse panorama torna-se grave, pois a desigualdade econômica infl uenciaria o cerne da democracia, que já não representaria os anseios da sociedade, mas apenas os de grupos específi cos.

Juridicamente não seria mais tangível a efetividade das garantias fundamentais, já que a relação entre os extremos das relações econômicas de ordem capitalista criaria uma ruptura entre Estado e sociedade. A globalização capitalista, em suma, explicita uma divisão do trabalho que impossibilita qualquer paridade econômica entre os concidadãos e entre nações no mundo, porquanto o princípio norte que rege o capitalismo é o lucro e o poder econômico, o que promove uma fl agrante disparidade “democrática” nestes termos.

II

Defi nidos os termos no qual Ferrajoli salienta a crise no Estado de Direito frente à atuação de agentes econômicos dominantes no mercado global, passa-se agora a análise técnica do arcabouço jurídico brasileiro no que tange especifi camente a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 174 com

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posterior excogitação disto no evento Copa do Mundo 2014 que será sediado no Brasil e administrado pela FiFA. A atuação do Estado brasileiro no domínio econômico está defi nida no artigo 174 da Constituição, no qual prevê a função do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica. Assim sendo, cabe ao Estado brasileiro planejar, fi scalizar e incentivar a atividade econômica para benefi ciar o setor público e ser referência para o setor privado, conforme o dispositivo constitucional:

Art. 174 - Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fi scalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.§ 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.§ 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.§ 3º - O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.§ 4º - As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fi xadas de acordo com o Art. 21, XXV, na forma da lei.

Como se observa, o referido dispositivo legal preceitua o equilíbrio nas ações estatais para promover o desenvolvimento específi co em todas as regiões do território nacional, como, também, em um bloco único de cooperação econômica, ordenadas pelas diretrizes e bases do planejamento nacional.

Outro ponto importante é o estímulo ao cooperativismo e associativismo, indicando que essas organizações, e outras formas semelhantes de empreendedorismo econômico, serão contempladas com um tratamento diferenciado em detrimento aos demais exercícios de atividade econômica. No que tange ainda à análise deste artigo constitucional, revela-se, também, a preocupação ambiental das atividades econômicas de garimpo. Porém, ressalta-se que, atualmente, a legislação estabelece a proteção ambiental por parte de todas as atividades econômicas.

Destarte, nota-se que o Estado tem a incumbência de determinadas ações no domínio econômico em nível regional, nacional e, até, internacional

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no que pertence às suas competências. Ou seja, houve uma preocupação dos legisladores originários de como se daria a atuação do Estado brasileiro no domínio econômico.

Lembra-se que o artigo 174 da Constituição federal está inserido no Título Vii, Da Ordem Econômica e Financeira, e deve ser interpretado segundo os princípios e objetivos elencados nas demais disposições constitucionais. Tal qual, fi ca evidenciado e explanado pelo ex-ministro do Superior Tribunal Federal do Brasil, Eros Roberto Grau (2003, p. 155):

Ao bojo da ordem econômica, tal como considero, além dos que já no seu Título Vii se encontram, são transportados, fundamentalmente, os preceitos inscritos nos seus arts. 1º, 3º, 7º a 11, mercê de a afetarem de modo específi co, entre os quais, v.g., os dos art. 5º, LXXi, do art. 24, i, do art. 37 XiX e XX, do § 2º do art. 103, do art. 149, do art. 225. (GRAU, 2003, p. 155).

Desse modo, fazem-se necessárias algumas observações no conteúdo da Constituição Federal brasileira que abrange o entendimento do artigo 174 e atuação do Estado no domínio econômico, pois, como se demonstra, há uma interação entre economia e Constituição Federal. O douto professor Zulmar Fachin esclarece (2008, p. 13):

As relações entre Direito Constitucional e Economia vivem grande intensidade e em escala progressiva. A Economia, localizada no campo das ciências sociais, tem merecido tratamento normativo constitucional. Tornou-se comum à Constituição Federal utilizar termos da Economia, tais como desenvolvimento econômico, crescimento econômico, escassez, produto nacional, capital, demanda, oferta, procura, pleno emprego, moeda infl ação, mercados, monopólio, oligopólio, concorrência, renda juros, lucros, truste, cartel, taxa de câmbio, fuga de capitais e outros. Pode-se afi rmar que a Economia invadiu o Direito Constitucional, de tal modo que se fala em deseconomizar a Constituição, mas pode entender, em sentido contrário, que foi o Direito Constitucional que invadiu a Economia, devendo esta ser desconstitucionalizada. (FACHiN, 2008, p. 13).

A começar pelo artigo 1º, nos seus quatro primeiros incisos (i, ii, iii e iV) da Constituição federal que dispõe sobre a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, estabeleceram-se como critérios fundamentais que nortearam todos os demais dispositivos constitucionais. O artigo 3º, nos incisos i, ii, iii e iV da Constituição federal, constitui como objetivos fundamentais da República

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Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos e a garantia do desenvolvimento nacional. Destaca-se, também, que o artigo 4º em seu parágrafo único dispõe acerca da integração econômica que a República Federativa do Brasil com os demais países da América Latina:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:i - a soberania;ii - a cidadaniaiii - a dignidade da pessoa humana;iV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;[...]Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:i - construir uma sociedade livre, justa e solidária;ii - garantir o desenvolvimento nacional;iii - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;iV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:[...]Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

O próximo artigo em análise merece maior destaque, porquanto nele se inicia o rol expresso de direitos fundamentais, tal qual “constituem base axiológica, a base de valores vigentes em uma sociedade2”. O artigo 5º da Constituição federal contém alguns incisos do qual se referem mais especifi camente a relação entre o Estado brasileiro e a atuação deste no domínio econômico. As garantias e direitos fundamentais como a liberdade profi ssional e associativa se encontram nos incisos Xii, XVii e XViii, já no tocante à garantia à propriedade e sua função social estão nos incisos XXii, XXiii, XXiV e XXV.

2 FACHiN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional, p. 211. 2008.

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Vale lembrar que as garantias do direito de inventos industriais, marcas, nomes e signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País e a defesa do consumidor estão presentes nos incisos XXiX e XXXii. Como também, a garantia constitucional sobre bens e a concessão de mandado de injunção nos casos de falta de norma regulamentadora, respectivamente nos incisos LiV e LXXi do artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]Xiii - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profi ssão, atendidas as qualifi cações profi ssionais que a lei estabelecer; [...]XVii - é plena a liberdade de associação para fi ns lícitos, vedada a de caráter paramilitar;XViii - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;[...]XXii - é garantido o direito de propriedade;XXiii - a propriedade atenderá a sua função social;XXiV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;[...]XXiX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;[...]XXXii - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;[...]LiV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

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[...]LXXi - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;

Na Constituição Federal, engloba os ditos “direitos sociais” e estão inseridos nos seguintes artigos constitucionais: 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 11. Fachin explana que (2008, p. 327):

Os direitos sociais são resultado de árduas lutas na História da Humanidade. Ao longo do tempo, foram produzidos documentos normativos garantidores de direitos do homem trabalhador. Nesse sentido, os mais importantes foram o Manifesto do Partido Comunista, a Encíclica Rerum Novarum a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Organização internacional do Trabalho. (FACHiN. p. 327)

Desse modo, fi cam confi rmados, nos referidos artigos, os direitos sociais individuais e coletivos do trabalhador, tais quais são os: direitos de igualdade entre os trabalhadores, direitos relativos à jornada de trabalho, liberdade de associação ou sindical, direito de sindicalização e de greve, direito de participação e de representação, capacidade postulatória dos sindicatos.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:[...]Art. 8º é livre a associação profi ssional ou sindical, observado o seguinte:[...]Art. 9º é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.[...]Art. 10. é assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profi ssionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.Art. 11. Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a fi nalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.

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Explicada a estrutura constitucional que faz referência aos direitos e garantias fundamentais, passa-se à tratativa do artigo 21 da Constituição Federal, e seus respectivos incisos, que dispõe sobre a competência da União em elaborar executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, e explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão determinados serviços.

Art. 21. Compete à União:i - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;ii - declarar a guerra e celebrar a paz;iii - assegurar a defesa nacional;iV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;Vi - autorizar e fi scalizar a produção e o comércio de material bélico;Vii - emitir moeda;Viii - administrar as reservas cambiais do País e fi scalizar as operações de natureza fi nanceira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;iX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;Xi - explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráfi cos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado através da rede pública de telecomunicações explorada pela União.Xi - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)Xii - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens e demais serviços de telecomunicações;a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

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c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;f) os portos marítimos, fl uviais e lacustres;Xiii - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios;Xiii - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e a Defensoria Pública dos Territórios; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 69, de 2012) (Produção de efeito)XiV - organizar e manter a polícia federal, a polícia rodoviária e a ferroviária federais, bem como a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal e dos Territórios;XiV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência fi nanceira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)XV - organizar e manter os serviços ofi ciais de estatística, geografi a, geologia e cartografi a de âmbito nacional;XVi - exercer a classifi cação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;XVii - conceder anistia;XViii - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;XiX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e defi nir critérios de outorga de direitos de seu uso; (Regulamento)XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;XXi - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;XXii - executar os serviços de polícia marítima, aérea e de fronteira;XXii - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)XXiii - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fi ns pacífi cos e mediante aprovação do Congresso Nacional;b) sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais e atividades análogas;

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c) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; (incluída pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)XXiV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa.

Para fi nalizar o arcabouço dos artigos constitucionais, debruça-se agora sobre mais algumas competências dos mencionados entes federativos do artigo anterior. O artigo 24, inciso i, dispõe da competência da União, Estados e Distrito Federal para legislarem sobre o direito econômico, enquanto o artigo 37 e os incisos XiX e XX que prescreve os princípios constitucionais da Administração Pública acerca das empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias e fundações.

Já os artigos 146-A e 149 preveem a intervenção do Estado no domínio público quando, respectivamente, elenca critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios da concorrência e institui contribuições sociais. O artigo 225 estipula como fundamental o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Estado e a coletividade a obrigação da preservação ambiental.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:i - direito tributário, fi nanceiro, penitenciário, econômico e urbanístico;[...]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)[...]XiX - somente por lei específi ca poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, defi nir as áreas de sua atuação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

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XX - depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada;[...]§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.[...]Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo. (incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)[...]Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profi ssionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, iii, e 150, i e iii, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.[...]Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Esclarecido isto, conclui-se que, a partir da interpretação do artigo 170, é possível fi rmar posição de que a Constituição Federal, no que tange a ordem econômica, valoriza o trabalho humano e a livre iniciativa, ou seja, predomina uma visão capitalista de mercado econômico, no qual o ordenamento jurídico nacional protege e estimula tal concepção. Entretanto, devem-se atentar as bases principiológicas que emana do texto constitucional, como bem destaca Grau (2003, p. 153):

Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fi ns que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O art. 170 prospera, evidentemente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica. (GRAU, 2003, p. 153).

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Para expor tal situação e confi rmá-la, passa-se à análise dos princípios gerais da atividade econômica que se encontram explicitamente no Título Vii da Constituição Federal. Assim, abrangem-se quatro capítulos, com início no artigo 170 e fi m no artigo 192 do texto constitucional, com as seguintes denominações: i – Princípios Gerais da Atividade Econômica; ii – Política Urbana; iii – Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária; e iV – Sistema Financeiro Nacional.

O Capítulo i – Princípios Gerais da Atividade Econômica – se dispõe entre os artigos 170 e 181, porém houve a revogação do artigo 171 e a subutilização do artigo 172 dada à impossibilidade atual restrição plena da entrada de capital estrangeiro no Brasil. A ordenação jurídica estabelecida pelo artigo 170 concerne-se em valorizar o trabalho humano e a livre iniciativa com intuito de assegurar a todos uma existência digna através das políticas de justiça social.

Sendo assim, o Estado deve atuar de forma assertiva sobre as atividades capitalistas e as forças de trabalho para promover justiça social e desenvolvimento econômico. Grau (2003, p. 174) explana que “[...] a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, iii) é como fi m da ordem econômica (mundo do ser)”, infere-se, assim, que a atividade econômica deve almejar a dignidade existencial de toda a coletividade, e isso independe do exercício público ou privado.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fi m assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:i - soberania nacional;ii - propriedade privada;iii - função social da propriedade;iV - livre concorrência;V - defesa do consumidor;Vi - defesa do meio ambiente;Vi - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)Vii - redução das desigualdades regionais e sociais;Viii - busca do pleno emprego;X - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

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Parágrafo único. é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Os incisos do referido artigo mencionam alguns princípios e defi nições que merecem maior atenção. O inciso i enfoca a soberania como poder estatal, isto é, o Estado não pode sofrer restrições em sua atuação no domínio econômico, seja de ordem externa ou interna, garantindo, assim, sua independência.

A propriedade privada é tratada nos incisos ii e iii, o que ratifi ca o aspecto da economia capitalista no texto constitucional, pois reforça a garantia de direito a propriedade do artigo 5º, inciso XXii, da Constituição Federal e permite a plena liberdade de iniciativa dos agentes econômicos através da segurança jurídica. Porém, fi ca defi nido no inciso iii o cumprimento da função social da propriedade, ou seja, a justiça social é patente no exercício da atividade econômica, pois está contida nos direitos fundamentais da coletividade, conforme dispõe o artigo 5º, inciso XXiii.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]XXii - é garantido o direito de propriedade;XXiii - a propriedade atenderá a sua função social;

Visto tudo que concerne à Constituição Federal de 1988 em matéria da atuação do Estado no domínio econômico, constata-se que, apesar de adotar uma economia capitalista em seu bojo jurídico e social, o objetivo principal é o desenvolvimento econômico sustentável e justo em conformidade aos direitos fundamentais e da soberania nacional preceituados na Carta Magna. Assevera-se, então, que não prospera o entendimento da perda de soberania nacional para grupos econômicos no Brasil.

A realização da Copa do Mundo de 2014 será administrada pela FiFA com o respaldo do governo brasileiro e para isso a legislação nacional teve que se adequar aos interesses econômicos de empresas vinculadas ao evento, ou seja, confi gura-se um grande paradoxo. A lei nº 12.663 que dispõe sobre as medidas relativas à Copa das Confederações FiFA de 2013 e à Copa do Mundo FiFA de 2014, que serão realizadas no Brasil, prevê a permissão de venda de

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bebidas alcoólicas durante os eventos. Contudo, existe o Termo de Adendo ao Protocolo de intenções no qual proíbe a comercialização de bebidas alcoólicas nos estádios brasileiros em competições organizadas pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e tem como referência à violência que ocorre nos estádios por todo território nacional.

Devido aos interesses dos patrocinadores da Copa do Mundo de 2014, como a cervejaria Budweiser, foi articulado, com os governos federais, estaduais, CBF, FiFA e empresas vinculadas ao evento, um projeto de lei que permitirá a comercialização de bebidas alcoólicas durante o evento. Nota-se, desta feita, que poderes econômicos transnacionais, tal como FiFA e empresas privadas, interferiram diretamente na legislação nacional a fi m de possibilitar a livre circulação de seus produtos.

Não há previsão constitucional, como mostrado anteriormente, permissão para procedimentos nos quais ferem a soberania do Estado e a vontade popular. Por anos a sociedade civil buscou instrumentos de coibir a violências nos estádios de futebol, e uma ação efetiva foi a mobilização popular para proibir a comercialização de bebidas alcoólicas nos estádios e em seu entorno. O que ocorreu no Brasil demonstra, segundo Ferrejoli (2011), que agentes econômicos dominantes no mercado se sobrepõem a democracia e a vontade popular com a fi nalidade de realizar seus interesses capitalistas.

3 Considerações finais

Portanto, como bem aborda o jurista italiano Luigi Ferrajoli, a participação popular nos destinos da nação em um Estado de Direito não pode ser suplantado por interesses econômicos quaisquer. O que se evidenciou é o controle do mercado econômico por agentes dominantes infl uencia de maneira arbitrária e antidemocrática nas escolhas políticas que um Estado pode tomar na economia.

A falta de representatividade, no que tange às medidas que devem ser tomadas no âmbito econômico, cria uma crise no Estado de Direito na qual a democracia perde força frente aos interesses privados. A ilustração da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, em que agentes econômicos transnacionais conseguiram modifi car o ordenamento jurídico pátrio, demonstra cabalmente a ausência de legitimidade democrática e o domínio econômico destes na res publica.

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é patente, e fi cou corroborado no corpo do texto, com base na Constituição Federal de 1988, que o Estado brasileiro não pode padecer de ressalvas em sua atuação no domínio econômico, seja de ordem externa ou interna, garantindo, destarte, sua independência. Soma-se a isto a preocupação do constituinte originário em promover o desenvolvimento econômico em conformidade aos direitos fundamentais e ao equilíbrio das ações estatais na economia. Nessa perspectiva, o ordenamento jurídico não pode sucumbir a entendimentos externos ao da vontade e participação popular.

Referências

ARENDT, Hannah. a promessa da política. 3. ed. Cidade:Ediel, 2010.

BRASiL. Constituição (1988). constituição da república Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

BRASiL. Lei nº 12.663. Brasília, DF, Senado, 2012.

FACHiN, Zulmar. curso de direito constitucional. 3.ed. ver. Atual. E ampliada – São Paulo : Metódo, 2008.

FERRAJOLi, Luigi. a soberania no mundo moderno: nascimento e crise do estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FERRAJOLi, Luigi. direito sem estado. 2011.

GRAU, Eros. a ordem econômica na constituição de 1988. 8. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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ASPECTOS RELEVANTES DOS CONFLITOS DE GêNERO: O MAChISMO ENquANTO OPRESSOR DO hOMEM

Raquel Viotto Martins1

Sumário: 1. introdução, 2. O Homem enquanto sujeito passivo na Lei Maria da Penha, 2.1. Origem da Lei Maria da Penha, 2.2. Aplicabilidade e bem Jurídico tutelado pela Lei Maria da Penha, 2.3. A proteção do gênero masculino pela Lei Maria da Penha, 2.3.1. Princípio da isonomia, 2.3.2. Princípio da proporcionalidade, 2.4. Entendimento jurisprudencial, 3. O reflexo do machismo nas condutas do gênero masculino, 3.1. Preconceitos e ditames sociais na cultura machista, 3.1.1. Metrosexualismo, 3.1.2. Homofobia, 4. A vitimização excessiva da mulher, 5. Considerações finais.

Resumo: Diuturnamente nos deparamos com situações que evidenciam o machismo enquanto opressor dos direitos das mulheres. No entanto, a própria ideologia feminista nos traz a ideia central de defesa da equidade entre os gêneros, independentemente de qual gênero se encontra oprimido. é neste viés que tal pesquisa se desenvolve, objetivando trazer à luz do Direito a opressão sofrida pelo próprio homem, por conta da ideologia machista, que a princípio o estereotipa como dominante, mas que, na verdade, traz em si uma série de ditames sociais e de comportamento. Um dos principais avanços no que concerne a legislação brasileira diz respeito à Lei 11.340/2006, doravante denominada Lei Maria da Penha. Tal lei traz em seu texto a proteção da mulher diante da violência doméstica, no entanto, sua aplicação vem sendo feito analogicamente em alguns casos em que o homem figura como vítima. Historicamente falando, podemos citar as alterações feitas no Decreto-Lei 2.848/40 (Código Penal), pela Lei 12.015/2009, que incluiu o homem como possível vítima dos crimes sexuais como um todo. Através de pesquisa histórica, sociológica, legislativa, jurisprudencial e doutrinária, tem-se como objetivo trazer à tona a opressão sofrida pelas pessoas do sexo masculino, causadas por condutas machistas advindas tanto de homens quanto de mulheres, muitas vezes perpetuadas por atos inconscientes, por preconceitos intrínsecos e pela aceitação passiva de grande parte da sociedade. Diante disso, conclui-se que o próprio feminismo, quando não aplicado da maneira mais adequada, pode deixar de abarcar a minoria dentro da minoria, qual seja, os homens vítimas do machismo. Assim, é necessário que o Direito volte os seus olhos também para os homens que fogem do estereótipo social da ditadura machista.Palavras Chave: Machismo. Homem. Lei Maria da Penha.

Abstract: Daily will we encounter situations that highlight the oppressive male chuvinism while women's rights. However, the feminist ideology brings us the central idea of defense of gender equity, regardless of which gender is oppressed. it is this bias that such research is developed, aiming to bring to light the Right to oppression by the man himself, because of the sexist ideology, the principle as the dominant stereotypes, but that actually brings with it a host of social dictates and behavior. One of the main advances regarding Brazilian law concerns 11.340/2006 Law, hereinafter Maria da Penha Law. This law brings in its text to protect women against domestic violence, however, its application has been made analogically in some cases where the victim as man figure. Historically speaking, we can mention the changes to the Decree Law 2.848/40 (Criminal Code), Law 12.015/2009 that included men as possible victims of sex crimes as a

1 Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Email: [email protected].

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whole. Th rough historical research, sociological, legislative, jurisprudential and doctrinal, has aimed to bring out the oppression suff ered by males, caused by macho behavior arising both men and women, oft en unconscious acts perpetuated by, for intrinsic biases and the passive acceptance of much of society. Th erefore, we conclude that feminism itself, when not applied optimally, can only cover a minority within the minority, namely men victims of sexism. Th us, it is necessary that the law also return their eyes to the men fl eeing the social stereotype of male chauvinism.Key-words: Male chauvinism. Men. Maria da Penha Law.

1 Introdução

é de suma importância adentrarmo-nos na discussão referente às condutas sociais moldadas pela cultura machista, neste caso mais especifi camente quando dizem respeito diretamente ao gênero masculino.

Não se espera, contudo, esgotar tal tema ou trazer à tona todas as intempéries causadas por tal situação, mas sim trazer noções basilares sobre uma ideologia que pressiona o ser humano, independente do gênero ao qual este faz parte.

Desta feita, pretende-se também olhar o machismo de um prisma novo, onde os próprios indivíduos do sexo masculino sofrem preconceitos, e tem seus direitos tolhidos por uma ideologia retrógrada e extremamente danosa.

2 O homem enquanto sujeito passivo na lei Maria da Penha

A Lei 11.3240/2006 representa hoje um grande avanço nas lutas feministas pela erradicação da violência contra a mulher. Pelo conceito de família patriarcal, onde o homem é dominador da relação familiar, a impunidade se perpetuou por muitos anos. isso porque, a naturalidade com que era tratado o problema, acabava ofuscando sua gravidade, como se a violência doméstica fosse algo “normal”.

Neste sentido, é necessário então verifi car qual a possibilidade da aplicação de tal lei ao homem nos casos em que o mesmo é vítima de violência doméstica e familiar, trazendo então uma proteção ao lar e à família como um todo.

2.1 Origem da Lei Maria da Penha

A preocupação com a violência doméstica atinge não só o Brasil, mas é um tema de discussões internacionais, de modo que, foram criados diversos

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instrumentos de combate à este tipo de conduta; entre eles, A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, o Plano de ação da iV Conferencia Mundial sobre a Mulher, a Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, o protocolo facultativo à convenção sobre a eliminação de todos os tipos de violência contra a mulher, entre outros instrumentos de direitos humanos, sendo que, todos estes foram ratifi cados pelo Brasil.

Neste aspecto, organizações de defesa dos direitos humanos apresentaram à Comissão interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos uma denúncia relativa à omissão do Estado Brasileiro como consequência da impunidade dos crimes cometidos contra a cearense Maria da Penha Fernandes, a qual fi cou paraplégica em decorrência de duas tentativas de homicídio praticadas pelo marido, o qual se encontrava, na época, impune e seus crimes à beira da prescrição. A Comissão interamericana aceitou a denúncia e reconheceu a omissão do Estado Brasileiro, determinando que o agressor fosse julgado, bem como que fosse elaborada lei específi ca em relação à violência contra a mulher.

Através de amplo processo legislativo, a Lei 11.340 foi aprovada pelas duas casas legislativas, e, após sanção do Presidente da República, foi publicada no dia 07 de agosto de 2006, sendo denominada Lei Maria da Penha, vindo a transformar-se no maior instrumento legal de combate à violência contra a mulher no Brasil.

2.2 Aplicabilidade e Bem Jurídico Tutelado pela Lei Maria Penha

Ao se falar em Lei Maria da Penha (BRASiL, 2006), deve-se atentar ao seu preâmbulo, o qual traz a seguinte mensagem: “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal.”

Desta feita, vale observar o texto constitucional, qual seja:

Art. 226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 8.º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASiL, 1988)

Neste aspecto, se faz importante esclarecer que o bem jurídico tutelado pela Lei 11.340/2006 é a família como um todo, não se limita somente à proteção

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da mulher contra a violência doméstica, mas de toda entidade familiar, frisando-se que este amparo não se estende somente ao modelo de família patriarcal, mas também às famílias homoafetivas, monoparentais, recompostas e todas as demais que ainda sofrem com a falta de resguardo legislativo.

A Lei Maria da Penha se aplica na proteção à vítima de violência doméstica e familiar. No entanto, é importante diferenciar os conceitos de violência e violência doméstica. Nesta linha, a violência conceitua-se como:

[...] uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. é um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma forma de violação dos direitos essenciais do ser humano. (CAVALCANTi, 2010, p. 11)

Sendo assim, neste contexto, violência é qualquer tipo de conduta, comissiva ou omissiva, com animus de causar dano a alguém, seja este moral, físico, psicológico ou material.

Em contrapartida, vale atentar que a violência doméstica e familiar é um tipo de violência mais específi ca, empregada, na maioria dos casos, contra a mulher, sendo ela tutelada pela Lei Maria da Penha. Conforme apregoa Leal (2010), este tipo de violência não se restringe ao ambiente em que a vítima reside, mas pode ser praticada em qualquer lugar, desde que tenha sido motivada por relação de afeto ou de convivência familiar entre o agressor e a vítima.

Ainda, no mesmo sentido, a própria Lei 11.340/2006 (BRASiL, 2006) traz em seu art. 7º algumas formas de violência doméstica e familiar, não se restringe somente à violência física, mas a qualquer tipo de violência psicológica, sexual, patrimonial e moral. Assim, se faz oportuno mensurar que bater com tapas e socos, chutar e dar pontapés, ameaçar, humilhar, maldizer, destruir pertences como objetos, e documentos e forçar a relação sexual são algumas das atitudes que traduzem a violência doméstica e familiar.

importa consignar que um dos maiores avanços trazidos pela Lei Maria da Penha na proteção contra a violência doméstica e familiar foi a criação de medidas protetivas, as quais podem restringir até mesmo direitos fundamentais do agressor, na medida em que essa restrição proteja a pessoa agredida.

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2.3 A Proteção do Gênero masculino pela Lei Maria da Penha

Apesar da Lei Maria da Penha proteger toda entidade familiar, sua aplicação ainda é muito restrita às mulheres vítimas de violência. isso se dá tanto pela situação jurídica e histórica na qual foi criada, quanto pelo seu próprio texto, que em diversos momentos cita a mulher como a única vítima da agressão.

Contudo, é importante esclarecer que o sujeito ativo da Lei Maria da Penha pode ser tanto um homem quanto uma mulher, tendo em vista que a palavra "agressor" coloca-se como gênero, abrangendo ambos os sexos.

Neste mesmo sentido, importa lembrar que a Ministra do STJ Maria Berenice Dias (2008, p. 41) afi rma que "basta estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade" para que haja sujeito ativo, não importando o gênero do agressor.

Quanto ao sujeito passivo, é entendimento majoritário entre doutrinadores, pesquisadores e professores que a aplicação dos dispositivos da Lei Maria da Penha para a proteção de homens fugiria ao objetivo da criação da norma, qual seja, a proteção do gênero feminino.

Débora Diniz (2011) diz que "A Lei Maria da Penha é clara: protege mulheres em situação de violência familiar e doméstica. Não há ambiguidade em seus conceitos - os agressores são homens e as ofendidas são mulheres". Contudo, é fato que os homens, assim como as mulheres, podem vir a serem vítimas de agressões por parte de suas esposas ou companheiras, fazendo, neste caso, jus à aplicação da norma.

Neste sentido, estabeleceu-se o entendimento de que a Lei 11.340/2006 é inconstitucional, por ferir o princípio da isonomia, uma vez que benefi cia somente uma parte da sociedade, no caso, o gênero feminino. Por esta razão, Rodrigo de Oliveira Machado (2011) entende que "interpretação extensiva da lei sana o vício de inconstitucionalidade, na medida em que não se estaria dando tratamento desigual a pessoas que se encontrem numa mesma situação".

O posicionamento pela extensão da aplicabilidade de alguns dispositivos da norma ainda não é consensual e esta não é uma prática reiterada pelos tribunais, contudo, já existem alguns julgados neste sentido.

importante se faz entender que o descontrole e a agressividade não são exclusivos da cultura masculina, e uma reação agressiva e impensada ou até mesmo reiterada pode levar a mulher, muitas vezes considerada frágil, a uma

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reação espontânea ou rotineira de agressão e violência contra seu marido ou companheiro.

2.4Princípio da isonomia

Depois de longas lutas, a democracia propiciou que fosse atingida a igualdade de direitos e deveres, sendo esta trazida pela Constituição Federal em seu art. 5º como princípio fundamental, onde se afi rma, inclusive, a igualdade entre os gêneros, como se pode observar:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: i – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (BRASiL, 1988)

Sendo a igualdade formal aquela que se dá perante a lei, importante se faz estabelecer a igualdade material na legislação pátria, onde se faz mister lembrar o conceito de equidade como o tratamento desigual para desiguais, a fi m de buscar o verdadeiro sentido de justiça. Nesta linha, Paulo Roberto Lima (1993, p. 14) afi rma que "[...] a isonomia adotada no sistema jurídico é material que consiste justamente em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas disparidades".

Neste aspecto, as mulheres passaram a ter suas diferenças reconhecidas e colocadas em prática, passando a exercer o papel de cidadãs da sociedade em que vivem. Assim, a Lei 11.340/2006 vem como mais uma forma de afi rmação do reconhecimento da mulher como cidadã detentora de direitos, sendo um destes, o direito à proteção contra violência doméstica e familiar.

Contudo, deve-se atentar ao fato de a mulher não ser a única a sofrer com o tipo de violência a que a Lei Maria da Penha se aplica, ignorando o homem vítima de violência doméstica e familiar, como se este não existisse. A não aplicabilidade da lei em casos em que o homem é vítima de violência doméstica e familiar criaria uma desigualdade, desrespeitando o princípio da isonomia, além de realmente dar à mulher um tratamento privilegiado por uma simples questão de gênero.

Ainda, lembra-se que não são apenas os maridos ou companheiros vítimas de violência doméstica ou familiar, mas também os fi lhos que sofrem agressões. Estes, em tese, não poderiam ter amparo das medidas protetivas de

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urgência contidas na Lei Maria da Penha em razão de pertencerem ao gênero masculino, apesar de, como qualquer mulher, ser vítima de violência doméstica e familiar.

Por todo exposto, observa-se que o que norteia a desigualdade gerada entre os gêneros não é a Lei Maria da Penha em si, mas as limitações geradas à sua aplicabilidade em detrimento do sexo masculino.

