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- ----., ..• B ...•H UC'-' lJ - ,. I PERIOOICOS BABEL-CONTOS: LITERATURA ORAL E MUNDIALIZAÇÃO NADINE DEcoURT* o artigo, tomando como referência as reflexões de Paul Zumthor, baseadas no mito da Torre de Babei, situa-se na micro-história de uma renovação do conto, da qual a autora participa desde os anos 80, e na perspectiva de uma antropo- logia aplicada. Tem como pressuposto a idéia de que o conto é operador de circulação entre as culturas; entre o profano e o sagrado, entre as gerações, as línguas, os sexos, sendo, por- tanto, expressão de mestiçagens. A autora parte das noções de terra e território para mostrar alguns traços significativos das transformações da tradição, verificando tensões e para- doxos políticos e culturais. o passado narrativo de Babel, as crenças que ele gera- rá, as lendas que ilustraram sua lembrança: tudo isto épara nós apenas virtualidades bas- tante confusas e cabe a nós (se tivermos vontade) esclarecê- Ias, atualizando-as. E Stas linhas de P. Zumthor 0997: 119) extraídas de sua última obra BabeI ou l inacbêoemeni , juntas a uma atualidade política que reaviva a imagem da cidade e o mito da torre, de Babei e Babilônia a Manhattan, formulam um convite a situar- me aqui na micro-história de uma renovação do conto, do qual participo desde os anos 80 Is. XXl e na perspec- tiva de uma antropologia aplicada ou pelo menos disso que se pode tentar definir como tal, entre teoria e práti- ca. Formadora de professores, tomei-me pesquisadora em literatura oral, porque o conto se me apresenta como privilegiado instrumento de mediação em situação intercultural: apaixonei-me pela variação e seus usos didáticos. Era urna maneira, por meio da literatura e do procedimento comparativo, de entrar na antropologia. Descobri assim a oralidade como um exercício de descentração ao mesmo tempo lúdico e exigente. "Contar não é ler, ler não é contar", poderia enunciar algum contador provençal sobre o modo tradicional do "contra-dito". Que se passa, exatamente, na relação de contar? Como analisá-Ia? Felizmente, existem na Fran- ça pessoas que exercem hoje a profissão de narrado- res. Por ocasião de uma missão anterior, tive o prazer de apresentar aqui uma comunicação sobre esse fenô- meno: Quem conta na França de hoje? Os novos lances da palavra. Dois anos se passaram. Gostaria, novamente, de examinar o estado da questão a respeito de uma prática social em perpétuo movimento, que inventa seus rituais, que compõe com as heranças, que se apóia num objeto cultural operatório: o conto entendido como o conjunto de narrativas que nos contamos para fins ao mesmo tempo de divertimento e de ensino. O conto é operador de circulação (entre as culturas, entre o pro- fano e o sagrado, entre as ge- rações, as línguas, os sexos). Ele é operador de mestiçagens. Eu havia esboçado uma tipologia dos contadores. Duas categorias haviam sido destacadas medi- ante a experiência de Catherine Zarcate, ela própria narradora, assimilando-se à segunda cate- goria: aqueles que possuem uma terra, e "aqueles cuja raiz não é uma terra, mas uma idéia e cujo repertório bebe nas fon- tes do mundo inteiro represen- tando o território dessa idéia". Eu havia acrescentado uma terceira categoria, a dos narradores-mediadores, em busca de uma relação ar- tística imediata, na qual a mirada ética é tão importante quanto a dimensão artística. Partirei desta vez do terre- no, das noções de terra, de território, para mostrar al- guns traços significativos das transformações da tradição e questionar nossas práticas respectivas numa perspec- tiva comparatista. Isso nos permitirá, no percurso, apon- tar determinado número de tensões, de paradoxos que são portadores de lances políticos e culturais. RESUMO • Doutora em Literatura; pesquisadora do Gentre de Recherche d'Étude Antropologique, França. DAS DINÂMICAS URBANAS A UMA LÓGICA DE REDE Em 1948, Roger Bastide já falava etti foldore ur- bano no Brasil, com a abolição da escravatura e o êxodo em massa dos negros para as cidades. As migrações internacionais multiplicaram esses processos. Em se- tembro de 2000, uma manifestação organizada durante o Festival de Outono de Paris teve por título Babel- Contos. Tal manifestação, intensamente mediatizada, proporcionou um espetáculo de contos retransmitidos pelo canal de 1V cultural franco-alemão "Arte" e a edição concomitante de um livro. Em todo caso, ela é emblemática de um desenvolvimento do conto no cená- rio internacional. O conto - de baixo custo, feita a conta- bilidade - propicia a experiência de um nomadismo sem fronteiras. O fenômeno não é novo. Paul Zumthor chegou a criar a expressão nomadismo da voz a propó- sito da literatura da Idade Média, insistindo sobre os DECOURT, NADINE: BABEL-CONTOS: LITERATURA ORAL E MUNDIALlZAÇÃO. P. 7 A 15 7

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PERIOOICOSBABEL-CONTOS:

