iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    1/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 1

    As Dimenses tico-polticas e Terico-metodolgicas no Servio

    Social Contemporneo

    Por Marilda Villela IamamotoEl tiempoTiene color de nocheDe una noche quieta....Y el tiempo se ha dormidopara sempre en su torre.Nos engaanTodos los reloges.El tiempo tiene ya horizontes(Lorca

    Introduo

    Vive-se uma poca de regresso de direitos e destruio do legado de conquistas

    histricas dos trabalhadores em nome da defesa, quase religiosa, do mercado e do capital,

    cujo reino se pretende a personificao da democracia, das liberdades e da civilizao. A

    mistificao inerente ao capital, enquanto relao social alienada que monopoliza os frutos

    do trabalho coletivo, obscurece a fonte criadora que anima o processo de acumulao em

    uma escala exponencial no cenrio mundial: o universo do trabalho. Intensifica-se a investida

    contra a organizao coletiva de todos aqueles que, destitudos de propriedade, dependem de

    um lugar nesse mercado, cada dia mais restrito e seletivo, que lhes permita produzir o

    - Texto base da conferencia magistral do XVIII Seminrio Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social,. San Jos,Costa Rica, 12 de julio de 2004, originalmente publicado nos Anais do referido Seminrio: MOLINA, M. L. M. (Org.)La cuestin social y la formacin profesional en el contexto de las nuevas relaciones de poder y la diversidadlatinoamericana. San Jos, Costa Rica: ALAETS/Espacio Ed./Escuela de Trabajo Social, 2004, p. 17-50.

    - Assistente Social, Doutora em Cincias Sociais, Professora Titular aposentada da Escola de Servio Social daUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente Professora Titular da Faculdade de Servio Social daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Publicou vrios livros, entre os quais: Renovao e Conservadorismono Servio Social (So Paulo,:Cortez Ed., 1992), que atinge hoje a 8edio; O Servio Social na Contemporaneidade:trabalho e formao profissional (So Paulo: Cortez Ed., 1998) atualmente na 10edio; Trabalho e Indivduosocial.(So Paulo: Cortez, 2001),na 2edio; e, em co-autoria com Raul de Carvalho: Relaes Sociais e ServioSocial no Brasil (So Paulo: Cortez Ed., 1982), hoje na 18edio.

    LORCA, Federico Garcia. Meditacin primera y ltima. In: Obra potica Completa. So Paulo: MartinsFontes,1966, pp. 610.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    2/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 2

    equivalente de seus meios de vida. Crescem, com isso, as desigualdades e, com elas, o

    contingente de destitudos de direitos civis, polticos e sociais. Esse processo potenciado pelasorientaes (neo)liberais, que capturam os Estados nacionais, erigidas pelos poderes

    imperialistas como caminho nico para animar o crescimento econmico, cujo nus recai

    sobre as grandes maiorias.

    Transformaes histricas de monta alteraram a face do capitalismo nos pases centrais

    e, em particular, na Amrica Latina. Na contratendncia de um longo perodo de crise da

    economia mundial, o capitalismo avanou em sua vocao de internacionalizar a produo e

    os mercados, requerendo polticas de ajustes estruturais por parte dos Estados nacionais.

    Preconizadas pelos pases imperiais por intermdio dos organismos multilaterais, essas

    polticas do livre curso ao capital especulativo financeiro destitudo de regulamentaes e

    lucratividade dos grandes conglomerados multinacionais (BORN, 1995). Um mundo

    internacionalizado requer um Estado dcil aos influxos neoliberais, mas ao mesmo tempo forte

    internamente - ao contrrio do que propalado pelo iderio neoliberal da minimizao do

    Estado - para traduzir essas demandas em polticas nacionais e resistir oposio e protestos

    de muitos, comprometendo a soberania das naes. (PETRAS, 2002)

    O projeto neoliberal expresso dessa reestruturao poltica e ideolgica conservadora

    do capital em resposta a perda de rentabilidade e governabilidade, que enfrentou durante a

    dcada de 1970 (FIORI, apud SOARES, 2003), no marco de uma onda longa de crise

    capitalista (MANDEL, 1985). O capital cria as condies histricas necessrias para a

    generalizao de sua lgica de mercantilizao universal, submetendo aos seus domnios e

    objetivos de acumulao o conjunto das relaes sociais: a economia, a poltica, a cultura.

    O carter conservador do projeto neoliberal se expressa, de um lado, na naturalizao

    do ordenamento capitalista e das desigualdades sociais a ele inerentes tidas como inevitveis,

    obscurecendo a presena viva dos sujeitos sociais coletivos e suas lutas na construo da

    histria; e, de outro lado, em um retrocesso histrico condensado no desmonte das conquistas

    sociais acumuladas, resultantes de embates histricos das classes trabalhadoras,

    consubstanciadas nos direitos sociais universais de cidadania, que tm no Estado uma

    mediao fundamental. As conquistas sociais acumuladas so transformadas em problemas

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    3/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 3

    ou dificuldades, causa de gastos sociais excedentes, que se encontrariam na raiz da crise

    fiscal dos Estados.