2.5 Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade pode ser visto, antes de tudo, como uma busca por equilíbrio na aplicação da norma jurídica. No Direito Penal, a intervenção estatal deve obedecer aos pressupostos dos princípios da legalidade e da justifi cação teleológica, a qual limita a aplicação de restrições aos objetivos instituídos legalmente.

Para Freitas (1997) "o princípio da proporcionalidade quer signifi car que o Estado não deve agir com demasia, tampouco de modo insufi ciente na consecução de seus objetivos". Logo, resta claro que o princípio da proporcionalidade busca a redução das desigualdades.

Sob esta égide, observa-se a incoerência da não aplicação da Lei Maria da Penha a um homem vítima de violência doméstica ou familiar única e exclusivamente por uma questão de gênero. Ora, se a natureza da violência sofrida é a mesma, mudando apenas o sexo do sujeito passivo da ação, não seria proporcional não aplicar a Lei 11.340/2006, ainda que extensivamente, nos casos em que o gênero masculino é o sujeito passivo.

Como exemplo, cite-se Maria Berenice Dias:

A alegação é que, no mesmo contexto fático, a agressão é levada a efeito contra uma pessoa de um sexo ou de outro pode gerar consequências diversas. A hipótese ganha signifi cado a partir do exemplo: na mesma oportunidade, o genitor ocasiona, no âmbito doméstico, lesões leves em um fi lho e uma fi lha. Além de haver dois juízos competentes, as ações seguiriam procedimentos distintos. A agressão contra o menino, encontra-se sob a égide do Juizado Especial, fazendo jus o agressor a todos os benefícios por o delito ser considerado de pequeno potencial ofensivo. Já a agressão contra a fi lha constituiria delito doméstico no âmbito da Lei Maria da Penha. Assim, parece que a agressão contra alguém do sexo masculino é menos grave do que a cometida contra uma pessoa do sexo feminino. Porém, estando uma das vítimas ao abrigo da lei especial, tal faz deslocar-se a competência para o âmbito do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.

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Por isso, há quem sustente que, quando duas são as vítimas, uma de cada sexo, deve ser aplicada a Lei 9.099/1995, tanto na parte processual como material. Porém, em se tratando de violência doméstica ou familiar contra a mulher, não se aplicam os institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995. Daí a sugestão para que se troque a expressão “violência doméstica ou familiar contra a mulher” por “violência doméstica ou familiar contra a pessoa”, respeitando assim o princípio da igualdade. (DiAS, 2008, p. 58)

Desta sorte, resta claro que a não aplicabilidade da norma por um fator exclusivamente de gênero fere, além do princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade, uma vez que, não há proporcionalidade alguma em deixar de aplicar uma lei específi ca para a proteção de um bem jurídico que está sendo violado simplesmente por ser o sujeito passivo homem e não mulher.

Frisa-se que neste aspecto, deve-se acatar a igualdade em detrimento da equidade, tendo em vista que, por uma visão machista de que o homem é mais forte e a mulher mais frágil, acaba-se excluindo a possibilidade do primeiro ser uma vítima de violência doméstica ou familiar, assim, como da segunda ser uma agressora.

Deste modo, as medidas de proteção à integridade, não somente física, do homem, se justifi cam pela necessidade de garantir o mesmo tratamento às mesmas situações vivenciadas por ambos os sexos e pela garantia de uma justiça igualitária.

2.6 Entendimento jurisprudencial

Por todo exposto, o posicionamento da jurisprudência em favor do homem vítima de violência doméstica ou familiar na aplicação da Lei Maria da Penha ainda é iniciante, havendo apenas casos isolados em que houve o benefi ciamento e a proteção do homem ante as agressões de suas companheiras.

O primeiro ocorreu em Cuiabá, quando o Juiz Mário Roberto Kono de Oliveira determinou o afastamento da esposa que vinha agredindo psicológica, física e fi nanceiramente o marido. Nesta ocasião, o magistrado entendeu que:

[...] Embora em número consideravelmente menor, existem casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por sentimentos de posse e de fúria que levam a todos os tipos de violência, diga-se: física, psicológica, moral e fi nanceira. No entanto, como bem destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento por analogia. Tal aplicação é possível?

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A resposta me parece positiva. Vejamos: pela aplicação do princípio da analogia in bonam partem, que diante de uma lei mais benéfi ca e favorável ao caso, não há motivos para deixar de aplicá-la. (OLiVEiRA, 2008)

é importante frisar que para o homem agredido, além de vítima das agressões por parte da companheira, sofre com a vergonha, a humilhação e o constrangimento, além de serem vistos como covardes. Assim, assevera o mesmo magistrado:

Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Pode Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. é sim, ato de sensatez, já que não procura o homem/vítima se utilizar de atos também violentos como demonstração de força ou de vingança. E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de uma solução de confl itos, em busca de uma paz social. (OLiVEiRA, 2008)

Ainda, em decisão da segunda turma recursal do TJMG, o desembargador Sebastião Barbosa Farias, ressalta como conduta louvável a de um homem que busca a tutela jurisdicional para proteção contra agressões e ameaças sofridas pela companheira, em vez de cometer atos de vingança ou que iriam contra os ditames da justiça. A ementa desta decisão é clara e demonstra a evolução no entendimento da Lei nº 11.340/06:

HABEAS CóRPUS. MEDiDAS PROTETiVAS, COM BASE NA LEi Nº. 11.340/2006, A CHAMADA LEi MARiA DA PENHA, EM FAVOR DO COMPANHEiRO DA PACiENTE. POSSiBiLiDADE. PRiNCiPiO DA ANALOGiA iN BONAM PARTEM. AFASTAMENTO DAS MEDiDAS PROTETiVAS E TRANCAMENTO DA AçãO PENAL. PEDiDOS DENEGADOS, SEJA PORQUE OS ATOS DA PACiENTE SãO REPROVÁVEiS, POiS QUE CONTRÁRiOS AO ORDENAMENTO JURíDiCO, SEJA POR AUSêNCiA DE JUSTA CAUSA. ORDEM DENEGADA. DECiSãO EM CONSONÂNCiA COM O PARECER MiNiSTERiAL. Louve-se a coragem cívica do autor da representação, em procurar resolver a questão que lhe afl ige, na justiça; louve-se o nobre advogado que teve o necessário discernimento para buscar na Lei Maria da penha, arrimado no princípio da analogia, a proteção de seu constituinte, mesmo quando todas as evidências indicavam que a referida Lei não poderia ser invocada para proteger o homem, haja vista que esta norma veio e em boa hora, para a proteção da mulher; louve-se, por fi m, o diligente e probo magistrado que ousou desafi ar a Lei. Com sua atitude, o magistrado apontado como autoridade coatora, não só pôs fi m às agruras do ex-companheiro da

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paciente, como, de resto e refl examente, acabou por aplicar a Lei em favor da mesma. O raciocínio tem sua lógica, levando-se em conta que, em um dado momento, cansado das investidas, o autor da representação poderia revidar e, em assim agindo, poderia colocar em risco a incolumidade física da paciente. Da análise de todo o processado, não vislumbrei possibilidade de atender aos reclamos dos impetrantes, em favor da paciente, seja para afastar as medidas protetivas em favor do seu ex-companheiro, (afi nal as atitudes da benefi ciária do HC são reprováveis, posto que contra o ordenamento jurídico); seja para determinar o trancamento da ação penal. (FARiAS, 2009)

O advento da Lei Maria da Penha trouxe o tratamento diferenciado para as mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, e ante esta inversão de papeis provocada pela evolução natural da sociedade, é justo que a isonomia entre sujeitos sejam aplicadas a qualquer cidadão, independentemente do gênero, visando sua preservação física, psicológica, fi nanceira e moral.

3 Os reflexos do machismo nas condutas do gênero masculino

é importante ressaltar inicialmente que homens e mulheres, nunca foram historicamente tratados de forma igualitária, e que o momento no qual vivemos espelha-se numa série de ditames econômicos, sociais, e culturais, como muito bem preleciona Ribeiro (2005):

A maneira como as civilizações entendiam e lidavam com comportamentos, valores e normas ligados ao sexo nunca foram iguais e, tampouco, constantes. Cada cultura e momento histórico viam e viviam sua sexualidade diferentemente. Em dez mil anos de história, a relação sexo – humanidade sempre foi extremamente complexa, pois envolveu (e envolve) questões sociais, culturais, religiosas e psicológicas, construídas historicamente, determinadas de forma diferente.

Por conta desta diferenciação, tem se então a sociedade enquanto criadora de normas de conduta para que cada gênero se enquadre. Neste ponto, os ditames sociais que regem a conduta masculina entranham-se diretamente com os princípios machistas, arraigados no seio da sociedade já de longa data. Com isto, integrantes do sexo masculino que não seguem certos ditames sociais são marginalizados e discriminados.

Tal visão se complementa quando levamos em consideração que o ideário da imaginação social brasileira coloca como fundamentação para

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suas condutas ideias e valores transmitidos de forma mascarada. Em outras palavras, tal ideário traz como obrigação do homem a proteção do homem a mulher, como brilhantemente aduz Marilena Chauí (1985):

Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção natural à natural fragilidade feminina.

Diante disso, desenha-se um novo prisma no que concerne ao preconceito criado pelo machismo: O machismo enquanto opressor do homem, que condena toda e qualquer atitude que fuja dos seus ditames e obrigatoriedades.

Preconceitos e Ditames Sociais da Cultura Machista

No ideário da cultura machista cria-se o estereótipo de homem-macho. Dentre outras características, deve ser: forte, “pegador”, másculo, viril, “barbado”, não deve ter preocupação com a aparência, deve “proteger” a sua mulher, gostar de cerveja e de futebol, etc. No entanto, tal visão gera um efeito contrário que tende a repudiar todos os perfi s que não se encaixam nesta visão. Pode-se ver adiante alguns exemplos de características masculinas duramente criticadas pelo sistema machista vigente.

4 Metrossexualismo

Como nos esclarece Trindade e Nascimento (2004), o termo metrossexual é relativamente novo, foi citado pela primeira vez na década de 1990, mais especifi camente em 1994, pelo jornalista Mark Simpson em seu artigo “Here comes the mirror men”, publicado no jornal Th e Independent. No entanto, foi apenas em 2002, com seu artigo “Meet the metrossexual” que o termo deslanchou e passou a ser usado frequentemente.

Podemos então, nas palavras de Mittal, Holbrook e Beatty (2008, p.411), conceituar o metrossexual como: “homens urbanos que têm um forte senso estético e que gastam muito tempo e dinheiro com sua aparência e estilo de vida”.

Faz-se mister citar que o metrossexual é alvo de preconceitos por ter atitudes pensadas como exclusivas às mulheres. No entanto, a ignição de tal

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pensamento possui em seu teor uma gama extensa de argumentos ligados ao pensamento machista, uma vez que o metrossexual foge ao velho estereotipo de homem “brucutu”.

Consideração importante também se perfaz no sentido de verifi car o impacto negativo que o vocábulo “metrossexualidade” traz em alguns casos. A orientação social machista, e a proximidade com termos como bissexualidade, homossexualidade e transexualidade faz com que em alguns casos, pessoas com menor nível de informação creiam que metrossexualidade tem diretamente a ver com a opção sexual de seu praticante, ideia errônea, que alimenta ainda mais a conotação negativa e preconceituosa referente a tal tema.

4 homofobia

Podemos conceituar homofobia, nas palavras de Rios (2002):

Uma manifestação perversa e arbitrária da opressão e discriminação de práticas sexuais não heterossexuais ou de expressões de gênero distintas dos padrões hegemônicos do masculino e do feminino. Há várias expressões sociais da homofobia, desde atos violentos de agressão física e restrição de direitos sociais até a imposição da exclusão social às pessoas cujas práticas sexuais não são heterossexuais. (RiOS, 2002)

Neste sentido então podemos perceber que a homofobia, ao contrário do que o senso comum coloca, não se dá apenas em relação aos homossexuais, mas sim a todos aqueles que apresentam condutas ou expressões de gêneros distintas daquelas tidas como padrão hegemônico, de tal sorte que se fundem novamente os preceitos machistas que impõem socialmente quais os papéis e características de cada gênero no convívio social.

Ora, pode-se perceber que o próprio homem, não se enquadrando por quaisquer motivos nos estereótipos e arquétipos delimitados por uma cultura deturpada que de forma retrograda e preconceituosa defi ne papeis sociais é vitima de preconceitos, de tal sorte que pelo fato de ter preferências diferentes daquelas levantadas pelo machismo passa de dominador e impositivo, de predador natural a vítima.

Outro fator relevante se expressa quando se leva em conta a homofobia praticada em relação a homossexuais de diferentes gêneros. importante também destacar que hoje a homossexualidade como um todo sofre de inúmeros preconceitos, desrespeitos de todos os tipos, chegando a ser vitimada

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com violência física e moral. Cabe complementar ainda que tais violências se dão diariamente, de forma inaceitável.

Contudo, ao olhar para as diferenças dentro de tais barbáries pode-se enxergar que a homossexualidade feminina nos dias de hoje é mais aceita que a masculina, por uma série de fatores, mas, um deles urge que seja dada especial atenção pelo seu nível de contribuição com o trabalho apresentado.

Ao analisar de forma crítica o machismo enquanto formador dos estereótipos de conduta dos gêneros percebe-se que a visão do homem enquanto “garanhão” contribui grandemente para tal ocorrido. Partindo do princípio que a mulher, no machismo, é vista como objeto de conquista e realização de desejos sexuais masculinos, chega-se a compreensão do porque não é raro perceber que a homossexualidade é mais aceita quando diz respeito ao gênero feminino. E isto ocorre não só por conta do homem que, por vezes, se sente atraído pela ilação de relacionar-se sexualmente com duas parceiras ao mesmo tempo, mas sim, por algo intimamente plantado no seio da sociedade, onde até as próprias mulheres, sem ao menos se questionar o porquê aceitam de maneira mais pacífi ca a liberdade sexual de um casal homossexual do gênero feminino.

5 A vitimização excessiva da mulher

Cada grupo social, cada fragmento de un país, aspira a encarnar la posición de víctima. En el caso francés, después de los judíos, los negros; antes o después, las mujeres, o los musulmanes, qué sé yo. Y nos inventamos un país, una nación, que es una suerte de puzle de víctimas étnicas, raciales, religiosas, sexuales. Cada grupo forma su propio clan. Incluso en el plano económico. Los restauradores, los agricultores, los camioneros, los estudiantes, los investigadores, todos somos víctimas del resto. Rompemos la unidad para crear un puzle de víctimas. Y todo el mundo quiere ser protegido por un Estado que no sabe ni puede atender a tantos colectivos de víctimas.. (FERRy, 2006)

Se nossa tradição cultural culpa a mulher e a coloca como responsável pelas violências contra ela cometidas, precisa-se entender a construção deste sistema, só que desta vez partindo de uma perspectiva mais ampla, para que seja possível parar de alimentá-la. Um ponto deveras importante é a dupla vitimização da mulher, vista eternamente como frágil, indefesa e capturada, passiva, que se deixa tomar e possuir. Ser vítima torna-se quase uma condição natural, já que a mulher é universalmente vitimada pela opressão social. isto termina por desqualifi cá-la, reduzindo-a a um estado de passividade absoluta,

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já que suas atitudes são apenas reativas, servindo ao machismo esta situação de inercia e de descrédito do potencial da mulher.

Lisa Appignanesi (2011) em seu livro dedica um capítulo a este tema, do quanto a cultura da denúncia da violência e das mulheres vítimas afi rma mais ainda para as mulheres esta condição e as faz funcionar sempre num movimento circular, vicioso, dentro de um labirinto sem saída, e o quanto, muitas delas, sequer percebem que poderiam fazê-lo – denunciar, testemunhar, mas, principalmente, reagir a tudo isto de outras maneiras, além de permanecer como vítimas, numa postura mais afi rmativa e inusitada.

Riquíssima contribuição nos trouxe Souza, ao preconizar:

Mulher e vítima são, muitas vezes, sinônimos. Ela não tem identidade, não tem história e parece impermeável às próprias conquistas do movimento feminista (...). Não existem mulheres boas, más, agressivas, perversas, fortes, fracas, dóceis, manipuladoras ou generosas. Todas elas se condensam, basicamente, em uma só fi gura feminina: a mulher sem qualidades, aprisionada na armadilha da vitimização (Soares, 1999, p.176)

A cultura da vitimização excessiva já se mostrou em outros seios de opressão. Negros, homossexuais, minorias étnicas e raciais, em sua grande maioria já foram estereotipados de tal forma, enfraquecendo a sua luta e trazendo um retrocesso em suas conquistas.

Outro ponto a se levantar é que quando se tem uma cultura de vitimização, os principais "protetores" são justamente as instituições sociais. Neste caso específi co, a família, o casamento, e o estado são as mais cotadas para ser o porto seguro das mulheres. No entanto, tais instituições quando não formadas e respeitadas da maneira correta, acabam-se tornando um local de violência e opressão, dando início então a um enorme ciclo vicioso de dor e autopunição. Afi nal, apesar do convívio familiar, marital, empregatício, entre outros, causar algum tipo de sofrimento, é lá que estará a tão sonhada segurança.

Por fi m, cabe salientar que quando a cultura da vitimização se estabelece, cresce então o número de fanáticos e extremistas, o que difi culta muito o dialogo e a construção intelectual sobre o tema, uma vez que independente do que for apresentado, as mulheres serão sempre as vítimas, sempre as menos favorecidas, causando nos homens abertos ao diálogo um certo receio de serem confundidos, de passarem d e simpatizantes a causa á agressor camufl ado. Explicita-se ainda o fato de diminuir o interesse social sobre o assunto, visto que tal problema se apresenta de forma crônica, onde se fala todos os dias das

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difi culdades alcançadas, mas não se encoraja as oprimidas a rebelar-se, uma vez que não deixa claro os objetivos já conquistados, as batalhas vencidas e a independência e progresso cada vez mais evidentes no mundo feminino.

6 Considerações finais

Diante do exposto, pode-se considerar que o problema do machismo é nítido em nosso convívio social, e mais do que isso, afeta não só aquelas que já vêm sendo oprimidas durante séculos, mas também uma faceta daqueles que são estereotipados e tidos como dominadores, mas que na verdade não o são.

Existe uma evolução cultural, legislativa e contemporânea, que vem se arraigando no seio da sociedade com o escopo de erradicar as mazelas advindas do machismo e de todas as outras formas negativas de sexismo, no entanto, é necessário olhar a situação por um ponto de vista novo, fugindo dos excessos e procurando a justiça social, não através da igualdade pura e simples, mas sim da aplicação da equidade, ou seja, tratar os desiguais na forma de sua desigualdade.

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FuNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RuRAL E SEu PAPEL ECONôMICO, AMbIENTAL E SOCIAL

Luciana Maria Faria de Souza1

Resumo: Garantida pela Constituição Federal de 1988, a propriedade em geral sempre foi motivo de estudos principalmente quando da garantia de sua função dentro de um grupo social. A Carta Magna consagra a propriedade em seu texto visando tanto como garantia individual quando para garantir sua função social, como delega os Artigos 5º, inciso XXiii e 170, inciso iii. O Estatuto da Terra, Lei 4.504/64, garante também em seu Artigo 2º o acesso à terra condicionado pela função social da propriedade rural desde que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores juntamente com as suas famílias, assim como a manutenção de níveis de produtividade de maneira satisfatória. A Constituição Federal elenca em seu Artigo 186, quatro requisitos que a propriedade rural deve atender para que a função social seja alcançada, sendo eles: o aproveitamento racional e adequado da terra, que garante que os níveis de produtividade façam com que a propriedade seja produtiva; a adequada utilização de recursos naturais e a preservação do meio ambiente, o que de forma ampla representa a busca pela preservação dos recursos naturais; a observância das disposições que regulamentam as relações de trabalho, visando proteger os trabalhadores rurais e suas relações de trabalho; e por fim a exploração que favoreça o bem-estar dos trabalhadores e proprietários, que configurou a preocupação do legislador com os conflitos e tensões sociais que podem decorrer da propriedade rural. Com isso Benedito Ferreira Marques (1996) leciona que esses requisitos devem ser observados simultaneamente para que a função social da propriedade seja alcançada. Desta forma, conclui-se que a função social da propriedade, através de seus requisitos legais atende elementos econômicos, ambientais e sociais na busca por uma melhor proteção jurídica daqueles que junto com o Estado, buscarem o atendimento a esta função.

Palavras-chave: Propriedade; Função Social; Constituição.

Resumen: Garantizada por la Constitución de 1988, la propiedad en general siempre ha sido motivo de estudios, especialmente cuando la seguridad de su función dentro de un grupo social. La Constitución consagra la propiedad en el texto con el fin de garantizar tanto el individuo como para asegurar su función social, como los artículos 5, párrafo XXiii y 170, fracción iii. El Estatuto de la Tierra, 4.504/64 Ley, garantiza en su artículo 2, el acceso a la tierra condicionada por la función social de la propiedad rural, ya que favorece el bienestar de los propietarios y los trabajadores junto con sus familias, así como el mantenimiento de los niveles de productividad satisfactoriamente. La Constitución Federal en su artículo 186 enumera cuatro requisitos que la sociedad debe cumplir para se llegar a la función social, a saber: el uso racional y adecuado de la tierra, lo que garantiza que los niveles de productividad hacer con la propiedad es productivo; el uso adecuado de los recursos naturales y la preservación del medio ambiente, que en términos generales representa la búsqueda de la preservación del medio ambiente; el cumplimiento de las disposiciones que regulan las relaciones de trabajo, para proteger a los trabajadores agrícolas y sus relaciones de trabajo; y Finalmente, la explotación que favorezca el bienestar de los trabajadores y los propietarios, que establecieron la preocupación del legislador por las tensiones sociales y los conflictos que pueden surgir de la granja. Con eso, Benedito Ferreira Marques (1996) enseña que estos requisitos deben cumplirse juntos para se llegar a la función social de la propiedad. Por lo tanto,

1 Aluna do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina.

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se llega a la conclusión de que la función social de la propiedad, a través de los requisitos legales satisface los requisitos legales económico, ambiental y social en la busca para mejorar la protección jurídica de las personas, y junto con el Estado, buscar la atención de esta función.

Palabras clave: propiedad, función social; Constitución

Referências

FACHiN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 3. Ed. rev. atual. e ampliada. São Paulo: Método, 2008.

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário brasileiro. Goiânia: AB, 1996.

SOUSA, João Bosco Medeiros de. Direito Agrário: Lições básicas. 3 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1994.

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ASPECTOS juRÍDICOS E SOCIOECONôMICOS DOS AbuSOS E VIOLAÇÃO DOS DIREITOS CONSTITuCIONAIS SOFRIDOS

PELOS POVOS GuARANI-KAIOWá EM MATO GROSSO DO SuL

Pedro Paulo Dalbianco Ferreira dos Santos1

Marina Duarte Ferreira Maidana2

Sumário: 1-introdução. 2-Dados territoriais e da violência 3-Características do povo guarani-kaiowá 4-Direitos 5-Realidades políticas, PEC 215 e demarcação de terras 6-Violências e suas causas 7-O genocídio indígena em mato grosso do sul 8-Violência sofrida contra a mulher 9-Conclusão

Resumo: O objetivo principal do artigo é relatar os abusos e violações cometidos contra os povos indígenas da etnia Guarani-Kaiowá localizados em Mato Grosso do Sul. O estado conta com a segunda maior população indígena do país, enquanto, ao mesmo tempo, está em primeiro lugar no número de assassinatos contra essas populações. O ano de 2012 chamou muita atenção para a situação da etnia, através das mobilizações nas redes sociais denunciando o massacre e as dificuldades extremas que os Guarani-Kaiowá estão enfrentando. As problemáticas envolvendo os povos nativos no estado, que serão comprovadas através do trabalho, são de diversas naturezas: vêm através da demarcação de terras, bem como a falta dela; avanço do agronegócio; alto índice de violência; abandono por parte do Estado e poder público. As comunidades e aldeias compostas pelos povos dessa etnia encontram-se em situações degradantes por conta, principalmente, destes motivos indicados. A inconstitucionalidade presente nas problemáticas apresentadas e a falta de vigência das leis do país, em face das ações e omissões do poder público, serão também objeto de pesquisa do trabalho. Nesse trabalho buscaremos através de um raciocínio lógico e racional, comprovar as premissas apresentadas como problemáticas.

Palavras-chave: Direitos constitucionais; Violações do Estado; Comunidades Guarani-Kaiowá.

Abstract: The main goal of the academic work is to report the abuses and violation committed against the indigenous people from the ethnicity Guarani-Kaiowá located in Mato Grosso do Sul – Brazil. The state has the second greatest indigenous population of the country while it’s in the first place on the number of murders against this population. The year 2012 called a lot of attention to this people’s situation through the social networks mobilization denouncing the massacre and the extreme difficulties that the Guarani-Kaiowá are facing. The problematic involving the state native people, which will be proven through the article, are from different natures: they come through the demarcation of the lands, as well as the lack of it; the progress in agribusiness; high violence levels; State and Public Authorities abandon. These people’s communities and villages are in a degrading situation mainly because of the mentioned motives. The unconstitutionality in these presented problematics and the lack of prevailing laws in the country, facing the actions and omissions of the Public Authority, are going to be this academic work object of research.Keywords: Constitutional Rights, Violations of the State, Guarani-Kaiowá Communities.

1 Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), 3º ano. Contato: [email protected]

2 Acadêmica de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), 3º ano. Contato: [email protected]

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1 Introdução

Quando ancoraram na costa brasileira, com suas naus e caravelas, os “exploradores” portugueses se depararam com uma população de cultura peculiar a tudo aquilo que estavam acostumados a encontrar na outra face do mundo. Não eram mongóis, nem indianos, não tinham vestimentas pesadas e caras, não faziam uso de tecnologia da época: eram nativos nus, com penugens e pinturas corporais, organizados de forma comunitária e familiares à natureza e às fl orestas.

O processo de ocupação europeu na América Latina não foi simplesmente territorial, foi também cultural e violento. Durante o procedimento, além do genocídio das mais diversas culturas aborígenes que estavam situadas no continente, a extinção de muitas delas foi promovida. Os números variam entre os estudiosos e antropólogos e há estima de um e meio a cinco milhões de indígenas ocupando o território brasileiro no período do “descobrimento” das terras.

Desde então, pessoas e culturas são dizimadas à favor do homem branco e de um desenvolvimento para poucos. Quando não tem sua cultura mutilada e reduzida, os indígenas têm suas próprias vidas arrancadas por aqueles que hoje utilizam e habitam um solo que tem vínculo histórico com seu povo.

Hoje encontramos no território brasileiro 238 povos, falantes de mais de 180 línguas diferentes e que correspondem à aproximadamente 0,47% da população brasileira, com 896.917 pessoas, separadas entre o campo e a cidade. As populações indígenas, em suma maioria, estão em vias de integração com a sociedade, enquanto alguns estão isolados, como é o caso de algumas comunidades no norte e centro-oeste do Brasil.

2 Dados territoriais e da violência O Brasil tem uma extensão territorial de 8.511.965 km². As terras

indígenas (Tis) somam 687 áreas, ocupando uma extensão total de 1.129.552 km², sendo assim 13.3% das terras do país reservadas aos povos indígenas. A maior parte das Tis concentram-se na Amazônia Legal: são 414 áreas, 111.108.392 hectares, representando 21.73% do território amazônico e 98.47% da extensão de todas as Tis do país. O restante, 1.53%, espalha-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estado de Mato Grosso do Sul. São 1,53% de 13,3%

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do território brasileiro a ser dividido entre as várias etnias existentes nessas regiões.

A situação territorial dos indígenas dessas regiões acaba sendo preocupante. Em Mato Grosso do Sul, as populações indígenas tem históricos alarmantes de violência e falta de recursos causados, principalmente, pela falta de coerência na distribuição das terras, que acaba afetando o modo e qualidade de vida destes povos.

O estado de possui a segunda maior população indígena do país, perdendo apenas para o Amazonas. São cerca de 73 mil indígenas e 9 etnias que ocupam aproximadamente 1,7% do território do estado, que possui 2.449.341 habitantes e área de 357.124,962 km². Ao mesmo tempo, Mato Grosso do Sul segue com o preocupante posto de estado que possui o pior índice de violência contra os indígenas. Mesmo com tanto território, o latifúndio ainda domina, enquanto os indígenas que não tem território garantido fi cam nas estradas ou apertados em minúsculas reservas indígenas como a reserva de Dourados, que possui cerca de 12 mil indígenas de diferentes etnias em um espaço de 3,6 mil hectares, uma falta de respeito tanto com a cultura destes quanto com o espaço de cada família.

Só em Mato Grosso do Sul ocorrem 55,5% dos assassinatos contra indígenas no país e 34 vezes mais suicídios indígenas que a média nacional. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens e com a maioria dos suicidas estando na faixa dos 15 aos 29 anos. A taxa de assassinatos é de cem por cem mil habitantes, quatro vezes maior que a média nacional. A média mundial é de 8,8. A violência contra os indígenas é preocupante e os assassinatos têm como alvo principal aqueles que continuam na luta por território. Entre 2003 e 2011, foram assassinados 503 índios no país, sendo que 279 deles pertencem à etnia Guarani-Kaiowá.

3 Características do povo guarani-kaiowá

Os povos Guarani-Kaiowá, atualmente, se localizam em Mato Grosso do Sul e no Paraguai. A etnia está em vias de integração com a sociedade por possuir certas peculiaridades culturais, mas sua cultura já vem de encontro à cultura do homem branco em diversas questões: trabalho, educação e religião, por exemplo. Possuem dialeto próprio, derivado do tronco linguístico Tupi, da família linguística Tupi-Guarani: o Guarani, que é falado não só pelos Kaiowá, mas por diversos povos.

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Os Guaranis se organizam em grandes extensões familiares liderados por um homem ou uma mulher mais experiente. Vivem em comunidade e tem uma enorme sapiência no trato dos espaços disponíveis, mesmo que estes sejam os acampamentos nos quais reivindicam seus Tekohás3.

O principal elemento utilizado pelos Guarani-Kaiowá é a terra, principalmente devido ao fato de sua atividade econômica central ser a agricultura, tendo a pesca e a caça como secundárias, mas também as executando. isso faz com que os territórios, além de sagrados, sejam essenciais para o desenvolvimento de suas atividades de subsistência e execução de trabalhos.

O fato de saberem lidar com agricultura tornou o povo dessa etnia uma mão-de-obra fácil e barata para o campo e os grandes agricultores. Hoje os indígenas são os principais colhedores de safras como a cana-de-açúcar, por exemplo, que chega a empregar inclusive indígenas menores de idade para executar o trabalho. Ou seja, os indígenas não possuem terra, pois essa está ocupada por grandes empreendimentos agropecuários que os exploram como mão de obra.