LITERATURA ORAL E MUNDIALIZAÇÃO

NADINE DEcoURT*

o artigo, tomando como referência as reflexões de PaulZumthor, baseadas no mito da Torre de Babei, situa-se namicro-história de uma renovação do conto, da qual a autoraparticipa desde os anos 80, e na perspectiva de uma antropo-logia aplicada. Tem como pressuposto a idéia de que o contoé operador de circulação entre as culturas; entre o profano e osagrado, entre as gerações, as línguas, os sexos, sendo, por-tanto, expressão de mestiçagens. A autora parte das noçõesde terra e território para mostrar alguns traços significativosdas transformações da tradição, verificando tensões e para-doxos políticos e culturais.

opassado narrativo deBabel, as crenças que ele gera-rá, as lendas que ilustraramsua lembrança: tudo isto éparanós apenas virtualidades bas-tante confusas e cabe a nós (setivermos vontade) esclarecê-Ias, atualizando-as.

EStas linhas de P. Zumthor0997: 119) extraídas de suaúltima obra BabeI ou

l inacbêoemeni , juntas a umaatualidade política que reavivaa imagem da cidade e o mito da torre, de Babei eBabilônia a Manhattan, formulam um convite a situar-me aqui na micro-história de uma renovação do conto,do qual participo desde os anos 80 Is. XXl e na perspec-tiva de uma antropologia aplicada ou pelo menos dissoque se pode tentar definir como tal, entre teoria e práti-ca. Formadora de professores, tomei-me pesquisadoraem literatura oral, porque o conto se me apresenta comoprivilegiado instrumento de mediação em situaçãointercultural: apaixonei-me pela variação e seus usosdidáticos. Era urna maneira, por meio da literatura e doprocedimento comparativo, de entrar na antropologia.

Descobri assim a oralidade como um exercíciode descentração ao mesmo tempo lúdico e exigente."Contar não é ler, ler não é contar", poderia enunciaralgum contador provençal sobre o modo tradicionaldo "contra-dito". Que se passa, exatamente, na relaçãode contar? Como analisá-Ia? Felizmente, existem na Fran-ça pessoas que exercem hoje a profissão de narrado-res. Por ocasião de uma missão anterior, tive o prazerde apresentar aqui uma comunicação sobre esse fenô-meno: Quem conta na França de hoje? Os novos lancesda palavra. Dois anos se passaram. Gostaria, novamente,de examinar o estado da questão a respeito de umaprática social em perpétuo movimento, que inventa seusrituais, que compõe com as heranças, que se apóianum objeto cultural operatório: o conto entendido comoo conjunto de narrativas que nos contamos para fins aomesmo tempo de divertimento e de ensino. O conto éoperador de circulação (entre as culturas, entre o pro-

fano e o sagrado, entre as ge-rações, as línguas, os sexos). Eleé operador de mestiçagens. Euhavia esboçado uma tipologiados contadores. Duas categoriashaviam sido destacadas medi-ante a experiência de CatherineZarcate, ela própria narradora,assimilando-se à segunda cate-goria: aqueles que possuemuma terra, e "aqueles cuja raiznão é uma terra, mas uma idéiae cujo repertório bebe nas fon-tes do mundo inteiro represen-tando o território dessa idéia".

Eu havia acrescentado uma terceira categoria, a dosnarradores-mediadores, em busca de uma relação ar-tística imediata, na qual a mirada ética é tão importantequanto a dimensão artística. Partirei desta vez do terre-no, das noções de terra, de território, para mostrar al-guns traços significativos das transformações da tradiçãoe questionar nossas práticas respectivas numa perspec-tiva comparatista. Isso nos permitirá, no percurso, apon-tar determinado número de tensões, de paradoxos quesão portadores de lances políticos e culturais.

RESUMO

• Doutora em Literatura; pesquisadora do Gentre de Recherched'Étude Antropologique, França.

DAS DINÂMICAS URBANAS A UMA LÓGICA DE REDE

Em 1948, Roger Bastide já falava etti foldore ur-bano no Brasil, com a abolição da escravatura e o êxodoem massa dos negros para as cidades. As migraçõesinternacionais multiplicaram esses processos. Em se-tembro de 2000, uma manifestação organizada duranteo Festival de Outono de Paris teve por título Babel-Contos. Tal manifestação, intensamente mediatizada,proporcionou um espetáculo de contos retransmitidospelo canal de 1V cultural franco-alemão "Arte" e a ediçãoconcomitante de um livro. Em todo caso, ela éemblemática de um desenvolvimento do conto no cená-rio internacional. O conto - de baixo custo, feita a conta-bilidade - propicia a experiência de um nomadismosem fronteiras. O fenômeno não é novo. Paul Zumthorchegou a criar a expressão nomadismo da voz a propó-sito da literatura da Idade Média, insistindo sobre os

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-deslocamentos dos declamadores e cantores. É reduzi-do o repertório que não traga a marca de viagens, via-gens dos europeus que partiram para a conquista denovos mundos (de Portugal ao Brasil, da França aoQuebec, por exemplo) ou à busca de mão-de-obra (osescravos trazidos da África do Norte para o Caribe, etc.).No Magreb, os homens tinham uma mobilidade quenão era aquela das mulheres guardiãs do lar: foi graçasa eles que os repertórios puderam se misturar e oscontos das Mil e Uma Noites se implantar. A edição traza marca dessa circulação dos repertórios. Citemos algunstítulos de coleções: Contos e Lendas de Todos os Paí-ses, Contos Daqui e D'alhures, Lendas dos Povos, Pala-vras de Sabedoria do Mundo Inteiro, Contos Nômades ...