    A contrapartida tem sido a difuso da idia liberal de que o bem-estar social pertence

    ao foro privado dos indivduos, famlias e comunidades. A interveno do Estado no

    atendimento s necessidades sociais pouco recomendada, transferida ao mercado e

    filantropia, como alternativas aos direitos sociais.

    Como lembra Yazbek (2001), o pensamento liberal estimula um vasto empreendimento

    de refilantropizao do social, j que no admite os direitos sociais, uma vez que osmetamorfoseia em dever moral: opera, assim, uma profunda despolitizao da questo

    social, ao desqualific-la como questo pblica, questo poltica e questo nacional.

    A atual desregulamentao das polticas pblicas e dos direitos sociais desloca a ateno

    pobreza para a iniciativa privada ou individual, impulsionada por motivaes solidrias e

    benemerentes, submetidas ao arbtrio do indivduo isolado, e no responsabilidade pblica

    do Estado.

    As conseqncias de transitar a ateno pobreza da esfera pblica dos direitos para a

    dimenso privada do dever moral so: a ruptura da universalidade dos direitos e da

    possibilidade de sua reclamao judicial, a dissoluo de continuidade da prestao dos

    servios submetidos deciso privada, tendentes a aprofundar o trao histrico assistencialista

    e a regresso dos direitos sociais.

    O resultado no campo das polticas pblicas na rea social, na Amrica Latina, tem sido

    o reforo de traos de improvisao e inoperncia, o funcionamento ambguo e suaimpotncia na universalizao do acesso aos servios dela derivados. Permanecem polticas

    casusticas e fragmentadas, sem regras estveis e operando em redes pblicas obsoletas e

    deterioradas. (YAZBEK, 2001:37). E reafirma Soares:

    A filantropia substitui o direito social. Os pobres substituem os cidados. Aajuda individual substitui a solidariedade coletiva. O emergencial e o provisriosubstituem o permanente. As micro-situaes substituem as polticas pblicas.O local substitui o regional e o nacional. o reinado minimalismo do socialpara enfrentar a globalizao da economia. Globalizao s para o grandecapital. Do trabalho e da pobreza cada um cuida do seu como puder. De

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    4/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 4

    preferncia, um Estado forte para sustentar o sistema financeiro e falido paracuidar do social. (SOARES, 2003:12)

    O resultado tem sido uma ampla radicalizao da concentrao de renda, da

    propriedade e do poder, na contrapartida de um violento empobrecimento da populao;

    uma ampliao brutal do desemprego e do subemprego; o desmonte dos direitos

    conquistados e das polticas sociais universais, impondo um sacrifcio forado a toda a

    sociedade. reestruturao da produo e dos mercados -apoiada mais em mtodos de

    consumo intensivo da fora de trabalho do que em inovaes cientficas e tecnolgicas de

    ltima gerao- somam-se mudanas regressivas na relao entre o Estado e sociedade

    quando a referncia a vida de todos e os direitos conquistados pelas grandes maiorias.

    A cultura da ps-modernidade, na sua verso neoconservadora, produzida no lastro

    do atual estgio do que Harvey (1993) denomina de acumulao flexvel do capital. Ela

    condizente com a mercantilizao universal e sua indissocivel descartabilidade,

    superficialidade e banalizao da vida e gera tremores e cismas nas esferas dos valores e da

    tica orientados emancipao humana. O pensamento ps-moderno contrape-se s

    teorias sociais que, apoiadas nas categorias da razo moderna, cultivam as grandes

    narrativas. Assim, questiona, nivelando, os paradigmas positivista e marxista e dilacera

    projetos e utopias. Reitera, em contrapartida, a importncia do fragmento, do efmero, do

    intuitivo e do micro-social. Invade a arte, a cultura, os imaginrios e suas crenas, os saberes

    cotidianos, as dimenses tnicas, raciais, religiosas e culturais na construo de identidades

    esvaziadas de histria (NETTO, 1996;YAZBEK, 2001; SIMIONATO,1999).

    Mas, ao mesmo tempo, essa sociedade apresenta um terreno minado de resistncias e lutastravadas no dia a dia de uma conjuntura adversa para os trabalhadores, as quais carecem de maior

    organicidade para terem fora na cena pblica. Este cenrio, avesso aos direitos, atesta,

    contraditoriamente, a urgncia de seu debate e de sua afirmao na realidade latino-americana, em

    sua unidade de diversidades. Um debate que considere as particulares condies scio-histricas e

    culturais que, no Pas, fundam a construo dos direitos enquanto conquistas e/ou concesses do

    poder, e os dilemas de sua efetivao na prtica social. Esses so, tambm, dilemas do Servio Social.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    5/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 5

    Um contexto scio-histrico refratrio aos influxos democrticos exige,

    contraditoriamente, a construo de uma nova forma de fazer poltica - que impregne aformao e o trabalho dos assistentes sociais- capaz de acumular foras na construo de

    novas relaes entre o Estado e a sociedade civil que reduzam o fosso entre o desenvolvimento

    econmico e o desenvolvimento social, entre o desenvolvimento das foras produtivas e das

    relaes sociais. Requer, portanto, uma concepo de cidadania e de democracia para alm

    dos marcos liberais. A cidadania entendida como capacidade de todos os indivduos, no caso

    de uma democracia efetiva, de se apropriarem dos bens socialmente produzidos, de

    atualizarem as potencialidades de realizao humana, abertas pela vida social em cadacontexto historicamente determinado. Nessa concepo abrangente, a democracia inclui a

    socializao da economia, da poltica e da cultura na direo da emancipao humana,

    como sustenta Coutinho (2000).