Para traçarmos o perfi l da etnia Guarani-Kaiowá em face das defi nições legais, utilizaremos a lei 6001, promulgada em 19 de dezembro de 1973, a qual dispõe sobre o estatuto do índio, tendo como objetivo de acordo com seu artigo primeiro regular a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmonicamente, à comunhão nacional.

O estatuto traz a defi nição de silvícola e comunidade indígena nos atributos da lei no seu artigo terceiro, da seguinte forma:

“I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifi ca e é intensifi cado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional; II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados.”Tendo em vista tais defi nições, básicas para a tratativa do tema, teremos

3 Tekohás são os territórios sagrados reivindicados pelos Guarani-Kaiowá. Ocupados antigamente por seus ancestrais e carregados de enorme herança histórica e afetiva para os indígenas, que travam sua luta cotidiana exigindo de volta esses espaços. Muitos foram perdidos pela própria insensatez do método distributivo da demarcação de terras, que, aos Guarani-Kaiowá, foi muito infeliz, deixando um número reduzido e muitas vezes voltando os indígenas à reservas ou espaços muito limitados e apertados.

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também o grau de interação das comunidades indígenas com a comunhão nacional no artigo 4º, inciso ii, disposto do seguinte modo:“Art.4º Os índios são considerados:II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão vez mais para o próprio sustento;”

Estando demonstradas as características elementares dos indígenas e de suas comunidades, inclusive perante à lei, não há dúvidas de que o grupo em questão ainda é considerado uma sociedade indígena e que está em vias de integração. Não podemos deixar de ressaltar que o fato da cultura do homem branco entrar em contato com a indígena ou fazer parte de seu dia-a-dia, não desfaz o laço sanguíneo e histórico dessas comunidades, tampouco faz um indígena “menos índio”.

4 Direitos

Curioso é perceber que as ferramentas garantidoras da dignidade e da posse das terras dos índios, não foram um resgate legislativo de longa data. A tutela dos direitos indígenas vem de longe, sendo alvo de proteção por parte das autoridades públicas desde os tempos de colônia, passando pela legislação imperial, e todas as constituições republicanas até chegarmos em 1988.

Na época colonial, o primeiro documento é a Carta Régia de 10 de setembro de 1611, promulgada por Filipe iii, seguindo o Alvará Régio de 1º de ABRiL DE 1680, da Carta Régia de 09 de março de 1718, Lei Pombalina de 06 de Julho de 1755.

O primeiro documento citado já demonstra a proteção ostensiva e o reconhecimento da legitimidade da posse das terras dos gentios. A palavra gentios deve ser interpretada como alusão a um povo não civilizado, pagão.

CARTA RéGiA DE 09 DE MARçO DE 1718:“... (os índios) são livres, e izentos de minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras, para tomarem um modo de vida de que elles não se agradão ...” (Os Direitos do índio - Manuela Carneiro da Cunha - pág. 61).Após esse momento histórico, chegamos até o período imperial. A tutela protegendo os direitos dos índios permaneceu semelhante, demonstrando a

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impossibilidade de alienação das terras mas o governo federal poderia por ato especial permitir que eles alienem a terra, ou parte dela se os índios já se mostrassem civilizados.Art. 75. As terras reservadas para colonização de indígenas, e para elles distribuídas, são destinadas ao seu uso fructo; não poderão ser alienadas, enquanto o Governo imperial, por acto especial, não lhes conceder pelo gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilização.”

Na época da república, a Constituição de 1937 praticamente mantém o que estava em vigor em relação aos indígenas.

Essa base segue até a Constituição de 1967 que na Emenda Constitucional Nº1 de 1969 vem tratar da mesma ideia anteriormente tutelada e ainda traz o direito de usufruto exclusivo das riquezas naturais nas terras por eles habitadas. Traz ainda a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos indígenas.

Chegamos às leis em vigor e toda sua proteção ao índio, que é garantida tanto pelo estatuto do índio, quanto pela Constituição federal. Não podemos deixar de destacar a parte especial contida na CF quanto à questão dos índios no Título Viii, Da ordem social, Capítulo Viii, dos índios:

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivadas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, fi cando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

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§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso d e catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes l egítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”Art. 20 inciso Xi: “São bens da União:XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.”

Segundo a doutrina de José Afonso da Silva, os direitos constitucionais os quais contemplam os índios em relação as suas terras, nada mais fazem do que consagrar e reconhecer o direito congênito e primário dos indígenas sobre suas terras. Ainda aponta que o termo tradicionalmente não se refere a uma circunstancia de tempo, e sim, ao modo tradicional com que os índios utilizam e ocupam a terra e também ao modo de produção. isso, porque existem comunidades mais estáveis e menos estáveis, que precisam de mais ou menos espaço, se deslocam ou permanecem no mesmo local. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições. (OS DiREiTOS iNDíGENAS E A CONSTiTUiçãO - Núcleos de Direitos indígenas e Sérgio Antônio Fabris Editor - pág. 48 - 1993)

José Afonso da Silva ainda aponta que quando a Constituição declara caber aos silvícolas a posse permanente das terras por eles habitadas, isto não signifi ca um simples pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, para que essas terras inalienáveis sejam para sempre o seu habitat.

Para demonstrar na jurisprudência tal tema, temos um voto do Supremo Tribunal Federal de 1961, dado pelo Ministro Victor Nunes Leal no Recurso Extraordinário nº 44.585:

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“O objetivo da Constituição Federal é que ali permaneçam os traços culturais dos antigos habitantes, não só para sobrevivência dessa tribo, como para estudo dos etnólogos e para outros efeitos de natureza cultural e intelectual. Não está em jogo, propriamente, um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos silvícolas, trata-se de habitat de um povo.”

5 Realidades politicas, pec 215 e a demarcação de terras

infelizmente há uma desmesurada disparidade entre a tutela de direitos e o real cumprimento das mesmas. Os abusos sofridos pelos povos indígenas são mais uma demonstração da evidente incapacidade do Estado em proteger seus cidadãos e suas leis, benefi ciando as escusas formas de violência, corrupção e medidas que fazem dos interesses particulares o verdadeiro regimento de um Estado excludente, omisso e falido em valores éticos na sua administração.

A bancada ruralista é uma realidade política que não podemos deixar de citar nesse trabalho. Ela se constitui por uma Frente Parlamentar que atua em defesa dos interesses dos proprietários rurais. independentemente do partido e das coligações as quais façam parte, eles defendem os interesses latifundiários e o agronegócio. é difícil estimar quantos deputados fazem parte dessa frente, já que muitos deles se identifi cam a partir seu diploma universitário, por mais que sejam ruralistas, ou tenham interesses familiares ligados ao agronegócio, porém a frente declara-se formada por 214 membros na câmara dos deputados e 14 senadores da república.

Uma das iniciativas da bancada ruralista é a PEC 215, ponto crucial da problemática atual dos Guarani-Kaiowá. Esta é uma proposta de Emenda à Constituição que transfere do poder legislativo para o Congresso Nacional a competência de aprovar a demarcação das terras ocupadas por indígenas.

Hoje, a demarcação de terras funciona do seguinte modo: segundo o Artigo 19 do Estatuto do índio: “As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”. Ou seja, as terras demarcadas hoje, estão sob responsabilidade da Funai.

O Decreto Nº 1.775, de 08.01.1996, Art. 2º, trata da questão de demarcação. O texto segue:

A demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualifi cação reconhecida, que elaborará, em prazo fi xado na portaria de nomeação

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baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identifi cação. (...)§ 1º O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a fi nalidade de realizar estudos complementares de natureza etno histórica, sociológica, jurídica, cartográfi ca, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação. (...)§ 10º Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:i – declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;ii – prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias.”

A PEC 215 é uma das prioridades deste ano da Frente Parlamentar da Agropecuária no Congresso Nacional no ano de 2013. A admissibilidade da PEC foi aprovada sob protesto dos índios, ano passado, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Desde então, aguarda instalação de Comissão Especial para ser analisada. Para entrar em vigor, a PEC ainda precisa de votação em plenário.  é necessária a aprovação em dois turnos, com espaço de pelo menos cinco sessões entre um turno e outro. A proposta deverá obter os votos de, no mínimo, três quintos do número total de deputados da Câmara em cada turno da votação. Ou seja, aprovação de 308 dos 513 deputados (quórum qualifi cado). Depois volta para avaliação do texto fi nal, devendo ainda ser votada no Senado Federal, sendo, em caso de aprovação, mandada ao executivo para ser promulgada.

Segundo o coordenador da Frente Parlamentar dos Povos indígenas, deputado Padre Ton, do PT de Rondônia, as comunidades indígenas em geral sofrem muita pressão tanto por parte do poder executivo, já que este tem interesses na construção de obras desenvolvimentistas, e por parte do Parlamento por grupos fi nanceiros que o controlam e têm interesse sobre as terras para produção agrícola. Ainda diz que se essa obrigação for da alçada do Parlamento, não se poderão demarcar o restante das terras que devem ter o processo realizado.

A PEC 215, além de um retrocesso, é inconstitucional por atingir a tripartição de poderes e a independência entre eles, não sendo mais do que a manifestação de um modelo de desenvolvimento excludente, desigual e criminoso.

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6 Violências e suas causas

As violências e violações de direitos sofridas pelos indígenas em geral e também especifi camente pelos Guarani-Kaiowá no estado de Mato Grosso do Sul vêm em várias esferas e de várias fontes, mas são, todas elas, mantidas e contínuas, através da perpetuação do silencio do Estado.

Defendemos que essa violência, que tem como consequência o genocídio indígena, é causada, principalmente, através:a) Do etnocentrismo e do preconceitob) Da falta de coerência na distribuição de terrasc) Do agronegócio

Vamos explicar respectivamente cada uma dessas fontes e o motivo de as termos considerado centrais na tentativa de explorar e explicar a violência que os indígenas e, mais respectivamente, os Guarani-Kaiowá sofrem no país:a) Do etnocentrismo e do preconceito

Ao ato de considerar uma cultura superior às outras dá-se o nome de etnocentrismo, ou seja, a discriminação de outro a partir de uma diferença cultural, social, de hábitos ou até mesmo econômica, em alguns casos.

isso acaba afetando o psicológico e até mesmo o modo de vida dos que sofrem esse tipo de preconceito. Além de serem humilhados econômica e socialmente, através das condições às quais têm de viver, os indígenas são humilhados nas esferas sociais e acabam vendo como solução, em muitos casos, a adesão às culturas e moldes sociais dos não indígenas.

Como são uma etnia em vias de integração com a sociedade, os Guarani-Kaiowá têm de viver em meio aos não indígenas nas mais diversas atividades, desde escola a até mesmo trabalho, quando são obrigados a servir de mão-de-obra por não terem suas terras para plantar e usufruir.

Essa convivência com o meio, o homem e a mulher urbanos, em suma maioria, é indicada por uma grande parcela da população como benéfi ca, pela “integração cultural” nela promovida, mas a realidade é outra: a relação acaba tendo um grau de opressão e humilhação muito grandes para o indígena. isso porque até hoje a relação dos não indígenas com os indígenas se dá no sentido de querer garantir uma supremacia – cultural, social e econômica -, ou seja, carregada de extremo etnocentrismo.

Desde quando o país foi “descoberto”, bem como os povos indígenas e suas culturas mais exploradas, a supremacia da cultura ocidental europeia sobre a cultura indígena é exercida, resultando numa cultura etnocêntrica que deixa

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de lado a indígena ou a considera atrasada demais. O lado da arte indígena foi bem explorado e enaltecido, bem como a própria fi gura do indígena através do indianismo literário de José de Alencar, mas a fi gura enaltecida nada mais é do que um indígena afastado da realidade do não indígena e de sua sociedade e que não entra em confl ito com seus interesses.

As culturas indígenas foram tendo triste fi m com o domínio europeu: ou foram extintas ou tiveram de se moldar à cultura dominante, a dos não índios, tendo como resultado o que temos hoje.

As religiões que mais tem adesões entre os indígenas, cotidianamente, são as religiões Católica e Evangélica, que dominaram as aldeias e as comunidades. Poucos costumes ainda são respeitados e seguidos dentro de certas comunidades que tem um grau maior de integração com a sociedade.

No dia-a-dia, os indígenas sofrem muito preconceito em Mato Grosso do Sul. Mesmo possuindo uma das maiores populações indígenas do país, ainda são muito explorados e humilhados dentro do estado. Um exemplo claro deste preconceito pode ser dado a partir de casos como os registrados que acontecem nas escolas e acabam afastando as crianças indígenas desses espaços. Os indígenas são chamados pejorativamente de “bugres”, são considerados sujos e muitas vezes sofrem desse tipo de humilhação pelos próprios professores e diretores das escolas. O último caso desse tipo registrado em Mato Grosso do Sul, foi denunciado no Aty Guasu4 realizado no dia 2 de março. No relato, crianças Guarani-Kaiowá de aldeia Campestre teriam sido humilhadas e retiradas da sala de aula de uma escola estadual em Antônio João (MS) pelos próprios professores e diretor, que continuaram a dar aula para as crianças não indígenas. O caso aconteceu no dia 27 de fevereiro. Tal conduta é considerada criminosa segundo o artigo 140, §3º, no Título i, capítulo V, da Parte Especial do Código Penal Brasileiro – “Dos Crimes Contra a Honra”.

Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, podemos conferir a opinião popular em relação a preconceitos étnicos e culturais:

“A maioria da população brasileira nunca se sentiu discriminada devido á sua cor ou etnia (89%), 11% afi rmam que já foram discriminados, mas a cerca de metade deles dizem que isso só aconteceu uma ou duas vezes na vida (5%) e 4% que isso costuma acontecer de vez em quando.Os negros são os que mais se sentiram discriminados (30%), seguidos pelos indígenas (18%). Em ambos os casos a frequência de vez em quando é a mais mencionada (12% entre os negros e 11% entre os indígenas).”

4 O Conselho Aty Guasu é uma grande assembleia dos Guarani-Kaiowá. Tem caráter político e de organização.

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Ainda na mesma pesquisa, podemos conferir algumas curiosas manifestações sobre os indígenas em especial, ênfase para a Centro-oeste:

“Embora apenas 1% da população admita não gostar de encontrar com indígenas, a opinião sobre este grupo étnico, em muitos casos, aponta para uma visão onde a convivência nem sempre é facilmente compartilhada e muitas vezes indica certo preconceito em relação aos indígenas.Dois terços da amostra concordam que “os índios são os verdadeiros donos das terras do Brasil, porque já estavam aqui quando os brancos chegaram” (66%, com 42% de concordância total e 24% apenas parcial). Na região Centro-Oeste este índice de concordância não ultrapassa metade da amostra (50%) e tem discordância de um terço da população da região (33%, entre discorda totalmente – 20% e 13% parcialmente).Uma visão mais negativa e preconceituosa dos indígenas se observa na concordância de uma menor, mas ainda assim expressiva 28% da população com a afi rmação de que “os índios são selvagens, querem resolver tudo a força” e 21% que concordam que “os índios são pobres porque não gostam de trabalhar”. A violência indígena é mais percebida entre os moradores da região Norte (42%), e também é maior em municípios do interior (54%), de pequeno porte (40%) e em áreas rurais (40%), locais onde os confl itos envolvendo indígenas sejam mais evidentes e tenha traços mais violentos. Uma visão mais extrema e exterminadora sobre os indígenas é observada em uma pequena parcela da população brasileira, – 3% concorda totalmente que “índio bom é índio morto” e 2% concorda parcialmente com esta afi rmação, com taxas baixas, em todos os segmentos analisados.Cerca de dois terços da amostra (60%) acreditam que não existe diferença de inteligência entre os brancos e indígenas, 21%, no entanto, afi rmam que os brancos são mais inteligentes, quase dez pontos percentuais a mais do que os que acreditam no contrário (12%).”

Temos que levar em consideração que as pesquisas são feitas através de perguntas diretas e que nem todos os questionados envolvidos admitiriam ter pensamentos relacionados a algum tipo de postura que fosse considerada um desvio moral, como é o caso das relações de preconceito e discriminação. Mas chama atenção o fato de haver, mesmo assim e considerando os fatos omitidos, manifestação de pensamentos extremamente discriminatórios, preconceituosos e violentos, como alguns se manifestaram.

O fato é que a intolerância cultural e o preconceito voltado contra os indígenas já é em si uma violência e contribui para as outras violências que são e poderão ser sofridas por esse povo.

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b)Da falta de coerência na distribuição de terrasNo Brasil, segundo o Censo Agrário de 2006:

“Foram identifi cados 4.367.902 estabelecimentos de agricultores familiares, o que representa 84,4% dos estabelecimentos brasileiros. Este contingente de agricultores familiares ocupava uma área de 80,25 milhões de hectares, ou seja, 24,3% da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Estes resultados mostram uma estrutura agrária concentrada no país: os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem 15,6% do total dos estabelecimentos, ocupavam 75,7% da área ocupada. A área média dos estabelecimentos familiares era de 18,37 ha, e a dos não familiares, de 309,18 ha.Entre os estabelecimentos não familiares, as UFs com maiores áreas médias foram Mato Grosso (1.600,9 ha) e Mato Grosso do Sul (1.215 ha) e Amapá (1.119 ha).”

A pesquisa apontou e confi rmou uma problemática histórica no país: há muita terra na mão de poucos. Esse fato torna a problemática agrária ainda mais grave e fonte de instabilidade social por conta dos que fi cam sem ter como usufruir, utilizar ou até mesmo possuir um pequeno pedaço de terra para si.

A realidade se faz ainda mais preocupante quando vários povos tradicionais sofrem com a falta dessas terras e, consequentemente, com a falta de seus direitos de possuí-las. São centenas de comunidades indígenas e quilombolas pelo país esperando a demarcação de suas terras ou título de posse. Enquanto isso, o latifúndio prolifera e o agronegócio avança.

O direito à terra, por parte dos indígenas, é consagrado pela Constituição de 1988 que os declara os primeiros e naturais senhores da terra. Essa fonte primária de seu direito, anterior a qualquer outro, deveria determinar que uma terra tradicional ou sagrada para as comunidades não necessitassem de reconhecimento formal, porém, necessitam. A Constituição também força que essas terras sejam reconhecidas pelo Poder Público. A demarcação de terras para as comunidades indígenas, atualmente, é de encargo da Justiça Federal que homologa as terras.

O fato desse direito ser assegurado pela Constituição não o torna real, tampouco fácil de ser conquistado. A Constituição também garante, conforme o parágrafo 2º do Art. 231, “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes nas terras do país para os indígenas.

A concentração de terras, consequência de um sistema baseado em mais valia e exclusão, é uma forma de opressão e violência contra os povos e

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fonte de outras violências também, bem como o próprio genocídio indígena. Acompanhada com o etnocentrismo e o ideal de superioridade que o Capital promove aos que muito tem, a concentração se transforma em diversas formas de violência contra os que não possuem suas propriedades e territórios.

Mato Grosso do Sul obteve destaque no ano de 2012 e começo de 2013 pela resistência Guarani-Kaiowá em relação às terras que reivindicavam. A maioria das denúncias efetuadas pelos próprios indígenas em relação às ameaças de morte e violências, além da própria efetuação de atos como atropelamento de indígenas e ataques nas comunidades ou acampamentos de resistência, declaram que estas partem de fazendeiros da região ou de jagunços destes fazendeiros. é a disputa por terras tendo como consequência o desrespeito dos Direitos Humanos e da própria Constituição.

O fato de existir desigualdade gritante na distribuição de terras e, consequentemente, diferença social, não pode ser descartado como uma fonte de violência e um dos principais fatores responsáveis pela precarização na qual os povos indígenas se encontram cotidianamente.

A falta de terras é a principal causa do confl ito com os indígenas e essa falta tem uma justifi cativa: elas estão concentradas nas mãos de poucos. Dos índices de mortalidade envolvendo os povos indígenas e incluindo também os suicídios, na maioria dos casos, as mortes envolvem a questão da terra seja direta, como o caso das mortes de lideranças indígenas (os caciques) de acampamentos de resistência que lutam pela terra, como também indiretamente, como é o caso dos suicídios e atropelamentos, que mesmo parecendo não ter relação, tem como uma das principais causas a questão da qualidade de vida ou precariedade na qual esses povos se encontram por conta da falta de terra e indiferença do poder público.

O estado de Mato Grosso do Sul, onde as dimensões do confl ito são grandes, já foi pauta de muitas mortes e sofrimento. A infl uência da disputa de terras nesses casos é clara, já tendo sido até mesmo evidenciada em vídeo divulgado na internet pelos próprios fazendeiros. Acontecem 34 vezes mais suicídios indígenas em Mato Grosso do Sul que a média nacional e o estado é o que possui o maior número de assassinato desses povos, sendo os Guarani-Kaiowá os que mais sofrem violência e assassinatos no estado.

c)Do agronegócio O avanço do agronegócio no Brasil tem apoio crucial dos governos do

país. Cada vez mais se investe no crescimento dessa economia, tanto quanto

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se investe no crescimento e amadurecimento de uma política protetora desta – um bom exemplo pode ser dado através da criação da Frente Parlamentar Agropecuária, a FPA -.

Agronegócio, segundo Davis e Goldberg, que propuseram o termo em 1957 é a quando a “agricultura passa a ser abordada de maneira associada aos outros agentes responsáveis por todas as atividades, que garantem a produção, transformação, distribuição e consumo de alimentos, considerando assim, a agricultura como parte de uma extensa rede de agentes econômicos”. Assim sendo, o agronegócio é a capitalização extrema da agropecuária e o fi m principal desta é a distribuição por meio de exportações, gerando lucro para o país. Com isso, as propriedades rurais que são utilizadas, visadas e valorizadas pelo agronegócio são os latifúndios, os grandes estabelecimentos, que são quem tem porte e estrutura sufi cientes para alavancar um grande negócio.

Grande parte do abastecimento interno do país é fornecida através dos pequenos produtores e da Agricultura Familiar, deixando de lado a teoria de que “o agronegócio faria uma grande falta e poderia gerar uma crise alimentar no país”. A verdade é que o aumento signifi cativo de exportações no país, devido ao avanço do agronegócio principalmente, não afeta o abastecimento interno. Essa é só uma constatação importante a se fazer, já que muitas vezes o agronegócio pode ser confundido como uma ferramenta benéfi ca para a população, quando na verdade é uma experiência econômica que visa o lucro para poucos, não o bem-estar do povo.

Levando essa premissa em consideração, conseguimos constatar que o que o Governo tem grande infl uência na concentração de terras no país, visto que faz questão de alavancar o agronegócio e, consequentemente, o latifúndio. A partir dessa constatação, o que se segue por consequência e culpa do agronegócio também é, diretamente, culpa do Governo Federal, dos setores de administração pública, Senado e Câmaras que apoiam essa atividade e ainda buscam subterfúgios para incentivá-la.

Como afi rmado anteriormente, o agronegócio é, nada mais que, a capitalização da agropecuária: o fi m é o lucro, o acúmulo de capital. Segundo Karl Marx, em O Capital: “A acumulação do capital não faz mais que reproduzir as relações do capital numa escala mais alargada, com mais capitalistas ou maiores capitalistas por um lado, mais assalariados por outro (...) A acumulação do capital é, então, ao mesmo tempo, aumento do proletariado”, além disso, é constatado pelo mesmo teórico uma das principais características de um sistema capitalista: a luta de classes e, consequentemente (tanto o primeiro

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quanto o segundo), a exploração do que menos possui pelo que mais possui acúmulo de bens.

Tudo isso nos leva a uma pergunta: se o agronegócio nada mais é do que o refl exo do capitalismo ainda maior na economia do campo, e temos constatado que em um regime capitalista tem de haver um explorado, quem são os explorados pelo agronegócio?

Para exportar em grande escala são necessárias grandes terras (como já dito anteriormente), além de grandes safras, adquiridas, muito provavelmente através da monocultura.

O Brasil é o maior produtor mundial de laranja, café, carne bovina e açúcar. Ao menos três dessas maiores produções, mesmo com a mecanização, ainda necessitam e utilizam de mão de obra para fazer a colheita: a laranja, o café e a cana-de-açúcar. Essa mão de obra utilizada, em grande parte dessas grandes empresas rurais, é fornecida por “boias frias” ou trabalhadores do campo que não possuem terras ou precisam de retorno fi nanceiro para se sustentar. São pessoas humildes que são exploradas pelos detentores dos grandes negócios agropecuários para parte do trabalho de produção e colheita.

Já foram denunciadas inúmeras vezes as precariedades oferecidas para estes trabalhadores, bem como denúncias apontando propriedades onde essa mão de obra era explorada em regime de semiescravidão, senão escravidão propriamente dita.

O fato é que os indígenas também são utilizados como mão de obra nesses estabelecimentos rurais. No sul de Mato Grosso do Sul, como já mostrado inclusive através do documentário “à Sombra de Um Delírio Verde” os indígenas são a mão de obra principal dos canaviais ou nas usinas de álcool, incluindo menores de idade.

O local onde existe o maior índice de confl itos por terras no estado de MS é a região de Dourados. Os índios reocuparam suas áreas tradicionais, e mesmo assim são obrigados a submeter-se ao trabalho nas usinas, já que essa região é rodeada de monocultivos, nos quais são utilizadas grandes quantidades de insumos químicos, prejudicando assim a produção de alimentos pela contaminação do solo e as pragas que assolam o ambiente pelo desequilíbrio ambiental gerado pelas plantações.

Além de estarem sem suas terras, e por responsabilidade, em grande parte, da concentração de terras, os indígenas ainda são explorados por esses mesmos latifúndios situados, muitas vezes, em seus próprios territórios sagrados. Esses motivos tornam o agronegócio também um dos fatores de opressão e fonte de violência contra os povos tradicionais e os indígenas.

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7 O genocídio indígena em mato grosso do sul

Genocídio é o assassinato deliberado de pessoas motivado por diferenças étnicas, nacionais, raciais, religiosas e políticas. Por genocídio, então, compreendemos como crimes que têm como objetivo a eliminação da existência física de certos grupos motivados pelos motivos anteriores. é crime contra os Direitos Humanos. A Lei nº 2.889, de 1 de outubro de 1956, defi ne o crime de genocídio e dá suas penas. é considerado como genocídio:

“Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:a) Matar membros do grupo;b) Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;c) Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;d) Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;e) Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;”

A realidade envolvida no caso dos assassinatos e demais violências ocorridas contra os indígenas são consideradas, então, genocídios. Confi ra abaixo, um apanhado de relatórios do CiMi que revelam o quadro de assassinatos de indígenas no Brasil e comparam com a incidência em Mato Grosso do Sul, mostrando a preocupante realidade do estado:

Assassinatos de indígenas no Brasil e em Mato Grosso do Sul – 2003 a 2010

ANOS 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TOTAL

Mato Grosso do Sul 13 18 29 28 53 42 33 34 250

Restante do Brasil 29 19 14 30 39 18 27 26 202

Total no Brasil 42 37 43 58 92 60 60 60 452MS (% de assassinatos) 33% 48,6% 67,4% 48% 58% 70% 54% 57% 55,5%

Fonte: Relatórios de violência contra os Povos indígenas no Brasil – CiMi – 2003 – 2010

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Tentativas de assassinatos de indígenas no Brasil e em Mato Grosso do Sul – 2003 a 2010

ANOS 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TOTALMato Grosso do Sul 2 28 51 27 37 19 9 17 190

Restante do brasil 20 23 11 6 12 20 6 13 111

Total no brasil 22 51 62 33 49 39 15 30 301

Fonte: Relatórios de violência contra os Povos indígenas no Brasil – CiMi – 2003 - 2010 Ainda segundo o CiMi, entre 2003 e 2011, foram assassinados 503

indígenas no país, sendo destes 503, 279 pertencentes à etnia Guarani-Kaiowá. Só em 2013, já foram dois indígenas Guarani-Kaiowá divulgados mortos, um jovem, que foi baleado por jagunços, e uma criança de 4 anos, que foi atropelada nas proximidades do acampamento de resistência no qual sua comunidade se encontra.

O histórico de assassinatos cometidos contra indígenas é grande e tem como fator principal, na grande maioria das vezes, o confl ito de terras que existe na região. Nos assassinatos ou ameaças de assassinatos cometidos contra lideranças indígenas (os caciques) das comunidades, aldeias ou acampamentos, todos são ligados diretamente com fazendeiros da região.

O assassinato direto, cometido à sangue frio ou à queima roupa não é a principal forma de morte que ocorre por consequência da opressão sofrida por esses povos. Também é grande o número de suicídios cometidos pelos próprios indígenas, na grande maioria jovens. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos.

O quadro de suicídios mais preocupante do estado vem da Reserva indígena de Dourados, que abriga um grandioso número de indígenas, de etnias diferentes, no mesmo espaço. O fato é uma falta de respeito ao ser humano, pois só na Reserva de Dourados são com aproximadamente 3554 hectares e cerca de 15 mil indígenas, ou seja, possui densidade demográfi ca de 0,3 hectare por habitante, algo como 3×10-3 km² por indígena. Além dessa superpopulação, o fato da reserva abrigar mais de uma etnia é uma falta de respeito com as diferenças culturais que existem entre elas, no caso as etnias Ñandevá e Kaiowá, dos troncos Guarani, Terena e Aruak convivem no mesmo espaço.

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A problemática envolvendo a reserva indígena de dourados vai além do espaço e da convivência e passa também pelas condições que são oferecidas no espaço, que são subumanas. Há falta de emprego, renda e lazer, altos índice de analfabetismo, drogas, alcoolismo, dentre outras problemáticas que se acentuaram cada vez mais nestes últimos anos. Os indígenas fi cam sem perspectivas de vida e dependentes de programas sociais do governo. Essa falta de perspectiva acaba sendo uma das grandes causas do número elevado de suicídios na reserva. Os confl itos de cultura, associados a todas essas problemáticas sociais, também colabora para o alto índice de assassinatos entre os indígenas.

quadro comparativo: iraque x Reserva indígena de Dourados

Iraque Reserva Indígena de Dourados93 assassinatos para cada 100 mil pessoas 145 assassinatos para cada 100 mil pessoas

Fonte: Relatórios de violência contra os Povos indígenas no Brasil – CiMi – 2003 - 2010

quadro comparativo: Média Nacional x Reserva Indígena de DouradosObs.: 495% maior que a média nacional

Média Nacional Reserva Indígena de Dourados

24,5 assassinatos para cada 100 mil pessoas 145 assassinatos para cada 100 mil pessoasFonte: Relatórios de violência contra os Povos indígenas no Brasil – CiMi – 2003 – 2010

Os dados tornam o Mato Grosso do Sul o estado com maior incidência de assassinatos contra indígenas no país, e com uma preocupante média em comparativo com a média nacional. isso levando em consideração que os relatórios apresentados foram até o ano de 2010 e que depois disso, vários assassinatos e mortes desses povos aconteceram e acontecem.

Levando em consideração esse deplorável quadro, e que a maioria das vítimas são indígenas Guarani-Kaiowá, torna-se claro as condições de emergência na qual essa etnia, em específi co se encontra no estado. Essa mesma condição é assistida pelo Poder Público há anos e as medidas tomadas para reverter o quadro são mínimas.

