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I. Introdução Angola viveu um longo período de guerra que teve o seu culminar em 2002 com a assinatura do Memorando de Entendimento entre as partes em conflito. Para os milhares de angolanos que durante todos estes anos viveram este martírio, depois de 4 de Abril nada deveria ser como antes porque a Paz veio para ficar, apresentando-se para todos o grande desafio da reconstrução nacional, da caminhada para um exercício democrático mais inclusivo. Transcorridos três anos desde a assinatura do cessar-fogo e a sociedade ainda não encontro a estabilidade sonhada. O longo período de guerra, e as dificuldades para dar resposta aos desafios da reconstrução em tempo oportuno encaminharam o país para uma complexa variedade de problemas nos vários sectores da vida nacional provocados, quer pela desigualdade no acesso aos recursos, pela ausência de políticas sociais que protejam os mais desfavorecidos, pela intolerância política como pelo fraco exercício democrático, tornando-se por isso a sociedade propensa a conflitos. São muito poucas as organizações em Angola que se ocupam especificamente da problemática da gestão de conflitos, assim como existe muito pouca informação específica sobre este tema. Sob os auspícios da FES realizou-se no período de 06 a 26 de Maio de 2005, um pequeno estudo nas províncias de Luanda, Huambo e Malange com o objectivo de aprofundar os conhecimentos sobre conflitos e suas causas; conhecer as actividades de outros actores neste domínio e criar um conjunto de pressupostos que garantam a elaboração de programas a identificação e acompanhamento de conflitos. Para o efeito foi constituída uma equipa de três consultores que teve como principais tarefas a consulta a parceiros da FES com o fim de determinar as áreas de potencial conflito cujo interesse é prioritário; Identificar e decidir sobre os locais para realização do estudo, realizar o estudo nas províncias seleccionadas e socializar dos resultados preliminares com os parceiros da FES. A selecção das províncias obedeceu aos seguintes critérios: Áreas potencialmente conflituosas pela concentração de diversos grupos; Áreas cujo eleitorado nas eleições de 92 foi maioritariamente da UNITA ou do MPLA. As áreas de potencial conflito consideradas prioritárias foram as seguintes: Democratização/Processo eleitoral; Reconciliação e reinserção; Exclusão económica e social/pobreza e corrupção; Acesso a Terra. Durante as entrevistas realizadas as pessoas manifestaram interesse em receber uma pequena síntese dos resultados do estudo razão pela qual se pensou em produzir esta pequena brochura, esperando que possa contribuir de alguma forma para um melhor conhecimento da problemática da gestão de conflitos em Angola. 1

I. Introdução - library.fes.delibrary.fes.de/pdf-files/bueros/angola/hosting/upd11_05conflitos.pdf · Transcorridos três anos desde a assinatura do cessar-fogo e a sociedade ainda

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I. Introdução Angola viveu um longo período de guerra que teve o seu culminar em 2002 com a assinatura do Memorando de Entendimento entre as partes em conflito. Para os milhares de angolanos que durante todos estes anos viveram este martírio, depois de 4 de Abril nada deveria ser como antes porque a Paz veio para ficar, apresentando-se para todos o grande desafio da reconstrução nacional, da caminhada para um exercício democrático mais inclusivo. Transcorridos três anos desde a assinatura do cessar-fogo e a sociedade ainda não encontro a estabilidade sonhada. O longo período de guerra, e as dificuldades para dar resposta aos desafios da reconstrução em tempo oportuno encaminharam o país para uma complexa variedade de problemas nos vários sectores da vida nacional provocados, quer pela desigualdade no acesso aos recursos, pela ausência de políticas sociais que protejam os mais desfavorecidos, pela intolerância política como pelo fraco exercício democrático, tornando-se por isso a sociedade propensa a conflitos. São muito poucas as organizações em Angola que se ocupam especificamente da problemática da gestão de conflitos, assim como existe muito pouca informação específica sobre este tema. Sob os auspícios da FES realizou-se no período de 06 a 26 de Maio de 2005, um pequeno estudo nas províncias de Luanda, Huambo e Malange com o objectivo de aprofundar os conhecimentos sobre conflitos e suas causas; conhecer as actividades de outros actores neste domínio e criar um conjunto de pressupostos que garantam a elaboração de programas a identificação e acompanhamento de conflitos. Para o efeito foi constituída uma equipa de três consultores que teve como principais tarefas a consulta a parceiros da FES com o fim de determinar as áreas de potencial conflito cujo interesse é prioritário; Identificar e decidir sobre os locais para realização do estudo, realizar o estudo nas províncias seleccionadas e socializar dos resultados preliminares com os parceiros da FES. A selecção das províncias obedeceu aos seguintes critérios:

Áreas potencialmente conflituosas pela concentração de diversos grupos;

Áreas cujo eleitorado nas eleições de 92 foi maioritariamente da UNITA ou

do MPLA. As áreas de potencial conflito consideradas prioritárias foram as seguintes: Democratização/Processo eleitoral; Reconciliação e reinserção; Exclusão económica e social/pobreza e corrupção; Acesso a Terra. Durante as entrevistas realizadas as pessoas manifestaram interesse em receber uma pequena síntese dos resultados do estudo razão pela qual se pensou em produzir esta pequena brochura, esperando que possa contribuir de alguma forma para um melhor conhecimento da problemática da gestão de conflitos em Angola.

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1.1. Entrevistas realizadas por província Tendo em conta os objectivos do estudo e as áreas de potencial conflito condideradas como prioritárias decidiu-se que a informação a recolha da informação deveria ser feita a vários níveis (provincial e municipal) e abranger uma considerável diversidade de actores entre OSC, Instituições do Estado, autoridades tradicionais, ONG’s internacionais, partidos políticos, instituições religiosas e cidadãos.

PROVÍNCIAS GRUPOS ENTREVISTADOS Huambo Luanda Malange Total

OCB’S - - 3 3 OSC ONG e ASSOC 2 5 5 12

Instituições do Estado

2 - 2 4

Sobas 1 - 3 4 ONG’s Internacionais - 4 1 5 Partidos Políticos 2 2 5 9 Instituições Religiosas 3 2 1 6 Cidadãos 2 2 - 4 Total 11 15 20 47 II. Os resultados do estudo A apresentação dos resultados do estudo foi organizada as áreas de potencial conflito em análise procurando ser o mais fiel possível a informação obtida a partir das entrevistas realizadas nas províncias seleccionadas complementada com as contribuições feitas por alguns parceiros durante a apresentação dos resultados preliminares e a consulta a informação disponível sobre os temas seleccionados. 2.1. Democracia e impacto do processo eleitoral Desde a data da Independência (1975) até ao final da década de 80 a sociedade angolana viveu sob um regime moldado na base da teoria marxista – leninista, o que provocou uma forte luta de resistência contra o regime perpetrada pela UNITA. Com a assinatura dos acordos de Bicesse em 19911, Angola vive um período de paz e são realizadas as primeiras eleições legislativas sob os auspícios das Nações Unidas. Durante esse período foi elaborada a segunda Lei Constitucional de Angola que garantia a entrada de Angola na economia de mercado, criava as condições para a instauração de um regime multipartidário assim como o alargamento dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos dos quais interessa destacar os direitos políticos. Os resultados eleitorais fizeram com que o país emergisse numa outra guerra que se arrastou até Abril de 2002, altura em que foram assinados os Acordos Paz no Luena. Esta situação fez com que um considerável número de cidadãos não pudesse fazer uso dos direitos políticos na sua plenitude.