    A cena contempornea reclama, com urgncia, um tempo de poltica dos cidados, como

    qualifica Nogueira:

    concentrada no bem comum, no aproveitamento civilizado do conflito e da

    diferena, na valorizao do dilogo, do consenso e da comunicao, nadefesa da crtica e da participao, da transparncia e da integridade numaoperao que se volta para uma aposta na inesgotvel capacidade criativa doshomens. (NOGUEIRA, 2001:58).

    a poltica com muita poltica, em contraposio pequena poltica e poltica dos

    tcnicos, a contra-poltica. Em outras palavras, o novo que perseguimos o compromisso

    com a prevalncia do debate pblico e da participao democrtica, que abra caminhos para

    que cidados organizados interfiram e deliberem nas questes de interesse coletivo, na buscade consensos possveis para resolver os conflitos, organizar e viver a vida. (NOGUEIRA,

    2001).

    Esse o terreno que atualiza a luta por direitos, fundamental em uma poca que

    descaracterizou a cidadania ao associ-la ao consumo, ao mundo do dinheiro e posse das

    mercadorias. Um projeto democrtico se constri no jogo de poderes e contra-poderes, na

    receptividade s diferenas, na transparncia das decises, com publicizao e controle

    constante dos atos de poder e na afirmao da soberania popular. Os assistentes sociais

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    6/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 6

    tambm so seus protagonistas sem abrir mo da crtica e do controle social do Estado. Este

    terreno em que um projeto tico-poltico profissional comprometido com a universalizao dosdireitos pode enraizar-se e expandir-se.

    O Servio Social latino-americano est reconstruindo uma face acadmica, profissional e

    social renovada, cujas origens remontam ao movimento de reconceituao - voltada defesa

    dos direitos de cidadania e dos valores democrticos, na perspectiva da liberdade, da

    equidade e da justia social. Na contramo dos dogmas oficiais, segmentos dos assistentes

    sociais tm buscado um compromisso efetivo com os interesses pblicos, atuando na defesa

    dos direitos sociais dos cidados e cidads e na sua viabilizao junto aos segmentos

    majoritrios da populao, o que coloca a centralidade da questo social para o trabalho e a

    formao profissional no contexto latino-americano.

    Poder-se-ia dizer que, na Amrica Latina, os assistentes sociais h muito acenaram a

    bandeira da esperana - essa rebeldia que rejeita o conformismo e a derrota-, contradizendo

    a cultura da indiferena, do medo e da resignao que conduz naturalizao das

    desigualdades sociais, da violncia, de preconceitos de gnero, raa e etnia. E conseguirammanter viva a capacidade de indignao ante o desrespeito aos direitos humanos e sociais de

    homens e mulheres, crianas, jovens e idosos das classes subalternas com os quais trabalhamos

    cotidianamente.

    A categoria profissional desenvolve uma ao de cunho scio-educativo na prestao de

    servios sociais viabilizando o acesso aos direitos e aos meios de exerc-los, contribuindo para

    que necessidades e interesses dos sujeitos de direitos adquiram visibilidade na cena pblica e

    possam, de fato, ser reconhecidos. Esses profissionais afirmaram o compromisso com osdireitos e interesses dos usurios, na defesa da qualidade dos servios prestados, em

    contraposio herana conservadora do passado. Importantes investimentos acadmico-

    profissionais foram realizados no sentido de se construir uma nova forma de pensar e fazer o

    Servio Social, orientadas por uma perspectiva terico-metodolgica apoiada na teoria social

    crtica e em princpios ticos de um humanismo radicalmente histrico, norteadores do projeto

    de profisso no Brasil.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    7/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 7

    A exposio, a seguir, considera: a) O Servio Social contemporneo: fundamentos

    histricos, terico-metodolgicos, e tico-polticos; b) o projeto profissional c) Servio Social eas estratgias para o enfrentamento da questo social: desafios para a formao e para o

    trabalho profissional.

    2. O Servio Social contemporneo: fundamentos histricos, terico-metodolgicos eticos-polticos

    2. 1. Perspectiva de anlisePara analisar a profisso como parte das transformaes histricas da sociedade

    presente, necessrio transpor o universo estritamente profissional, isto , romper com uma

    viso endgena da profisso, prisioneira em seus muros internos. E buscar entender como

    essas transformaes atingem o contedo e direcionamento da prpria atividade profissional;

    as condies e relaes de trabalho nas quais se realiza; afetam as atribuies, competncias

    e requisitos da formao do assistente social.

    Essa perspectiva exige alargar os horizontes para o movimento das classes sociais e do

    Estado em suas relaes com a sociedade, no para perder ou diluir as particularidades

    profissionais, mas, ao contrrio, para ilumin-las com maior nitidez; extrapolar o universo do

    Servio Social para melhor apreend-lo na histria da sociedade da qual ele parte e

    expresso.