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8 violência sofrida contra a mulher

Mato Grosso do Sul conta ainda com outra realidade preocupante: o índice alto de violência contra a mulher com o qual o estado se encontra. N a audiência pública da CPMi, ocorrida em 13 de novembro de 2012 em Campo Grande, foi levantada a preocupação quanto à situação da mulher indígena no estado. Foi apontado que os poderes públicos não dão atenção aos indígenas e às indígenas no estado e há carência de políticas específi cas para as mulheres indígenas.

Várias irregularidades e falta de respeito com a mulher indígena foram colocadas pela CPMi, inclusive o reencaminhamento das vítimas indígenas de violência contra a mulher para o lado de seus companheiros e o não registro de vários casos, uma indiferença com o abuso sofrido por essas mulheres.

Além de conter um baixo número de delegacias especializadas no atendimento à mulher, as mesmas delegacias ignoram estarem situadas no estado onde se concentra a segunda maior população indígena do país com a falta de oferecimento de intérpretes dos idiomas específi cos das etnias indígenas, necessário para poder dar um melhor atendimento.

Vários casos envolvendo a violência contra a mulher indígena indignam no estado. O último caso de repercussão, mostra como a opressão contra os indígenas e a questão agrária também podem contribuir com as mais diversas esferas de violência: uma Guarani-Kaiowá foi ameaçada, sequestrada e estuprada por 8 pistoleiros, enquanto se dirigia do Tekohá Pyelito Kue para o centro urbano de iguatemi. Além de ser altamente violentada, ela foi coagida a responder perguntas sobre a comunidade e foi abandonada na estrada pelos jagunços.

O Tekohá citado foi o mesmo que deu origem à grande repercussão internacional envolvendo uma carta dos moradores da comunidade que relatavam a decisão (atualmente, já revogada) da Justiça Federal de reintegração de posse do local e diziam que só sairiam de lá mortos.

A CPMi da Violência Contra a Mulher chamou atenção especial para a indiferença com que, muitas vezes, é tratado o assunto no Mato Grosso do Sul, mais em especial ainda quando a violência é contra a mulher indígena. Não há existência de secretaria específi ca da mulher, apenas uma subsecretaria. E não há articulação dessa subsecretaria com a FUNAi.

Essa indiferença e falta de preocupação com a questão da violência contra a mulher indígena é mais uma forma de violência contra esses povos com mais um fator causador adicionado: o machismo impregnado na sociedade.

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9 Conclusão

Fica claro e demonstrado, através dos fatos narrados e das estatísticas, uma série de inconstitucionalidades e desrespeitos aos indígenas; sobretudo, ao ser humano. O genocídio em Mato Grosso do Sul é uma triste realidade, sob o véu da mídia corporativa que pouco cobre os verdadeiros fatos, alimentando o esquecimento da população em geral.

O problema histórico de desrespeito à cultura e os interesses do poderoso agronegócio que vigoram no país e no estado, parecem cegar as autoridades, permitindo que aconteçam as diversas formas de violência contra um povo oprimido e que não tem seus direitos respeitados. Direitos esses garantidos há muito, leis no curso do história do Brasil.

A omissão do Estado e Poderes em geral quanto às diversas problemáticas sociais envolvendo os povos de origem indígena no país é preocupante e tem como consequência o aumento constante nas violências sofridas por esses povos. Os Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul continuam, cotidianamente, lutando contra um sistema opressor e excludente, que os coloca de lado e arranca a perspectiva e a própria vida de seu povo, que tanto resiste em busca, somente, de uma pequena parcela de um território que foi tomado há centenas de anos de seus ancestrais.

Negar a terra para um povo que tem ela como parte de si é negar as origens, a cultura e a história deste mesmo povo. A luta Guarani-Kaiowá não cessará, tanto quanto as armas de fogo do agronegócio e do latifúndio cessarão facilmente. O papel de proteção a esses povos precisa ser exercido com responsabilidade, os órgãos públicos responsáveis precisam tomar medidas apropriadas para garantir qualidade de vida e segurança para esses povos, bem como as terras que eles demandam.

bibliografia

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BRASiL Constituição da República Federativa do Federal

BRASiL. CONGRESSO NACiONAL. CPMi da Violência Contra a Mulher

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BRASiL . LEi Nº 6.001 - DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973- Estatuto do índio Ministério do Desenvolvimento Agrário

MARX, Karl. “O Capital”. Marx. São Paulo: Edipro. 2008.

Vídeo-documentário: “à Sombra de um delírio verde”

http://lindomarpadilha.blogspot.com.br/2013/03/deputado-ruralista-defende-pec-215.html (acesso 23/03/2013)

http://www.fpagropecuaria.com.br/ (acesso 22/03/2013)

http://pib.Socioambiental.org (acesso 22 e 23/03/2013)

http://campanhaguarani.org (acesso 24/03/2013)

http://funai.gov.br (acesso 19/03/2013)

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EDuCAÇÃO POPuLAR E ASSESSORIA juRÍDICA uNIVERSITáRIA POPuLAR: INSTRuMENTO DE ACESSO

à juSTIÇA e emancipação sociaL

Larissa Maura Pereira Freitas1

Sumário: 1. introdução, 2. Vertentes Históricas, 3.Contribuição doutrinária de Paulo Freire, 4. Emancipação e transformação através das AJUP’s, 5. Conclusão.

Resumo: O presente artigo visa analisar a prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP) e a Educação Popular no que tange seu envolvimento com as causas e movimentos sociais. A Educação Popular teve sua origem no calor das lutas populares na América Latina, com respaldo teórico na ideia de uma inserção do jurista na sociedade, compreendendo um direito aplicado, crítico e progressista. Essa ideia advém da Teoria Crítica do Direito e do Direito Alternativo, também difundida por Paulo Freire, o mais célebre educador brasileiro. Hoje essa prática aparece no contexto social como uma cultura jurídica crítica, servindo de ponte para o diálogo com os movimentos populares. Essas práticas vêm propor uma visão do direito além do ‘’formalismo legal’’ com o qual estamos acostumados, atuando com as minorias nas lutas pelos seus direitos de igualdade e direitos políticos enquanto cidadãos, de forma que, tornam-se um instrumento de emancipação social. Nesse contexto, a AJUP viabiliza e materializa o acesso à justiça previsto na Constituição Federal, tendo que, para que haja a concretização desse termo, faz-se necessário um bom conhecimento das normas jurídicas que protegem e garantem esses direitos, a partir da proposição da educação como ferramenta de acesso à justiça, auxiliando no processo de instrução e organização popular, deixando teoria e prática conectadas e servindo como um elo de ligação entre a universidade e a comunidade, de forma que a população, além de conhecer seus direitos, almeje-os, fazendo com que o acesso à justiça seja desmitificado, tornando a sociedade mais esclarecida e crítica. A partir dessa prática os universitários e militantes passam a ter uma visão mais crítica da sociedade, formando profissionais mais humanistas atuando como instrumentos na provocação do judiciário a fim de materializar e efetivar os Direitos Sociais.Palavras-chave: educação popular; assessoria jurídica popular universitária; acesso à justiça.

Abstract: This article aims to analyze the practice of university legal counsel popular (AJUP) and popular education regarding their involvement with causes and social movements. Popular education had its origin in the heat of popular struggles in Latin America, with its theoretical support in the idea of an insertion of the lawyer in society, comprising an applied, critical and progressive law. This idea comes from the Critical Theory of Law and the Alternative Law, also disseminated by Paulo Freire, the most famous Brazilian educator. Today this practice appears in the social context as a critical legal culture, serving as a bridge for dialogue with popular movements. These practices come to propose a vision of the law beyond the “legal formalism” with which we are used to, working with minorities in their struggles for equal rights and political rights as citizens, so that they become an instrument of social emancipation. in this context, AJUP materializes and enables the access to justice guaranteed in the Federal Constitution, and for the realization of this term to happen, it is necessary a good knowledge of legal norms that protect and safeguard those rights, from the proposition of education as a tool for access to justice, aiding in the process of popular instruction and organization, leaving practice and theory 1 Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Email: [email protected].

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connected, and serving as link between the university and the community, so that the people, beyond learning about their rights, crave them, demystifying the access to justice, making society more enlightened and critical. From this practice academics and activists now have a more critical view of society, forming more humanistic professionals who serve as instruments in defi ance of the judiciary in order to materialize and eff ectuate the Social RightsKeywords: popular education; popular university legal counsel, access to justice.

1 Introdução

A Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP) surgiu na década de 90, com fundamentos teóricos no Direito Alternativo e na Teoria Crítica do Direito. Essa prática se fortaleceu em meio aos movimentos sociais de 1990, com embasamentos teóricos no educador Paulo Freire.

Conforme essa prática, o direito deve ser visto como instrumento de luta social, atuando no compromisso de integração entre o judiciário e a população, sobretudo, as menos favorecidas. Nesse prisma, faz-se necessário uma técnica de atuação jurisdicional capaz de ir além da aplicação lógico-formal da simples adequação dos fatos às normas.

A essência dessa atividade está no compromisso com a promoção dos Direitos Humanos, pela efetivação dos direitos já normatizados ou pela consolidação dos novos direitos decorrentes das lutas populares, trabalhando com as ações coletivas em uma perspectiva emancipatória.

2 Vertentes históricas

A Assessoria Jurídica Popular Universitária Popular é uma prática jurídica de estudantes organizados em projeto de extensão, que surgiu a partir da década de 90, com inspirações neomarxistas e referências teóricas como a Teoria Crítica do Direito e o Direito Alternativo. Essa prática apresenta uma visão pluralista do direito que vai além do direito tradicional vigente, consolidando-se como uma perspectiva emancipatória e transformadora da sociedade.

No âmbito da Teoria Crítica do Direito, entende-se que o jurista precisa se inserir na sociedade para entender que o direito vai além daquele originado no Estado, identifi cando o bem comum, objetivando assim, um direito que não se apresente como mero artifício das classes dominantes.

Conforme doutrina de Antonio Carlos Wolkmer:

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A teoria crítica surge como uma teoria mais dinâmica e abragente, superando os limites naturais da teorias tradicionais, pois não se atém apenas a descrever o estabelecido ou a contemplar equidistantemente os fenômenos sociais e reais. Seus pressupostos de racionalidade são ‘’críticos’’ na medida em que articulam, dialeticamente, a ‘’teoria’’ com a ‘’práxis’’, o pensamento crítico revolucionário com a ação estratégica.(WOLKMER, 2001, p.7).

Na mesma vertente, o Direito Alternativo representa a ideia de um direito aplicado em função do ‘’justo’’, ou seja, do interesse social e da conscientização do jurista acerca da hermenêutica das normas capazes de consubtanciar determinado ordenamento jurídico estatal. Por Amilton Bueno de Carvalho temos que:

Alguns dizem que o Direito Alternativo caracteriza-se pela negativa de lei. E tal não corresponde à realidade. A lei escrita é conquista da humanidade e não se vislumbra a possibilidade de vida em sociedade sem normas (sejam elas escritas ou não). A alternatividade luta para que surjam leis efetivamente justas, comprometidas com os interesses da maioria da população, ou seja, realmente democráticas. E busca instrumental interpretativo que siga a mesma diretiva. O que a alternatividade não reconhece é a identifi cação do direito tão-só com a lei, nem que apenas o Estado produzo direito, o que é diverso da negativa à lei. [...] O que a alternatividade busca é o novo paradigma, com a superação do legalismo estreito, mas tendo como limites (ou conteúdo racional) os princípios gerais do direito, que são conquistas da humanidade. (CARVALHO, 1993, p.10-11).

Assim como referidas teorias, a AJUP se contrapõe ao modelo tradicional, liberal e individualista de estudar e operar o direito e defende tal posicionamento exercendo sua função através de questionamento de dogmas jurídicos, entendendo a necessidade de ir além do estudo sistemático das normas e desempenhar papel crítico e progressista na sociedade, comprometida com a transformação social.

Esse papel progressista jamais foi cogitado nas antigas Escolas Jurídicas, de maneira que a refl exão sociológico-jurídica esteve por muito tempo sob a visão de um direito conservador, que desempenharia um papel de suporte e legitimação da infraestrutura econômica.

No Brasil, o direito sempre esteve a serviço da dominação e legitimação da opressão, por diversos motivos que inclui desde uma postura conservadora dos juristas, englobando a doutrina jurídica fortemente infl uenciada pelo positivismo.

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Em uma realidade de restrição de direitos às minorias, juntamente aos círculos de cultura de 1960 que a AJUP começou a se desenvolver como uma experiência de extensão, ligada a ideia de Núcleo de Prática Jurídica assistencialista, em que os estudantes trabalhavam para a população em casos individuais e de forma gratuita.

O movimento estudantil em 1980 inicia uma mobilização de valorização da responsabilidade social da educação e da extensão voltada à comunidade, com a emergência de novos conceitos relacionados aos movimentos sociais, verifi cando a necessidade de transpor o assistencialismo, colocando a extensão como instrumento indispensável na união da teoria/ prática e comunidade/universidade.

Com a nova conjuntura democrática do Brasil em 1990, os projetos da AJUP foram impulsionados e os estudantes organizavam-se em projetos de extensão baseados em Direitos Humanos, com os estudos voltados para as obras de Paulo Freire, valendo-se da Educação Popular para a integração com a comunidade.

A AJUP então se consolida como atividade de extensão, superando o assistencialismo que somente contribuía para ‘’maquiar’’ o desnivelamento social. é necessário pensar que a normatização de falsos mecanismos de acesso à justiça não contribuem para a efetivação dos direitos. A mudança começa na evolução do pensamento da população, que adquire a criticidade e assim questiona e confronta o ordenamento vigente.

Em uma sociedade pluralista, todos aqueles que vivem a Constituição são legítimos intérpretes desta, devendo haver uma organização social em busca da consolidação e efetivação de direitos, a caminho de uma sociedade igualitária.

3 Contribuição doutrinária de Paulo Freire

O renomado educador Paulo Freire sempre se apresentou como um grande impulsionador dos movimentos de inclusão, contribuindo de forma incontestável para os conceitos de educação e extensão. Conforme sua teoria, o pensamento crítico é a porta de acesso para a inserção político-social.

Para Paulo Freire, a sociedade deve participar ativamente no processo de popularização do direito, analisando a conjuntura da situação social, passando de um pensamento ingênuo para o crítico.

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A teoria freiriana aprimorou a concepção de educação das classes populares, que vinha se desenvolvendo no âmbito do movimento de luta e resistência dos oprimidos. A prática educativa é ‘’gnosiológica, política, ética e estética’’, com o papel da educação de contribuir para a elucidação da realidade de engajamento transformadores da ação política.

O educador defende a efetiva interação entre a universidade e a sociedade, por meio de um diálogo aberto entre elas, visando as parcerias com os movimentos sociais e constantemente questionando a que interesses a educação está servindo.

Nesta perspectiva, a universidade e a sociedade devem caminhar juntas, em coordenações de ações. Essa integração poderá suscitar novas questões teoricas e extensionista, objetivando a consolidação da universidade pública, autônoma e comprometida com a sociedade.

O diálogo freiriano traz a ideia de práticas de extensão, apresentando seu momento inicial como autoritário de uma universidade que até então desconhecia a cultura e o saber popular, se apresentando como detentora de um suposto saber absoluto.

A universidade que desconhece a cultura da população a quem se destina é manipuladora. A extensão visa uma relação onde todos possam ser sujeitos atuantes da sociedade, rompendo a visão de uma prática pontual e descompromissada com os menos favorecidos, visando uma perspectiva politizada e ideológica.

Para o educador, a atividade de extensão não pode se resumir a uma atividade assistencialista, ela precisa superar a função de assistência para atingir uma função transformadora.

Sob essa ótica da extensão universitária é que se tem a constituição da identidade das AJUP’s, motivada pela metodologia da pesquisa-ação. A atividade de extensão precisa atingir uma função emancipadora, de modo que a educação não seja mais estática acepção de conteúdo, passando a ser tarefa de práxis, de libertação constante. Neste sentido:

A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo, com o que e em que se acham (...) a sua forma de atuar, sendo esta ou aquela, é função em grande parte, de como se percebam no mundo. (FREiRE, 1987, p. 72).

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Freire opõe-se ao positivismo e pragmatismo educacional, na medida em que busca uma educação como prática de liberdade, proporcionando aos indivíduos uma compreensão crítica que possibilite a práxis transformadora da realidade política, social e cultural. Através dessas práticas emancipadoras, a população terá maior criticidade para buscar uma experiência democrática.

A práxis é a refl exão e ação dos homens sobre o mundo visando a transformação. Sem o engajamento social é impossível avançar na superação da condição de oprimido.

Para Paulo Freire, tudo parte da conscientização, sendo ela a refl exão da real condição da existência. Somente através da atitude refl exiva é possível atingir e conhecer a realidade de forma a produzir mudanças. Porém, a verdadeira conscientização é feita em conjunto, onde ambos são sujeitos no ato.

A educação problematizadora vai além do conceito de transferir conhecimentos, ela cria a possibilidade de construção do saber. é mobilização, organização e capacidade das classes populares. O educador e educando se conhecem um ao outro, estabelecendo uma formação própria de suas realidades, interesses e saberes.

Posto isso, podemos afi rmar que para o educador, o conhecimento não é construído pelos participantes da sociedade, é transmitido, e só se materializa como tal, na medida em que for apreendido e aplicado à realidade concreta.

4 Emancipação e transformação social através das AjuP’s

O direito não é absolutamente objetivo, o fenômeno jurídico não se esgota na lei, ele está sendo construído diariamente pelo povo, através dos costumes e lutas populares. Por essa razão, devem ser interpretados e atualizados em conformidade com os interesses da sociedade.

Esse fenômeno compreende a força viva, a luta dos povos, dos movimentos sociais, das classes oprimidas. Transcende a ideia de um conjunto sistemático de normas coercitivas e atinge a visão do direito que transforma e é transformado pela sociedade, podendo ser usado tanto como instrumento de liberdade quanto de opressão.

Cada situação é capaz de produzir ciência e direitos, compreendendo algo que está sendo construído diariamente, como um conjunto de fatos e ações. As experiências de movimentos sociais, das lutas travadas na sociedade em razão de abuso e discriminação, são convertidas em discursos de reivindicação que muitas vezes atribuem concretude ao direito.

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Cotidianamente nos deparamos com novos sujeitos de direitos que o atual sistema normativo, burocrata e formalista não consegue identifi car e normatizar. Faz-se necessário o surgimento de novas técnicas de interpretação com operadores de direitos com um engajamento sociopolítico e capazes de compreender as necessidades desses sujeitos emergentes.

Esse novo direito que se anuncia muitas vezes não se restringe a uma simples "nova interpretação" do direito, necessitando, porém, de um efetivo novo direito, que os legitime e proteja. Conforme fundamenta Noleto:

(...) uma compreensão do fenômeno jurídico para além de suas enunciações legais, reencontrando sua matriz política e social, para entende-lo como processo histórico de legítima organização social da liberdade [...] Somente em tal perspectiva não legalista é que se pode pensar a experiência social instaurada pelos novos movimentos sociais como momentos instituintes dos novos direitos, derivados das lutas empreendidas por estes para a superação das circunstâncias injustas do seu cotidiano de produção e reprodução social, que se interpõem aos novos padrões de uma sociabilidade que deseja libertar-se de tais condicionamentos. (NOLETO, 1998, p 14).

A atuação jurídica tradicional é formada por uma linguagem técnica e erudita, o que resulta em uma exclusão e distanciamento da população do direito e do efetivo conhecimento das normas. A linguagem jurídica precisa anteder a uma das funções da linguagem: a interação com a realidade.

é preciso admitir que o direito, assim como a linguagem, tem uma evolução involuntária e inconsciente que se processa de dentro para fora. As normas jurídicas são submetidas a essa evolução de modo uniforme pela qual se realiza os atos jurídicos individuais e todas as abstrações, consequências e regras que levam ao conhecimento do direito, para chegar a fi ns analíticos e trazer o saber.

A materialização do direito não pode ser interrompida por uma linguagem rebuscada. A linguagem, juntamente com a sociedade e o direito, deve constituir um caráter de unicidade. é necessário facilitar o diálogo entre o conhecimento científi co e o popular, de modo que a população supere sua consciência ingênua, transformando a população em sujeitos críticos, conhecedores dos seus direitos e das formas de reivindicação.

Talvez, em nenhuma época como hoje, o direito tenha que ser identifi cado como a própria defesa da civilização. Fala-se muito em Direitos Humanos. Dessa forma, os operadores do direito têm missão específi ca de atuar para que a

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sociedade se desenvolva em termos de justiça, sendo assegurado a cada homem o que de direito lhes é devido.

A partir da “desmistifi cação” do conhecimento jurídico, a população tem consciência de quem tem a responsabilidade de efetivar os Direitos Sociais, bem como os mecanismos e instrumentos disponibilizados pelo ordenamento jurídico para sua efetivação. Dessa forma, um povo que conhece seus direitos é capaz de lutar por eles.

O sujeito coletivo de direito na transformação social que:

(...) constituindo-se na própria experiência de suas lutas, através das quais faz o seu aparecimento no espaço público da sociedade, o povo consciente descobre-se sujeito da história na medida em que desvenda a sua própria identidade, isto é, a sua capacidade de auto-organização e de autodeterminação, condição que permite aos individuos, no interior dos movimentos sociais, decidir e agir em conjunto, defender seus interesses, expressar suas vontades e assim conquistar lugares novos, desenvolver uma linguagem comum, defi nir valores, em suma criar direitos. (SOUSA JUNiOR, 2002, p.59).

Posto isto, verifi ca-se que é imprescindível um apoio jurídico popular às lutas desses novos sujeitos coletivos de direito, bem como é indispensável o papel desses novos operadores na consolidação de um direito emancipatório e transformador, na missão específi ca de atuar para que a sociedade se desenvolva em termos de justiça.

Já desmitifi cada a ideia de um direito inteiramente positivista e apenas pacifi cador de confl itos, pode-se o adentrar especifi camente na Assessoria Jurídica Universitária Popular, sob a ótica de um direito ativo e modifi cador.

Historicamente o direito apresenta a forma mais especifi ca de equilibrar a sociedade, refl etindo um caráter conservador, que muitas vezes atuou para que as classes dominantes se legitimassem no poder.

A crítica ao ensino jurídico tradicional, voltado ao estudo dos códigos, se solidifi ca em uma análise mais profunda de interação entre realidade normativa e o meio social através da interdisciplinaridade, revela uma função do direito na sociedade, de maneira que esta também o modifi que.

A AJUP atua no sentido de, preliminarmente provocar a população para, através desta, alcançar o judiciário, instigando-o a reconhecer novos direitos para então se posicionar frente às normas demandas. Essa prática assume a visão de um direito que pode ser libertário quando utilizado pelos setores excluídos

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em suas lutas, para que assim, a sociedade se transforme paulatinamente em um ambiente mais justo e democrático.

Um dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1998 é o acesso à justiça, seja acesso ao Judiciário, seja aos direitos humanos, estejam ou não contemplados pelo ordenamento jurídico vigente, a verdade é que este se revela como um dos mais importantes direitos fundamentais.

Um desafi o para os sistemas jurídicos modernos é a criação de mecanismos que diminuam os obstáculos que difi cultam ou impossibilitam a efetivação de referido direito. é gritante a presença de barreiras econômicas, sociais, pessoais e jurídicas que contribuem para que não haja esse acesso à justiça, e havendo, não se verifi que de forma igualitária. As barreiras econômicas, por exemplo, se encontram nos altos custos do processo, intimidando, sobretudo, a classe baixa renda, que muitas vezes desistem de procurar a proteção judiciária, pois não podem pagar as despesas ou por não ser satisfatória a relação entre o custo do processo e o benefício esperado.

Esse direito deve ser entendido de forma ampla e democrática, passando a signifi car mais do que o acesso formal ao judiciário, ou seja, mais do que o direito de peticionar, compreendendo o direito a um processo jurisdicional justo e efetivo, que garanta a todos a tutela de direitos. Dessa forma, este não pode ser compreendido dissociado da realidade social.

A garantia de um simples direito de peticionar não é sufi ciente para assegurar uma ordem jurídica justa. Um acesso à efetividade dos Direitos Fundamentais é impedido pelo desconhecimento dos direitos pela sociedade. Quando se pensa na questão desses direitos, é indispensável a refl exão sobre a conscientização do indivíduo enquanto sujeito de direitos. é preciso ter em vista que alguém que não conhece os direitos que tem não poderá buscar a sua efetivação ou proteção. A parcela da população que tem diariamente seus direitos violados é justamente aquela que menos tem conhecimento sobre eles.

A consolidação do acesso à justiça advém de uma educação libertária que possui um compromisso com a transformação social e política, de modo que uma ação educativa jamais poderá ser neutra, devendo ser sempre ativa e modifi cadora. Dessa forma, a AJUP se posiciona ao lado dos setores oprimidos, que são os protagonistas dessa transformação social que virá com o tempo, instrumentalizando as ações desses grupos socais a partir de uma educação pautada em Direitos Humanos. Propõe o ‘’Direito da Libertação’’, ao novo direito que se constrói na periferia do mundo, a partir da luta dos oprimidos.

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Direito é processo, dentro do processo histórico, não é coisa feita, perfeita e acabada: é aquele vir a ser que se enriquece nos movimentos das classes e grupos ascendentes e que defi nha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas [...] O espaço da construção e reconstrução do direito inserido na sociedade, na atuação dos movimentos sociais e nos espaços públicos onde os cidadãos vivenciam a sua autolegislação é na rua, portanto, somente este direito pode ser reconhecido como tal. [...] Com vistas a este aperfeiçoamento do direito, que passa a ser compreendido como instrumento de transformação social, deve-se buscar a superação do “senso comum teórico dos juristas” que traduz o conjunto heterogêneo de hábitos semiológicos de referência, contemporaneamente representado por uma ideologia das formas jurídicas. (LyRA FiLHO, 1982, p.86).

Uma visão do direito restrito ao ângulo dogmático-normativo, leva o jurista ao legalismo de raciocínio lógico e interpretação doutrinária e literal. O direito como ciência dogmática se afasta da realidade sociais, chocando-se muitas vezes com a justiça.

O objetivo desta atividade é a “popularização” do direito e do ensino jurídico. Visa estimular a comunidade para a auto-organização e exercício efetivo da cidadania. O compromisso na luta pela emancipação dos excluídos presente em toda a atuação jurídica produz a humanização por meio do impacto que a realidade produz no embasamento da teoria.

A hermenêutica constitucional deve apresentar-se como instrumento de progresso social, de modo que, quando o interprete deparar-se com normas constitucionais que vão contra a consolidação dos Direitos Humanos, este as interprete com bases principiológicas resguardando tais direitos. A exemplo temos a concentração da propriedade privada sobre a terra, pautados nos direitos patrimoniais em confl ito com o direito à moradia, onde, na maioria das vezes, a solução é a criminalização dos oprimidos que buscam seu sustento.

A atuação de atividades como a AJUP proporciona à população a possibilidade de alcançar alguns direitos que sempre estiveram distantes. Tem como principio norteador aqueles inseridos na Constituição Federal, visando a efetiva consolidação destes. Somente um Estado Democrático de Direito, que possua como sustentáculo os Direitos Fundamentais e princípios como igualdade e liberdade, apresenta as reais condições de construir uma sociedade justa e igual, com verdadeiro acesso à justiça.

Sob esse prisma, são também princípios da AJUP, a defesa da Carta Magna e os valores maiores nelas inseridos, como a democracia, a soberania, o objetivo

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da República Federativa do Brasil, a cidadania ativa, o pluralismo, a supremacia dos direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana. Logo, é através dos referidos princípios que o reconhecimento, valorização e emancipação dos diversos sujeitos individuais e coletivos encontram embasamento teórico.

A AJUP compreende uma intervenção não só jurídica, mas também de orientação, organização e ação política, fornecendo suporte ao processo constitutivo e organizacional dos movimentos sociais. O trabalho ligado diretamente ao Poder Judiciário tem instigado os juízes a refl etirem frente às novas demandas populares, a fi m de construir a consolidação da nova Hermenêutica Constitucional.

No âmbito do Poder Legislativo, temos o exemplo de algumas mudanças que ocorreram frente às manifestações populares. A inclusão do Direito à moradia no rol dos Direitos Sociais fundamentais por meio da Emenda Constitucional nº 26/2000 é um exemplo de concretização diante da reivindicação popular. Outro exemplo é a lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, resultado de manifestações por parte dos movimentos de Direitos Humanos.

Na esfera profi ssional ressalta-se o esforço de advogados militantes e movimentos populares, com compromisso político e capazes de analisar a sociedade a partir do olhar daqueles que nela convivem, que procuram brechas, artigos, parágrafos que possam benefi ciar os menos favorecidos, a fi m de encontrar sentido na sua luta.

é necessário o envolvimento de profi ssionais conjuntamente com a população no processo de conscientização, objetivando um espaço de troca, de amadurecimento das lutas sociais, da solução de problemas e construção da cidadania.

Uma nova metodologia de educação é capaz de gerar mudanças coletivas, progredindo para uma aplicabilidade dos Direitos Humanos. Há a necessidade de formar operadores do direito com uma missão efetivamente social, e com uma verdadeira noção da realidade social brasileira, de forma de que universidade seja um espaço que contribui para a transformação dos acadêmicos, bem como da sociedade como um todo, instrumentalizando a modifi cação do status quo.

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5 Conclusão

O direito precisa estar em sintonia com os anseios sociais, atuando de forma que possa garantir a efetivação dos Direitos Fundamentais e Princípios Constitucionais.

Para uma ação transformadora não basta operar o direito apenas na tradicional forma positivista, é necessário um conhecimento amplo e plural da sociedade, atuando juntamente com os movimentos sociais em busca da efetivação de direitos, sobretudo, do acesso à justiça.

Através da atuação universitária e militante, provoca-se o judiciário a operar de modo que efetive a aplicação dos direitos, “estimulando” o protagonismo do juiz a fomentar as transformações sociais, para que se tenha efetiva vigência e aplicação de tudo aquilo que, na Constituição, possa eventualmente prestar-se ao reconhecimento dos direitos sociais, garantidores de uma sociedade justa e igualitária.

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ASSéDIO MORAL NAS RELAÇõES DE TRAbALhO: uM PRObLEMA DE GêNERO

Layla Gonçalves Mendes de Carvalho Barbosa1*

Sumário: 1 introdução; 2 A divisão histórica do trabalho; 3 Assédio Moral; 3.1 Consequências do assédio moral no contrato de trabalho; 4 Assédio Moral decorrente da diferença de gênero; 4.1 O gênero enquanto fator determinante para a prática de assédio moral; 5 Considerações Finais. Referências.