1 Entre o MPLA e a UNITA

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No âmbito da democracia a maioria dos entrevistados reconhece ter havido muitos avanços no processo de construção mas vêem-na com alguma apreensão e como um objectivo por atingir uma vez que a democracia não é extensiva a todas as províncias. Ela vai diminuindo do centro (capital nacional e provinciais) para a periferia (província, município, localidade). Esta situação é mais preocupante a nível provincial, já que a aplicação das regras democráticas é fortemente influenciada pela percepção de quem detém o poder, pelo grau de abertura democrática e pelo deficiente convívio na diferença. As feridas de guerra ainda prevalecentes e difíceis de gerir pelas pessoas mais afectadas (perca de familiares, de bens, mutilações,…), a fidelidade, gratidão ao partido no poder por tê-los protegido durante a guerra e o receio de represálias proporciona um clima de intolerância política (principalmente no meio rural) e a limitação da livre expressão. Os Partidos Políticos da Oposição (PPO) representados em algumas províncias, têm dificuldades em trabalhar nas aldeias, localidades.

“Muitas pessoas têm medo de perder o emprego caso mostrem simpatia por um outro

partido.” (Hbo)

“Quando estás num caminho e a cobra te pica é difícil esquecer onde a cobra te picou. Sempre que passares vais-te lembrar.”(Mje)

“A UNITA não consegue fazer isso. Tem que trabalhar muito para apagar a “má”

imagem que tem junto das populações ligada ao temor. Até mesmo as populações que estiveram com a UNITA durante a guerra têm medo.”(ONG/Mje)

“ Não receberemos nenhum PPO porque somos de um único partido.”(Soba Mge)

“Os PPO terão muitas dificuldades em se inserir nos municípios, principalmente em Malange e na Lunda Sul por causa das populações serem muito ligadas ao MPLA,

ligação que remonta da luta de resistência colonial.”(Mge)

“ Os PPO são bem recebidos uma vez que estão autorizados pelo governo. Mas o povo tem receio de ser mal visto. Quando aparecem problemas são os primeiros a serem

procurados.”(Hbo) Um considerável número de entrevistados considera que o clima de intolerância política é algo incitado pelo partido no poder. Outros acham que esta acontece de forma esporádica e que há uma grande aposta do governo local em criar um clima de tolerância;

“Como consequência do conflito armado há pouco espaço para os outros partidos se articularem. O governo/MPLA também não tem facilitado. Ao mesmo tempo os PPO

não lutam suficientemente por um espaço. Fazem comícios mas seria necessário falarem com as pessoas. É importante falar com o soba quando se chega a uma

localidade e por isso muitas vezes são corridos.”(Mge)

“… Em Malange está-se a encontrar um clima que proporcione a tolerância. O governo provincial luta para isso mas infelizmente, muitas vezes ao nível da população

surgem acções isoladas e tem havido queixas de alguns PPO com relação à intolerância.”

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Alguns entrevistados consideram que a liberdade de expressão e o acesso à informação são ainda muito deficientes, uma vez que são impostas algumas restrições à actuação dos partidos políticos; o debate político sobre as questões nacionais não é extensivo a todo o país, tendendo a diminuir no interior, principalmente a nível comunitário; não existem rádios privadas e os jornais não chegam regularmente a algumas províncias. Consideram existir também uma disparidade muito grande no acesso aos recursos pelos Partidos Políticos, inclusive aos media. Na maioria das vezes as iniciativas dos PPO não são reportadas pelos media ou são reportadas em horários com pouca audiência.

“Em 2003 a rádio Eclesia fez uma experiência só com música para testar e tivemos

muitos problemas com o governo.”(Hbo)

“ A lei de manifestação e reunião prevê que cada partido tem os mesmos direitos. Porém, para nós é só possível fazer uma manifestação nos dias úteis depois das 19H00’

e aos sábados a partir das 15H00’. Mesmo nestes horários impróprios é muito difícil conseguir a aprovação de uma manifestação. Uma manifestação a favor do MPLA ou

do Presidente da República pode ser feita a qualquer hora da semana.”(Lda.)

“ O MPLA domina os meios de comunicação. É difícil um partido da oposição ter um minuto na televisão…” (Lda.)

No que se refere ao processo eleitoral todos os entrevistados pensam que poderão haver alguns choques antes e depois das eleições mas nunca o retorno à guerra pelos sucessos conseguidos nos últimos anos: - a criação de um exército único; a integração de combatentes da UNITA na polícia nacional e pelo facto da desmobilização e reinserção dos ex-militares dos acordos de Luena terem beneficiado grandemente a UNITA. Todas as pessoas manifestam interesse em votar no entanto, o medo prevalece porque de um modo geral associam as eleições ao conflito armado. Por essa razão alguns PPO defendem a necessidade de leis específicas que protejam os que participarem nas campanhas partidárias e punam actos de violência ou intimidação. Em Malange o medo prevalece e as pessoas posicionam-se em relação a este sentimento da seguinte forma:

- Ignoram a existência de outras forças políticas pela evidente presença das feridas de guerra e pelo seu fraco protagonismo nas províncias;

- Pensam instalar-se em outras localidades e principalmente nas cidades porque oferecem maior segurança; - Não manifestam interesse em votar. Este sentimento é mais evidente no seio das mulheres, mais engajadas na religião e no seio dos jovens pela insatisfação com relação ao elevado índice de desemprego e à dificuldade de continuidade dos seus estudos (a partir do nível médio).

“Têm medo das eleições. Há um provérbio em Kimbundu que diz”o que já me

aconteceu que não me aconteça mais. Se acontecer algo onde nós vamos refugiar? Agora já não há eucaliptos para nos escondermos. Morreu muita gente. Antes da

guerra tínhamos condições: lavras, os armazéns com coisas a apodrecer. Caso haja guerra outra vez o pouco que temos será roubado. Como é que vamos sobreviver? O

voto não é problema. O problema é dizerem que o cidadão sem documento de voto não pode circular.”(grupo de Mulheres)

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“Não querem votar para evitar conflitos até mesmo nas famílias. Não estão a ver os benefícios do voto.” (grupo de Mulheres)

“… há dificuldades para conseguir o primeiro emprego. O recurso tem sido o sector privado que não está potenciado. Há jovens que querem realizar uma

manifestação por causa da situação da educação que em princípio se vai realizar no dia de África.”