    O atual quadro scio-histrico no se reduz, portanto, a um pano de fundo para que se

    possa, depois, discutir o trabalho profissional. Ele atravessa e conforma o cotidiano do

    exerccio profissional do assistente social afetando as suas condies e as relaes em que se

    realiza o exerccio profissional, assim como a vida da populao usuria dos servios sociais.

    A anlise crtica desse quadro requer um diagnstico no liberal sobre os processos

    sociais e a profisso neles inscrita. Uma anlise do Servio Social que afirme a centralidade do

    trabalho na conformao da questo social e dos direitos sociais consubstanciados em

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    8/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 8

    polticas sociais universais, em contraposio s alternativas focalizadas e fragmentadas de

    combate pobreza e misria, que trata as maiorias como residuais.

    Como pensar o Servio Social nesse contexto?

    Desde a dcada de oitenta, vem sendo reiterado que a profisso de Servio Social uma

    especializao do trabalho da sociedade, inscrita na diviso social e tcnica do trabalho

    social1, o que supe afirmar o primado do trabalho na constituio dos indivduos sociais2. Ao

    indagar-se sobre significado social do Servio Social no processo de produo e reproduo

    das relaes sociais, tem-se um ponto de partida e um norte. Este no a prioridade domercado - ou da esfera da circulao -, to cara aos liberais. Para eles, a esfera privilegiada

    na compreenso da vida social a esfera da distribuio da riqueza, visto que as leis

    histricas que regem a sua produo so tidas como leis naturais, isto , assemelhadas

    quelas da natureza, de difcil alterao por parte da ao humana.

    A anlise do Servio Social no mbito das relaes sociais capitalistas visa superar os

    influxos liberais que grassam as anlises sobre a chamada prtica profissional, vista como

    prtica do indivduo isolado, desvinculada da trama social que cria sua necessidade e

    condiciona seus efeitos na sociedade. Os processos histricos so reduzidos a um contexto

    distinto da prtica profissional, que a condiciona externamente. A prtica tida como

    uma relao singular entre o assistente social e o usurio de seus servios -, seu cliente-

    desvinculada da questo social e das polticas sociais.

    Essa viso ahistrica e focalista tende a subestimar o rigor terico-metodolgico para a

    anlise da sociedade e da profisso, - desqualificado como teoricismo - em favor das vises

    empiristas, pragmticas e descritivas da sociedade e do exerccio profissional, enraizadas em

    um positivismo camuflado sob um discurso progressista de esquerda. Nessa perspectiva, a

    formao profissional deve privilegiar a construo de estratgias, tcnicas e formao de

    1 - sa perspectiva de anlise foi introduzida no Servio Social brasileiro, em 1982. (Cf. IAMAMOTO & CARVALHO,1982; IAMAMOTO, 1992).

    2 - centralidade do trabalho na constituio dos indivduos sociais foi diludo nas interpretaes do marxismo

    herdadas do movimento de reconceituao; um marxismo sem Marx, carregado de fortes marcas do estruturalismofrancs de Althusser e do marxismo sovitico e/ou de inspirao maosta.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    9/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 9

    habilidades centrando-se no como fazer a partir da justificativa que o Servio Social

    uma profisso voltada interveno no social. Esse caminho est fadado a criar umprofissional que aparentemente sabe fazer, mas no consegue explicar as razes, o contedo,

    a direo social e os efeitos de seu trabalho na sociedade. Corre-se o perigo do assistente

    socialser reduzido a um mero tcnico, delegando a outros - cientistas sociais, filsofos,

    historiadores, economistas, etc - a tarefa de pensar a sociedade. O resultado um profissional

    mistificado e da mistificao, dotado de uma frgil identidade com profisso. Certamente o

    Servio Social uma profisso que, como todas as demais, envolve uma atividade

    especializada - que dispe de particularidades na diviso social e tcnica do trabalho coletivo- e requer fundamentos terico-metodolgicos, a eleio de uma perspectiva tica e a

    formao de habilidades densas de poltica. A perspectiva de anlise da profisso, ora

    apresentada, contrape-se s concepes liberais e (neo)conservadoras do exerccio

    profissional.

    A reproduo das relaes sociais na sociedade capitalista, a partir da teoria social

    crtica, entendida como reproduo da totalidade concreta desta sociedade, em seu

    movimento e em suas contradies. reproduo de um modo de vida que envolve ocotidiano da vida social: um modo de viver e de trabalhar socialmente determinado.

    O processo de reproduo das relaes sociais no se reduz, pois, reproduo da

    fora viva de trabalho e dos meios materiais de produo, ainda que os abarque. Ele refere-

    se reproduo das foras produtivas sociais do trabalho e das relaes de produo na sua

    globalidade, envolvendo sujeitos e suas lutas sociais, as relaes de poder e os antagonismos

    de classes. Envolve a reproduo da vida material e da vida espiritual, isto , das formas de

    conscincia social jurdicas, religiosas, artsticas, filosficas e cientficas - atravs das quais os

    homens tomam conscincia das mudanas ocorridas nas condies materiais de produo,

    pensam e se posicionam perante a vida em sociedade.