No início do século XX, Maurice Bouchor já que-ria abrir os ouvidos e os espíritos das crianças. Entre1911 e 1929, ele editou uma coletânea de contos emtrês volumes: o primeiro conforme a tradição france-sa, o segundo conforme a tradição européia, o tercei-ro conforme a tradição oriental e africana, No prefáciodestinado aos pais, ele explica longa mente suas esco-lhas, suas fontes, as liberdades de transcrição que to-mou. No prefácio destinado às crianças, eis como eledesperta nelas o apetite pela leitura, ao mesmo tempoque lhes dá bela lição de antropologia:

Meus caros amigos, após os contos da Fran-ça, após os contos da Europa, onde vocês ainda sesentiam em casa, eis os contos da Ásia e da África.Ao ouvi-Ias ou lê-Ias, vocês terão a impressão defazer magníficas viagens por países distantes. Ha-verá histórias deslumbrantes para a imaginação,contos engenhosos que, ao mesmo tempo que di-vertem, farão oocês refletir; narrativas emocionan-tes, nobres, ternas, delicadas. Através de belaslendas, vocêspoderão entrever as grandes civiliza-ções da Ásia; contos de estranho encanto farão vocêsconhecerem um pouco das tribos africanas; e portoda parte vocês encontrarão sob formas novas eatraentes, pensamentos, sentimentos que são os nos-sos. Assim, ao retomarem, oocês saberão melhorque, apesar das diferenças de rosto, o homem é sem-pre o homem, e que são por toda parte as mesmascoisas que fazem opreço e o encanto da vida.

o neocontágio, é verdade, acelerou o movimen-to: luta contra o desenraizamento e a solidão das cida-des, o fenômeno surgiu como inteiramente urbano. Oconto oral se aproveitou até dos lugares por excelênciada cultura urbana que são as bibliotecas, os centrosculturais, os equipamentos de bairro. Tratava-se de re-por vínculo social, convivialidade, em particular naschamadas zonas "sensíveis", desfavorecidas. Pesquisa-

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dores se interessaram por novos repertórios: os rumo-res e lendas urbanas, ao lado das contribuições especí-ficas desta ou daquela população imigrada. Eusublinharia aqui dois traços que me parecem cada vezmais perceptíveis na evolução destes dois últimos anos.

UMA DIVERSIFICAÇÃO INCREMENTADA DE PRÁTICAS EREPERTÓRIOS

Deixemos de lado o escrito e a leitura para exami-nar mais de perto aquilo que um habitante lionês pôdeouvir nos três últimos meses (setembro, outubro, novem-bro), após as férias de verão - a lista não é exaustiva:

• contos beduínos do Saara, sob uma tenda instala-da em uma sala de espetáculo, no quadro dasTerceiras Descobertas Berberes organizadas pelaassociação berbere AWALsobre o tema do deserto;

• contos africanos C'peuls"), dentro de um ciclo detrês sessões intitulado Face da educação tradicio-nal oral na África Ocidental, à volta da figura deAmadou Hampaté Bâ,' rium bar onde se dança: oMosaico tropical;

• seis versões diferentes do conto João do Urso (dasquais uma versão cigana, duas provençais, umaarmênia), por ocasião de uma noite excepcionalna sala de um teatro de bolso "L'étoile Royale'" ,onde se apresentavam, habitualmente, os conta-dores da associação "Drôles de Zebres'?":

• contos musicais para todas as idades e todos osgostos, em Corbas, na periferia sul de Lyon, noquadro de uma manifestação organizada em doisdias: Le lâcber d'Oreilles (denominação calcadasobre a expressão "lâcher de ballons'" ••, que de-signa um ritual de fim de ano em voga nas esco-las e noutros lugares freqüentados pelas crianças);

• um encontro intercultural do conto no ry depar-tamento administrativo de Lyon, em homenagema Mamadou Diallo, narrador africano da região,tal como está indicado no cartaz, falecido em1996. Na origem da manifestação, uma contado-ra originária do Benin, Christine Adjahi. Haviatambém uma contadora de origem magrebina,um contador francês, um contador crioulo e ummúsico francês, todos amigos de Mamadou.