“Muitos deles ainda têm armas. Às vezes disparam. Falta uma recolha sistemática. Sem formação profissional e a base económica para iniciar um negócio o desespero

vai continuar e eles vão continuar a ser uma fonte de instabilidade.”(Hbo) Na mobilização das pessoas para as eleições não subjaz a crença em mudanças significativas nas suas vidas como resultado das eleições, principalmente no meio rural. Em Malange é evidente uma forte aposta no MPLA por ser o partido que conhecem e que de alguma forma os protegeu durante a guerra. Esta atitude tem dificultando em alguns casos, as actividades dos demais partidos políticos. No Huambo acredita-se que haverão mudanças no início da campanha eleitoral (meio rural). Por exemplo, os enfermeiros e professores esperam uma mudança significativa nos seus salários ou a recepção de benesses que ajudem a resolver a sua situação económica. A opinião dos entrevistados em relação ao protagonismo dos PPO é a de que não sentem da parte destes preocupação em ganhar as eleições para melhorar a vida das populações mas sim para assumir lugares de poder a nível do Parlamento e do Governo. As pessoas não conhecem os seus programas políticos e fica sempre a dúvida de que, uma vez no poder venham a fazer diferente do actual partido no poder. Ao mesmo tempo consideram que a data marcada para as eleições está muito próxima e temem que a UNITA e os demais PPO não estejam preparados para as eleições, já que um considerável número de PPO ainda não tem representações provinciais inclusive, a UNITA. Consideram ainda que a retirada dos Partidos Políticos da oposição da Comissão Constitucional foi um ganho porque acelerou o anúncio da data das eleições, mas estes perderam a grande oportunidade de introduzir na agenda eleitoral a problemática das eleições locais. Atribuem as lideranças políticas um papel fundamental na criação de um clima de paz, concórdia e cépticos em relação à ausência de lideranças alternativas.

“A forma como a população vai actuar durante as eleições dependerá muito dos posicionamentos assumidos pelos líderes locais dos grandes partidos e da forma

como os níveis provincial e nacional vão reagir.”(Hbo) “ A história de outros povos dá-nos lições. Caso haja vontade política a situação de intolerância pode ser controlada. Há alturas em que o Presidente da República tem

que dizer que direcção o país tem que seguir.”(Hbo)

É preocupante a incapacidade dos actores políticos (Partidos Políticos e sociedade civil) marcada quer pela ausência de lideranças fortes como de “causas

políticas”.(Lda) Ainda em relação ao processo eleitoral consideram que algumas posições assumidas pelos órgãos de comunicação social públicos podem levar a que estes se tornem num

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foco de conflito, podendo-se perder de vista a discussão de grandes temas para o país empobrecendo os discursos eleitorais. Consideram preocupante o facto de a sociedade civil ter sido posta à margem do processo eleitoral, o que na sua opinião demonstra que a sociedade civil foi pouco incisiva na conquista de espaço neste campo. 2.2. Reinserção e Reconciliação Com o Memorando de Luena em Fevereiro de 2002, Angola pôs fim a uma guerra que não só matou pessoas e destruiu as infra-estruturas do país mas também destruiu muitas relações e mentes. As armas continuam caladas, o que por si só já é um grande sucesso. A desmobilização de mais de 100.000 antigos combatentes da UNITA foi concluída e as chances para um novo conflito armado não são visíveis. No entanto, houve bastantes problemas no processo da desmobilização dos ex-combatentes da UNITA que provocaram um certo descontentamento: houve fome nos centros de aquartelamento, as indemnizações foram pagas com atraso, outros alegam não ter recebido nenhuma indemnização. O descontentamento aumentou com o início atrasado dos programas para a reintegração dos desmobilizados, que actualmente se encontram na sua fase inicial não havendo por essa razão impactos visíveis. Os sentimentos dos entrevistados em relação ao assunto variam de acordo com a sua condição de “vencedor” ou de “derrotado” e são de certa forma um manifesto descontentamento com relação aos critérios adoptados pelo governo e a política de intervenção do Banco Mundial no tratamento dos desmobilizados. O facto dos grandes programas apoiarem somente desmobilizados do Memorando de Luena criou insatisfação no meio das comunidades rurais. Durante as entrevistas foram reportados conflitos, queixas das populações e de outros antigos combatentes, que acham esta limitação injusta e que exigem correcções. Os atrasos verificados na implementação dos programas para desmobilizados criou frustração alguma frustração no seu seio. O IRSEM pretende abrir os programas para outros. Algumas ONG’s ligadas ao processo de desmobilização têm adoptado algumas estratégias com vista a reduzir as frustrações e com o fim de criar um clima de convivência salutar entre os desmobilizados e as populações em que estão inseridos.

“Esta separação trouxe muitos conflitos dentro das comunidades. É necessária a

montagem de programas onde se trata tudo por igual, e que não provoque discrepância, como até agora.”(Hbo)

“É necessário a montagem de um programa onde se trata tudo por igual, e que não

provoque discrepância, como até agora.”(ONG/Mge)

“Se soubéssemos da regra que os programas somente estão abertos para os desmobilizados de Luena, não íamos ter participado no concurso do

IRSEM.”(ONG/Mge) Em Malange a opinião dos entrevistados é a de que a reinserção dos desmobilizados ao invés de ser facilitada pelos programas iniciados ainda fica mais problemática. São

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muito frequentes as queixas da população e de outros combatentes sobre o “tratamento especial” que estes desmobilizados recebem. Uma componente bastante problemática é a entrega de bois de tracção para grupos de desmobilizados. A reacção da população é do tipo”Primeiro mataram e roubaram os nossos bois e agora ainda recebem de graça”. Apesar desse sentimento a relação entre os antigos combatentes da FALA e da FAPLA/FAA é boa. Raras vezes foram reportados actos de vingança ou outro tipo de violência.

“Temos projectos de apoio aos desmobilizados e as populações têm reclamado que o apoio é somente dado aos desmobilizados da UNITA. Defendo que os projectos de

apoio aos desmobilizados contribuem para semear a divisão. Os projectos deveriam ser conjuntos e as pessoas deveriam trabalhar em conjunto.”

“O tratamento diferenciado que é dado no projecto de apoio aos desmobilizados do

Luena e de Lusaka choca com todos os esforços de harmonização que as ONG’s estão a fazer.”

“Existe muita tolerância entre os ex-militares da FALA e das FAPLA, não tem havido

conflitos entre eles motivado por esse facto.”