    Esse modo de vida implica contradies bsicas: por um lado, a igualdade jurdica dos

    cidados livres inseparvel da desigualdade econmica, derivada do carter cada vez mais

    social da produo, contraposta apropriao privada do trabalho alheio (quem produz no

    quem se apropria da totalidade do produto do trabalho, da riqueza criada coletivamente).

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    10/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 10

    Por outro lado, ao crescimento do capital corresponde a crescente pauperizao relativa do

    trabalhador. Esta a lei geral da produo capitalista, que se encontra na raiz da questosocial nessa sociedade.

    Assim, o processo de reproduo das relaes sociais no mera repetio ou reposio

    do institudo. , tambm, criao de novas necessidades, de novas foras produtivas sociais

    do trabalho em cujo processo se aprofundam as desigualdades e criam-se novas relaes

    sociais entre os homens na luta pelo poder e pela hegemonia entre diferentes classes e grupos

    na sociedade. Essa uma noo aberta ao vir-a-ser histrico, criao do novo, que captura

    o movimento e a tenso das relaes sociais entre as classes e sujeitos que as constituem, as

    formas mistificadas que as revestem, assim como as possibilidades de ruptura com a

    alienao por meio da ao criadora dos homens na construo da histrica.

    Esse rumo da anlise recusa vises unilaterais que apreendem dimenses isoladas da

    realidade, sejam elas de cunho economicista, politicista ou culturalista. A preocupao

    afirmar a tica da totalidade na apreenso da dinmica da vida social e procurar identificar

    como o Servio Social participa no processo de produo e reproduo das relaes sociais.

    As condies que peculiarizam o trabalho do assistente social so uma concretizao da

    dinmica das relaes sociais vigentes na sociedade. Como as classes sociais s existem em

    relao, pela mtua mediao entre elas, o trabalho profissional necessariamente

    polarizado pela trama de suas relaes e interesses, tendendo a ser cooptado pelas que tm

    uma posio dominante. Reproduz, tambm, pela mesma atividade interesses contrapostos,

    que convivem em tenso. Responde tanto a demandas do capital e do trabalho, e s pode

    fortalecer um ou outro plo pela mediao de seu oposto. Participa tanto dos mecanismos deexplorao e dominao, quanto, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta s

    necessidades de sobrevivncia da classe trabalhadoras, da reproduo do antagonismo

    desses interesses sociais, reforando as contradies que constituem o motor da histria. A

    partir dessa compreenso que se pode estabelecer uma estratgia profissional e poltica

    coletiva para fortalecer as metas do capital ou do trabalho, embora elas no possam ser

    excludas do contexto do trabalho profissional.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    11/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 11

    Isso significa que o exerccio profissional participa de um mesmo movimento que tanto

    permite a continuidade da sociedade de classes quanto cria as possibilidades de suatransformao. Como a sociedade na qual se inscreve o exerccio profissional atravessada

    por projetos sociais distintos - projeto de classes para a sociedade tem-se um terreno scio-

    histrico aberto construo de projetos profissionais tambm diversos, indissociveis dos

    projetos mais amplos para a sociedade. essa presena de foras sociais e polticas reais

    que no so mera iluso -, que permite categoria profissional estabelecer estratgias

    poltico-profissionais no sentido de reforar interesses das classes subalternas, alvo prioritrio

    das aes profissionais. Sendo a profisso atravessada por relaes de poder, ela dispe deum carter essencialmente poltico, o que no decorre apenas das intenes pessoais do

    assistente social, mas dos condicionantes histrico-sociais dos contextos em que se insere e

    atua.

    Em sntese, o Servio Social situa-se no processo de reproduo das relaes sociais

    como uma atividade auxiliar e subsidiria no exerccio do controle social e da ideologia, isto

    , na criao de bases polticas para a hegemonia das classes fundamentais. Intervm, ainda,

    atravs dos servios sociais, na criao de condies favorecedoras da reproduo da forade trabalho. Por outro lado, se essas relaes so antagnicas; se, apesar das iniciativas do

    Estado visando o controle e atenuao dos conflitos, esses se reproduzem, o Servio Social

    contribui, tambm, para a reproduo dessas mesmas contradies que caracterizam a

    sociedade capitalista.

    A profisso tanto um dado histrico, indissocivel das particularidades assumidas pela

    formao e desenvolvimento a sociedade brasileira quanto resultante dos sujeitos sociais que

    constroem sua trajetria e redirecionam seus rumos. Considerando a historicidade da profisso

    - seu carter transitrio e socialmente condicionado - ela se configura e se recria no mbito

    das relaes entre o Estado e a sociedade, fruto de determinantes macro-sociais que

    estabelecem limites e possibilidades ao exerccio profissional inscrito na diviso social e tcnica

    do trabalho e apoiado nas relaes de propriedade que a sustentam.