Resumo: No presente trabalho busca-se analisar o fenômeno do assédio moral relacionado com o preconceito de gênero existente no ambiente de trabalho. Tem-se o objetivo principal de analisar as mudanças no trabalho da mulher e pesquisar se ela é a maior vítima de assédio moral. Analisam-se também os reflexos desta prática na vida dos agentes, no contrato de trabalho e para a sociedade, enfocando os inúmeros danos psicológicos e, por vezes, inclusive físicos que sofrem as assediadas.Palavras-chave: Direito do Trabalho. Assédio Moral. Mulher. Gênero.

Abstract: in this paper seeks to analyze the phenomenon of bullying related to gender biasexists in the workplace.  it has been  the main objective  of analyzing  the changes inwomen’s work  and research if it is the biggest victim of bullying. it examines also theconsequences of this practice in the lives of agents, the contract of employment and society, focusing on the many psychological and sometimes even physical suffering the harassment.Keywords: Labor Law. Moral harassment. Women. Gender.

1 Introdução

A partir de estudos sobre questões de gênero, passou-se a perceber as dificuldades que as mulheres encontravam no mundo do trabalho.

A discriminação, fruto de uma construção histórica, acabou colocando a mulher em situação de desigualdade com o homem. A maior dificuldade de inserir-se no mercado trabalhista, o recebimento de menores salários, e, principalmente, a violência sofrida são aspectos que demonstram tal desigualdade.

A divisão do trabalho entre homens e mulheres praticamente em todos os períodos da história se desenvolveu no sentido de ser a mulher responsável tão-somente pelos afazeres domésticos e o homem enquanto provedor da casa e da família.

1 Graduada em Direito pela Unidade de Ensino Superior – Dom Bosco e Pós Graduanda em Direito do Trabalho pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus, e-mail: [email protected]

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Hoje em dia, alguns obstáculos já foram ultrapassados e é possível perceber que os dados brasileiros já são bem favoráveis às mulheres se comparados aos da América Latina, por exemplo.

Foi a partir da percepção da desigualdade no tratamento entre homens e mulheres no meio trabalhista que surgiu a inquietação acerca de um tema comum hoje no mercado de trabalho, o assédio moral.

Esta prática visa excluir aquele empregado que é diferente, frágil e indesejado pela empresa.

Por este motivo, levantou-se o problema que indaga se a questão de gênero seria um fator relevante para esta prática, tendo em vista a histórica discriminação sofrida pela mulher e certas condições que lhe são peculiares como ser mãe e dona de casa.

Primeiramente, diante das observações, a hipótese formulada foi de que a trabalhadora é a maior vítima de assédio moral, por fatores que incluem a discriminação e a mentalidade do empregador de que o custo com as empregadas é maior do que com os homens.

Para isso, usou-se o método hipotético-dedutivo em que a hipótese foi submetida a diversos testes para, que se pudesse concluir pela sua ratifi cação ou não.

O trabalho foi construído de forma que os elementos principais fossem devidamente pormenorizados, e por este motivo, o primeiro capítulo trata do trabalho da mulher e o segundo do assédio moral, para que no último capítulo estes dois elementos pudessem dialogar a fi m de analisar se a hipótese poderia ser ratifi cada.

O tema escolhido se traduz no desejo de entender e divulgar o assédio moral contra as mulheres no ambiente de trabalho, e possui relevância social e jurídica, tendo em vista este ser um problema comum no meio trabalhista e que causa danos, inclusive físicos, às mulheres assediadas, além de ter importantes refl exos no contrato de trabalho.

2 A divisão histórica do trabalho

Os estudos apontam que o trabalho entre homens e mulheres era dividido conforme cada sociedade, atribuindo a cada um funções e tarefas distintas.

Essa divisão costuma ser chamada (Kergoat, 2009) de divisão sexual do trabalho e consiste na forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo, sendo historicamente adaptada a cada sociedade.

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O que se tem como característica basilar é a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, e simultaneamente a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc.) (Kergoat, 2009, p. 67).

Na pré-história é possível ver que esta divisão já se baseava, sobretudo, na idade e no sexo. Muraro (2000) aponta que “no início o homem não conhecia o seu papel na procriação, o que o levava a pensar que a mulher era fecundada pelos deuses. isso o deixava numa condição de inferioridade”.

Por esse motivo, o papel da mulher era direcionado ao âmbito doméstico, como o cuidado com os fi lhos, a família e a gestação, enquanto o do homem não era necessariamente delimitado. Assim, ele começou a demarcar suas tarefas fora do âmbito doméstico, exercendo atividades que exigiam maior força física como a pesca, a caça e a obtenção de alimentos (CANTELLi, 2007, p. 44).

Porém, mesmo após o homem ter percebido que o seu papel também era importante na procriação, essa forma de divisão do trabalho permaneceu, e acompanhou a história do trabalho da mulher (CANTELLi, 2007, p. 44).

Registre-se, ainda, que as condições inerentes às mulheres tais como: gravidez, parto e menstruação representavam um grande fardo para elas, que tinham a sua força e capacidade de trabalho diminuídas.

Beauvoir (1980, p. 80) acentua:

[...] as amazonas mutilavam os seios, o que signifi cava que, pelo menos durante o período de sua vida guerreira, recusavam a maternidade. Quanto às mulheres normais, a gravidez, o parto, a menstruação diminuíam sua capacidade de trabalho e condenavam-nas a longos períodos de impotência. Para se defender contra os inimigos, para assegurar sua manutenção e a da prole, elas necessitavam da proteção dos guerreiros, e do produto da caça, da pesca a que se dedicavam os homens; como não havia evidentemente nenhum controle dos nascimentos, como a Natureza não assegura à mulher períodos de esterilidade como às demais fêmeas de mamíferos, as maternidades repetidas deviam absorver a maior parte de suas forças e de seu tempo.

Desta forma, é possível perceber que na pré-história as mulheres se encontravam em relativa igualdade com os homens que não exerciam tanto domínio sobre aquelas.

Na civilização grega havia variação do papel da mulher na sociedade em relação ao trabalho dispensado. Essa diferenciação ocorria, basicamente,

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em função da localização, do nível de desenvolvimento e dos objetivos da sociedade (CANTELLi, 2007, p. 54).

Em Atenas, por exemplo, as mulheres casadas viviam limitadas ao âmbito doméstico e mesmo nele o acesso feminino era restrito. Nas casas mais abastadas, uma aérea específi ca lhes era reservada (MURARO, 2000, p. 89).

As mulheres de Atenas encontravam-se em posição de inferioridade, fi cando restritas aos limites da própria casa e não aparecendo em público com os maridos durante os séculos V e iV a.C, idade Áurea em Atenas (CANTELLi, 2007, p. 57).

Essa condição imposta à mulher de Atenas foi muito diferente da situação das mulheres de Esparta, onde os costumes militares e a atividade guerreira eram predominantes.

Ao contrário do que acontecia em Atenas, havia certa igualdade de tratamento entre homens e mulheres, tanto que as crianças recebiam a mesma educação, principalmente em relação às atividades guerreiras (BURNS, 1970, p. 160).

Em Roma, sociedade tipicamente agrária, tanto as mulheres quanto os homens ocupavam-se do trabalho produtivo e recebiam a mesma educação (CANTELLi, 2007, p. 58).

As mulheres eram livres, não fi cavam reclusas, mas isso não signifi ca que sua posição era de igualdade de direitos com os homens. Diz Macedo (1992, p. 10) que entre os romanos prevaleceu “a idéia da inferioridade natural das mulheres [...]” como na maioria das civilizações da Antiguidade.

Coulanges (2000, p. 87) deixa clara a posição subalterna da mulher:

Filha está sujeita ao pai; morto o pai, a seus irmãos e aos seus agnados; casada está sob a tutela do marido; morto o marido, não volta para sua própria família porque renunciou a esta para sempre pelo casamento sagrado; a viúva fi ca submetida à tutela dos agnados de seu marido, isto é, à tutela de seus próprios fi lhos, se os tem; ou, na falta destes, à dos parentes mais próximos do marido. Seu marido tem tanta autoridade sobre ela que pode, antes de morrer, designar-lhe tutor, e ele mesmo escolher-lhe um segundo marido.

Naquela época, em função da abundante mão-de-obra escrava, as mulheres tinham menos ocupações. à medida que as classes dominantes se tornavam mais ricas, as mulheres menos trabalhavam e mais luxo queriam conforme leciona Muraro (2000).

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Por outro lado, as mulheres de renda menor “trabalhavam na confecção de trajes para o exército. Uma das manufaturas mais famosas foi a das Gálias. Essas trabalhadoras eram chamadas Servas do Fisco” (CARLOS, 2004, p. 74). Neste contexto surgiu a primeira forma de contratação do trabalhador livre – locatio conductio – que deu origem ao atual contrato de trabalho.

Tendo em vista a situação da mulher de inferioridade, esse fato – a criação do locatio conductio -, que representava uma verdadeira revolução jurídica, não teve repercussão no tocante às mulheres (CANTELLi, 2007, p. 60).

Na idade Média a vida econômica era predominantemente agrária. às mulheres cabia o serviço de tecelagem, o cuidado com os animais e a plantação de hortaliças, enquanto os homens se encarregavam das guerras e da atividade agrícola mais pesada (CANTELLi, 2007, p. 65).

O trabalho das mulheres da idade Média era realizado no recinto próprio do lar ou em pequenas unidades de produção de cunho geralmente artesanal. Carlos (2004) destaca que “a mulher jamais chegava a mestre, permanecendo a vida inteira uma aprendiz espoliada, quer na ofi cina da corporação, pelos mestres, quer no ateliê dos conventos, pelos abades, quer no lar, pelo marido (CARLOS, 2004, p. 74).

De qualquer forma, os homens ainda permaneciam muito tempo ocupados com as guerras e por esse motivo era inevitável que as mulheres fossem inseridas nas atividades fora do âmbito doméstico.

Por esse motivo também, as mulheres começaram a receber melhor educação do que seus companheiros e, consequentemente, a ter mais infl uência na cultura, como foi o caso de Cristina de Pisan, uma das poetisas mais célebres do período medieval (CANTELLi, 2007, p. 67).

A partir de 1300, com o declínio do feudalismo, a infl uência das civilizações bizantina e sarracena, o desenvolvimento do comércio e o crescimento das cidades, começa a surgir um novo modo de pensar, sentir e viver, baseado em valores como o otimismo e o individualismo: é a Renascença, nome que se refere ao renascimento da arte, cultura, ciência, religião, fi losofi a, literatura, política e educação (CANTELLi, 2007, p. 74).

Para Delgado (2005, p. 85) somente no fi nal da idade Média e a partir da idade Moderna, com a i Revolução industrial é que começou a surgir o trabalho juridicamente livre e subordinado.

Avançando no contexto histórico, é importante destacar o início da i Revolução industrial quando inúmeros fatores que marcaram esta mudança – o surgimento do trabalho juridicamente livre e subordinado - antes que ela fosse desencadeada em 1760 na inglaterra.

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Diante da Revolução Comercial, da Reforma Protestante de Martinho Lutero, da Reforma Católica, entre outros acontecimentos da época, foi possível que ocorresse a acumulação primitiva de capital, o aparecimento das máquinas, o desenvolvimento dos meios de transporte, do sistema fabril e de comunicação, fatos estes importantíssimos para o início da Revolução (CANTELLi, 2007, p. 79).

Todas essas mudanças refl etiram-se na vida do trabalhador, da mulher e do próprio trabalho. A industrialização da época acabou consolidando o sistema capitalista e o que se tinha era um patrão detentor dos bens de produção e trabalhadores vendendo sua força de trabalho por um salário (CANTELLi, 2007, p. 79).

As máquinas utilizadas nas fábricas eram de fácil manuseio e não exigiam o uso de muita força física. Por esse motivo, crianças e mulheres passaram a ser mais utilizadas no trabalho. A mão de obra feminina era utilizada até mesmo em detrimento da masculina, pois elas recebiam salários menores, aumentavam o lucro do empresário e eram mais dóceis (CARLOS, 2004, p. 80).

O ambiente das fábricas era insalubre, sem oferecer qualquer segurança ou conforto, mínimo que fosse, aos trabalhadores. Os acidentes eram constantes e as epidemias cresciam. As trabalhadoras eram submetidas a condições subumanas de trabalho e sofriam com o espancamento e o assédio sexual dos patrões. A exploração das empregadas era tanta que a mortalidade feminina aumentou consideravelmente na época:

[...] a tendência a contrair tuberculose era quase quatro vezes maior entre as operarias do que entre a população normal. isto porque, além de ganhar um terço do que ganhavam os homens, as mulheres praticamente davam a comida que recebiam para os homens e as crianças. As estatísticas da época mostram que a tendência a receber comida em ultimo lugar era a da mulher trabalhadora. E as mulheres não só trabalhavam nas fábricas como também nas minas de carvão [...] Muitas mulheres grávidas pariam ali mesmo [...] (MURARO, 2000, p. 129).

é importante destacar que nesse momento da história não se falava em doença ocupacional, pois os trabalhadores não podiam se queixar das condições de trabalho impostas, pois tinham medo da perda do emprego, da vergonha de ser demitido e ainda da vergonha de não poder sustentar a família (OLiVEiRA, 1999, p. 58).

isso mudou quando os operários passaram a ser reunidos pelos patrões para que fossem melhor controlados. Ocorre que, contraditoriamente, os

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empregados unidos criaram um sentimento de solidariedade uns com os outros na tentativa de lutar por melhores condições de vida e trabalho (CANTELLi, 2007, p. 82).

Em 1848 Marx e Engels publicaram o Manifesto Comunista que condenava a apropriação da força do trabalhador pelo capitalista e pregava a união dos proletários de todos os países contra a burguesia. No entanto, na obra em questão não era possível ver uma posição específi ca dos autores sobre a exploração da mão-de-obra feminina. Muraro comenta que:

Marx não consegue ver a especifi cidade da opressão da mulher, e nas poucas vezes em que se refere à maior miséria das operárias (levando-as inclusive à prostituição), culpa-as inconscientemente por seus maus princípios morais; ele que não vê como elas têm menos chance de entrar no mercado de trabalho e, uma vez o conseguindo, o fato de ganharem menos do que o homem as obrigava a sofrerem mais vexames por parte dos patrões e dos companheiros de trabalho (MURARO, 2000, p. 131).

Nos Estados Unidos, mais especifi camente, em Seneca Fall, no período em que o Manifesto Comunista era apresentado ao mundo, acontecia o primeiro encontro feminista. Nesta ocasião, as mulheres reivindicavam seus direitos, principalmente pela democratização do sistema eleitoral (CANTELLi, 2007, p. 85).

Na Europa, para lutar por melhores condições de trabalho, os operários começaram a se organizar em sindicatos, momento este em que o Estado teve que assumir a função organizadora para equilibrar a produção e o consumo e acabou por regulamentar algumas questões referentes ao trabalho (ViANNA, 2000, p. 41).

Diante de todo o cenário de miséria da classe operária, o Papa Leão Xii, conhecido como “o Papa dos Trabalhadores” lançou a “Encíclica Rerum Novarum” que chegou a ser chamada de “Manifesto Comunista da igreja”.

De modo geral, afi rma ser vergonhoso e desumano usar os homens como instrumentos de obtenção de lucro; repudia a exploração dos pobres; condena o trabalho infantil; dispõe sobre a necessidade de contrato de trabalho entre empregados e empregadores; defende a proteção do Estado em relação aos operários e estabelece os deveres dos trabalhadores e patrões (CANTELLi, 2007, p. 86).

Além disso, a Rerum Novarum deixa bem claro o posicionamento da igreja Católica em relação à mulher e à sua função na família e na sociedade:

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cabe-lhe educar os fi lhos, cuidar da família e dos afazeres domésticos (CANTELLi, 2007, p. 86).

Nos dias atuais a participação feminina no mercado de trabalho brasileiro possui números consideravelmente superiores se comparados a alguns outros países na América Latina.

Um relatório produzido pela OiT (2004, p. 7) exemplifi ca: “a taxa de participação das mulheres no Brasil é de 55%, uma cifra consideravelmente superior à média latino-americana (45%), mas ainda inferior aos níveis de muitos países desenvolvidos [...] e quase 30 pontos porcentuais inferior à taxa de participação masculina (86%)”.

Analisar os fatores que infl uenciam nestes números é esmiuçar um histórico de uma classe discriminada, que passa a se inserir em um meio machista mesmo diante de todas as difi culdades que a lógica patriarcalista impõe.

São apontados três fatores principais para esse aumento de presença feminina: “a necessidade de complementar ou mesmo prover a renda familiar, a abertura dos postos de trabalho considerados mais ‘adequados’ para as mulheres e, naturalmente, uma mudança do papel da mulher na sociedade” (SEADE, 2001, p.3) .

Esta inserção ocorre, mas ainda de forma lenta e segmentada. Pode-se perceber que ainda existem inúmeras funções que são tachadas como femininas ou masculinas. é o que ocorre com a construção civil, por exemplo, que é ocupada basicamente por homens. Por outro lado, o emprego doméstico é quase exclusivamente feminino. Este fenômeno é conhecido como “gueto ocupacional”.

Estudos apontam que as mulheres possuem maior difi culdade de promoção a cargos mais altos que os homens. Nos setores e atividades nas quais a presença de mão-de-obra feminina é maior, os cargos hierarquicamente mais altos ainda são ocupados preferencialmente por homens (yANNOULAS, 2003, p. 40).

Nesta seara, a OiT elaborou um relatório em que asseverou que um dos fatores determinantes da desigualdade de remuneração deve-se à idéia de que a contratação das mulheres implica aumento de custos. Custos estes devidos a uma série de fatores, tais como: licença-maternidade, maior nível de absenteísmo, pouca disponibilidade para cumprir horas extras, menor compromisso e interesse para com o trabalho e mobilidade mais restrita que a dos homens (HiRATA, 2002, p. 345).

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No entanto, esta concepção é falaciosa, segundo estudos feitos na Argentina, Brasil, Chile, México Uruguai, pois fi cou comprovado que o custo adicional de contratação dos trabalhos de uma mulher - incluindo os gastos de proteção à maternidade e os cuidados com as crianças - corresponde a menos de 2% dos ganhos brutos mensais das mulheres empregadas. isso porque os gastos relativos à maternidade não correm por conta do empregador, mas são cobertos pelos fundos de seguridade social e, nesse caso, a parte que cabe ao empregador não tem relação com a quantidade nem com a idade das empregadas mulheres (HiRATA, 2002, p. 345).

Hirata (2007, p. 24) alega que nos anos 1990 alguns aspectos da inserção das mulheres no mercado de trabalho, em relação com a dos homens, melhoraram e outras pioraram. Assim, a desigualdade entre homens e mulheres na América Latina se acentuou em alguns aspectos e diminuiu em outros.

As principais mudanças positivas observadas foram de que as mulheres na década de 90 absorveram a maior parte dos empregos gerados, diminuiu a margem de informalidade , a margem de participação entre homens e mulheres, e também a margem de renda (HiRATA, 2007, p. 25).

No entanto, observou-se que aumentou o índice de desemprego entre as mulheres, em especial as mais pobres, que o número de mulheres empregadas no setor informal é superior ao de homens e que o total de mulheres que não contam com nenhum tipo de proteção social também é maior que o dos homens (HiRATA, 2007, p. 28).

Pode-se afi rmar, portanto, que, apesar das mudanças no mundo do trabalho nas ultimas décadas, não houve uma diminuição signifi cativa das desigualdades entre homens e mulheres: “o aumento da participação das mulheres nos mercados de trabalho está mais vinculado à expansão das atividades “femininas” do que ao acesso às atividades “masculinas”, as discriminações vertical e horizontal dos mercados de trabalho se reproduzem ; a brecha salarial não foi reduzida ( é maior quanto maior é o nível de instrução); a taxa de desemprego feminina continua sendo superior à dos homens; e aumenta a presença das mulheres nas ocupações mais precárias. (yANNOULAS, 2003, p. 46)

Todos esses indicadores comprovam a existência de uma discriminação real no mercado de trabalho que ocorre em vários níveis, setores e através de várias atitudes, inclusive através da prática de assédio moral, que será mais bem compreendido no próximo capítulo.

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4 Assédio moral

O assédio moral, assim como o assédio sexual, a lesão à intimidade, à imagem e à honra no trabalho são espécies de um gênero denominado medidas de constrangimento no ambiente de trabalho. Tais medidas possuem a única fi nalidade de causar danos à moral e à dignidade do trabalhador e, no limite, forçar que a vítima peça demissão (NASCiMENTO, 2011, p.13).

No caso do assédio moral, ele é visto por Hádasa Ferreira como:

[...] um dos problemas mais sérios enfrentados pela sociedade atual e é fruto de um conjunto de fatores, tais como a globalização econômica predatória, vislumbradora somente da produção e do lucro, e a atual organização do trabalho, marcada pela competição agressiva e pela opressão dos trabalhadores através do medo e da ameaça. Esse constante clima de terror psicológico gera, na vítima assediada moralmente, um sofrimento capaz de atingir diretamente sua saúde física e psicológica criando uma predisposição ao desenvolvimento de doenças crônicas, cujos resultados a acompanharão por toda vida (FERREiRA, 2004, p. 37).

Os estudiosos ainda não conseguiram chegar a um denominador comum para defi nir o fenômeno aqui tratado, tendo em vista que ele pode ser abordado de diferentes maneiras, de acordo com o ponto de vista adotado e interessa a especialistas de várias áreas que utilizam linguagens e modos de pensar diferentes.  

Hirigoyen acentua que é necessário ter cautela com a mistura de conceitos diferentes, para que não se englobe no conceito de assédio moral todas as outras práticas que não passam de um mal-estar mais geral não caracterizando, no sentido clínico do termo, a prática do assédio moral (HiRiGOyEN, 2010, p. 16).

Ao tratar do assédio em ambiente de trabalho, pode-se dizer que, apesar de ser um fenômeno tão antigo quanto a origem do trabalho, ele só ganhou notoriedade no começo da década de 90, principalmente nos países anglo-saxões e nos países nórdicos onde o pesquisador em psicologia do trabalho, Heinz Leynmann fez um levantamento em diferentes grupos profi ssionais e constatou o que denominou de “psicoterror” (HiRiGOyEN, 2009, p. 65).

Em síntese, Heinz Leymann constatou que: “terror psicológico ou mobbing no trabalho consiste em comunicação antiética e hostil direcionada de modo sistemático por um ou mais indivíduos, principalmente a um indivíduo,

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o qual, em decorrência, é colocado em uma posição de isolamento e assim mantido por meio dessa prática continuada”. Ressalta-se que, para Leyman, o agredido tem que encontrar-se nesta situação de assédio por pelo menos seis meses para que seja confi gurado o assédio moral (NASCiMENTO, 2011, p.17).

Desta forma, o assédio moral no trabalho acaba se tornando um meio de impor a lógica de um grupo na empresa que tem difi culdade em suportar funcionários diferentes ou atípicos. Visando se livrar destes indivíduos diferentes e criar um grupo homogêneo “esmaga-se aquele que não está no ponto, aniquila-se qualquer especifi cidade, seja de caráter, comportamento, sexo, raça...” (HiRyGOyEN, 2010, p.39).

Hirigoyen afi rma ainda que “formatar os indivíduos é uma maneira de controlá-los. Eles devem se submeter para melhorar os desempenhos e a rentabilidade” (HiRyGOyEN, 2010, p.39).

A doutrina pátria defi ne o assédio como uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica, prolongada e repetitivamente, expondo o trabalhador a situações de humilhação e constrangimento capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tem por efeito excluir o empregado de sua função ou deteriorar o ambiente de trabalho (NASCiMENTO, 2011, p. 14).

No Brasil, anota-se a defi nição de Margarida Barreto que entende que o assédio moral compreende:

Atos e comportamentos desumanos [...] contra uma ou mais pessoas,visando desqualifi cá-la e desmoralizá-la profi ssionalmente, forçando-a a desistir do emprego. Ferem a dignidade e identidade do outro, invadindo frequentemente a intimidade e privacidade, desestabilizando emocionalmente a relação do assediado com o ambiente de trabalho e a organização (BARRETO, 1998, p. 13).

Seja qual for a defi nição adotada, tem-se que o assédio moral em cada ato tomado de forma isolado não chega a ser verdadeiramente grave, mas o efeito cumulativo dos micro-traumatismos freqüentes e repetidos constituem a agressão (HiRiGOyEN, 2009, p. 17).

é necessário destacar que, apesar de a forma de assédio mais conhecida ser aquela praticada por um superior hierárquico, é possível também que este seja praticado por outro agente. Assim, é possível identifi car duas formas principais de assédio moral, quais sejam o vertical e o horizontal (HiRiGOyEN, 2009, p. 65).

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O assédio moral vertical caracteriza-se pela subordinação e posição hierárquica em que se encontram agressor e agredido. Desta forma, pode ser ele ascendente ou descendente.

O assédio vertical descendente ocorre quando um superior hierárquico assedia seu subordinado, enquanto o ascendente é praticado pelo subordinado contra um superior. Apesar de o primeiro ser mais comum não se pode descartar a ocorrência do segundo tipo que costuma ocorrer, por exemplo, quando o superior hierárquico é novo no trabalho, e ainda é muito comum no serviço público (NASCiMENTO, 2011, p.15).

Nesta hipótese a ação necessariamente não precisa ser defl agrada pelo chefe, mas pode este contar com a cumplicidade dos colegas de trabalho da vítima e por meio destes a violência pode ser desencadeada (GUEDES, 2008, p. 40).

Quanto ao assédio moral vertical ascendente é possível perceber que ele é uma espécie bem mais rara, mas que também ocorre conforme exemplifi cado acima.

No primeiro caso de mobbing publicado por Leymann, intitulado “O Caso de Eva”, ele trata de uma hipótese de mobbing ascendente, onde é descrito o martírio de uma supervisora da cozinha da cantina de um complexo prisional na Suécia. (GUEDES, 2008, p. 40).

Por outro lado, existe o assédio moral horizontal que se caracteriza quando os sujeitos do ato encontram-se na mesma posição hierárquica (NASCiMENTO, 2011, p.16).

Constitui uma perseguição desencadeada pelos colegas de trabalho. Entre as causas mais comuns encontram-se a competitividade, preconceito racial, xenofobia, razoes políticas ou religiosas, a preferência pessoal do chefe – porventura gozada pela vitima -, opção sexual ou o fato da vítima se comportar de maneira diferente do conjunto de colegas (GUEDES, 2008, p. 40).

4.1 Consequências do assédio moral no contrato de trabalho

Como já demonstrado, o assédio moral provoca efeitos nocivos na vida do trabalhador, que perde o interesse no trabalho, tem queda na produtividade e sofre com as ofensas corriqueiras sofridas.

Por este motivo, o empregado pode rescindir o contrato por justa causa do empregador, fundamentado no artigo 483 da CLT. Esta rescisão, segundo

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Maranhão (2003, p. 565) é o ato que manifesta a dissolução do contrato de trabalho pelo empregado em virtude da inexecução contratual por parte do empregador.

A rescisão do contrato de trabalho, por assédio moral pode ser tipifi cada no artigo 483 da CLT tendo em vista que várias alíneas dizem respeito a práticas do assédio moral, tais como: se for exigido do empregado serviço contrario aos bons costumes ou alheios ao contrato de trabalho (alínea a), se for tratado por seu chefe com rigor excessivo ( alínea b), se for praticado contra ele ou pessoas de sua família ato lesivo à honra ou à boa fama (alínea e), se o empregado for ofendido fi sicamente (alínea f), ou se seu trabalho for reduzido signifi cativamente (alínea g) (MARQUES JUNiOR, 2009, p. 50).

A jurisprudência já vem consolidando-se no sentido de o assédio moral acarretar a rescisão indireta do trabalhador, como é possível perceber:

ASSéDiO MORAL – RESOLUçãO DO CONTRATO DE TRABALHO POR JUSTA CAUSA DO EMPREGADOR – iNDENiZAçãO POR DANO MORAL – CABiMENTO. O assédio moral, como forma de degradação deliberada das condições de trabalho por parte do empregador em relação ao obreiro, consubstanciado em atos e atitudes negativas ocasionando prejuízos emocionais para o trabalhador, face à exposição ao ridículo, humilhação e descrédito em relação aos demais trabalhadores, constitui ofensa à dignidade da pessoa humana e quebra do caráter sinalagmático do Contrato de Trabalho. Autorizando, por conseguinte, a resolução da relação empregatícia por justa causa do empregador, ensejando, inclusive, indenização por dano moral. (TRT – 15ª Região – 01711-2011-11-15-00-0 – RO 20.534/2001, Relª: Juíza Mariane Khayat F. do Nascimento. DJ 21.03.2003.)

Diante desta situação, o obreiro poderá postular uma indenização, tendo em vista este ser um direito fundamental de todo e qualquer cidadão, inclusive do trabalhador, nos termos do art. 5º, X, da CF/88 (NASCiMENTO, 2011, p. 156).

Essa indenização não possui o condão de reparar as lesões originadas pelo assédio moral. Segundo Nascimento: “é mais correto falar no direito a indenização como forma de atenuação do sofrimento causado, pois após a prática do assédio moral é impossível retornar ao status quo que existia antes da lesão” (NASCiMENTO, 2011, p. 156).

Portanto, para Marques Junior (2009, p. 552), embora o dano moral esteja localizado no campo da responsabilidade civil é no Direito do Trabalho

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que essa matéria deverá alcançar o seu máximo desenvolvimento. isso porque é competência da Justiça do Trabalho processar e julgar as ações que visem à reparação do dano moral e material, decorrentes de relação de trabalho nos termos do artigo 114, Vi, da Constituição Federal.

Além da Constituição Federal, que prevê as diretrizes gerais para a tutela da dignidade humana, no plano infraconstitucional há a Lei 9.029/1995 fornecendo importantes mecanismos para a proteção do ser humano nas relações de trabalho.

Consoante o parágrafo primeiro da supracitada Lei:

Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXiii do art. 7º da Constituição Federal.

Logo em seguida, o artigo 4º da mesma lei determina que o rompimento

da relação de trabalho por ato discriminatório faculta ao empregado optar entre a readmissão com ressarcimento integral de todo período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais; ou a percepção em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida de juros legais .

Cabe destacar que para se constatar o dano, em primeiro lugar deve-se individualizar o agente causador, se ele agiu isoladamente ou junto com outrem. Após, é necessário que se defi na quais foram os danos causados, se foram exclusivamente morais, ou materiais também. Por fi m, é mister constatar se houve ato ilícito e se tal ato decorreu de dolo ou culpa do agente (MARQUES JUNiOR, 2009, p. 54).

Nas esferas civil e trabalhista, responsabiliza-se o empregador objetivamente. Assim, presume-se a culpa do empregador pelos atos praticados pelos seus prepostos, independente da existência ou não da intenção do empregador em causar dano, bastando, para tanto, a presença da culpa in eligendo, em razão da má escolha do preposto pela empresa, e da culpa in vigilando, decorrente da desatenção a procedimentos ou falta de orientação sobre as formas de agir. Esta presunção de culpa do empregador está consolidada na Súmula 341 do STF: “é presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.”

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5 Assédio moral decorrente da diferença de gênero

Antes de analisar de que forma o gênero pode infl uenciar na prática de assédio moral contra a mulher é necessário entender o que esta categoria signifi ca.