“Os desmobilizados que se encontram nas aldeias, embora os residentes não o manifestem, está-se a criar uma situação que pode provocar conflitos.”

“Os regressados das áreas da UNITA têm tido muitas dificuldades porque muitos não

têm formação profissional e porque o convívio na diferença ainda não é um facto. Alguns discursos de forças políticas incitam a que as pessoas não convivam. Nos locais de trabalho os jovens sofrem quando conotados com um partido da oposição, quer os

que vieram de Luanda como das zonas anteriormente ocupadas pela UNITA.” Os representantes da UNITA acham que os antigos combatentes das FAPLA são privilegiados em relação aos da FALA e que a Segurança Social prometida para os antigos combatentes da FALA ainda não é um facto.

“Os da FAPLA têm muito mais facilidade de achar emprego no serviço público. Além

disso os nossos quase não têm chance de conseguir uma licença para qualquer negócio. Simplesmente são ignorados”. (Hbo)

Muitos desmobilizados ficaram perto das áreas de aquartelamento, na esperança de receber o dinheiro e os bens prometidos pelo governo criando-se assim algumas aldeias novas, não pretendendo regressar a suas áreas de origem. Porém, a situação nestas aldeias é marcada pela insuficiência de terra para a agricultura, desemprego e desespero.

“Principalmente nas províncias de Huíla e Huambo existem muitas aldeias somente compostas por ex-militares da UNITA e seus familiares. Eles ficam sem fazer nada,

reivindicando dinheiro e formação. As vezes revoltam. Alguns acabaram por fazer um curso, mas ficam sem emprego.”

“A maioria deles vinha do mato e não conhecia as regras do mercado; não sabem fazer negócio. Poucos conseguiram fazer algo, na maioria os melhor formados.”

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“ Alguns dos desmobilizados não voltaram porque pensaram que a população não aceitaria o seu regresso. Outros voltaram para as zonas de origem mas tinham que sair

porque encontraram barreiras.” “A população às vezes não aceita o regresso de desmobilizados. Às vezes queimam as casas dos desmobilizados. Acham que vão trazer conflitos no seio da comunidade.” 2.2.1. Sobre a reconciliação A reconciliação até aqui era vista por todos como um assunto dos “políticos” ou dos “militares”. Sempre que se falasse deste assunto com as pessoas elas diziam que já estavam reconciliadas. Mesmo nas províncias que foram mais afectadas pela guerra existe uma tendência para o perdão na população. No entanto, apesar do conflito militar ter terminado e da atitude das pessoas com relação aos então “inimigos”, as sequelas da guerra são muito fortes tendo-se herdado o costume de procurar soluções através das armas, que ainda permanecem em número considerável nas mãos das populações. Esta situação combinada com a “cultura de violência” constitui uma ameaça permanente, principalmente para as comunidades rurais. Na opinião de alguns representantes da oposição e ONG’s a continuação da Defesa Civil significa uma ameaça, tanto para o processo da democratização como de reconciliação. “De um modo geral a resposta que as pessoas dão é que a guerra acabou e que todos devem viver juntos. Mas há sempre algumas reticências principalmente em relação às

feridas de guerra (morte de familiares, mutilações,...).” “O obstáculo principal para a reconciliação é a defesa civil. Ela está sendo utilizada

pelos militantes do MPLA como estrutura partidária. Oficialmente a ODP já foi extinta pelo MINDEF, como ratificado no acordo de Luena, mas continuam a existir. O

escritório deles em Huambo fica ao lado da delegação da UNITA. A ODP utiliza o factor da pobreza para conseguir agressores. Suspeita-se que muitas armas continuam

nas mãos da ODP.”

“Existe a necessidade de se assumir a paz de uma maneira pessoal, mas a cultura da violência está muito incutida. A arma durante longos anos tornou-se, para muitos, uma

empresa, agora como se pode viver sem ela?” Uma das situações que preocupa bastante as populações refere-se com o tipo de discurso adoptado por alguns políticos que, de um modo geral já não trata mais da paz e da reconciliação. É de um modo geral dominado pela luta pelo poder, utilizando muitas vezes uma linguagem de violência do tipo “lembram-se de quem matou as vossas crianças …”.

“Os militantes da MPLA e da UNITA são muito fanáticos. Reconciliação será muito difícil e levará muitos anos. A maioria dos militantes dos dois lados não aceita a ideia

da reconciliação ou da tolerância. O perigo que eles aproveitam um tumulto durante as eleições para se vingar é muito grande.”

Em Malange um considerável número de entrevistados considera que faz falta um verdadeiro processo de reconciliação, uma vez que prevalece o espírito de esquecer o

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passado ao invés de se confrontar com ele e procurar formas de perdão. Durante a campanha eleitoral este fanatismo pode criar muitos conflitos. “Não concordo com a Amnistia instaurada, já que as atrocidades cometidas por ambas

as partes foram muitas. A criação de um tribunal da verdade, tal como fizeram na África do Sul, ajudaria imenso o processo. Não acontecendo isso será provável que a

geração seguinte herde os conflitos vividos pelos seus antepassados.”

3.3. A Exclusão económica e social em Angola Angola ficou conhecida pela sua prolongada guerra e por se considerar a riqueza do país como sendo a causa de todos males, dando-se de certa forma razão a Salazar quando, ao ouvir dizer que se tinha descoberto petróleo em Angola, teria levado as mãos à cabeça e exclamado: “ai, que desgraça!”2. Concorda-se que a riqueza de um país torna fácil a aquisição de armas para alimentar a guerra, como foi o caso de Angola e que a pobreza pode igualmente tornar fácil a revolta das pessoas que são capazes de fazer guerra mesmo sem armas de elevado preço. O certo é que nos três anos de paz definitiva, ainda não são visíveis mudanças significativas no domínio económico e social, razão pela qual um considerável número de pessoas tem as suas expectativas frustradas. Ao mesmo tempo, os longos anos de guerra, que para trás ficaram estimularam de certo modo uma mentalidade de dependência e um pensamento pouco analítico em relação aos princípios universais de rigor e disciplina. Cada um a seu nível sonhava ter a sua situação de vida melhorada. O funcionário público esperava melhorias no seu salário, quer no montante que haveria de receber como em recebê-lo em tempo oportuno. As pessoas da aldeia contavam com pontes reconstruídas e com estradas melhoradas para escoar os seus produtos do campo para as cidades onde pudessem vender a preços aceitáveis. Com o dinheiro melhorariam o seu nível de vida. Mas a paz que era a esperança para a maioria dos angolanos ainda não produziu efeitos imediatos na vida da maioria das pessoas prevalecendo na maior parte dos casos, uma situação de extrema pobreza. As causas que estruturam este problema são as seguintes:

• A desigualdade no acesso aos recursos (benesses da indústria extractiva e inacessibilidade a créditos bancários);

• As dificuldades de acesso à saúde, educação, emprego; • A situação de extrema pobreza da maioria da população, cuja taxa é

estimada a 68,2 por cento3; • A outra causa importante do surgimento do fenómeno da pobreza em Angola

é sem dúvida a elevada cifra de desemprego; • A dependência absurda das importações que afasta e marginaliza um sector

económico do qual depende uma esmagadora maioria – o sector informal. As entrevistas realizadas revelam que os sistemas de corrupção estão muito enraizados e são muito mais fortes nos locais onde existe facilidade de acesso a informação, sendo o

2 Mourisca, F., 2001 – E a Guerra de Angola, porquê? in ITINERÀRIO DA PAZ, pp. 6. 3 Este é um dado fornecido no relatório económico de Angola 2003, publicado pelo Centro de Estudos e Investigação Cientifica da Universidade Católica de Angola, pp.10.