    Pensar o projeto profissional supe articular essa dupla dimenso: a) de um lado, as

    condies macro-societrias que tecem o terreno scio-histrico em que se exerce a profisso,

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    12/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 12

    seus limites e possibilidades que vo alm da vontade do sujeito individual; b) e, de outro

    lado, as respostas de carter tico-poltico e tcnico-operativo- apoiadas em fundamentostericos e metodolgicos de parte dos agentes profissionais a esse contexto. Elas traduzem

    como esses limites e possibilidades so apropriados, analisados e projetados pelos assistentes

    sociais. O exerccio daprofisso exige, portanto, um sujeito profissional que tem competncia

    para propor, para negociar com a instituio os seus projetos, para defender o seu campo de

    trabalho, suas qualificaes e atribuies profissionais. Requer ir alm das rotinas

    institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade, as tendncias e

    possibilidades, ali presentes, passveis de serem apropriadas pelo profissional, desenvolvidas etransformadas em projetos de trabalho.

    2.2. Os fundamentos do processo de institucionalizao e desenvolvimento da profisso: trajetria edesafios freqente a afirmativa que o Servio Social se torna profisso quando impe uma base

    tcnico-cientfica s atividades de ajuda, filantropia. Ou, em outros termos, quando se

    processa uma tecnificao da filantropia. Essa a tnica do discurso dos pioneiros e degrande parte da literatura especializada abrangendo, inclusive, autores do movimento de

    reconceituao. Essa uma viso de dentro e por dentro das fronteiras do Servio Social,

    como se ele fosse fruto de uma evoluo interna e autnoma dos sujeitos que a ele se

    dedicam.

    A profissionalizao do Servio Social pressupe a expanso da produo e de relaes sociais

    capitalistas, impulsionadoras da industrializao e urbanizao, que trazem, no seu verso, a questo

    social. A luta dos trabalhadores por seus direitos invade a cena poltica, exigindo do Estado o seu

    reconhecimento pblico. O Estado amplia-se, nos termos de Gramsci (1978), e passa a administrar e

    gerir o conflito de classe no apenas via coero, mas buscando construir um consenso favorvel ao

    funcionamento da sociedade no enfrentamento da questo social.

    O Estado, ao centralizar a poltica scio-assistencial efetivada atravs da prestao de servios

    sociais, cria as bases sociais que sustentam um mercado de trabalho para o assistente social. O Estado

    e os estratos burgueses tornam-se uma das molas propulsoras dessa qualificao profissional,

    legitimada pelo poder. O Servio Social deixa de ser um mecanismo da distribuio da caridade

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    13/37

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    14/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 14

    do mercado e da iniciativa privada, esferas da eficincia, da probidade, da austeridade (Born, 1995).

    O resultado um amplo processo de privatizao da coisa pblica: um Estado cada vez mais

    submetido aos interesses econmicos e polticos dominantes no cenrio internacional e nacional,

    renunciando a dimenses importantes da soberania da nao em nome das exigncias do grande

    capital financeiro e dos compromissos com as dvidas interna e externa.

    Tais processos atingem no s a economia e a poltica afetando, tambm, as formas de

    sociabilidade. Vive-se a sociedade de mercado (LECHNER, 1999) e os critrios de racionalidade do

    mercado - tido como o eixo regulador da vida social -, invadem diferentes esferas da vida social. Essas

    passam a ser analisadas segundo uma lgica pragmtica e produtivista que erige a competitividade, a

    rentabilidade, a eficcia e eficincia como critrios para referenciar as anlises sobre a vida em

    sociedade.

    Forja-se assim uma mentalidade utilitria, que refora o individualismo, onde cada um

    chamado a se virar no mercado. Ao lado da naturalizao da sociedade assim mesmo, no h

    como mudar -, ativam-se os apelos morais solidariedade, na contraface da crescente degradao

    das condies de vida das grandes maiorias.

    Esse cenrio, de ntido teor conservador, atinge as formas culturais, a subjetividade, a

    sociabilidade, as identidades coletivas, erodindo projetos e utopias. E estimula um clima de incertezas

    e desesperanas. O enfraquecimento das redes de sociabilidade e sua subordinao s leis mercantis

    estimulam atitudes e condutas centradas no indivduo isolado, em que cada um livre para assumir

    os riscos, as opes e responsabilidades por seus atos em uma sociedade de desiguais.

    A competitividade internacional torna a qualidade dos produtos um requisito para

    enfrentar a concorrncia, exigindo, ao mesmo tempo, reduzir custos e ampliar as taxas de

    lucratividade. Nessa lgica, o rebaixamento dos custos do chamado fator trabalho tem peso

    importante: envolve cortes de salrio e de direitos conquistados. Surge o trabalhador

    polivalente, chamado a exercer vrias funes no mesmo tempo e com o mesmo salrio.

    Verifica-se um amplo enxugamento das empresas com a terceirizao e a decorrente reduo

    do quadro de pessoal, tanto nas empresas quanto no Estado.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    15/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 15

    Esse processo estimula um acelerado desenvolvimento cientfico e tecnolgico para

    enfrentar a concorrncia intercapitalista, contribuindo para a reduo de custos e ampliaodos nveis de lucratividade; resulta em mudanas nas formas de organizar a produo e

    consumir a fora de trabalho, envolvendo ampla reduo dos postos de trabalho. Reduz-se a

    demanda de trabalho vivo ante o trabalho passado incorporado nos meios de produo, com

    elevao da composio tcnica e de valor do capital. Apoiada na robtica, na micro-

    eletrnica, na informtica - dentre outros avanos cientficos-, a reestruturao produtiva afeta

    radicalmente a produo de bens e servios, a organizao e gesto do trabalho, as

    condies e relaes de trabalho, assim como o contedo do prprio trabalho.