A palavra “gênero” provém do latim genus e refere-se ao modo como as diferentes culturas interpretam e organizam a diferença sexual existente entre homens e mulheres (yANNOULAS, 2002, p. 9).

implica dizer que as categorias que defi nem homem e mulher vão além daquelas determinadas biologicamente que distinguem o macho da fêmea. Assim, esta diferenciação é socialmente defi nida, e por este motivo está sujeita a variações conforme cada sociedade (NOVAiS, 2005, p. 43).

Apenas compreendendo esse signifi cado é possível perceber que as diferenças entre homens e mulheres encontram-se fora do seu corpo físico ou de características anatômicas. Elas se situam na produção cultural de cada sociedade em determinada época e espaço geográfi co. Dessa forma, tanto a mulher quanto o homem desempenham papéis de acordo com as regras que regem a sociedade em que se encontram (iZUMiNO, 1998, p. 86).

As relações de gênero expressam relações de poder, para Joan Scott. Ocorre que o poder encontra-se distribuído entre os sexos, restando à mulher uma posição subalterna nesta relação social.

5.1 O gênero enquanto fator determinante para a prática de assédio moral

Defi nido o conceito de gênero, cabe analisar se este é um fator determinante para a prática de assédio moral.

Ratifi ca-se que, conforme relatado no capítulo anterior, o assédio moral no trabalho gera a precarização da atividade laboral e constitui um tipo de violência, que tem repercussões associadas a uma verdadeira doença do trabalho (ROBAZi, 2010, p. 10).

A prática do assédio moral no trabalho visa extinguir aquele empregado mais frágil, que carrega consigo condições especiais. Tendo em vista as diferenças sociais e físicas impostas às mulheres e aos homens, tais como a necessidade que a mulher tem de se afastar com mais freqüência do serviço em função da maternidade, esta é vítima do mobbing com maior freqüência.

Em uma pesquisa elaborada na França por Hirigoyen, psicóloga do trabalho, (2010) foi possível identifi car uma evidente diferença entre as vítimas

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de assédio moral. Concluiu-se que 70% das vítimas são mulheres contra 30% de homens.

Estes dados coincidem com os dados do Dr. Chiaroni (HiRiGOyEN, 2010, p. 99) em que 73% das vítimas eram mulheres, mas diferem dos resultados obtidos por Béatrice Seiler e a associação Mots pour Maux au Travail, em Estrasburgo que constatou 43,5% de mulheres assediadas contra 56,5% de homens.

Heinz Leymann, na Suécia constatou que das vítimas de assédio moral, 55% são mulheres e 45% são homens; enquanto S. Einarsen e A. Skogstad realizaram a pesquisa em 1996 na Noruega, momento em que chegaram às estatísticas de 55,6% de mulheres contra 43,9% de homens (HiRiGOyEN, 2010, p.99 ).

Percebe-se que as diferenças percentuais não se afastam signifi cativamente daquelas apresentadas pela autora francesa, sendo necessário observar cada contexto sociocultural em que as pesquisas foram elaboradas.

Enquanto na América Latina, na itália e na Espanha reina uma atmosfera machista, a ponto de muitos homens considerarem que cada mulher que trabalha é culpada por um desemprego entre os homens, os países escandinavos e a Alemanha demonstram enorme preocupação com a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres (HiRiGOyEN, 2010, p.99).

A este contexto, une-se o fato de as mulheres terem maior facilidade de exprimirem os sentimentos do que os homens, principalmente diante de um psiquiatra.

HiRiGOyEN (2010, p. 100) enfatiza que:

As mulheres não somente são mais frequentemente vítimas, como também são assediadas de forma diferente dos homens: as conotações machistas ou sexistas estão muitas vezes presentes. O assédio sexual não é mais do que uma evolução do assédio moral. Nos dois casos, trata-se de humilhar o outro e considerá-lo um objeto à disposição. Para humilhar, visa-se o íntimo. O que há de mais íntimo que o sexo? Para que uma agressão persista, é preciso que ela seja quase imperceptível. O que existe de mais difícil de ser manifestado do que uma atmosfera sexista ou hostil? Aliás, no plano jurídico, graças às jurisprudências, o assédio sexual engloba por certo a chantagem para o emprego, mas também o clima de trabalho “sexista, hostil, ofensivo.”

Ainda na França, a doutora em psicologia, Marie-Granier Pezé, em 2004, relatou um caso de uma de suas pacientes em que é evidente o sofrimento da

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mulher vítima do assédio moral no trabalho e que permite perceber, também, de que forma essa agressão acontece e quais os prováveis efeitos ela. A paciente francesa foi denominada “Delphes”, uma engenheira, única mulher trabalhando em uma empresa de engenharia.

Pezé (2004) afi rma que a situação em que a paciente se encontrava era gravíssima e estava psicologicamente e fi sicamente esgotada. Delphes era uma mulher adulta que não pesava mais que 45 kg, já não menstruava mais desde a época em que as agressões começaram, e que havia se apagado para conseguir manter-se viva, e no emprego.

Desta forma, Delphes não partilhava sua feminilidade, e nem podia. Em um meio machista, ela só usava calças, abdicou das bijuterias e usava o cabelo da forma mais neutra possível (PEZé, 2004). A psicóloga afi rma que o meio do trabalho clama por uma virilidade, e reprime a sexualidade da trabalhadora.

No Brasil, as pesquisas feitas apontam também para uma evidente distinção das vítimas de assédio moral. As questões de gênero acabam sendo catalisadoras do assédio moral, em função da idéia corriqueira de que as mulheres são “problemas” para os empregadores empreendendo um verdadeiro obstáculo para o crescimento da empresa.

Assim, com intuito de livrar-se dessa situação, muitos empregadores passam a agir com violência contra as mulheres, “impondo metas impossíveis a serem alcançadas, além de humilhá-las quando não atingem os objetivos impostos pela empresa, ou simplesmente ironizando quando se ausentam para tratar de enfermidades dos fi lhos menores ou outras condições fi siológicas peculiares” (RUFiNO, 2010, p.2).

Ressalta-se que o empregador também sofre com as conseqüências da prática de assédio moral. A mulher, vítima do assédio, perde a concentração no trabalho, aumentando, inclusive, o risco de ocorrerem acidentes gerando o dever de indenizar. Ademais, caso seja rescindido o contrato, por justa causa do empregador, há ainda todas as verbas trabalhistas rescisórias a serem pagas que encarecem consideravelmente o término contratual (RUFiNO, 2010, p.4).

Barreto (2000) na sua dissertação retratou as humilhações sofridas pelos empregadores de 97 empresas fi liadas ao Sindicato dos Trabalhadores das indústrias químicas, farmacêuticas, plásticas e similares, em São Paulo e Região.

A autora concluiu que, dos 2072 entrevistados, 42% alegaram ter passado por algum tipo de constrangimento no trabalho, sendo um total de 494 mulheres e 376 homens, concluindo que as mulheres sofrem com maior

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freqüência situações de humilhação e constrangimento nas empresas em que trabalham.

RODRiGUES (2007, p. 10) empreendeu pesquisa no ano de 2005, com a categoria bancária, em que participaram 2609 trabalhadores (correspondente a 0,66% da população total de bancários), de 27 bancos diferentes, de 25 Estados da Federação (incluindo o Distrito Federal) e concluiu que a média de relatos de assédio moral contra as mulheres foi mais elevada do que a dos homens.

O pesquisador relata ainda que os casos relatados com maior freqüência pelas bancárias foram aqueles em que o chefe não lhes passa nenhuma ocupação ou tarefa e as que o chefe insinua e faz correr o boato de que a trabalhadora está com problemas mentais ou familiares (RODRiGUES, 2007, p. 12).

Uma conclusão interessante tomada por Rodrigues foi a de que além de serem as bancárias as maiores vítimas elas também são em maior número de agressoras. Esse fato não é identifi cado apenas quando o agressor é identifi cado como sendo superior hierárquico, porém em todos os outros casos as mulheres são apontadas com maior freqüência como agressoras (RODRiGUES, 2007, p. 15).

é importante observar que os estudos apontam que o assédio moral torna-se um problema tão grave para as assediadas que, não raramente, chega ao nível somático, gerando inúmeros problemas como amenorréia, enxaquecas, metrorragias, e, em casos mais graves, câncer do colo, do ovário, do útero e até mesmo o suicídio.

Na jurisprudência brasileira é possível perceber que a demanda feminina em ações que envolvam assédio moral é signifi cativa. Também, percebe-se que a jurisprudência acabou consolidando três aspectos necessários para que o assédio moral restasse caracterizado, quais sejam: a conduta abusiva, a repetição dos ataques e o dano, como é possível perceber no seguinte julgado:

ASSéDiO MORAL. CONFiGURAçãO. REQUiSiTOS. Para a confi guração do assédio moral nas relação de trabalho, três requisitos são necessários: a conduta abusiva, a repetição dos ataques e o dano. O primeiro consiste na intenção do agressor de expor a vítima a situações incômodas e humilhantes, a fi m de retirá-la do seu caminho ou mesmo do emprego. O segundo implica à repetição das condutas de forma sistematizada, ou seja, exige-se duração mínima (seis meses, em média) e que os ataques se repitam numa freqüência de duas vezes por semana. O último requisito é o dano à integridade psíquica ou física da pessoa. iNDENiZAçãO. AMPARO JURíDiCO. PROVA ROBUSTA. A vítima da coação moral pode buscar a reparação pelos danos

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lesados à sua personalidade, com fundamento no art. 5º, incisos V e X, da CF/88, que garantem indenização a danos causados à imagem, à honra, à dignidade, à integridade física e até à própria vida, bem como no Código Civil (capítulo ii do título iX). Todavia, para a indenização desse dano específi co, há necessidade de produção de prova robusta, principalmente quando se trata de alegação de assédio vertical (praticado por superior hierárquico), porque o julgador terá de distinguir condutas próprias do poder diretivo com o abuso dessas condutas. Ausentes as provas, não há se falar em assédio moral. Recurso conhecido e não provido. (TRT – 16ª Região – 00509-2006-016-16-00-4-RO (54683), Rel. Des.: LUiZ COSMO DA SiLVA JÚNiOR. DJ 25/07/2007.)

Nesse caso, a obreira afi rmou que sofrera assédio moral pelo chefe imediato, ou seja, assédio vertical descendente. A conduta narrada seria a de que o superior hierárquico atribuía-lhe tarefas inerentes à sua própria função enquanto se trancava em um quarto para estudar. O Tribunal, no entanto, diante do caso entendeu que a trabalhadora não demonstrou os elementos sufi cientes para a confi guração do assédio moral e teve sua pretensão indeferida.

6 Considerações finais

No decorrer deste estudo restou demonstrado que o trabalho da mulher, assim como, a discriminação que lhe foi imposta, estiveram presentes em praticamente todas as épocas da História da Humanidade.

Apesar de tantas difi culdades, a luta e resistência feminina contribuíram bastante para a melhoria das condições de trabalho de toda a classe operária, inclusive para o surgimento do Direito do Trabalho.

De fato, registra-se que a presença da mão-de-obra feminina é crescente. No entanto, este aumento não representa conquista de empregos formais ou igualdade de rendimentos em relação aos homens. é necessário, primeiramente, que a sociedade modifi que sua mentalidade em relação à mulher, libertando-a defi nitivamente do modelo feminino submissivo, virginal, assexuado e frágil. A conquista da igualdade importa a homens e mulheres e é garantida constitucionalmente.

Um dos refl exos da discriminação sofrida encontra-se na prática de assédio moral contra as trabalhadoras.

O presente estudo trouxe elementos capazes de perceber que as mulheres são vítimas de mobbing em um número consideravelmente superior ao dos

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homens. A análise dos estudos dos pesquisadores e da jurisprudência e permitiu concluir que o fator gênero é decisivo na prática de assédio moral.

Esta constatação pode ser tomada pela vulnerabilidade da mulher nas relações trabalhistas. A necessidade de condições especiais no contrato de trabalho é um fator relevante para que elas sofram agressões mais freqüentes.

A solução contra esta prática poderia começar a partir de uma nova postura do Estado, no sentido de ser mais incisivo na implementação de políticas que amparassem os trabalhadores vítimas de assédio moral e também no sentido de coibir a prática.

Ademais, o Judiciário deve atentar-se para a difi culdade de comprovar a prática, e por isso, deve ser sensível aos depoimentos prestados pelas vítimas.

O engajamento da sociedade também é fundamental. As empresas devem assumir sua responsabilidade social, adotando medidas que coíbam a prática de assédio moral e que diminuam as diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho.

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A PRESCRIÇÃO DE OFÍCIO NO PROCESSO DO TRAbALhO SOb A óTICA CONSTITuCIONAL.

Leika Yasko Pereira Wagatsuma1.Mateus Alves Saffaro2.

Sumário: 1. introdução. 2. Análise doutrinária e jurisprudencial. 2.1 Breve Análise sobre o instituto da prescrição. 2.2. Posicionamentos favoráveis à aplicação da prescrição de ofício ao processo do trabalho. 2.3. Posicionamentos contrários à aplicação da prescrição de ofício ao processo de trabalho. 2.4. Jurisprudências sobre a prescrição de ofício. 3. Visão constitucionalizada no Brasil e no mundo. 3.1. interpretação do art. 210 do CPC conforme a Constituição Federal de 88. 3.2. O Fato no ordenamento jurídico internacional. 4. Conclusão.

Resumo: Este artigo pretende analisar o direito dos trabalhadores em relação à declaração de ofício da prescrição. O estudo bibliográfico revela que a Consolidação das Leis do Trabalho dispõe em seu art. 769 que nos casos omissos deverá ser utilizado como fonte subsidiária o direito processual comum naquilo em que for compatível. Contudo, a própria CLT não disciplina a aplicação da prescrição. Por sua vez, o art. 219 §5º do Código de Processo Civil (com a nova redação dada pela Lei n.11.280, de 16.2.2006) afirma que o juiz deve pronunciar de ofício a prescrição. Surgem assim dois posicionamentos distintos na doutrina e jurisprudência: um favorável ao pronunciamento de ofício e o outro contrário a aplicação da referida norma processual civil na jurisdição trabalhista. Para solucionar esta controvérsia, é necessário que seja feita uma interpretação de acordo com o art. 7º da Constituição Federal, que visa à melhoria da condição social dos trabalhadores, aplicando-se assim a norma mais favorável ao empregado.Palavras - Chave: Direito do trabalhador; Pronúncia de Ofício; Prescrição.

Abstract: This article aims to analyze the right of workers to the pronunciation of prescription by initiative of the judge. The bibliographical study reveals that the Consolidation of Labor Laws has in its art. 769 that in cases of omission should be used the procedural law common, when it is compatible, as subsidiary source. However, the own CLT does not discipline the application of the prescription. in turn, art. 219 §5 of the Code of Civil Procedure (with the new wording given by the Law no. 11,280, 2.16.2006) says that the judge should by his initiative declare the prescription. There are thus two distinct positions on doctrine and judge made law: a favorable to the pronouncement of initiative of the judge and the other opposite to the application of that standard procedural civil jurisdiction in labor. To resolve this controversy, is necessary to make an interpretation according to the art. 7 of the Federal Constitution, which aims to improve the social condition of workers, by applying the more favorable act to the employee. Key Words: Right of the worker; pronunciation of initiative of the judge; prescription.

1 Acadêmica do Curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Londrina, [email protected].

2 Acadêmico do Curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Londrina, [email protected].

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1 Introdução

A prescrição é a perda da pretensão de poder exigir o cumprimento de uma obrigação. Ela estabiliza e dá segurança jurídica as relações sociais, impedindo que as obrigações se eternizem. Caio Mário da Silva Pereira ensina que:

“O direito exige que o devedor cumpra o obrigado e permite ao sujeito ativo valer-se da sanção contra quem quer que vulnere seu direito. Mas se ele se mantém inerte, por longo tempo, deixando que se constitua uma situação contrária ao seu direito, permitir que mais tarde reviva o passado é deixar em perpétua incerteza a vida social.” (PEREiRA, 1988, p. 432-433)

O art. 769 da Consolidação das Leis do Trabalho dispõe que nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho exceto naquilo que for incompatível com as normas processuais trabalhistas.

Por sua vez, em relação ao direito processual comum nota-se que o legislador, com a promulgação da Lei n.11.280, de 16 de fevereiro de 2006, impulsionado pelo binômio da celeridade e efetividade processual, priorizou a segurança e a estabilidade das relações jurídicas, assim como objetivou dar tranquilidade ao devedor, em detrimento do titular da prescrição.

A Lei n.11.280/06 é a responsável pela nova redação ao §5º do artigo 219 do CPC, afi rmando que a prescrição pode ser conhecida de ofício pelo Juiz. Dessa maneira, independentemente de requerimento do réu, a prescrição pode ser reconhecida de ofício pelo juiz em qualquer grau de jurisdição.

Tais dispositivos, juntamente com o art. 7° da Constituição – que afi rma que a legislação do trabalho visa à melhoria da condição social dos trabalhadores – trazem à tona a seguinte discussão na doutrina e jurisprudência: é possível a aplicação subsidiária do art. 219 §5°do CPC na seara do processo do trabalho?

Formam-se duas correntes: os autores que se posicionam favoráveis à aplicação do art. 219 do CPC ao processo do trabalho defendem que tal norma tem por objetivo simplifi car as formas processuais e assim dar celeridade no andamento do feito, já que, nessas situações, possíveis discussões a respeito do tema se tornariam desnecessárias.

Por outro lado, o argumento da corrente contrária à aplicabilidade do art. 219 §5° do CPC alega que a pronúncia de ofi cio da prescrição seria incompatível com os princípios que regem tanto o direito material e como o

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direito processual do trabalho como, por exemplo, o princípio da proteção, que objetiva a salvaguarda do hipossufi ciente na relação trabalhista (empregado), e demais princípios como a valorização do trabalho e o princípio da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador.

Trata-se de uma discussão muito importante no âmbito atual da Justiça do Trabalho, pois a resolução deste tema implicaria no destino de vários processos que estão em trâmite e ainda nas diversas pretensões que ainda não foram levadas a juízo.

2 Análise doutrinária e jurisprudencial

2.1 Breve análise sobre o instituto da prescrição:

De acordo com a defi nição dada pelo jurista cearense Clovis Bevilaqua, a prescrição se caracteriza no ordenamento jurídico pátrio com “a perda da ação atribuída a um direito, de toda a sua capacidade defensiva, em consequência do não uso dela, durante um determinado espaço de tempo”. (BEViLAQUA, 1953, p. 351).

Ao seu turno, o consagrado civilista Silvio Rodrigues afi rma que uma das principais necessidades da prescrição se deve ao fato dela consolidar as relações jurídicas no tempo, dando maior segurança jurídica à sociedade. Em suas palavras: “há um interesse social em que situações de fato que o tempo consagrou adquiram juridicidade, para que sobre a comunidade não paire, indefi nidamente na ameaça de desequilíbrio representada pela demanda”. (RODRiGUES, 2002, p. 324).

Assim, pelas razões citadas percebe-se facilmente que a prescrição incorpora uma natureza pública e tem uma função que vai além de somente garantir segurança jurídica às partes, ela também confere segurança jurídica à própria sociedade.

Ao recorrer à leitura dos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho verifi ca-se que suas normas são omissas em relação à aplicabilidade da prescrição no processo do trabalho. Tal omissão, contudo, não preenche todos os requisitos necessários para a incidência dos artigos 8º e 769 da CLT que versam sobre a aplicação subsidiária do direito material e processual comum ao processo do trabalho.

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Além da omissão também é preciso que haja a possibilidade de adaptação da norma a ser aplicada subsidiariamente às necessidades do processo trabalhista.

Sob a ótica de Amauri Mascaro Nascimento, as condições que devem existir para a aplicação subsidiária do direito processual comum ao direito do trabalho são as seguintes: “a primeira, a verifi cação de omissão da lei processual trabalhista, caso em que se impõe subsidiá-la; a segunda, a indispensabilidade de as regras subsidiárias serem adaptáveis às necessidades do processo trabalhista”. (NASCiMENTO, 2007, p. 85).

2.2 Posicionamentos favoráveis à aplicação da prescrição de ofício ao processo do trabalho:

Amparados pelo art. 7º inc. XXiX da Constituição Federal, os autores que defendem a aplicação da prescrição de ofício no processo do trabalho3, afi rmam existir dois tipos de prescrição, a parcial e a total.

A prescrição parcial é de cinco anos e ocorre no andamento da relação de emprego. Assim, se o trabalhador se sentir lesado em relação a algum direito por omissão do empregador que deixou de cumprir as obrigações essenciais ao contrato de trabalho, tem o prazo de cinco anos para contestar judicialmente esse direito.

O contrato de trabalho tem como premissa a continuidade da relação de trabalho então, existem prestações que se sucedem no tempo e, além disso, em regra, este contrato é celebrado por prazo indeterminado. Assim, nota-se que a prescrição parcial é constantemente prorrogada no tempo, afetando todos os direitos que excederem os cincos últimos anos do contrato de trabalho.

A outra modalidade de prescrição é a prescrição total. Com base no art. 7º inc. XXiX da Constituição de 88, o poder constituinte originário estabelece um prazo de dois anos após a extinção do contrato de trabalho como o prazo limite para o empregado propor a demanda em juízo. é mister ressaltar que a extinção do vínculo de emprego dá início a contagem da prescrição total, sem afetar ou interromper a contagem da prescrição parcial.

Os autores com posicionamento a favor da aplicação do art. 219 §5º do CPC no processo de trabalho asseguram que esta norma tem por fi nalidade 3 São adeptos da corrente que defende a aplicação da prescrição de ofício na Justiça do Trabalho: Sérgio

Martins Pinto, José Augusto Rodrigues Pinto, Sebastião Geraldo de Oliveira, Gustavo Filipe Barbosa Garcia, Vitor Salino de Moura Eça, Eduardo Rockenbach Pires, entre outros.

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simplifi car as formas processuais e consequentemente dar celeridade ao andamento do processo.

Utiliza-se a importância dos princípios constitucionais que garantem o acesso efetivo à justiça como elementos justifi cadores para a utilização dos meios necessários para abreviar ou dar uma duração razoável ao processo, a exemplo do reconhecimento da prescrição de ofício.

Por conseguinte, a parte da doutrina divergente a essa opinião alega que não basta o processo ser célere sem que obtenha sucesso na tutela dos direitos sociais trabalhistas. Para eles, não se pode sacrifi car o direito material do trabalho em nome de princípios de índole processual sendo que a pronúncia de ofício da prescrição contribuiria para acelerar o processo, porém, é contra o direito material visto que em nada contribui para a melhoria social dos trabalhadores.

Outro argumento utilizado pela doutrina favorável ao reconhecimento de ofi cio da prescrição é que o princípio protetor, base da relação de trabalho, aplica-se tão somente às relações de direito material. Completam ainda que, se existisse qualquer privilégio processual em favor do trabalhador, haveria um desrespeito ao art. 125, inc. i do CPC, que exige o tratamento isonômico das partes em juízo.

A conclusão é que o magistrado deve se valer, de modo a zelar pela imparcialidade, da legislação material que já é protetora do trabalhador, sem tender para a aplicação de privilégios processuais.

2.3 Posicionamentos contrários à aplicação da prescrição de ofício ao processo do trabalho:

A parte da doutrina contrária à aplicação do art. 219 do § 5° do CPC ao processo do trabalho alega que, aplicando esse dispositivo, se estaria ferindo tanto os princípios do direito material como os princípios do direito processual do trabalho.

Tais autores4 se apoiam na ideia estabelecida no art. 769 da CLT, que trata sobre a aplicação subsidiária do direito processual comum ao processo do trabalho. Segundo tal norma, a aplicação ao processo do trabalho só é admissível quando não houver incompatibilidade com a norma trabalhista.

4 Adeptos da corrente contra a aplicação da prescrição de ofício nos processos trabalhistas: Alice de Barros Monteiro, Arion Sayão Romita, Marco Meira dos Reis Schmidt, José Carlos Bastos Silva Filho, Aline dos Santos Silva, Mariângela Guerreiro Milhoranza, Luiz Alberto Vargas, Ricardo Carvalho Fraga, entre outros.

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Logo, a aplicação subsidiária do processo civil ao processo do trabalho deve ser efetuada com cautela e, observando os limites estipulados pela CLT e pela doutrina: a existência de omissão na legislação trabalhista e a compatibilidade com os princípios processuais trabalhistas.

Adotando-se uma ótica constitucional, há regras e princípios que se constituem em espécies do gênero normas jurídicas tais como o Princípio da Proteção que se presta à proteção da parte hipossufi ciente na relação empregatícia, projetando-se a uma busca ao equilíbrio que deve permear a relação entre empregado e empregador. A doutrina majoritária indica o princípio da proteção como sendo o princípio “cardeal do Direito do Trabalho”.

Américo Plá Rodriguez considera que o princípio protetivo se manifesta em três dimensões distintas. (RODRiGUEZ, 2000). Maurício Godinho Delgado completa explicando que o princípio da proteção exerce tamanha infl uência que se irradia e inspira todo o “complexo de regras, princípios e institutos que compõem esse ramo jurídico especializado”. (DELGADO, 2007). As dimensões do princípio da proteção manifestam-se na aplicação da: norma mais favorável, condição mais benéfi ca e in dubio pro operário.

Ao aplicar a norma, deve-se ter em mente a que mais favorece ao trabalhador. Sendo ainda que havendo normas parcialmente favoráveis, devem-se acumular os preceitos de cada uma que mais favorecem ao empregado e assim aplicá-las.

A condição mais benéfi ca encontra fundamento no art. 468 da CLT. Sua fi nalidade é a proteção de situações mais benéfi cas consolidadas. Maurício Godinho Delgado ressalta que “cláusulas contratuais benéfi cas somente poderão ser suprimidas caso suplantadas por cláusula posterior ainda mais benéfi ca”. (DELGADO, 2007).

Por sua vez, o in dubio pro operário: expressa que, havendo dúvida na interpretação da norma jurídica, deve-se aplicar, ou mesmo interpretá-la, em favor do operário (in dubio pro misero).

Assim, a prescrição, na maioria dos casos, benefi ciará tão somente ao empregador, já que é ele que terá obrigações inadimplidas em relação ao empregado. A aplicação da arguição da prescrição pelo juiz do trabalho, de ofício, constituiu uma afronta ao princípio protetor, o que torna confl itante a regra trazida pela Lei n. 11.280/06, com a estrutura processual trabalhista vigente.

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2.4 Jurisprudências sobre a prescrição de ofício:

Ao analisar as decisões jurisprudenciais, percebe-se que não existe um consenso capaz de levar a um mesmo entendimento sobre este assunto entre os tribunais. As decisões não são pacifi cadas, como se pode avaliar abaixo:

Decisões dos TRT´s das 2 ª, 9 ª e 10 ª regiões à favor do reconhecimento da prescrição de ofício:

“PRESCRiçãO. DECLARAçãO DE OFíCiO. LEi 11.280/2006. A Lei 11.280/2006 alterou a redação do parágrafo 5º, do art.219, do CPC, possibilitando ao Juiz que pronuncie de ofício a prescrição, quando verifi cada a hipótese, mesmo que a matéria não tenha sido abordada na r. sentença. Recurso a que se dá provimento.” (TRT 2ª Região. – RO-V 03239-2005-037-12-00-5 RO-V 03239-2005-037-12-00-5 RO 010872003067020000 – 3ª Turma – Rel. Márcia Tomazino – DJ 24/06/2008).

“PRESCRiçãO. PRONUNCiAMENTO EX OFFiCiO. POSSiBiLiDADE. O § 5º do art. 219 do CPC é plenamente aplicável ao processo do trabalho, nos termos do art. 769 da CLT. A norma em comento é imperativa e não confere faculdade ao juiz para reconhecer a prescrição de ofício, mas o obriga a pronunciá-la exoffi cio, a qualquer tempo e grau de jurisdição.” “iNTERRUPçãO DA PRESCRiçãO. NECESSÁRiA PROVA DA iDENTiDADE DE PEDiDOS. ôNUS. O ajuizamento de ação trabalhista interrompe a prescrição apenas quanto aos pedidos idênticos (Súmula 268 do C. TST). A prova da identidade de pedidos é imprescindível e incumbe à parte interessada. A simples constatação de existência de reclamatória ajuizada anteriormente não tem o condão de interromper a prescrição. Recurso da autora que se nega provimento.” (TRT 9ª Região. – RO-V 03239-2005-037-12-00-5 RO-V 03239-2005-037-12-00-5 RO 00720-2007-303-09-00-4 – 1ª Turma – Rel. Janete do Amarante – DJ 09/05/2008).

“PRESCRiçãO. PRONUNCiAMENTO DE OFíCiO. ART. 219, § 5º, DO CPC. A alteração na lei processual civil, efetuada por meio da Lei nº 11.280/06, acrescentou o § 5º ao art. 219, permitindo ao Juiz pronunciar a prescrição de ofício, como já lhe era permitido fazê-lo com relação às pretensões não patrimoniais. A lei processual tem aplicabilidade imediata (art. 1.211 do CPC). Assim, a nova redação do § 5º do art. 219 deve apanhar os processos em curso. Prescrição pronunciada ex-offi cio.” (TRT 10ª Região. – RO-V 03239-2005-037-12-00-5 RO-V 03239-2005-037-12-00-5 RO 00387-2007-020-10-00-9 – 1ª Turma – Rel. JOSE Leone Cordeiro Leite – DJ 07/11/2008).

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Encontram-se também acórdãos contra a prescrição de ofício no processo de trabalho, dos TRT´s das 2 ª, 3 ª e 9 ª regiões:

“PRESCRiçãO – DECLARAçãO DE OFíCiO – iNCOMPATiBiLiDADE – PRiNCíPiO PROTETiVO - A prescrição, como modalidade extintiva ou aquisitiva do direito de ação e medida de defesa destinada a excluir a pretensão inicial (total ou parcialmente). O art. 269, iV do CPC coloca a prescrição como matéria de mérito. E, como tal, por versar sobre direito patrimonial, a teor do art.194 do CC/02, ccarts.128 e 219, § 5º do CPC, deve ser arguida pela parte interessada, em qualquer grau ordinário de jurisdição, completa o art.193 do CC/02. O que implica necessariamente a possibilidade de renúncia, expressa ou tácita, tal como previsto no art. 191 do mesmo Diploma. O exercício dessa prerrogativa, por parte do devedor ou obrigado, é incompatível com a pronúncia de ofício da prescrição, pelo juiz. O instituto da prescrição, nos sistemas Processual Civil e Trabalhista são diversos. Não há compatibilidade na aplicação do art.219, § 5º do CPC, aqui no processo do trabalho, já que se pretende garantir a isonomia das partes, assegurando condições jurídicas ao hipossufi ciente. Até porque também afrontaria ao princípio protetivo delegado ao empregado e a seus direitos alimentares exigidos nesta Especializada. Afasto a declaração de prescrição de ofício.” (TRT 2ª Região. – RO 00392200603402007 – 6ª Turma – Rel. ivani Contini Bramante – DJ 12/02/2008).