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tráfico de influências a forma mais utilizada para conseguir algumas benesses como o acesso aos sistemas de saúde pública, educação, emprego, fuga ao fisco, etc.

“Para o polícia não te levar a sua banheira de negócio no mercado tem que lhe dar

uma gasosa.” (Hbo) De entre as várias causas citadas destacam-se:

• A ausência de concursos públicos de acesso ao emprego; • Os salários baixos prevalecentes; • A perca de valores; • A falta de alternativas de sobrevivência; • A troca de favores que decorre da proximidade em relação aos centros de poder

político e económico.

“Quando você não tem nada acabas recebendo favores que um dia vão comprometer seriamente a vida”(Lda)

A opinião de alguns entrevistados é a de que o sistema de exclusão económica e social começa mesmo a partir do Bilhete de Identidade. As pessoas são muitas vezes discriminadas pelo seu nome e origem. Embora formalmente se diga que não existe o poder familiar mas este permanece através dos jogos de influência, na base dos pequenos grupos. A partir das grandes famílias tradicionais, das famílias nascentes e da origem, independentemente de que se tenha capacidade de assumir algum cargo. A exclusão social em Angola tem também uma estreita ligação com a opção política das pessoas devido ao enraizamento do partido maioritário no sector público e privado em alguns casos e por causa do fraco exercício de cidadania ligado a falta de informação. Ninguém assume cargos de chefia de relevo caso não se identifique com o partido no poder.

“Depois da visita de Isaías Samakuva – Presidente da UNITA aqui no Huambo em Fevereiro alguns trabalhadores da função pública que exercem cargos de chefia foram

intimidados e outros chegaram mesmo de ser despedidos.”

“Militantes da oposição não podem ter cargos de chefia na Administração pública. Muitas vezes são despromovidos, mandados para Municípios e comunas distantes ou

até colocados na rua. Também as empresas públicas ou “privadas” é perigoso mostrar a camisola do partido de oposição.”

As ajudas humanitárias são politizadas em algumas zonas do país e determinadas Organizações não Governamentais que trabalham com Ex-Militares da UNITA são confundidos como estando a favor da UNITA.

“ Sem cartão do MPLA é quase impossível recebe micro-crédito, mesmo nos bancos

privados.”

“Militantes da oposição ou desmobilizados encontram muitas dificuldades: não recebem documentos, licenças para uma actividade económica ou terrenos para

construir uma casa.”

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“Por causa de sermos uma organização implementadora dos programas do IRSEM e por estarmos a frente do processo de legalização das terras comunitárias estamos a ser

mal interpretados e associam-nos à UNITA.” É crescente a luta pela busca de um melhor salário, de um melhor emprego, apesar destes mesmos ditos “melhores salários e empregos” serem dominados pelas grandes famílias. Os jovens são os mais afectados por este problema. A distribuição de recursos constitui um problema, mas é ainda maior a falta de oportunidades, porque os mecanismos de concursos públicos não funcionam e o sistema de cunha é muito mais rápido. As possibilidades desta situação continuar vão existir sempre ainda que, para determinados assuntos se torne cada vez mais difícil. Porém, nem tudo é completamente mau, segundo alguns entrevistados começam a emergir um conjunto de gestores que fazem esforços no sentido de inverter esta situação.

“A Endiama, projecto Catoca tem reagido de forma antagónica a essa questão das “grandes famílias”. (Lda)

São evidentes as assimetrias entre Luanda e o resto do país, cujo exemplo mais gritante é a desigualdade na distribuição dos recursos do Orçamento Geral do Estado, mesmo sabendo que a lógica dos grandes investimentos em Luanda ou no litoral aparentemente não tem funcionado. Esta situação agrava a contraposição entre um país virtualmente rico e um país efectivamente pobre.

“Em Malanje existe apenas dois institutos médios só de nome que funcionam em escolas anexas”.

“Houve recentemente a distribuição de 20 milhões de dólares americanos para as províncias sem ter-se em conta a extensão e as reais necessidades de cada Província. A

titulo de exemplo o Bengo recebeu o mesmo montante que Benguela e Huambo, que geograficamente se situam muito distantes da capital do país, possuem um território

mais vasto e um número de habitantes mais elevado e maiores desafios de reabilitação.”

O meio rural é sempre o mais afectado, quer pelo desemprego principalmente para os jovens como pela dificuldade de acesso ao mercado. Por exemplo foi constatado que camponeses vendem o seu produto a baixos preços por inundação do mercado por produtos importados. O camponês que produz muito milho não sabe o que fazer. Por isso, as pessoas produzem mais para o seu próprio auto sustento. Um indicador de relevo é o facto dos camponeses em Malanje não conseguirem até aqui trocar a cobertura de suas casas de capim para chapas de zinco. Isto provoca de certa forma a falta de alternativas para a sobrevivência e faz com que os direitos sociais dos cidadãos sejam vistos como um favor e não uma obrigação do Estado. As reconhecidas debilidades do aparelho de Estado, que é extraordinariamente burocratizado, centralizado e carente de pessoal qualificado, impede a plena assunção do seu papel de agente.

“Quando um governante vai a um Município ou Comuna oferece ambulância as pessoas aplaudem, porque não sabem que este é um direito que lhes é reservado”.