    Complementam esse quadro radicais mudanas nas relaes Estado/sociedade civil

    orientadas pela teraputica neoliberal, traduzida nas polticas de ajuste recomendadas pelo

    Consenso de Washington. (BAPTISTA,1994). Por meio de vigorosa interveno estatal a

    servio dos interesses privados articulados no bloco do poder, contraditoriamente, conclama-se,

    sob inspirao liberal, a necessidade de reduzir a ao do Estado na questo social mediante a

    restrio de gastos sociais, em decorrncia da crise fiscal do Estado. O resultado um amplo

    processo de privatizao da coisa pblica: um Estado cada vez mais submetido aos interesseseconmicos e polticos dominantes no cenrio internacional e nacional, renunciando a

    dimenses importantes da soberania da nao em nome dos interesses do grande capital

    financeiro e de honrar os compromissos morais com as dvidas interna e externa.

    A crtica neoliberal sustenta que os servios pblicos, organizados base de princpios

    de universalidade e gratuidade, superdimensionam o gasto estatal. Da a proposta de reduzir

    despesas (e, em especial, os gastos sociais), diminuir atendimentos, restringir meios

    financeiros, materiais e humanos para implementao dos projetos. Programas focalizados e

    seletivos substituem as polticas sociais de acesso universal. Eles requerem cadastro e

    comprovao da pobreza, como se ela fosse residual, com todos os constrangimentos

    burocrticos e morais s vtimas de tais procedimentos. Dentre as caractersticas daqueles

    programas sociais, como sintetiza Soares (2003), tem-se a dependncia de recursos externos

    para o seu financiamento; o carter transitrio que impede sua continuidade no espao e

    tempo, comprometendo seus impactos e a sua efetividade; o estmulo ao autofinanciamento

    via pagamento direto em detrimento de formas pblicas e distributivas, tpicas de regimes

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    16/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 16

    tributrios mais justos; a substituio de agentes pblicos estatais por organizaes

    comunitrias ou no governamentais, financiadas por recursos pblicos e que, nem sempre,preservam o carter pblico de suas aes no acesso aos programas e nos contratos de

    trabalho de seus agentes. Estes so geralmente submetidos ao trabalho temporrio, aos

    baixos salrios e precarizao. Os critrios de gesto empresarial custo-benefcio,

    terceirizao, produtividade etc - passam a ser incorporados pelos organismos estatais, ao

    mesmo tempo em que estimulada a privatizao, com alto grau de mercantilizao dos

    servios sociais. A descentralizao das polticas e programas sociais, nem sempre

    acompanhada de correspondente transferncia de recursos.

    Diante de tais caractersticas, o assistente social, que chamado a implementar e

    viabilizar direitos sociais e os meios de exerc-los, se v tolhido em suas aes que dependem

    de recursos, condies e meios de trabalho cada vez mais escassos para as polticas e servios

    sociais pblicos.

    Esse novo momento de expanso capitalista altera a demanda de trabalho do assistente

    social, modifica o mercado de trabalho, altera os processos e as condies de trabalho nosquais os assistentes sociais ingressam enquanto profissionais assalariados. As relaes de

    trabalho tendem a ser desregulamentadas e flexibilizadas. Verifica-se uma ampla retrao dos

    recursos institucionais para acionar a defesa dos direitos e dos meios de acess-los. Enfim,

    tem-se um redimensionamento das condies do exerccio profissional que ele se efetiva pela

    mediao do trabalho assalariado.

    2.3 Questo social e Servio SocialO Servio Social tem na questo social a base de sua fundao enquanto

    especializao do trabalho. Questo social apreendida enquanto o conjunto das expresses

    das desigualdades da sociedade capitalista que tem uma raiz comum: a produo social

    cada vez mais social, enquanto a apropriao dos seus frutos mantm-se privada,

    monopolizada por uma parte da sociedade.

    Os assistentes sociais, por meio da prestao de servios scio-assistenciais nas

    organizaes pblicas privadas, interferem nas relaes sociais cotidianas no atendimento s

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    17/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 17

    mais variadas expresses da questo social vividas pelos indivduos sociais no trabalho, na

    famlia, na luta pela moradia e pela terra, na sade, na assistncia social pblica, etc.

    A questo social sendo desigualdade , tambm, rebeldia, pois os sujeitos sociais, ao

    vivenciarem as desigualdades, a elas tambm resistem e expressam seu inconformismo.

    nesta tenso entre produo da desigualdade, da rebeldia e da resistncia que trabalham os

    assistentes sociais, situados nesse terreno movido por interesses sociais distintos, os quais no

    possvelabstrair- ou deles fugir- porque tecem a trama da vida em sociedade.