Os ouvintes não são, necessariamente, os mes-mos e se dividem em função de seus interesses e dosespaços-tempos que são propostos. Os lioneses pude-ram escolher aqui entre uma área cultural específica (oSaara berbere, a África peul) ou, então, um encontrointercultural, num caso à volta da conjunção conto emúsica, no outro caso em torno da figura de umcontador desaparecido. A dimensão regional está lá

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- BCH-UF:-;PERiÓDICOS

explicitamente exposta e creio ser preciso darao termo região toda a importância que lhe atri-bui E. Glissant. O escritor martinicano 0996: 44)propõe com efeito restabelecer esta palavra emsua dignidade, no sentido de "ilha aberta" nummundo (Américas, Europa) que "se arquipeliza".Como quer que seja, a prefeitura do 912 departa-mento de Lyon que assegura a operação quisabertamente evitar o exotismo, o gueto, numbairro em plena renovação com a plataforma daDuchere, eriçada de grandes filas de imóveis,onde, rapidamente, nos anos 60, alojou-se bomnúmero de imigrados e de franceses repatriadosda Argélia. Do ponto de vista do espaço e dotempo, poder-se-ia opor Le lâcber d 'Oreílles, naescala de uma comuna longínqua e ainda umtanto camponesa, no [espetáculo] diurno, com oque isso implica de participação das famílias, eos noturnos africanos em torno de A. HampatéBâ. O Mosaico Tropical é, de fato, um pequenobar "moderno", no pé das encostas da Croix-Rousse. Aí se reúne uma população de estudan-tes e intelectuais, abertos a todos os mosaicosde músicas, de danças, de coquetéis. O bar tevea casa cheia e as reuniões produziram debates,às vezes tensos, sobre o islamismo, o racismo,bela prova, se preciso fosse, da eterna atualidadedos contos. Em todos os casos, a diversidade daoferta põe o ouvinte numa situação de recep-ção polifônica que vem esclarecer, parece-me, adefinição do multilingüismo assim formulada porE. Glissant em uma celebração do que ele cha-ma de "caos-mundo" 0996: 40-41):

Falo e, sobretudo, escrevo na presença de to-das as línguas do mundo. Mas, escrever empresença de todas as línguas do mundo nãoquer dizer conhecer todas as línguas do mun-do. Isso quer dizer que no contexto atual dasliteraturas e da relação da poética com o caos-mundo, não posso mais escrever de maneiramonolíngüe. (. ..) Chegamos a um momento dahistória em que se constata que o imagináriohumano necessita de todas as línguas do mun-do e que por via de conseqüência, no localincoruornâuel de onde a obra literária é emiti-da, nas Antilhas, o imaginário do homem an-

tilbano necessita da língua crioula e da lín-gua francesa. (. ..) Repito que o multilingüismonão supõe a coexistência das línguas nem oconhecimento de várias línguas, mas apresen-ça das línguas do mundo na prática da suaprópria língua. É a isto que chamo demultilingüismo. Daí a necessidade de distin-guir entre a língua que se usa e a linguagem,isto é, a relação com aspalavras, que constru-ímos em matéria de literatura e depoesia. (. ..)Escutar o outro, os outros, é ampliar a dimen-são espiritual de sua própria língua, isto é,colocá-Ia em relação.

Escutamos e narramos na presença de to-das as línguas do mundo, poderíamos dizer eco-ando. Esta situação, no Brasil, poderia parecerbanal. Na França, ela subverte as representaçõesligadas a uma língua francesa conquistada labo-riosamente contra os obscurantismos e os diale-tos, o uso de uma língua sendo percebido comoo próprio instrumento da democracia produzi-da pela Revolução Francesa e pela Declaraçãodos Direitos do Homem e do Cidadão. A heran-ça ao mesmo tempo histórica e mítica desse fran-cês nacional pesa enormemente nos debatessobre as políticas de integração e de educaçãopara a cidadania. Estes últimos são hojereativados pelos riscos de um multiculturalismovivido como recuo sobre as comunidades e as"identidades mortíferas" que poderiam desen-volver-se, para retomar o título de uma obrapolêmica do escritor franco-libanês AminMaalouf (998). Como quer que seja, onde querque se esteja, é impossível escapar hoje àpluralidade das línguas e das culturas. Toda es-colha do singular é escolha de um singular den-tre outros possíveis culturais. A diversidade daoferta é multiplicada pela diversidade dos luga-res e das manifestações onde o conto é postocomo contribuição não somente para distrair, mastambém para instruir. Assim, a palavra viva seintroduz no saber museográfico e científico: noPlanetário, a astronomia conjuga os imagináriosdo céu e das estrelas. Tomaria como outro exem-plo o Museu de História Natural de Lyon quetem como desiderato tornar-se o Museu das cul-turas do mundo e deveria abrir suas portas para

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-o conto e os contadores. Esta oferta é substituídapela multiplicidade dos meios de memorizaçãoe de difusão: cassetes de áudio, de vídeo, CD-Rom, etc. Passamos, pois, de dinâmicas urbanasa uma lógica planetária que subverte as catego-rias estabelecidas entre os lugares e os gênerosde discurso que se lhes estavam ligados.