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Um considerável número de entrevistados considera que as questões de ordem social ainda não são uma prioridade para o Governo devido ao distanciamento entre pobres e ricos, à mobilização da maior percentagem do Orçamento Geral do Estado para as questões de segurança e ao fraco investimento nos outros sectores do desenvolvimento que não a indústria extractiva e pela forte aposta no consumismo em detrimento da produção local. A descoberta de mais poços de petróleo que entram em exploração não é em si só indicador de desenvolvimento económico e social. Outras condições são necessárias para promover um verdadeiro processo de transformação social. 3.4. A questão da terra Em Novembro 2004 foi publicada a nova lei da terra de Angola. O objectivo declarado foi a adaptação da lei ao novo contexto, especialmente à migração do campo para as grandes cidades. Consequentemente a nova lei é em primeiro lugar uma lei sobre a terra urbana. Sobre a terra rural, base de sobrevivência de cerca 65% da população angolana, a nova lei fica muito vaga. Aqui ela reconhece o papel das autoridades tradicionais, que sempre foram actores importantes na entrega de terra rural e na resolução de conflitos. Apesar deste aspecto positivo, a nova lei não define claramente a divisão de tarefas e responsabilidades entre poder tradicional e o poder moderno, ou seja entre a lei costumeira e a lei escrita. A maioria dos conflitos urbanos concentra-se na cidade de Luanda. Durante quase 30 anos de guerra a cidade cresceu de um meio milhão de habitantes para um estimado número de 4 milhões. A ausência de uma lei apropriada, de instituições do estado para aplicá-la e de um sistema judicial funcional criou um ambiente de muita insegurança sobre o uso da terra urbana e muitos conflitos. Na ausência de um regulamento sobre a nova lei o vazio vai criar mais espaço ainda para que pessoas influentes possam ocupar terrenos sem que violem qualquer direito escrito ou costumeiro. Consequentemente os conflitos de terra e urbana vão aumentar significativamente nos próximos anos. A percepção dos entrevistados em relação à problemática da terra varia consoante o local em que vivem (meio urbano, peri-urbano ou rural). Esta diferença não só foi marcante entre os habitantes de Luanda e a população rural nas províncias visitadas, mas também entre Huambo e Malanje. Este facto explica-se quer pela elevada densidade populacional da província do Huambo em relação a uma província relativamente menos populosa e menos assediada pelos grandes latifundiários como a de Malange. Por exemplo, na sede do Huambo e nos municípios mais próximos da capital houve várias tentativas de tirar a população das suas terras de origem para dar espaço a fazendas, estando em alguns casos envolvidos estrangeiros e na maior parte das vezes funcionários do Estado ou altas patentes militares.

“Às vezes aqueles que querem ocupar a terra da população dizem que querem implementar um projecto do governo. Muitas vezes são funcionários do governo,

mas são os projectos privados deles.”

“A lei de Terra tem muitas falhas. A expropriação eminente vai ser uma das consequências. A terra como propriedade de quem pode, e não de quem a trabalha,

pode vir a ser um pólo de conflito futuro.”

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“Um problema será, as pessoas, e não tanto o sistema, cultivar uma mentalidade de

“pequenos capitalistas” e esta reflectir-se na utilização dada ao campo.” Nos casos que as ONGs locais tiveram conhecimento dos conflitos foi possível achar uma solução com meios pacíficos. Dois conflitos foram entregues aos órgãos da justiça. Um destes foi resolvido em favor da população, um outro ainda está pendente.

“Em geral os novos “donos” se retiraram logo depois de perceber que há resistência e que vão enfrentar problemas com a população ou com ONGs.”(Hbo)

É muito frequente que regressados encontrem o terreno ocupado. O novo dono já começou a cultivar e não quer deixar o local. As vezes tentam resolver entre si, queimam a casa do outro. Muitas vezes procuram o soba, mas a decisão da autoridade nem sempre é aceita por ambas as partes.

“Alguns sobas pobres deixam-se corromper por aquela parte que tem mais recursos. Assim já perdem qualquer credibilidade.”

“Os sobas sozinhos não tem coragem de enfrentar o presidente ou ministros quando exigem terrenos grandes. Quando sabem que o soba não tem apoio, simplesmente ignoram.”

“Muitas vezes as concessões de terra são feitas a partir de Luanda e aqui ninguém sabe. Há dois meses um fazendeiro que se intitulava proprietário de

uma área foi corrido da comuna de Cambaxi pela população.”

Em Malange não têm havido grandes conflitos de terra na província. O que é mais visível são pequenos conflitos entre populares nos bairros da periferia da capital. Em alguns municípios ocorreram conflitos entre a população local e desmobilizados que queriam se instalar.

“Em alguns municípios os desmobilizados da UNITA não têm nenhuma chance de receber terra própria, têm que alugar e pagar com uma parte da colheita.

Outros nem conseguem alugar uma lavra e tem trabalhar na lavra da população.”

No entanto, alguns entrevistados consideram haver muito potencial para futuros problemas porque nos últimos anos foram atribuídos títulos sobre 700.000 até 1.400.000 hectares de terra, muitas vezes sem o conhecimento da população.

“Na era colonial na província de Malanje distribuíram ao sector empresarial cerca de 350.000 hectares de terra. Após a independência estão distribuídos

cerca de 1.400.000 hectares. Há exemplos de aldeias inteiras que hoje ficam na área de privados.”(Mge)

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Houve muitos casos na periferia da cidade de Luanda onde diferentes instituições do Estado em vários níveis deram títulos de terra sem informar as outras instituições. Isto e a aplicação arbitrária da lei provocaram e continuam a provocar muitos conflitos de terra. Em alguns bairros de Luanda os residentes foram forçados a sair para bairros mais distantes do centro. Muitas vezes isto acontece fora de qualquer lei e sem pagamento de indemnizações dignas.

“Em geral os residentes não têm nenhuma chance de se defender contra os grandes, principalmente quando estes tem “estrelas”.

Outro senão é o facto de na maior parte das vezes a concessão de títulos ser feita em

Luanda, sem o envolvimento das autoridades ao nível provincial, municipal ou comunal

ou mesmo do soba. Tanto a antiga lei como a nova previam o envolvimento destas

instituições locais. Como estas regras muitas vezes foram violadas, hoje existem terras

com dois títulos ou com títulos bastante duvidosos. A nova Lei de Terras, que entrou

em vigor no dia 9.2.2005 é pouco conhecida, não possui ainda um regulamento que

garanta a sua aplicabilidade. Mesmo a antiga (de 1992) não foi suficientemente

divulgada pelo que as populações não conhecem os direitos e responsabilidades.

“A nova lei de terra não foi suficientemente divulgada, uma vez que os

principais problemas começaram a surgir no meio rural.”

Outra questão levantada por alguns entrevistados é o facto da nova lei não regular a

exploração das riquezas do subsolo, referindo simplesmente que o subsolo pertence ao

Estado o que poderá dar origem a futuros conflitos.

“Alguns acham que a maioria dos políticos não está interessado no uso da terra, mas somente no uso do subsolo. Com a nova lei conseguiram que os sobas e as

comunidades rurais não tenham direito ao uso do subsolo.”