“PRESCRiçãO NAS AçõES TRABALHiSTAS - PRONÚNCiA DE OFíCiO PELO JUiZ - iNCOMPATiBiLiDADE. Não se aplica às ações trabalhistas a inovação trazida pela Lei 11.280/06, ao estabelecer nova redação ao parágrafo 5o. do art. 219 do Código de Processo Civil - pronúncia da prescrição, exoffi cio, pelo juiz -, por ser incompatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, valorização do trabalho e do emprego e subordinação da propriedade à sua função sócio-ambiental, a par de agredir frontalmente os princípios justrabalhistas da proteção e da norma mais favorável. Ocorre que a prescrição é instituto que solapa direitos assegurados na ordem jurídica, inclusive oriundos da Constituição (direitos constitucionais fundamentais), ao lhes suprimir a exigibilidade judicial. O seu caráter drástico e, às vezes, até mesmo injusto, não permite que sofra qualquer interpretação ampliativa ou aplicação analógica, a ponto de ser capturada no liberal, individualista e patrimonialista Direito Civil para incidir na ordem justrabalhista especializada, esterilizando-lhe princípios constitucionais e infraconstitucionais basilares. Desse modo, qualquer regra nova acerca da prescrição, que acentue sua lâmina mitigadora de direitos, deve ser interpretada com restrições no tocante ao campo do Direito do Trabalho.” (TRT 3ª Região. – RO 01109-2006-110-03-00-7 – 1ª Turma – Rel. Mauricio Godinho Delgado – DJMG 04/04/2007).

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“PRESCRiçãO. iNAPLiCABiLiDADE DO ARTiGO 219, §5º, DO CPC. inviável, nesta Justiça Especializada, a decretação da prescrição de ofício. impera no Direito do Trabalho uma mega-princípio ou princípio superior, pelo qual se busca tutelar ou proteger a hipossufi ciência do empregado na relação de emprego. E desse princípio decorrem todos os demais princípios que norteiam o Direito do Trabalho. Por isso, a pronúncia da prescrição, de ofício, pelo juiz, soa contraditória no processo trabalhista, pois benefi ciaria apenas um dos sujeitos da relação empregatícia e, justamente, o empregador inadimplente.” (TRT 9ª Região. – RO 02023-2008-024-09-00-5 – 3ª Turma – Rel. Celso Luiz Napp – DJPR 07/11/2008).

Até mesmo o Tribunal Superior do Trabalho não mantém uniformidade em relação a esse tema:

“PRESCRiçãO DECLARAçãO DE OFíCiO POSSiBiLiDADE  ART. 219, § 5º, DO CPC.  1. A nova regra do art. 219, § 5º, do CPC, de aplicação imediata aos processos pendentes, à luz do art. 1.211 do mesmo diploma legal, prevê a declaração de ofício da prescrição, aplicando-se necessariamente nesta Justiça Especializada. Para tanto, basta verifi car o preenchimento das condições previstas no art. 769 da CLT sobre aplicação subsidiária da legislação processual civil na esfera trabalhista, quais sejam, a omissão e a compatibilidade da regra civil com o Processo do Trabalho.  2.  in casu, a legislação trabalhista é omissa sobre a iniciativa para declaração dos efeitos da prescrição, pois o diploma consolidado apenas estabelece prazo prescricional (CLT, art. 11). Ademais, a nova regra não é incompatível, tampouco exclui o princípio da tutela do hipossufi ciente que fundamenta o Direito do Trabalho, pois a fragilidade do trabalhador em relação ao empregador é apenas econômica, já tutelada pela legislação substantiva, não se justifi cando privilégio suplementar processual nesse campo, o qual implicaria ofensa ao art. 125, i, do CPC, que exige o tratamento isonômico das partes em juízo. O magistrado trabalhista deve aplicar de forma imparcial uma legislação material que já é protetiva do trabalhador.  3. importante registrar que a declaração de ofício da prescrição contribui para a efetiva aplicação dos princípios processuais trabalhistas (garantia da informalidade, da celeridade, do devido processo legal, da economia processual, da segurança jurídica, bem como do princípio constitucional da razoável duração do processo e da dignidade da pessoa humana), impedindo a prática de atos desnecessários, como por exemplo, nas demandas em que o direito material discutido já se encontra fulminado pela prescrição.  4. Finalmente, é mister frisar que o próprio dispositivo anterior, que previa a necessidade de argüição, pela parte interessada, da prescrição de direitos patrimoniais tinha sede civil e processual civil (CC, art. 194; CPC, art. 219, § 5º), e era aplicada subsidiariamente na Justiça do Trabalho à míngua de

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regramento próprio desta. Mudando a legislação que disciplina o modo de aplicação da prescrição (revogação do art. 194 do CC e alteração da redação do § 5º do art. 219 do CPC), a repercussão é inexorável na esfera laboral. Pretender a não-aplicação da regra processual civil ao Processo do Trabalho, nessa hipótese, deixa sem respaldo legal a exigência judicial da argüição, pela parte, da prescrição, como condição de seu acolhimento, o que atenta contra o princípio da legalidade (CF, art. 5º, ii).  5. Nem se diga que a norma civil revogada subsiste no Processo do Trabalho como princípio, uma vez que, havendo norma legal expressa em sentido contrário, não há possibilidade de remissão a princípio carente de positivação, mormente em matéria processual, que se norteia por regras claras e expressas. As próprias regras do CPC de 1939 que ainda subsistem como princípios sob a égide do CPC de 1973 (v.g., arts. 809 e 810, prevendo os princípios da variabilidade e fungibilidade recursais) são apenas aquelas que não foram expressamente contrariadas por dispositivos que estabelecessem procedimento diverso.    Agravo de instrumento desprovido.” (TST – AiRR 2574/2002-034-02-41 – 7ª T. – Rel. ives Gandra Martins Filho – DJ 03/10/2008).“RECURSO DE REViSTA. PRESCRiçãO. MATéRiA DE DEFESA. REVELiA. DECLARAçãO EX OFFiCiO. iMPOSSiBiLiDADE. DiFERENçAS DA MULTA DE 40% DO FGTS. EXPURGOS iNFLACiONÁRiOS. NãO-CONHECiMENTO.  Não há como se aferir violação literal dos dispositivos de lei e da Constituição Federal quando a r. decisão recorrida foi pautada na impossibilidade de pronúncia de prescrição pelo MM. Juízo de 1º grau quando não requerida pela parte a quem a aproveita em defesa, porque revel, além de ter fi cado assente naquele julgado a inexistência de pedido de reconhecimento de prescrição constante das contra-razões apresentadas pela reclamada ao recurso ordinário. A aplicação de ofício da prescrição não condiz com os princípios do Direito do Trabalho, diante da regra protetora dos créditos trabalhistas. Recurso de revista não conhecido.” (TST – RR 1864/2003-001-02-00 – 6ª T. – Rel. Aloysio Corrêa da Veiga – DJ 10/10/2008).“RECURSO DE REViSTA. PRESCRiçãO DECLARAçãO DE OFíCiO iMPOSSiBiLiDADE.  No processo do trabalho, é inaplicável a prescrição de ofício. Recurso de revista a que se dá provimento.” (TST – RR 1730/2001-048-15-00 – 5ª T. – Rel. Kátia Magalhães Arruda – DJ 06/10/2008).

Após a leitura e interpretação das jurisprudências anteriores, é evidenciado que nem os Tribunais Regionais e nem o Tribunal Superior do Trabalho, possuem um padrão sobre a prescrição de ofi cio.

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3 Visão constitucionalizada no brasil e no mundo

3.1 Interpretação do art. 219 do CPC conforme a Constituição federal de 88:

Os autores que adotam posição contrária ao reconhecimento da prescrição de ofício contida no § 5°do art. 219 do CPC, em grande maioria, se apoiam no princípio da proteção como justifi cativa basilar.

Entretanto, pode-se verifi car que existe um confl ito entre esta norma e o art. 769 da CLT, ambas de igual hierarquia, no caso leis ordinárias. Na verdade, o confronto que realmente deveria ocorrer seria entre o 219 § 5°, e o art. 7° da Constituição Federal, lei ordinária e lei superior respectivamente.

Ao analisar a polêmica sobre o tema, tem-se que o cerne dos debates ocorre em relação à natureza do instituto prescricional. Porém, trata-se de uma questão não tão superfi cial, visto que o que se busca é discutir a atribuição ao juiz de direito da pronuncia ou não de ofício, caso em que interpretação pode variar de acordo com o ramo do ordenamento jurídico em que a prescrição produzirá efeitos.

é sabido que para solucionar a dúvida do intérprete perante a uma norma jurídica que comporta mais de um entendimento, há de ser adotada aquela que se é mais compatível com a Carta Magna.

A validade e a fundamentação do ordenamento normativo estão ligadas à sua integração numa sistemática hierárquico-piramidal, com a norma fundamental no vértice, como foi idealizada por Kelsen, caracterizando o conceito de unidade do ordenamento jurídico defendido por Norberto Bobbio.

Gilmar Ferreira Mendes, em sua obra “Jurisdição Constitucional” afi rma: “a oportunidade para interpretação conforme a Constituição existe sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição”. (MENDES, 2005, p. 287).

Nesse sentido, dentre os critérios utilizados para resolver os confl itos normativos, merece destaque o critério hierárquico estabelecendo que, entre normas jurídicas inconciliáveis deve ser aplicada a de estatura superior.

Uma refl exão constitucionalizada pressupõe a ideia de que a Lei Maior representa um referencial para todas as leis ordinárias. Estas, só podem ser interpretadas em harmonia com a Constituição, devendo ser excluída a interpretação inconstitucional. Nas palavras de Norberto Bobbio:

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“A situação de normas incompatíveis entre si é uma das difi culdades frente às quais se encontram os juristas de todos os tempos, tendo esta situação uma denominação própria: antinomia. Assim, em considerando o ordenamento jurídico uma unidade sistêmica, o Direito não tolera antinomias”. (BOBBiO, 2011).

Portanto, por ser oposto ao art. 7 da Constituição, o art. 219 § 5° do CPC não pode ser aplicado à Justiça do Trabalho. Uma interpretação constitucional, nessa situação, equipara-se a uma declaração de nulidade sem redução de texto, porque o preceito, na verdade, é nulo quando invocado em sede processual trabalhista.

No processo do trabalho, em geral, as demandas são propostas pelos empregados em face de seus empregadores, diferentemente do que ocorre no processo civil comum. Neste, as partes não apresentam os mesmos elementos caracterizadores que no processo do trabalho.

Portanto, a pronúncia da prescrição na Justiça do Trabalho benefi ciaria exclusivamente ao empregador inadimplente, além de ser incompatível com o preceito do caput art. 7° da Constituição, o qual diz respeito à melhoria das condições sociais dos trabalhadores.

3.2 o fato no ordenamento jurídico internacional:Alexandre Freitas Câmara ressalta que, antes da Lei 11.280 de 2006,

jamais foi possível a prescrição de ofício no direito brasileiro. (CÂMARA, 2008). O autor ainda afi rma que em ordenamentos jurídicos estrangeiros o reconhecimento da prescrição de ofi cio pelo juiz é vedado.

Por fi m, expõe como exemplos, o Código Civil italiano, que estabelece em seu art. 2.938, expressamente, que “il giudice non può rilevare d’uffi cio la prescrizione non opposta”5. Também o Código Civil francês trata do tema em seu art. 2.223 e assim dispõe: “les juges ne peuvent pas suppléer d’offi ce le moyen résultant de la prescription”6.

Já o art. 142 do Código de Obrigações Suíço tem redação análoga: “le juge ne peut suppléer d’offi ce le moyen résultant de la prescription”7. O Código Civil argentino dispõe sobre o tema em seu art. 3.964, determinando que “el juez no puede suplir de ofi cio la prescripción”8.

5 “O tribunal não pode revelar de ofi cio a prescrição não oposta”6 “Os juízes não podem, por sua própria iniciativa, aplicar os meios de prescrição.”7 “Os juízes não podem, por sua própria iniciativa, aplicar os meios de prescrição.”8 “O juiz não pode suprir de ofício a prescrição.”

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Além desses, o Código Civil português, cujo art. 303º estabelece que “o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser efi caz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público”.

4 Conclusão

A Lei 11.280/06 inovou em relação ao reconhecimento de ofício da prescrição pelo magistrado. Após considerar diversos autores e julgados, é possível concluir que se trata de uma questão ainda muito controvertida e longe de ser pacifi cada.

Entre os argumentos a favor tem-se como base a celeridade processual e a necessidade de se manter a igualdade de ordem material entre as partes da relação jurídica, sem privilégios. Ademais, esses autores ainda afi rmam que o trabalhador já é protegido por uma legislação própria e protetora.

Já os argumentos contrários à aplicação se mostram contundentes. Esses doutrinadores ressaltam a importância do principio da proteção ao trabalhador, além do mais, ainda invocam que a possibilidade de arguição da prescrição de ofi cio na justiça do trabalho benefi ciaria exclusivamente ao empregador.

Nem mesmo as jurisprudências adotam posições unanimes sobre este tema. Tanto os Tribunais Regionais quanto o Tribunal Superior do Trabalho, possuem divergências.

A interpretação conforme a Constituição Federal, levando em conta o art. 7°, se revela contrária à aplicação da prescrição de ofi cio pelo juiz, garantindo ao trabalhador possibilidades que visem à melhoria de sua condição social. A Lei Maior brasileira mostra-se ainda consoante com outras leis estrangeiras que versam sobre a matéria.

Para mais, não se trata aqui da impossibilidade do instituto da prescrição produzir seus efeitos na seara trabalhista. O que se pretende afastando o reconhecimento de ofício é a proteção à parte hipossufi ciente da relação de emprego. Porém, a iniciativa da alegação da prescrição não pertence só ao juiz, cabe ao empregador ainda alegá-la em juízo.

Cabe ainda ressaltar que a temática da prescrição deve ser enfrentada como matéria relativa ao direito do trabalho material e não como matéria de processo trabalhista. Assim, a possibilidade de reconhecimento da prescrição de ofício ainda se mostraria contrária ao parágrafo único do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho.

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Concluímos assim, que a pronúncia de ofi cio da prescrição não é viável no Processo do Trabalho visto que fere diretamente tanto aos princípios de direito do trabalho material como processual assim como também se demonstra inconstitucional.

é necessário que haja cautela por parte da doutrina e dos magistrados ao interpretar a incidência da prescrição aos mais diversos campos do direito para que não ocorram consequências mais prejudiciais do que as que o instituto prescricional visa combater como, a difi culdade do acesso à justiça e o inadimplemento de obrigações e garantias.

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CONTRIbuIÇÃO SINDICAL: uM ATENTADO àS LIbERDADES E à FORÇA SINDICAL

 Luara Soares Scalassara1

Sumário: 1. introdução; 2. Contribuição Sindical: conceito, histórico, natureza jurídica e distinções; 3. Liberdade sindical versus Contribuição sindical; 4. Os Efeitos da Contribuição Sindical; 5. A Contradição Constitucional Antidemocrática da Contribuição Sindical; 6. Considerações Finais. Referências.

Resumo: A Contribuição Sindical, inspirada no sistema fascista e corporativista dos anos 30, foi instituída durante a Era Vargas, sob a denominação de imposto Sindical, consistindo em uma contribuição compulsória. A hipótese é que essa não é compatível com o princípio da liberdade sindical em suas várias dimensões, tendo em vista que os trabalhadores devem ter o direito de custear e filiar-se às organizações no caso de estimarem convenientes. A percepção dessa receita por parte dos sindicatos independe da reunião de condições de representação e de liderança sindical, sequer exige o recrutamento de filiados ou conquistas em nome da categoria. Assim, inúmeros sindicatos existem exclusivamente para receber essa contribuição. Além de atentado às liberdades sindicais, a contribuição auxilia na formação e serve de escora para sindicatos inexpressivos e descomprometidos com o interesse de seus representados, causando o enfraquecimento do sindicalismo. Não obstante esses pontos negativos, sua manutenção na ordem jurídica brasileira foi autorizada pela Carta Magna de 1988. Os aspectos ora abordados compõem a realidade dos trabalhadores brasileiros, por isso se fazem presente no desenvolvimento deste trabalho, que objetiva dar visibilidade aos meios capazes de libertar e fortalecer o sindicalismo no Brasil. O presente artigo é parte de pesquisa acadêmica que será apresentada em cumprimento às exigências da disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso i da Universidade Estadual de Londrina. A metodologia utilizada nesta primeira etapa da pesquisa foi a empírico-dedutiva.Palavras-chave: Contribuição Sindical; Liberdade Sindical; Sindicalismo forte;

Abstract: The Union Contribution, inspired by fascist and corporatist system of the 30s, was instituted during the Vargas Era under the name Tax Association. Contribution is payable annually by all those who participate in a particular economic or professional category, or a profession in favor of the union representing the same class or profession, whether they are unionized or not. it is, therefore, a compulsory contribution. The hypothesis is that it is not compatible with the principle of freedom of association as workers should have the right to pay and join organizations they deem appropriate. Unions receive this contribution even when they don’t posess representation and union leadership, because it doesn’t require the recruitment of affiliates or achievements for the workers. Thus, numerous unions exist solely to receive this contribution. Besides the attack on trade union freedoms, such as freedom of organization, freedom of association and democratic management, union dues serve as an anchor for expressionless and unengaged unions, causing the weakening of trade unionism. Despite these negatives, its maintenance in the Brazilian legal system was authorized by the

1 Discente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina; participante do Projeto integrado de Extensão nº. 1680 – Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos. E-mail: [email protected] ou [email protected] ;

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1988 Constitution. Th is permission sustains a union model anachronistic, contradictory, undemocratic and paternalistic. Th ese issues constitute the reality of brazilian workers, which is why this article aims to give visibility to this problem and to suggest instruments capable of liberating and strengthening unionism in Brazil. Th is article is part of academic research that will be presented in compliance with the requirements of the discipline of Work Completion of Course i Universidade Estadual de Londrina. Th e methodology used in this fi rst phase of the research was empirical-deductive.

Keywords: Union dues; freedom of association/right to organize; strong unions;

1 Introdução

O estudo jurídico e crítico da organização sindical brasileira compreendem, atualmente, a análise do instituto da Contribuição Sindical, antigo imposto Sindical e tema central do presente trabalho.

A contribuição sindical é devida anualmente por todos aqueles que participarem de uma determinada categoria econômica ou profi ssional, ou de uma profi ssão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profi ssão, sejam eles sindicalizados ou não. Trata-se, portanto, de uma contribuição compulsória.

Abordar-se-á, pela perspectiva dos trabalhadores, a origem dessa receita e sua incompatibilidade com o princípio da liberdade sindical em suas várias dimensões, bem como seu caráter atentatório à força sindical, porquanto auxilia na formação e serve de escora para sindicatos inexpressivos e descomprometidos com o interesse de seus representados.

Não obstante esses pontos negativos, sua manutenção na ordem jurídica brasileira foi autorizada pela Carta Magna de 1988.

A contribuição objeto deste trabalho interfere, de maneira contraproducente, na realidade dos trabalhadores brasileiros, por isso se fazem presente no desenvolvimento deste trabalho, que objetiva dar visibilidade as formas capazes de libertar e fortalecer o sindicalismo no Brasil.

2 Contribuição sindical

O ordenamento jurídico brasileiro prevê quatro tipos de contribuições dos trabalhadores em favor de sua respectiva entidade sindical. São elas a contribuição sindical, a contribuição confederativa, a contribuição assistencial e as mensalidades dos associados do sindicado.

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Dentre essas modalidades de fi nanciamento dos sindicatos, destaca-se a contribuição sindical, objeto de estudo do presente trabalho, pois que consiste na mais controvertida do ponto de vista político-ideológico.

2.1 Conceito

A Contribuição Sindical, inspirada no sistema fascista2 e corporativista3 dos anos 30, foi instituída durante a Era Vargas, sob a denominação de imposto Sindical. Sofreu alteração em sua nomenclatura, para a forma hoje prevalecente, com o Decreto-Lei nº 27, de 14 de novembro de 1966.

2   No texto, o termo é utilizado dentro da defi nição de “Fascismo histórico”, que engloba certo núcleo de características ideológicas e fi nalidades políticas, cuja história se desenrola na Europa entre os anos 1919 e 1945 e que está essencial e especifi camente representado no Fascismo italiano e no nacional-socialismo alemão. “Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado: pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de tipo corporativo; por objetivos de expansão imperialista, a alcançar em nome da luta das nações pobres contra as potências plutocráticas; pela mobilização das massas e pelo seu enquadramento em organizações tendentes a uma socialização política planifi cada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado, de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais [!]” (BOBBiO, 1998, p. 466). A infl uência da Carta del Lavoro é patente quando se trata da contribuição sindical, conceito decorrente de uma lógica fascista de sindicato com monopólio de representação dos trabalhadores sob o jugo do Estado: que autoriza sua criação; que lhe reconhece a personalidade sindical; que pode intervir inclusive para destituir diretores e fechar o sindicato; e que arrecada, compulsoriamente, a receita sindical. “O modelo justrabalhista brasileiro, como se sabe, foi apropriado das experiências autocráticas européias do entre-guerras, fundando-se, em especial, no parâmetro fascista italiano” (DELGADO, 2005, p. 120). 

3 “O corporativismo é uma doutrina que propugna a organização da coletividade baseada na associação representativa dos interesses e das atividades profi ssionais (corporações). Propõe, graças à solidariedade orgânica dos interesses concretos e às fórmulas de colaboração que daí podem derivar, a remoção ou neutralização dos elementos de confl ito: a concorrência no plano econômico, a luta de classes no plano social, as diferenças ideológicas no plano político” (BOBBiO, 1998, p. 287). importa ainda demonstrar a infl uência corporativista em matéria sindical na análise de Arnaldo Süssekind: “Quais eram os princípios que orientavam a confi guração da organização sindical como um sistema corporativo? Primeiro, a unidade sindical compulsória, por categoria ou profi ssão. isto quer dizer que em cada categoria ou profi ssão, numa determinada base territorial, só podia existir um sindicato. Segundo, este sindicato único passava a representar não apenas seus associados, mas todos os que integravam as categorias ou profi ssões. Terceiro, porque todo trabalhador e todo empresário que eram legalmente representados por um sindicato deviam contribuir para ele com o imposto sindical. Esta parte é que foi exclusivamente inspirada no corporativismo italiano, que estava refl etido na Carta del Lavoro” (SUSSEKiND apud ARRUDA, 2007, p. 32).

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Mencionada contribuição é devida anualmente por todos aqueles que participam de uma determinada categoria econômica ou profi ssional, ou de uma profi ssão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profi ssão, sejam eles sindicalizados ou não.

Consiste, portanto, em uma contribuição compulsória, regulada minuciosamente pelos arts. 578 a 610, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Decreto-Lei nº. 5.452, de 1º de maio de 1943. Em outras palavras, sua cobrança não está sujeita à anuência do contribuinte.

Maurício Godinho Delgado (2009, p.1232/1233) explica:

Trata-se de receita recolhida uma única vez, anualmente, em favor do sistema sindical, nos meses e montantes fi xados na CLT, quer se trate de empregado, profi ssional liberal ou empregador (arts. 580 e seguintes). ilustrativamente, no caso de empregado, este sofrerá o respectivo desconto, na folha de pagamento do mês de março, à base do salário equivalente a um dia de labor.

Aclara-se que a contribuição sindical corresponde a um dia de trabalho para os empregados (art. 580, i, da CLT); que para os trabalhadores autônomos e profi ssionais liberais, toma-se por base um percentual fi xo (art. 580, ii, da CLT); e que ela será calculada sobre o capital social da empresa, para os empregadores (art. 580, iii, da CLT) 4.

A importância arrecada pelos trabalhadores a título de contribuição sindical será dividida, nos termos do art. 589, da CLT, nas seguintes porcentagens: a) 60% (sessenta por cento) para o sindicato respectivo; b) 15% (quinze por cento) para a federação; c) 5% (cinco por centro) para a confederação; d) 10% (dez por cento) para a central sindical; e) 10% (dez por cento) para a “Conta Especial Emprego e Salário”.

Predomina na doutrina a posição contrária à existência dessa receita sindical compulsória, tendo em vista o entendimento de que a compulsoriedade fere a liberdade sindical dos trabalhadores (Maurício Godinho Delgado e Sergio

4 Art. 580. A contribuição sindical será recolhida, de uma só vez, anualmente, e consistirá: i - Na importância correspondente à remuneração de um dia de trabalho, para os empregados, qualquer que seja a forma da referida remuneração; il - para os agentes ou trabalhadores autônomos e para os profi ssionais liberais, numa importância correspondente a 30% (trinta por cento) do maior valor-de-referência fi xado pelo Poder Executivo, vigente à época em que é devida a contribuição sindical, arredondada para Cr$ 1,00 (um cruzeiro) a fração porventura existente; iii - para os empregadores, numa importância proporcional ao capital social da fi rma ou empresa, registrado nas respectivas Juntas Comerciais ou órgãos equivalentes, mediante a aplicação de alíquotas, conforme a seguinte tabela progressiva: [...].

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Pinto Martins), que é um tributo de características corporativistas (Orlando Gomes e élson Gottschalk), e que o suporte fi nanceiro dos sindicatos deve ser voluntário (João Régis F. Teixeira)5.

Há, entretanto, doutrinadores contrários à extinção da contribuição sindical. é o caso, por exemplo, de Segadas Vianna (ViANNA, 1981, p. 1033). O autor entende que a contribuição sindical corresponde à contrapartida dos benefícios variados que as entidades sindicais prestam não apenas aos que gozam diretamente das vantagens da sindicalização, mas a todos os representantes de uma categoria econômica ou profi ssional.

Para a compreensão dos efeitos da compulsoriedade da contribuição sindical, importa o conhecimento de sua origem e de sua natureza jurídica.

2.2 Histórico

Ao conferir aos sindicatos o poder de impor contribuições e exercer funções delegadas de Poder Público, a Constituição de 1937, coerente com a concepção publicística que inspirou a organização sindical corporativista, instituiu o imposto sindical, em seu art. 1386.

Sob essa perspectiva, já na época, na visão de Oliveira Viana (1943, p. 16), duas prerrogativas fi caram marcantes: o poder tributário de taxar todos os membros da categoria; e o poder regulamentar de estabelecer, por meio de convenções coletivas, regras sobre o contrato de trabalho. Ressalta-se que os dois poderes incidiriam sobre os membros da categoria pelo sindicato representada, ainda que não fossem fi liados.

O Decreto-Lei nº 1.402, de 1939, em seu art. 3º, incluiu, entre as prerrogativas dos sindicatos, a possibilidade de “impor contribuições a todos aqueles que participam das profi ssões ou categorias representadas”.

Entretanto, somente a partir do Decreto-Lei nº 2.377, de 1940, que os sindicatos passaram a ter a receita em tela, então denominada imposto sindical. Fixaram-se os valores e épocas de pagamento, previu-se o desconto em folha,

5 A respeito, ver NASCiMENTO, Amauri Mascaro. Direito sindical. 2. Ed. Rev. E ampli. – São Paulo: Saraiva, 1991. (p.208).

6 Art 138. A associação profi ssional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profi ssionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de Poder Público. (Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937).

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indicou-se o percentual a ser distribuído pelos sindicatos às entidades de grau superior e atribuíram-se poderes de fi scalização e regulamentação ao Ministério do Trabalho, indústria e Comércio.

Seguiu-se o Decreto-Lei nº 4.298, de 1942, que regulou o recolhimento do imposto, sua aplicação e fi scalização, instituiu a Comissão do imposto Sindical e o fundo Social Sindical.

Em 1943, a CLT reuniu, sistematicamente, em seus arts. 578 a 610, as disposições normativas atinentes ao imposto sindical dos aludidos Decretos-Leis.

A Constituição de 1946 não tratou expressamente das contribuições sindicais, mas também não vedou sua cobrança por parte dos sindicatos. Dessa forma, entende-se que a Carta recepcionou as regras da CLT concernentes ao imposto sindical.

Em 1962, a Lei nº 4.140 alterou os percentuais e a forma de cálculo do imposto sindical devido pelos trabalhadores autônomos, profi ssionais liberais e empregadores. No que tange aos trabalhadores rurais, a Lei nº 4.214, de 1963 (Estatuto do Trabalhador Rural), em seu art. 135, estendeu a exigência do imposto aos mesmos7. Salienta-se que a referida lei foi revogada pela Lei nº 5.889, de 1973.

O Decreto-Lei nº 27, de 1966, alterou a nomenclatura do imposto sindical para contribuição sindical, denominação hoje prevalecente. Na verdade, aquele sempre teve característica de contribuição, pois tinha um destino específi co, qual seja, o interesse da categoria profi ssional e econômica. O Decreto-Lei nº 229, de 1967, fez a devida adaptação da CLT quanto à atualização da nomenclatura contribuição sindical.

A Constituição de 1967, em seu art. 159, § 1º, manteve a exigência da contribuição sindical, apesar de ainda haver necessidade de lei determinando as contribuições sindicais, para que os sindicatos pudessem arrecadá-las8.

O Decreto-Lei nº 1.166, de 1971, também estabeleceu regras para a contribuição sindical em relação aos empregadores e trabalhadores rurais, 7 Art. 135.  é criado o imposto sindical, a que estão sujeitos os empregadores o trabalhadores rurais,

regulando-se o seu valor, processo de distribuição e aplicação pelo disposto no Capítulo iii, do Título das Leis do Trabalho, no que couber. (Lei nº 4.214, de 1963).

8 Art 159 - é livre a associação profi ssional ou sindical; a sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas de Poder Público serão regulados em lei. § 1º - Entre as funções delegadas a que se refere este artigo, compreende-se a de arrecadar, na forma da lei, contribuições para o custeio da atividade dos órgãos sindicais e profi ssionais e para a execução de programas de interesse das categorias por eles representadas.(Constituição da República Federativa do Brasil de 1967).

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tendo em vista que muitos produtores agrícolas não se organizavam sob a forma de empresa, não possuindo, portanto, capital social.

A Constituição Federal de 1988 dispõe:

Art. 8º é livre a associação profi ssional ou sindical, observado o seguinte: [...]iV - a assembleia geral fi xará a contribuição que, em se tratando de categoria profi ssional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei;

O texto constitucional, além de criar outra receita em favor dos sindicatos, preservou a contribuição sindical ao se referir à “contribuição prevista em lei”.

Por fi m, importa citar ainda as Medidas Provisórias de nº 236, 258 e 275, todas de 1990, que pretendiam a extinção da contribuição sindical, mas que não foram convertidas em lei.

Permanece ainda grande movimentação de alguns partidos políticos, sindicatos e da Central Única dos Trabalhadores - CUT, no sentido de extinguir a contribuição sindical, tendo em vista sua compulsoriedade e seus efeitos, que serão apontados mais adiante.