CIDADE E CAMPO: RUMO AO DESAPARECIMENTO DEUMA OPOSiÇÃO LENDÁRIA

Se investíssemos o tempo a ler todas asinformações oferecidas pelas revistas e sítiosespecializados (Lagrande oreille, La mandragore)ou ainda, para permanecer na área de Lyon, peloboletim trimestral: Les Potins du conte", éditadopela associação "Drôles de Zêbres" já assinalada,ficaríamos espantados com a multiplicação dasmanifestações anunciadas nos recantos mais re-cuados da França. Não se trata mais apenas defestivais de verão para citadinos de férias. Os su-búrbios se estendem; mais e mais citadinos deci-dem instalar-se no campo. O movimento éacentuado pelas modificações do trabalho, dosmeios de transporte. Constroem-se salões de fes-tas nas aldeias, novos espaços de convivialidadeonde se pode representar, no mundo global, asinvenções sociais e culturais do "local". 2 Em ou-tubro, um festival Contadores no campo reuniu59 lugarejos por iniciativa da Federação dos laresrurais do Nord-Pas de Calais. Mais perto de Lyon,a associação A Floresta dos Contos em Vocance,com Palavras no caminho, mobilizou nos arre-dores de Annonay os vilarejos do vale. Em no-vembro, Conteurs en chem 'AlN reuniu contadorese bibliotecários da Bresse e dos Dombes, um de-partamento, o Ain (observemos de passagem ojogo de palavras Ain/chernin), mais reputado porsuas aves que por seus narradores. O contadorAbbi Patrix, por sua vez, dirigiu uma formaçãode contadores amadores nos vilarejos da regiãoparisiense. O grupo, uma vez preparado, foi nar-rar nos lugares mais insólitos (igreja abandona-da, salas da prefeitura, pátio de escola, bar daesquina). A operação foi Chamada de Conteurs

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des villes- conteurs des cbamps. Eis que isso pul-veriza, não sem algum humor, a distinção tradici-onal veiculada pela célebre fábula de La Fontaine"Le rat des villes et le rat des charnps'" . Por certo,seria mister refinar a hipótese e a análise. Traba-lhos de sociólogos, de etnólogos devem ser esti-mulados neste setor, em campos precisos.Ninguém duvida, porém, que a difusão das no-vas tecnologias desempenha papel importante natransformação dos espaços da palavra pública. Oconto, ainda aí, abre pistas e se presta maravilho-samente à comunicação. Além disso, os contado-res têm tudo a ganhar: isto lhes permite se fazeremconhecer melhor, e gerir melhor sua carreira.

P. Zumthor 0987: 51) já utilizava a ex-pressão rede de tradições e inventava o termo(espantosamente moderno) intervocalidade. Éa formidável extensão dessa rede que gostariade assinalar aqui, a estranha conjunção entrea magia dos contos e o maravilhosotecnológico que confere a cada cidadão domundo o dom de ubiqüidade, o dom deinteração, de conversação (fórum, chat, etc).Até a euforia, até a vertigem, com a condiçãode ter acesso a ísso." Do folclore ao cyberlore,para utilizar o neologismo de BrunhildeBiebuyck (Cahiers de Littérature Orale, 2000),o mais particular dos repertórios atinge oshabitantes da aldeia planetária, a palavra cir-cula e pertence a todo o mundo. Basta agarrá-Ia no vôo. Teríamos nós mudado de dimensãoe subvertido a ordem das coisas?

DE ALGUNS PARADOXOS NO DESAFIO DA MUNDIALIZAÇÃO

A aceleração dos meios de comunicação,que afetam as práticas de contos, criam situaçõesexperimentais nas quais pode ser interessante ob-servar o que advém dos paradoxos inerentes àliteratura oral. Distinguiria três deles que introdu-zem menos elementos de ruptura que de trans-formações: o primeiro entre a presença e aausência, o segundo entre o anonimato e aliterarização, o terceiro entre a memória e o es-quecimento.

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- BCH-U::- -:PERiÓDICOS

ENTRE O VIRTUAL E O SENSUAL

Se o computador permite todos os possí-veis narrativos, todos os encontros, ele é ao mes-mo tempo aquilo que nos priva de nosso corpo,de nosso fôlego, de nosso odor. Os habitantes daaldeia planetária que estamos em vias nos tornar-mos são tão solitários quão solidários. Por certo oscontos circulam como jamais circularam. BrunhildeBiebuyck interessou-se particularmente pelo cor-reio eletrônico e pela circulação das palavras risí-veis, das piadas. O texto que diverte, escreve ela(Biebuyck, 2000: 69), se insinua de um computa-dora outro, em todosos recônditos do mundo ondeseconheça um internauta. Mas falta todo o gestual,tudo o que permite um auditório face a face, comoela o faz observar com insistência:

o expedidor está privado da reação imediatade seu destinatário cujo riso ou emoção ressoaàs vezes no silêncio ou num contexto em queas outras pessoas não compreendem imediata-mente a reação de seu colega. Oprazer está noato de transmitir e na idéia que a gente sefazda reação dos outros.

O expedidor permanecerá maisfreqüentemente sem resposta. A interação de-saparece e, com ela, o calor do olhar, da pre-sença física. O virtual aniquila o sensual. Otocar do teclado não substitui nem a rítmicada respiração nem a intensidade do olhar.Como o teórico Paul Zumthor, o contadorMichel Hindenoch insiste na pele, no olho. Apropósito do olhar do contador, ele põe nafrente a capacidade deste último de ver antesde dizer, sua capacidade de ver a quantas andao público sem, para tanto, tomá-lo como re-fém, sua capacidade enfim de dizer com osolhos 0997: 52): O olho é só por si maravilho-so instrumento de palavra: quando a línguase cala, o olho continua a falar em silêncio e oolho do ouvinte está fixado no do na rrador.