Para alguns entrevistados o processo de regulamentação da referida lei vai demorar pelo

menos até às próximas eleições. Outros acham que existem pessoas influentes no

governo que tentam atrasar o processo, o máximo possível, por causa de interesses

pessoais. Por exemplo, a nova lei prevê o pagamento de taxas para cada hectare de terra

em posse. Esta taxa, caso seja aplicada, resultará demasiado onerosa, já que os

proprietários de grandes áreas terão que pagar um montante alto. Como a grande

maioria deles actualmente não trabalha estes terrenos, estas posses poderiam se tornar

um problema económico. Alguns entrevistados são de opinião que a entrada em vigor

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do regulamento não melhorará a situação já que o problema está na ausência de

instâncias públicas que garantam a sua implementação.

“O atraso do processo actualmente tem como consequência que nenhum título sobre terra foi dado desde Novembro 2004. Ao mesmo tempo, têm sido atribuídos títulos

“informais” frequentemente, à margem de qualquer lei. A longo prazo esta “fase de transição” pode e vai criar bastantes conflitos.”(Lda)

“Os grandes proprietários vão fazer tudo para evitar a aprovação do

regulamento.”(Lda)

IV. Pontos críticos e cenários prováveis

A análise da informação recolhida durante a entrevista permitiu identificar em cada área

de potencial conflito analisada os pontos críticos que devem merecer especial atenção e

perspectivados os cenários prováveis conforme se apresenta no quadro 1.

Quadro1: Pontos Críticos e Cenários Prováveis

Pontos críticos Cenários prováveis

a) Democracia e impacto do processo eleitoral

A heterogeneidade

do processo

democrático

- Restrições implícitas à intervenção dos partidos políticos; - Abrangência limitada dos media privados; - Desigualdade entre os Partidos Políticos no acesso a recursos (financeiros e media); - Fraco debate político.

O clima de intolerância

política:

- Nas empresas públicas pelo receio de perderem o emprego e as benesses que lhes são proporcionadas; - No seio das populações provocada principalmente pelas recentes feridas de guerra, o medo; - A influência que o MPLA tem nos media estatais; - A atitude de exclusão dos grandes partidos; - A confusão entre Governo/MPLA; - A ignorância dos pontos de entrada nas comunidades por parte de alguns partidos políticos da oposição; - A insuficiente actuação da polícia na protecção dos militantes dos partidos políticos (polícia, sistema judicial).

- A dificuldade de conquista de espaço pelos PPO, principalmente a imagem de “vilão” que a UNITA tem, pode dar ao MPLA uma vitória retumbante, embora não se possa crer totalmente nos sentimentos espontaneamente manifestos das pessoas uma vez que o voto é secreto;

- Poder-se-á viver uma situação de um regime multipartidário com um partido dominante e uma oposição bastante fragilizada;

- A recandidatura do PR poderá tornar evidentes as frustrações internas no seio do MPLA, o que poderá vir a engrossar e fortalecer as fileiras da oposição; - Os dois partidos maioritários na realidade não são partidos e sim movimentos de libertação. A UNITA já está a viver cisões e com o MPLA mais cedo ou mais acontecerão, surgindo daí com certeza partidos mais coerentes.

b) Processo de Reconciliação e Reinserção

O processo de reconciliação não

está

- Feridas fortes do passado; - Linguagem de vingança (no discurso político e no trato diário); - Falta de aproveitamento das formas

- Mesmo sem grandes programas de reconciliação as populações iniciaram um processo de perdão e de aproximação. Além disto a desmobilização e o desarmamento

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suficientemente estruturado e coordenado

tradicionais de perdão e reconciliação; - Poucas organizações trabalham esta dimensão.

Falta de sensibilidade por

parte dos doadores e IRSEM na

planificação de projectos para

desmobilizados

- Insuficiente análise de contexto; - Receio de revolta pelos soldados da UNITA; - Ausência de coordenação entre as instituições envolvidas.

da FALA foram cumpridos. Maiores conflitos somente poderão haver antes, durante e depois das eleições, principalmente quando os grandes partidos recordam o passado nas suas campanhas; - Caso os parceiros principais do Programa Geral da Reintegração, IRSEM e o Banco Mundial, não abram os programas para outros antigos combatentes e a população geral, a implementação destes programas vai trazer novas fronteiras e conflitos no meio das comunidades;

- A presença da Defesa Civil em algumas cidades e em alguns municípios “críticos” vai dificultar a reintegração dos desmobilizados e um ambiente de confiança mútua.

c) Exclusão Social e Económica

Pessoas frustradas com a situação em que o país se

encontra

- Dificuldades no acesso à escola, emprego e assistência médica e medicamentosa; - Sector da economia formal bastante fraco; - Elevado índice de pobreza em que a maioria vive; - Valorização das importações em detrimento da produção local.

Partidarização dos serviços

sociais/públicos

- Dificuldades no acesso a crédito bancário; - Assumpção de cargos de chefia no sector público.

Justiça social ausente

- Pobreza extrema; - Incipiente exercício da cidadania e direitos humanos; - Falta de visão; - Medo de reclamar; - Os direitos sociais são vistos como um favor e não como uma obrigação do Estado.

Desigualdade na distribuição de recursos entre o

litoral e o interior

- O montante previsto no OGE para cada província não tem em consideração o número de habitantes, sua condição e as necessidades de reabilitação.

Inexistência de uma política de

desenvolvimento local e regional

- Falta de vontade política; - Tendência para a centralização.

Modelo de governação que não promove o

desenvolvimento humano

- As pessoas não estão no centro das atenções; - Produz a exclusão social e a competição desleal; - Não estimula os investimentos nacionais e locais; - Deficiência no funcionamento das

- O processo de estruturação da economia mais integrada em Angola levará muito tempo, será difícil e estará sempre sujeito às perversas influências da economia baseada no petróleo e nos diamantes; - Acredita-se que o índice de desemprego poderá eventualmente diminuir no seio da juventude com a entrada das empresas internacionais de construção civil, que ao reabilitarem as entradas Luanda – Malange e a da África austral possam aproveitar a força activa juvenil. Porém, um dos maiores constrangimentos é a sua preparação para assumir esses cargos e a sua postura perante o trabalho; - Não se acredita que a situação económica e social venha a melhorar nos próximos dois anos, porque não há nenhuma perspectiva visível de investimento e aposta séria na constituição das empresas nacionais, que poderiam de certo modo estimular o mercado de emprego e inserção dos excluídos; - O futuro revela a prevalência de uma gritante distância entre a extrema riqueza e a extrema pobreza, onde os ricos procurarão fazer alianças independentemente das suas opções ideológicas e partidárias, deixando cada vez mais os pobres a margem e a sua própria sorte; - A pobreza é um problema central e estrutural que exigirá do Governo programas estruturantes que comprovem a existência de modelos ou soluções definitivas. Enquanto isso durar continuará a contribuir para manter a exclusão social

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instituições intermédias entre os produtores e o mercado.

dos cidadãos Angolanos e consequentemente a perpetuação da corrupção a todos os níveis.

d) O acesso à terra

Desigualdade de acesso e posse

de terra

- Uso de força e influências para conseguir títulos ou ocupar terras; - Falta de uma lei aplicável na ausência de um regulamento; - Fraco poder jurídico; - Falta de conhecimento da lei; - Cultura de violência - Excessiva burocracia ou ausência do Estado a nível local; - A lei tradicional discrimina as mulheres (poder nivelador e inveja).