2.3 Natureza Jurídica

A investigação da natureza jurídica de um instituto de Direito pressupõe sua precisa defi nição e, posteriormente, sua classifi cação, como parte de um conjunto próximo de institutos correlatos9. Ou seja, busca-se fi xar a categoria jurídica da qual aquele faz parte.

Para encontrar a natureza jurídica da contribuição sindical, tendo em vista a defi nição exposta anteriormente, é mister compreender seus elementos fundamentais em contraposição ao conjunto mais próximo de fi guras jurídicas, de modo a possibilitar sua classifi cação.

Prevista na ordem jurídica brasileira há décadas, a contribuição sindical surgiu sob a denominação de imposto sindical e, como tal, tinha natureza tributária.

9 “Defi nição (busca da essência) e classifi cação (busca do posicionamento comparativo), eis a equação compreensiva básica da ideia de natureza” (DELGADO, 2009, p. 66).

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O Decreto-Lei nº 27, de 1966, alterou a nomenclatura do imposto sindical para “contribuição sindical”, denominação hoje prevalecente. No caso, a referida receita sempre teve característica de contribuição, e não de imposto, pois tinha um destino específi co, o interesse da categoria profi ssional e econômica.

A adoção de nova terminologia não acarretou modifi cação de sua natureza jurídica tributária. São irrelevantes, nos termos do art. 4º, do Código Tributário Nacional (CTN), a denominação e as demais características formais adotadas pela lei, importando apenas o fato gerador10.

Verifi ca-se a natureza jurídica da contribuição sindical a partir da sua previsão no art. 149, caput, da Carta Magna11, e de seu enquadramento no art. 3º do CTN, in verbis:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Evidencia-se, assim, conforme o supra-exposto, a natureza jurídica tributária da contribuição sindical.

2.4 Distinções

A contribuição sindical não se confunde com as demais modalidades de fi nanciamento das entidades sindicais elencadas alhures.

Primeiramente, cumpre distingui-la da chamada contribuição confederativa, criada pelo texto constitucional de 1988, que tem por escopo o custeio do sistema confederativo, cuja função básica é a coordenação das atividades dos sindicatos, federações e confederações do seu setor.

Observa-se que o constituinte optou por duas modalidades de contribuições na redação do art. 8º, iV, da CF/88:

10 Art. 4º A natureza jurídica específi ca do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualifi cá-la: i - a denominação e demais características formais adotadas pela lei; ii - a destinação legal do produto da sua arrecadação. (Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966).

11 Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profi ssionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, iii, e 150, i e iii, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. (Constituição Federal de 1988)

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Art. 8º é livre a associação profi ssional ou sindical, observado o seguinte: [...]iV - a assembleia geral fi xará a contribuição que, em se tratando de categoria profi ssional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei.

Salienta-se que, enquanto a contribuição sindical é prevista em lei, a contribuição confederativa é fi xada pela assembleia geral do sindicato.

A contribuição assistencial, por sua vez, consiste em recolhimento aprovado por convenção ou acordo coletivo, em virtude do sindicato ter participado das negociações coletivas, de ter incorrido em custos para esse fi m, ou para pagar determinadas despesas assistenciais realizadas pela agremiação (MARTiNS, 2010, p.769).

Na prática trabalhista, essa contribuição recebe diversas denominações. Maurício Godinho Delgado, em sua obra “Direito Coletivo do Trabalho” (2011, p. 104), cita como exemplos taxa de reforço sindical, contribuição de fortalecimento sindical e contribuição negocial. Sergio Pinto Martins acrescenta à lista as nomenclaturas taxa assistencial, taxa de reversão, contribuição de solidariedade e desconto assistencial (2010, p. 769).

Em regra, a contribuição assistencial será descontada em folha de pagamento em uma ou poucas parcelas ao longo do ano. é prevista, genericamente pelo art. 513, “e”, da CLT, que dispõe ser prerrogativa dos sindicatos “impor contribuições a todos aqueles que participam das categorias econômicas ou profi ssionais ou das profi ssões liberais representadas”. Porém, não há previsão legal expressa para esse pagamento, baseando-se somente nas referidas normas coletivas, cujos efeitos são normativos.

A jurisprudência tem considerado inválidas tais contribuições quando dirigidas a trabalhadores não sindicalizado. Esse entendimento de não-obrigatoriedade quanto às contribuições confederativas e assistenciais encontra-se estampado na Súmula 666 do Supremo Tribunal Federal e no Precedente Normativo n. 119 da SDC/TST, in verbis:

Nº 119 CONTRIbuIÇõES SINDICAIS - INObSERVÂNCIA DE PRECEITOS CONSTITuCIONAIS – “A Constituição da República, em seus arts. 5º, XX e 8º, V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. é ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição

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em favor de entidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento sindical e outras da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipulações que inobservem tal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados.” (nova redação dada pela SDC em sessão de 02.06.1998 - homologação Res. 82/1998, DJ 20.08.1998).

Maurício Godinho Delgado, em sua obra “Direito Coletivo do Trabalho” (DELGADO, 2011, p. 104/105), discorre sobre essa questão:

Não obstante tal tendência interpretativa, cabe objetar-se que, existindo no instrumento coletivo dispositivo autorizando, de modo efi caz, a insurgência do trabalhador não sindicalizado contra a referida contribuição, não haveria por que negar-se validade aos mencionados dispositivo e contribuição convencionais. é que tais instrumentos são produtores de regras jurídicas, favorecedores de toda a categoria, não sendo justo que somente os associados respondam pela parcela dirigida à entidade sindical em decorrência de preceito inserido no respectivo diploma. é claro que se mostra abusivo desconto diferenciado e mais elevado com relação a não associados – abusivo e discriminatório. Verifi cando-se abuso de direito e discriminação no conteúdo da regra coletiva negociada, deve tal dimensão irregular ser invalidada.

A contribuição confederativa só será devida, de acordo com a jurisprudência, pelos trabalhadores sindicalizados, não sendo válida sua cobrança dos demais obreiros, pelo que se difere inteiramente da contribuição sindical.

Não obstante os entendimentos jurisprudenciais de que a imposição da contribuição confederativa para os não associados seria inconstitucional, porque afetaria a liberdade de fi liação dos trabalhadores, diverge-se de tal posicionamento, concordando-se em termos com Mauricio Godinho Delgado, visto que o tratamento diferenciado é que pode eventualmente criar constrangimentos para os membros da categoria, jamais o isonômico.

Cumpre salientar que o próprio constituinte, ao instituir a contribuição confederativa, o fez por meio de norma específi ca, no sentido de que a assembleia geral a fi xaria como contribuição a ser realizada pela categoria e não somente pelos associados (art. 8º, iV, da CF/88), daí porque ser prescindível verifi car se a sua instituição (para categoria) fere ou não o direito à liberdade de fi liação.

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No mesmo sentido, também o art. 513, alínea “e”, da CLT12, o qual também se refere à categoria e não apenas a sindicalizados. é bem verdade que o art. 513, “e”, da CLT, não trata especifi camente da contribuição confederativa, mas nem seria necessário, haja vista reportar-se de forma genérica a contribuições, o que inclui naturalmente a confederativa, cuja partição deverá ser conforme os percentuais relativos à contribuição sindical, aplicáveis por analogia.

No mais, cabe distinguir a contribuição sindical da chamada mensalidade dos associados ou contribuição dos associados, prevista no art. 548, “b”, da CLT13. Estabelecida pelo estatuto ou pelas assembleias gerais de cada entidade, esta recai sobre todos os fi liados do sindicato.

O associado à entidade sindical, além de contribuir como membro da categoria, paga também a quantia que o sindicato estabelecer a título de contribuição associativa. Essa receita confere poderes ao associado que o simples membro da categoria não possui, tais como votar e ser votado nas assembleias gerais, assumir cargos de direção e representação sindical etc.

Aumari Mascaro Nacimento, em sua obra Direito Sindical (1991, p. 212), faz importantes considerações sobre a receita sindical em questão:

é fácil observar que a contribuição assistencial é de fonte convencional, e facultativa. é convencional porque o instrumento jurídico de que resulta é a convenção coletiva de trabalho, e é não-obrigatória, mas facultativa, diante da necessidade de autorização do trabalhador interessado para que seja efetuado o seu desconto.Se bem examinada, a contribuição sindical nasce de um processo constitutivo que não é instantâneo. Ao contrário, é sucessivo, integrado por dois momentos básicos. Primeiro, a sua normativização pela cláusula na convenção; segundo, a sua efi cácia, dependente de autorização do trabalhador a ser descontado, de modo que, sem esta formalidade, o instituto não se completará.

Enfi m, a mensalidade dos associados consiste em modalidade voluntária

de contribuição, comum de qualquer tipo de associação, de qualquer natureza, e não somente sindicatos.

No que tange ao desconto dessas contribuições, dispõe o art. 545, da CLT:

12 Art. 513 - São prerrogativas dos sindicatos : [...] e) impor contribuições a todos aqueles que participam das categorias econômicas ou profi ssionais ou das profi ssões liberais representadas. [...].

13 Art. 548 - Constituem o patrimônio das associações sindicais: [...] b) as contribuições dos associados, na forma estabelecida nos estatutos ou pelas Assembleias Gerais;

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Art. 545 - Os empregadores fi cam obrigados a descontar na folha de pagamento dos seus empregados, desde que por eles devidamente autorizados, as contribuições devidas ao Sindicato, quando por este notifi cados, salvo quanto à contribuição sindical, cujo desconto independe dessas formalidades. 

Observa-se, com efeito, que o legislador não estabeleceu qual a forma da autorização do desconto, se pessoal ou coletiva, de modo que poderá ser tanto uma quanto outra, sendo dispensável a individual quando houver a coletiva, bastando apenas ao sindicato a comprovação desta no caso de não pactuada em acordo ou convenção coletiva.

Ante ao exposto, entendidas as espécies de contribuição, importa a refl exão acerca da interação entre liberdade sindical e contribuição sindical.

3 Liberdade sindical versus contribuição sindical

A Liberdade Sindical, nacional e internacionalmente, encontra-se consagrada em numerosos textos normativos e na doutrina pela importância que apresenta, sendo o ponto central do direito sindical. O texto básico para o estudo de seu conteúdo é o da Convenção nº. 87 da Organização internacional do Trabalho (OiT), não prescindindo a análise de outros.

Primeiramente, cumpre dizer que a Constituição da OiT, de 1919, já previa o princípio da liberdade sindical como um dos objetivos a ser alcançado. Outrossim, a Declaração de Filadélfi a, de 1944, incorporada como um anexo daquela, à luz dos efeitos da Depressão e da Segunda Guerra Mundial, reafi rmou um dos postulados básicos da referida organização: “a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável a um progresso ininterrupto”.

Na Conferência Geral da OiT, em 1948, em São Francisco, nos Estados Unidos, criou-se a Convenção nº. 87, denominada Convenção sobre Liberdade Sindical e a Proteção do Direito Sindical. Essa norma internacional é que traz os principais parâmetros a respeito da liberdade sindical. Apesar de já ratifi cada por 152 países (até o primeiro bimestre de 2013), ainda não foi ratifi cada pelo Brasil, em razão da unicidade sindical brasileira e da compulsoriedade da contribuição sindical, incompatíveis com as disposições daquela.

A norma de maior importância da Convenção nº. 87, prevista em seu art. 2º, estipula o conceito de liberdade sindical e sua abrangência:

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Os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem autorização prévia, têm o direito de constituir as organizações que estimem convenientes, assim como o de fi liar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas.

Conforme análise de Arnaldo Süssekind, na obra Direito Internacional do Trabalho (2000, p. 326/327), a transcrita norma internacional revela dois elementos que confi guram o conceito de liberdade sindical: a) a liberdade sindical coletiva, que assegura aos empresários ou trabalhadores o direito de constituir o sindicato de sua escolha, com a representatividade qualitativa (categoria, profi ssão, empresa etc.) e a quantitativa (base territorial) que lhes convierem; b) a liberdade sindical individual, que faculta a cada empresário ou trabalhador fi liar-se e desfi liar-se do sindicato de sua preferência, não podendo ser compelido a contribuir para o mesmo, se a ele não estiver associado.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, além de assegurar, em seu art. 20, o “direito à liberdade de reunião e associação pacífi cas”, também elenca o direito de sindicalização entre os direitos humanos: “todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção dos seus interesses” (art. 23, 4).

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 8º, i, por sua vez, dispõe que “é livre a associação profi ssional ou sindical” e que são “vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical”, com o que se dá maior espaço para a auto-organização dos sindicatos através de seus estatutos sindicais.

Cumpre esclarecer que a liberdade sindical é abrangida pelo princípio da livre associação, que, segundo Maurício Godinho Delgado (2009, p.1199), “assegura consequência jurídico-institucional a qualquer iniciativa de agregação estável e pacífi ca entre pessoas, independentemente de seu segmento social ou dos temas causadores da aproximação”. Quanto ao tema em tela, convém citar explicação do ministro do Tribunal Superior do Trabalho (2009, p. 1199/1200):

A liberdade associativista tem uma dimensão positiva (prerrogativa de livre criação e/ou vinculação a uma entidade associativa) ao lado de uma dimensão negativa (prerrogativa de livre desfi liação da mesma entidade). Ambas estão mencionadas no texto magno (“ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” – art. 5º, XX, CF/88).

Tal liberdade, é claro, envolve outras garantias da ordem jurídica: livre estruturação interna, livre atuação externa, autossustentação, direito à

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autoextinção (ou garantia de extinção por causas ou agentes externos somente após regular processo judicial).

Direcionado ao universo do sindicalismo, o princípio mais amplo especifi ca-se na diretriz da liberdade sindical (ou princípio da liberdade associativa e sindical).

Tal princípio engloba as mesmas dimensões positivas e negativas já referidas, concentradas no universo da realidade do sindicalismo. Abrange, desse modo, a liberdade de criação de sindicatos e de sua autoextinção (com a garantia de extinção externa somente através de sentença judicial regularmente formulada). Abrange, ainda, a prerrogativa de livre vinculação a um sindicato como a livre desfi liação de seus quadros (o art. 8º, V, da Constituição especifi ca o comando já lançado genericamente em seu art. 5º, XX: “ninguém será obrigado a fi liar-se ou a manter-se fi liado a sindicato”).

E ainda, o renomado Jean Maurice Verdier, em sua obra Syndicats (1966,

p. 111/112), conclui que a confi guração da liberdade sindical depende da conjunção dos seguintes fatores: a) independência dos sindicatos em relação ao Estado; b) representação dos interesses profi ssionais da categoria ou grupo; c) pluralidade sindical, não se exigindo a pluralidade de fato, se assim não desejarem os membros da profi ssão, empresa, indústria ou categoria; d) caráter facultativo do sindicato.

Percebe-se, assim, que todos os citados textos normativos visavam a proteger a liberdade sindical individual e coletiva, positiva e negativa (fi liar-se e desfi liar-se), dos trabalhadores e dos empregadores.

Ocorre que a contribuição sindical obrigatória, presente no ordenamento jurídico brasileiro, viola esse princípio nas suas várias dimensões, tendo em vista que os trabalhadores brasileiros devem custear as organizações representativas de sua categoria, independentemente de julgarem convenientes.

Arnaldo Süssekind (2000, p. 330/331) se manifesta quanto ao tema:

Uma contribuição sindical compulsória é também incompatível com a Convenção n. 87, por isso que confi gura uma forma indireta de vinculação do trabalhador, ou do empregador, ao correspondente sindicato. Demais disto, só é possível pensar-se em contribuição obrigatória no regime do sindicato único. A vinculação indireta a sindicato por trabalhador ou empresário que a ele não se fi liou é fl agrantemente incompatível com a liberdade sindical, que faculte a pluralidade de representação.

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A contribuição sindical compulsória sustenta um modelo sindical anacrônico, contraditório, antidemocrático e paternalista14, impedindo a ratifi cação da Convenção 87 da OiT.

Para reforçar as fi nanças do sindicato, a OiT admite a estipulação de uma quota solidariedade na Convenção Coletiva pelo sindicato ajustada, a ser paga exclusivamente pelos não-associados, como condição para que a estes se estendam as vantagens constantes do instrumento negociado15.

Reitera-se, então, que prevalece, na doutrina, a posição contrária à existência dessa receita sindical compulsória, tendo em vista o entendimento de que a compulsoriedade fere a liberdade sindical dos trabalhadores (Sergio Pinto Martins, Arnaldo Süssekind, Jean Maurice Verdier), que é um tributo de características corporativistas (Maurício Godinho Delgado, Orlando Gomes e Elson Gottschalk), e que o suporte fi nanceiro dos sindicatos deve ser voluntário (João Régis F. Teixeira)16.

A declaração formal da liberdade sindical deve vir acompanhada de instrumentos jurídicos que permitam o seu exercício. No caso, a contribuição sindical compulsória, apesar de ser um meio de fi nanciamento dos sindicatos, não resguarda efetivamente a liberdade individual dos trabalhadores e empregadores brasileiros.

Portanto, o presente estudo é necessário para evidenciar a violação à liberdade sindical no Brasil, bem como traçar as possíveis maneiras de extinção e substituição da contribuição sindical no sistema normativo brasileiro, para garantir o livre exercício do direito de organização sindical e, por conseguinte, o fortalecimento das entidades respectivas.

4 Os efeitos da contribuição sindical

Quanto aos efeitos da compulsoriedade da contribuição sindical, analisa-se, primeiramente, a crise pela qual passa o sistema sindical em inúmeros países, a partir das considerações de Maurício Godinho Delgado (2011, p. 133):14 Conceito empregado de acordo com Alexis de Tocqueville, no sentido de que “o novo Estado paternal se

diferencia, segundo Tocqueville, do antigo despotismo, porque ‘estaria mais estendido, seria mais brando e envileceria os homens sem os atormentar’: tornou-se possível graças precisamente a um compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania popular. [...] é ainda o pensamento de Tocqueville, ‘ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega, por si só, de lhes assegurar o desfrute dos bens e de vigiar sobre a sua sorte. é absoluto, minucioso, sistemático, previdente e ando. Assemelhar-se-ia à autoridade paterna se, como esta, tivesse por fi m preparar o homem para a idade viril, mas não procura senão prendê-lo irrevogavelmente à infância” (BOBBiO,1998, p.909).

15 Verbete 324 do Comitê e Liberdade Sindical. 3. ed. 1985. (p.69).16 A análise foi baseada nos apontamentos de Amauri Mascaro Nascimento (1991, p. 208).

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O movimento sindical tem passado em distintos países capitalistas desenvolvidos por certa crise nas últimas décadas, a contar do fi nal dos anos de 1970 e início dos anos 1980. No Brasil esta crise apresentou-se apenas a partir da década de 1990.Caracterizariam tal crise, nos países desenvolvidos, fatos como, ilustrativamente, a redução de taxas de sindicalização dos trabalhadores, a diminuição da infl uência das entidades sindicais quer no plano político-institucional, quer no plano intra e interempresarial, a adoção pelos respectivos governos de medidas desestabilizadoras das conquistas do chamado Estado de Bem-Estar Social. Na realidade brasileira, o enfraquecimento dos sindicatos desde os anos 1990 estaria expresso também pela incessante pulverização das entidades de trabalhadores, em vista da visível tendência ao fracionamento das categorias.

A contribuição sindical compulsória contribui radicalmente para essa crise, pois que seus efeitos são desastrosos.

A percepção dessa receita por parte dos sindicatos independe da reunião de condições de representação e de liderança sindical, sequer exige o recrutamento de fi liados ou conquistas em nome da categoria. Assim, inúmeros sindicatos existem exclusivamente para receber essa contribuição.

Por conseguinte, verifi ca-se, atualmente, uma verdadeira “libertinagem sindical”, na medida em que há a proliferação de sindicatos inexpressivos e “de carimbo”, como resultado do estímulo econômico propiciado pelo próprio ordenamento jurídico brasileiro – leia-se contribuição sindical17.

O permanente crescimento quantitativo dos sindicatos seria legítimo se decorresse do avanço da organização sindical, e não da fragmentação de entidades já existentes ou da multiplicação de entidades “fantasmas”, sem representatividade, sem associados, sem democracia e sem participação dos trabalhadores.

17 “Enraizada na cultura trabalhista desde o governo de Getúlio Vargas, a contribuição sindical completa 71 anos de existência em 2011 no centro de um forte impasse entre as maiores centrais do país. Enquanto a Central Única dos Trabalhadores (CUT) defende sozinha a extinção da contribuição, demais entidades, como a Força Sindical e União Geral dos Trabalhadores (UGT), alinham o discurso a favor do imposto, que arrecadou ano passado R$ 1,02 bilhão – dinheiro que não chama a atenção apenas das grandes centrais: a cada dia, no país, surge em média 1,6 sindicato, e muitas dessas organizações, apontam os críticos do imposto, existem apenas para faturar um naco do desconto anual de 3,6% do salário mensal de março dos funcionários com carteira assinada, sejam eles sindicalizados ou não [!]. Só as seis maiores centrais sindicais receberam R$ 102,2 milhões – valor sem destino defi nido, já que, conforme prevê a lei, as entidades não precisam prestar contas ou aplicar os recursos para fi nalidades específi cas. Em todo o país, a contribuição também foi repassada para 9.507 sindicatos laborais – 750 no Paraná.” (GAZETA DO POVO, 24/05/2011) (grifo nosso)

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Logo, percebe-se que a contribuição sindical auxilia na formação e serve de escora para sindicatos inexpressivos e descomprometidos com o interesse de seus representados, causando o enfraquecimento do sindicalismo e um desequilíbrio ainda maior na relação capital-trabalho.

No entendimento de Maurício Godinho Delgado (2011, p. 132), há ainda outro efeito decorrente do acima mencionado, qual seja, um cenário de negociações coletivas muitas vezes extremamente danosas aos trabalhadores:

De um lado, tem permitido o próprio enfraquecimento dos sindicatos, por meio de sua pulverização organizativa, com a freqüente subdivisão das tradicionais categorias profi ssionais. é que o fi nanciamento compulsório dos sindicatos, em contexto de plena liberdade associativa, estimula o fracionamento das entidades, em vista da incessante busca da vantagem ofi cial econômica.

De outro lado, tem propiciado um cenário de negociações coletivas às vezes extremamente danosas aos trabalhadores, em vista da falta de efetiva representatividade dessas entidades enfraquecidas.

Nesse contexto, verifi ca-se que os representados, quando afastados dos sindicatos, não exercem qualquer pressão e controle sobre aqueles que supostamente os representa18.

Pior, os trabalhadores não amadurecem política e culturalmente, não se empoderam, não se preparam para os confl itos juslaborativos cotidianos. Por esses motivos, inviabiliza-se a construção de um padrão democrático. Segundo Mauricio Godinho Delgado (2009, p. 121):

No plano da sociedade civil, os mecanismos autoritário-corporativos simplesmente inviabilizam a construção de um padrão moderno e democrático de gestão social [...] por impedirem a maturação política e cultural da classe trabalhadora (e, portanto, da maior parte da população brasileira ativa) na dinâmica cotidiana do exercício das equações democráticas fundamentais: negociação/solução, autonomia/autorregulação, liberdade/responsabilidade. Finalmente, por vedarem a gestação de uma experimentada e sólida autotutela e, concomitantemente, autorresponsabilidade por parte da classe trabalhadora.

18 “[...] manter as direções sindicais imunes à pressão e controle de seus representados, instalando-as intangíveis em um certo limbo institucional à beira da entrada aberta ao aparelho de Estado. Em um contexto democrático, esse modelo tem efeitos desastrosos à sorte da Democracia, quer no plano da sociedade civil, quer no plano da sociedade política” (DELGADO, 2009, p. 121).

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Amiúde, sindicatos ignominiosos não só deixam de representar e empoderar os trabalhadores, como se alienam à classe empresarial, atendendo aos interesses dela.

No que tange à esfera subjetiva dos trabalhadores, conforme já demonstrado no item anterior, a contribuição sindical compulsória atenta contra as liberdades sindicais, tais como a liberdade de associação positiva e negativa. E ainda, afronta o direito à intocabilidade dos salários, o que corrobora para a manutenção do estado de miserabilidade de muitos trabalhadores.

Os efeitos mencionados resultam ainda numa consequência estrutural/organizacional: as condutas e resultados de organizações sindicais criadas exclusivamente para a arrecadação da contribuição compulsória maculam de suspeição toda a estrutura sindical, já condenada pelas origens corporativo-fascistas outrora explanadas. Por fi m, é truísmo o efeito remate: o desequilíbrio na relação capital-trabalho.

Nesses termos, restam demonstrados os danos causados ao movimento sindical brasileiro pela compulsoriedade da contribuição em tela. infere-se que, com o fi m da contribuição sindical, somente os sindicatos ativos sobreviverão e se multiplicarão. Ter-se-á, então, um sindicalismo mais autêntico e produtivo.

5 A contradição constitucional antidemocrática da contribuição sindical

A Constituição Federal de 1988, sem dúvida, trouxe avanço dos direitos sociotrabalhistas, não só ampliando as garantias já existentes, como criando novas. Cita-se, como exemplo, a isonomia de direitos entre trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput), estendendo-se a mesma aos avulsos (art. 7º, XXXiV); a ampliação do período da licença-previdenciária da gestante (art. 7º, XViii); a fi xação do aviso prévio em no mínimo 30 dias (art. 7º, XXi); extensão do direito ao FGTS (art. 7º,iii), inclusive aos trabalhadores domésticos, tendo em vista a aprovação da PEC 478/2010; dentre muitas outras. A Constituição afi rmou-se, assim, como a mais signifi cativa Carta de Direitos da história jurídico-política do país19. 19 “A Constituição de 05.10.1988 emergiu, também, como a mais signifi cativa Carta de Direitos já escrita na

história jurídico-política do país. Não se conduziu, porém, a nova Constituição pela matriz individualista preponderante em outras Cartas Constitucionais não autocráticas (como a de 1946). Nessa linha, superou a equívoca dissociação (propiciada pela Carta de 46) entre liberdade e igualdade, direitos individuais e direitos coletivos ou sociais. A nova Constituição fi rmou largo espectro de direitos individuais, cotejados a uma visão e normatização que não perdem a relevância do nível social e coletivo em que grande parte das

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Ocorre que, na contramão dos exemplos acima, a Carta Magna manteve a velha contribuição sindical de origem celetista, não progredindo sob o ângulo democrático, neste aspecto. Com isso, atrai acerbadas críticas à violação permitida aos princípios da liberdade associativa dos trabalhadores e da autonomia dos sindicatos. Convém transcrever o entendimento de Maurício Godinho Delgado (2009, p. 126), no que se refere a essa contradição:

O modelo jurídico-trabalhista brasileiro, na sua dimensão de Direito Coletivo, sintetiza, hoje, o próprio impasse vivido pela jovem Democracia brasileira. Fustigado pelo sopro modernizador e democratizante de um conjunto de intenções brandidas pelo receituário político da última década e meia do século XX, alcançou preservar e reproduzir, ao mesmo tempo, instituições e mecanismos que, ao longo da história, sempre desempenharam fundamental papel conspiratório contra a Democracia. A Constituição da República de 1988, nesse quadro, veio consubstanciar o ponto jurídico culminante desse impasse: um rol de preceitos e institutos que apontam para a linha de construção democrática e mais igualitária da sociedade brasileira, ao lado de institutos e mecanismos que inviabilizam essa efetiva construção, apontando resistentemente para o passado autoritário da história do país. Em um plano, normas inegavelmente inovadoras, que tangenciam o futuro e criam condições à normatização democrática desse futuro. Ao seu lado, normas e fi guras jurídico-institucionais que encarnam um direcionamento antitético à intenção renovadora manifestada pelo mesmo texto constitucional, lançando um véu de incerteza sobre a própria possibilidade de sucesso histórico concreto da intenção democrática sugerida.

Ora, por um lado a Constituição estabelece o direito à liberdade de associação e à auto-organização dos sindicatos, porém, por outro, mantém a contribuição em tela. Assim, ao preservar o fi nanciamento compulsório dessas entidades, atentou contra as liberdades sindicais, especialmente dos trabalhadores, e mais, até mesmo contra si, por ser pretensamente fundante de um Estado Democrático de Direito.

Não obstante os pontos negativos apresentados outrora, a Constituição acaba por permitir e sustentar um modelo sindical anacrônico, contraditório, antidemocrático e paternalista, que impede a ratifi cação da Convenção 87 da OiT (Organização internacional do Trabalho), aprovada em 1948, sobre

questões individuais deve ser proposta. Nesse contexto é que ganhou coerência a inscrição que produziu de diversifi cado painel de direitos sociotrabalhistas, ampliando garantias já existentes na ordem jurídica, a par de criar novas no espectro normativo dominante”. (DELGADO, 2009, p.118)

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Liberdade Sindical e a Proteção do Direito de Sindicalização, considerada o mais importante tratado multilateral da OiT20.

importantíssimo ressaltar que a contribuição sindical compulsória é derivada de lei, tendo a Constituição Federal apenas permitido a sua cobrança, sem impedir, entretanto, a revogação dos preceitos legais instituidores da verba.

A transição democrática do sistema sindical, portanto, somente se completaria com a adoção de medidas harmônicas e combinadas no sistema constitucional e legal brasileiros, quais sejam, a plena suplantação dos traços corporativistas do velho modelo sindical e a elaboração de um conjunto de garantias jurídicas à efetivação, à organização, da autonomia sindical.

6 Considerações finais

A contribuição sindical obrigatória, presente no ordenamento jurídico brasileiro, viola o princípio da liberdade sindical nas suas várias dimensões, em verdadeiro atentado a esse princípio, tendo em vista que os trabalhadores devem ter o direito de custear e fi liar-se às organizações no caso de estimarem convenientes.

Além de atentado à liberdade sindical, mencionada contribuição também obsta a efi ciência do movimento sindical, na medida em que auxilia na formação e serve de escora para sindicatos inexpressivos e descomprometidos com o interesse de seus representados, favorecendo ainda um cenário de negociações coletivas, amiúde, extremamente danosas aos trabalhadores.

A compulsoriedade da referida receita sustenta um modelo sindical anacrônico, contraditório, antidemocrático e paternalista. infere-se que, com o fi m da contribuição sindical, somente os sindicatos ativos sobreviverão e se multiplicarão. Os trabalhadores encontrarão espaço aberto para a gestão própria, com condições mais favoráveis à convivência capital-trabalho.

A contribuição sindical compulsória é derivada de lei, tendo a Constituição apenas permitido a sua cobrança, sem impedir, entretanto, a revogação dos preceitos legais instituidores da verba.

A superação desse velho modelo corporativista sindical brasileiro é, portanto, desafi o inadiável à construção de uma sólida e consistente experiência democrática no país. E o fi m da contribuição sindical já será um bom começo.

20 A contribuição sindical, juntamente com o princípio da unicidade sindical, impede a ratifi cação da Convenção 87, da OiT, importante tratado da OiT. Trata-se de constatação jurídica e de fato, que não signifi ca concordância da autora com a extinção da unicidade sindical, ou seja, com a aprovação da pluralidade sindical.

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