É verdade que hoje o amador de contospode cultivar tanto um quanto o outro: buscaras manifestações empáticas onde todo o corpo

participa e, ao mesmo tempo, navegar livrementede uma cultura a outra, de um gênero a outro,só pelo poder de um rato mágico. O vivente doencontro não é o contrário da euforia internáu-tica. Um e outro contribuem para nos fazer ex-perimentar a pluralidade dos mundos e a forçado verbo. O conto pode assim reencontrar umpúblico de adultos que não tinha mais nas soci-edades ocidentais e sair de seus diversos guetos:gueto da meninice, novos guetos dos bairrosdesfavorecidos onde se busca desesperadamenteo diálogo. Além disso, as proezas da técnica nãoviriam mostrar, sem forçosamente chegar a lhedar seu pleno rendimento, a virtualidade intrín-seca da obra popular, tal como a define G.Bolleme (1986: 190):

A obra popular é aquela que se vincula à co-munidade, aceita eguardada pela comunida-de, mas também renovada por ela e diante dosdiferentes intérpretes. Em certo sentido, ela ésempre virtual. Ela só existe no ato da repre-sentação. Ela é acontecimento.

O paradoxo seria aqui levado ao seu cúmu-lo e a técnica desafiada em seu próprio terreno.

ENTRE CULTURA POPULAR E LlTERARIZAÇÃO

Outra linha de tensão se esboça, ou me-, lhor se exacerba, aquela que une o anonimatode uma cultura popular que é uma cultura demassa, como o lembra P. Zumthor no final desua obra, e uma cultura sapiente, onde se afir-mam nomes de artistas e portanto direitos auto-rais. A literatura oral é esse material que pertencea todo mundo, como o boca a boca eletrônicodos sítios da Internet no-lo lembra. O corpusnumérico é tão imenso quanto opaco e confu-so. Ele já tinha sido esboçado por Aarne eThompson mediante a classificação internacio-nal dos contos por contos-tipo e sobretudo oÍndice dos 40.000 motivos de Stith Thompson.O Índice constitui de fato uma base de dadosfuturista, ao utilizar um sistema numérico deci-

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-mal com casas vazias à disposição dos pesqui-sadores que virão. Faltava-lhe a mobilidade dosuporte do monitor e dos laços de hipertextos.Esta maravilhosa máquina, data do ano 1928 eprovocou a cólera de Vladimir Propp, que acha-va o sistema empírico demais. Este último pre-feriu o esquema abstrato das 36 Junções doiniciático conto maravilhoso russo, cujo sucessoconhecemos, mas também seus limites. Mas dei-xemos aí essas querelas de especialistas pararetomar por um instante à extensão sem prece-dentes dos repertórios em escala planetária, emtodos os gêneros e em todas as línguas permiti-dos pelas máquinas mágicas. Os maiores explo-radores e fornecedores de sítios são também ospróprios contadores. De repente, alguns reivin-dicam, alto e bom som, sua parte de autores edivulgam por escrito suas versões devidamenteassinadas. Existe uma coleção ad hoc "Palavrasde contadores" nas edições Syros. MichelHindenoch, já citado, propõs mesmo uma" Car-ta dos contadores', que suscita regularmente vi-vas polêmicas. No código de deontologia queele preconiza, por exemplo, um contador deve-ria solicitar a outro a autorização para lhe tomarpor empréstimo tal conto, tal pormenor, tal acha-do. Ora, não importa quem, em todo caso, pelaInternet, pode de todas as maneiras, com umsimples 'copiar-colar', pedir emprestado, "sub-trair", roubar. A carta é paradoxalmente tantomais irrealista quanto mais se choca com os pro-cessos de circulação das histórias de boca emboca, substituído e amplificado no caso pelatécnica. Os contadores, de qualquer modo, apro-veitam-se dos sítios da Internet para fazer suapublicidade ou criam seu próprio sítio. Anexamà sua foto de identidade curta notícia biográficae indicam também seu repertório, seus espetá-culos, suas diversas produções (livros, discos,cassetes). Contribuem dessa maneira para se fa-zer conhecidos e reconhecidos como artistas eenfatizam o que se poderia chamar a literarizaçãodos contos ou mesmo sua estetização. Com efei-to, o conto se mistura à musica, à dança; ele seabre cada vez mais às outras artes. Saído do es-

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paço da tribo, da família, da vigília, encontraoutras modalidades de transmissão. Grande é asurpresa dos mais velhos ao verem, de repente,que o patrimônio reservado à intimidade familialpode se transformar em objeto de comércio. Essapassagem de um mundo a outro é, às vezes,uma etapa difícil de ser transposta pelos filhos efilhas de imigrados. Mas essa herança, devida-mente assumida, pode se tornar argumento devenda. Fazer saber que se foi ninado pelos con-tos de uma mãe berbere pode servir de fazervaler. Afida Thari (no sítio da Maison du Contede Chevilly-Larue) evoca da seguinte maneirasuas recordações de infância e sua mãe berbere:

Minha mãe acompanhava cada uma de suasatividades com cantos ou histórias. Nada estáescrito, fixado, tudo está em movimento leva-do por uma voz: aquela mesma que me trans-mitia suas palavras, suas melodias. (. ..) Alíngua materna leva bem seu nome: eu só faloo berbere com minha mãe. Essaparticularida-de orientou meu aprocbe do espetáculo vivo.