- Os conflitos de terra vão aumentar significativamente, tanto no meio urbano como no meio rural. Com a reabilitação de estradas e pontes o potencial de conflitos sobre a terra rural vai diminuir em algumas regiões e aumentar em outras; - A lei terras ora aprovada ainda não foi suficientemente divulgada e carece de um regulamento. Segundo as informações recolhidas este não será aprovado até ao dia 9.8.2005 (prazo estabelecido na lei), o que pode agravar a situação e dar espaço para muitos conflitos futuros; - A aplicação de taxas sobre o uso das terras (se forem aplicadas) pode resultar numa diminuição voluntária dos grandes latifúndios.

V. Sugestões para o trabalho da FES As sugestões apresentadas têm como fim último ajudar a FES a orientar futuras intervenções em Angola. Para tal, teve-se como referência os pontos críticos identificados em cada área de potencial conflito estudada e os respectivos cenários prováveis. a) Em relação à democratização e processo eleitoral A democratização de uma sociedade, quando esta sai de uma guerra de quase 30 anos, não é alcançada do dia para a noite. É um processo que deve ser construído de forma paulatina e com a participação de todos. A heterogeneidade democrática é apontada como um ponto crítico que advém da dificuldade de interpretação e aplicação da própria lei e da carência de hábitos de convivência democrática. As situações mais críticas ocorrem no interior, a nível de localidade, município e província. A situação mais preocupante é sem dúvida a intolerância política que, caso não seja devidamente trabalhada poderá desembocar em situações de conflito, principalmente no período eleitoral que se avizinha. Necessário se torna:

1. A vulgarização e aplicação das leis de forma equitativa a todos os níveis; 2. A conquista de espaço quer pela sociedade civil como pelos partidos políticos; 3. A criação de uma cultura democrática que deve começar nas células mais

pequenas da sociedade(família, escola, instituições públicas, …);

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4. A promoção e o estímulo do surgimento de novas lideranças carismáticas, fugindo da lógica das capacidades técnicas;

5. Apoiar iniciativas de ONG’s nacionais no âmbito da educação cívica eleitoral; 6. Trabalhar com as instituições (Polícia, Tribunais, …) a problemática da atitude e

o comportamento individual no trato com a dimensão profissional e partidária;

7. Criar ou melhorar os mecanismos de circulação e acesso a informação a todos os níveis.

b) Em relação ao processo de reconciliação e reinserção O sucesso do processo de reconciliação e reinserção é uma das pedras basilares para a consolidação da paz, exigindo por essa razão o engajamento de todos os actores. Necessário se torna:

1. Criar espaços para debate sobre o papel dos sobas no processo de reconciliação e na reintegração dos ex-combatentes nas comunidades em particular;

2. Promover avaliações sobre os impactos negativos e o aumento de conflitos

através de programas (exemplo dos programas de reintegração de desmobilizados) de forma a redefinir programas e projectos que proporcionem de facto a reinserção e não sejam potenciais geradores de conflitos;

3. Aprofundar estudos sobre perdão tradicional para permitir uma convivência nas

aldeias sem medo entre as famílias e vizinhos; 4. Apoiar a publicação e divulgação de “estórias” sobre a cultura de Angola,

tradição oral, formas tradicionais do perdão etc.; 5. Iniciar reflexões sobra vantagens e desvantagens da amnistia e as suas

alternativas como uma “Comissão de Verdade”. Possíveis acções nesta área devem: - ser de forma informal/psicológica; - não ser influenciada ou até “tomada” pelo governo ou partidos políticos; - ser envolvidos métodos e autoridades tradicionais; - ser combinados com Núcleos Comunais/formação de mediadores.

6. Discussão com os media e o público interessado sobre ética e profissionalismo, principalmente em relação à linguagem de violência, e vingança; Discussão sobre um “Código de conduta dos Jornalistas Angolanos”;

7. Apoio para organizações nacionais na formação de formadores e mediadores de

conflitos; 8. Criar ou melhorar os mecanismos de circulação e acesso à informação a todos os

níveis;

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c) Em relação à Exclusão económica e social A exclusão económica e social é sem dúvida o campo mais propenso a conflitos pelas razões anteriormente apontadas. A caminhada em busca de uma sociedade socialmente justa é tarefa de todos, havendo necessidade de influenciar as lideranças a vários níveis para que ocorram mudanças significativas e duradouras. Necessário se torna:

1. Promover o acesso e distribuição de informações importantes sobre a vida

económica e social do país a organizações com acções concretas nas

comunidades e partidos políticos nas províncias do Huambo e Malange através

por exemplo da ADRA, COIEPA, DW e outras;

2. Participar na formação de novas lideranças da sociedade civil, Igrejas e partidos

políticos de forma a contribuir na transformação das instituições a partir de

influências nas atitudes e comportamentos das pessoas;

3. Apoiar programas e projectos de organizações nacionais que incorporam o

sistema de ”livelihood approaches”;

4. Definir uma estratégia conjunta com o fim de influenciar para que sejam

definidas políticas mais justas que possam contribuir para a redução da exclusão

social e da pobreza.

d) Em relação ao acesso a terra A problemática da terra esteve no top das preocupações de muitas organizações e em particular da rede Terra até a elaboração da Lei de Terras. No entanto, as entrevistas realizadas mostram que muito trabalho há por fazer no sentido da divulgação e esclarecimento dos interessados (instituições do governo a nível local, autoridades tradicionais, organizações da sociedade civil e populações) no sentido de prevenir futuros conflitos. Necessário de torna:

1. Formar e capacitar mediadores de conflitos da terra (em cooperação com a FAO e a Rede Terra);

2. Promover debates em todas as regiões de Angola sobre aspectos positivos e

negativos da lei e da justiça tradicional. O que aproveitar? O que por ao lado

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porque já não vale? (por exemplo possibilitar que mulheres possam herdar a casa e a terra);

3. Definir uma estratégia concertada de divulgação e esclarecimento sobre a nova lei e suas consequências (incluindo material didáctico);

4. Acompanhar o processo do regulamento da lei da terra (em cooperação com a

rede terra, que neste momento tem fundos limitados);

5. Promover uma discussão sobre “Segurança de uso de terra”, tanto nas áreas urbanas como rurais (incluindo a discussão sobre o papel das instâncias do Estado na aplicação de títulos e de instâncias jurídicas na controle do processo.