Em virtude de circulações diante de pú-blicos diferentes, constitui-se um corpus de tex-tos orais que participa hoje disso que se poderiachamar a elaboração de uma cultura comumde contornos mutantes. Tal é o objeto da pes-quisa que empreendi no quadro do Grupo dePesquisas e Estudos sobre o Mediterrâneo e oOriente Médio (CNRS-UMR 5647, Lyon) medi-ante o exemplo dos contos magrebinos na Fran-ça essencialmente, em contato com outrasinfluências culturais. Há, creio eu, pesquisas aserem feitas sobre os processos de mestiçagense de patrimonialização que se operam a partirde práticas mais entre meadas que justapostas.Os contadores, que brincam com os públicose os repertórios, desempenham nesse sentidoum papel particularmente ativo. Nessa gigan-tesca rede, mais ou menos densa, cada umpoderá oscilar entre a euforia babélica e avertigem planetária. Razão a mais para se pôra questão dos balizamentos e dos instrumen-tos de navegação.

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- BCH-Urr

PERiÓDICOSENTRE A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

o caos-mundo - para retomar a expres-são cara a E. Glissant - posto assim ao nossoalcance, é ao mesmo tempo bastante caótico.. o momento em que as pesquisas sobre o con-:0 constituem um lugar de escolha para a histó-ria, o espaço internáutico babélico, ao nosdispersar pela superfície da terra, confunde osoalizamentos temporais. Tudo se avizinha detudo, a maioria das vezes com um déficit deexplicação, de referências, à maneira de umantímanual, com simples clique mágico e de-senrolar de menus aleatórios. O internauta estáà mercê de criadores de sítios que ele não co-nhece e cujas qualificações, freqüentemente, nãopossui nenhum meio de verificar. Um contoparódico do século XIX C'La belle au bois ...veillant?") quase impossível de achar nas bibli-otecas, irrompe sem alarde numa página domonitor, na rubrica "Contos a granel" do sítio <www.contes.net >•. Nada permite situá-lo a nãoser unicamente pela menção do autor (TimothéIrirnrn, 1815-1875). Muitos contos assinaladosna rubrica "Contos tradicionais" do mesmo sítiosão desprovidos de qualquer referência biblio-gráfíca ou são retirados por empréstimo de umaedição de grande público (Gründ) que não for-aece nenhuma indicação sobre as fontes e osmétodos de estabelecimento dos textos. A esco-.ha, tanto dos países quanto dos contos, é das.nais arbitrárias. Eis sua lista: Ameríndios, Mil e.ima Noites, Idade Média, França, Europa, Len-ias Celtas, Quebec, África, Indonésia, Esquimós,I'ibet, Outros países, Contos Zen. A Europa se.irnita a: Itália, Países Bálticos, Espanha. Clicarem "Outros países" faz aparecer: Croácia, Méxi-:0, China, Sérvia, República Checa, Peru,víongólia, Índia. Para cada país é proposto umconto em tempo controlado (de 2 a 5 minutos),oronto para o uso. O sítio da Biblioteca acio-.ial, ao contrário, oferece uma exposição virtual.ntitulada: Era uma vez os contos defada, que é.im modelo de erudição posto ao alcance de:odos. Daí poder-se-ia sonhar com uma enciclo-

pédia dos contos da humanidade? Seja como for,ela só poderia ser interativa e inacabada. Pode-se, contudo, deplorar as desenvolturas consta-tadas na tela, sabendo que elas só fazem acentuarum fenômeno freqüente na literatura infantil.Qualquer pessoa, abeberando-se na bibliotecada humanidade, tomando emprestado de uns ede outros, pode propor qualquer coisa, de qual-quer modo, usando do direito soberano do con-tador de se apropriar de toda história. Contossão reescritos por vezes com desprezo peloscontextos culturais, com desprezo por sua tex-tura até por pessoas que não hesitam em se pro-clamar autores e em assinar suas produções. Aítambém observam-se exceções, que mostram serpossível proceder de outro modo. Haveria pis-tas de trabalho para etnólogos apaixonados porliteratura e tradução. Não se trata de introduziraqui uma regulamentação moralizadora quemeteria uma brida nos imaginários contemporâ-neos. O que está em jogo é a capacidade decada um de se inscrever numa história, de anco-rar-se no passado para se permitir toda liberda-de de inventar. Citar suas fontes faz parte daética do contador, mas também da estética doconto e da ética do encontro. Um campo depesquisas está claramente aberto, de que o con-to poderia ser o pretexto e o trampolim nummundo cuja violência e os ódios fratricidas elenão ignora, encontrando-lhes até o infinitoespaços de. negociação e de mediação que sãoos da ficção.

A literatura oral hoje não faz mais quedesenvolver suas tensões e torções ordinárias:entre o singular e o universal, entre o anonima-to da "gentalha" e a notoriedade dos artistas (gen-te de outras figuras, os ricos, que logram construirum nome), entre o sedentarismo e o nomadismo,entre a contemporaneidade e a longa duração.Há uma tensão, enfim, que o conto e, melhorainda, a denominação-oximoro "literatura oral"torna emblemática: a tensão entre a oralidade ea escritura. Os usos do som e da imagem, osusos da conservação e da criação estão em ple-na efervescência e nos escapam, mesmo se pes-

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quisas estão engajadas nessa direção. As muta-ções em curso poder-nos-iam levar a revisitarnão somente os repertórios e as práticas, masigualmente os procedimentos e métodos de pes-quisa. Não estamos no fim de BabeI. Estamos noseu começo, conforme o sugere P. Zumthor numderradeiro murmúrio 0997: 213). Acrescentemosin fine retomando suas palavras: Façamo-nosum humanismo ...

Tradução e Notas com" do Dr. EduardoDiatahy Bezerra de Menezes

NOTAS

• Paul ZUMTHOR é o notável especialista em lite-ratura da Idade Média, nascido em Genebra em1915 e falecido recentemente em 1995; foi pro-fessor de Poética e Teoria Literária da Universida-de de Montreal, Canadá, e deixou obrasfundamentais como produtos de sua longa inves-tigação, tais como Langue et tecbnique poétique àl'époque romane (963), Essai de PoétiqueMédiauale (1972 - seu grande texto sobre o tema),Langue, texte, énigme (1975), Masque et Lumiêre,Ia poétique des grands rhétoriqueurs (978),Présence de Ia Voix (1983), etc. O livro aqui cita-do constitui seu derradeiro trabalho, sobre o quallevou anos a meditar e a coletar anotações, tendoretomado esse esforço de pesquisa nos últimostempos, foi publicado postumamente (997) comapoio de seus "cadernos" de notas, dos testemu-nhos daqueles que conviveram mais intimamentecom ele, e sobretudo da colaboração de sua mu-lher Ollier-Zumthor, deixando assim inacabado oconjunto de sua obra... Há edição portuguesadesse livro: Babei ou O Inacabamento. Uma re-flexão sobre o mito de BabeI. Lisboa: Bizâncio1998.[Nota do tradutor). ,

1 -Escritor, etnólogo, narrador, Amadou Hampaté Bâera uma das mais altas figuras da sabedoria e dacultura africana. Na Unesco em 1960, para ilustrarseu engajamento em favor da salvaguarda e datransmissão das tradições orais africanas, ele lan-çou sua célebre frase: Na África, quando morreum ancião, é uma biblioteca que é queimada .•Talé a apresentação que consta num prospecto publi-citário que anuncia essa manifestação.

• A Estrela Real [Nota do Tradutorl.

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•• Zebras Cômicas [N. do T.].••• Solta balões [N. do T.l.• Opalavreado do conto [N. do T.l.2 Sobre as relações entre o mundo global e as

redefinições do local, ver A. APPADURAI: Aprês leColonialisme. Les conséquences culturelles de Iaglobalisation, Paris: Payot, 2001, tradução do in-glês por F. Bouillot [Modernity at Large CulturalDimensions of Globalizatiorú.

• O rato da cidade e o rato do mato [N. do T'].3 É verdade que há aí matéria para debate. O histo-

riador E. HOBSBAWM (1999: 179-199) nos advertecontra uma mundialização que faz crescer o fossoentre os pobres e os ricos. O cosmopolitismo sem-pre existiu para uso de alguns e poderia ser refor-çado. Um dos lances do século XXI é claramente oacesso do maior número de pessoas a isso que sepoderia chamar a mundíalídade, a de um homomundialis, por oposição ao nomadismo dolorosodos refugiados, dos trabalhadores imigrados e desuas famílias, igualmente inscrito no fenõmeno reale vasto da mundialização.

• A paródia no caso consiste no fato de que o co-nhecido conto de fada se intitulava A Bela ador-mecida no bosque e, nesta versão, ela está desperta,vigilante. [N. do T.].

··NotadoTradutor: Atualmente [16.11.2002l, estesítio intitulado -Contos e· Poemas-, em aparenteparadoxo, já não mais apresenta contos em seurepertório. Seu editor fornece aos usuários a ex-plicação que traduzo a seguir: -Vocês são nume-rosos a me indagar: por que não há mais contos?Mui simplesmente em razão dos editores, queexigem de mim prestação de contas face às suasperdas em conseqüência deste sítio. É bom quese saiba que todos os textos tradicionais são con-trolados por copyright, mesmo quando os au-tores são indefinidos. É considerado como autoraquele que organiza tais contos!!! Outro exem-plo, os textos dos Grimm em sua versão original[alemão] estão "livres de direitos", porém as tra-duções estão protegidas por lei. Certamente, eupoderia ter mantido os autores franceses do sé-culo XIX, mas preferi parar tudo, porque paramim desaparece a magia da descoberta e de fa-zer descobrir contos que fazem parte da culturados diversos países. É lamentável, mas é a lei.Vocês podem consultar uma parte dos contos nosítio <www.oursonbleu.free.fr>. Devo agradecer-Ihes calorosamente a fidelidade e opiniões devocês que foram sempre para mim um "motor"muito eficaz. a) Didier Vedovato..

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