    Por isso, decifrar as novas mediaes atravs das quais se expressa a questo social nacena contempornea de fundamental importncia para o Servio Social em uma dupla

    perspectiva: para que se possa apreender as vrias expresses que as desigualdades sociais

    assumem na atualidade e os processos de sua produo e reproduo ampliada; e para

    projetar e forjar formas de resistncia e de defesa da vida. Formas de resistncia j presentes,

    por vezes de forma parcialmente ocultas, no cotidiano dos segmentos majoritrios da

    populao que dependem do trabalho para a sua sobrevivncia. Assim, apreender a questo

    social tambm captar as mltiplas formas de presso social, de inveno e de re-invenoda vida, construdas no cotidiano.

    Na atualidade, a questo social diz respeito ao conjunto multifacetado das expresses

    das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensveis sem a

    intermediao do Estado. A questo social expressa desigualdades econmicas, polticas e

    culturais das classes sociais, mediadas por disparidades nas relaes de gnero, caractersticas

    tnico-raciais e formaes regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade

    civil no acesso aos bens da civilizao.

    Dispondo de uma dimenso estrutural, a questo social atinge visceralmente a vida

    dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania. (IANNI, 1992), no embate pelo respeito

    aos direitos civis, sociais e polticos e aos direitos humanos. Esse processo denso de

    conformismos e rebeldias, expressando a conscincia e a luta pelo reconhecimento dos direitos

    de cada um e de todos os indivduos sociais. nesse terreno de disputas que trabalham os

    assistentes sociais.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    18/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 18

    Foram as lutas sociais que romperam o domnio privado nas relaes entre capital e

    trabalho, extrapolando a questo social para a esfera pblica, exigindo a interferncia doEstado no reconhecimento e a legalizao de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos,

    consubstanciados nas polticas e servios sociais.

    Atualmente, a questo social passa a ser objeto de um violento processo de

    criminalizao que atinge as classes subalternas (IANNI:1992; GUIMARES:1979) Recicla-se a

    noo de classes perigosas - no mais laboriosas-, sujeitas represso e extino. A

    tendncia de naturalizar a questo social acompanhada da transformao de suas

    manifestaes em objeto de programas assistenciais focalizados de combate pobreza ou

    em expresses da violncia dos pobres, cuja resposta a segurana e a represso oficiais.

    Evoca o passado, quando era concebida como caso de polcia, ao invs de ser objeto de

    uma ao sistemtica do Estado no atendimento s necessidades bsicas da classe operria e

    outros segmentos trabalhadores. Na atualidade, as propostas imediatas para enfrentar a

    questo social, no Brasil, atualizam a articulao assistncia focalizada/represso, com o

    reforo do brao coercitivo do Estado em detrimento da construo do consenso necessrio ao

    regime democrtico, o que motivo de inquietao.

    Uma dupla armadilha pode envolver a anlise da questo social quando suas

    mltiplas e diferenciadas expresses so desvinculadas de sua gnese comum,

    desconsiderando os processos sociais contraditrios- na sua dimenso de totalidade - que as

    criam e as transformam.

    Corre-se o risco de cair na pulverizao e fragmentao das questes sociais, atribuindo

    unilateralmente aos indivduos e suas famlias a responsabilidade pelas dificuldades vividas, oque deriva na anlise dos problemas sociais como problemas do indivduo isolado e da

    famlia, perdendo-se a dimenso coletiva e isentando a sociedade de classes da

    responsabilidade na produo das desigualdades sociais4. Por uma artimanha ideolgica,

    elimina-se, no nvel da anlise, a dimenso coletiva da questo social, reduzindo-a a uma

    dificuldade do indivduo. A pulverizao da questo social, tpica da tica liberal, resulta na

    4 - A maioria dos programas focalizados de combate fome e misria tem, como alvo, a famlia.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    19/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 19

    autonomizao de suas mltiplas expresses as vrias questes sociais,- em detrimento da

    perspectiva de unidade. Impede-se, assim, o resgate da origem da questo social imanente organizao social capitalista, o que no elide a necessidade de apreender as mltiplas

    expresses e formas concretas que assume.

    Outra armadilha aprisionar a anlise em um discurso genrico, que redunda em uma

    viso unvoca e indiferenciada da questo social, prisioneira das anlises estruturais,

    segmentadas da dinmica conjuntural e da vida dos sujeitos sociais.A questo social passa

    a ser esvaziada de suas particularidades, perdendo o movimento e a riqueza da vida, ao

    desconsiderar suas expresses especficas que desafiam a pesquisa concreta de situaes

    concretas (como a violncia, o trabalho infantil, a violao dos direitos humanos, os

    massacres indgenas, etc.).Concluindo, constata-se hoje uma renovao da velha questo

    social, inscrita na prpria natureza das relaes sociais capitalistas, sob outras roupagens e

    novas condies scio-histricas na sociedade contempornea, aprofundando suas

    contradies. Nesse cenrio a velha questo social metamorfoseia-se, assumindo novas

    roupagens. Ela evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das foras produtivas

    do trabalho social e as relaes sociais que o sustentam. Crescem as desigualdades eafirmam-se as lutas no dia a dia contra as mesmas na sua maioria silenciada pelos meios

    de comunicao - no mbito do trabalho, do acesso aos direitos e servios no atendimento s

    necessidades bsicas dos cidados, das diferenas tnico-raciais, religiosas, de gnero, etc.

    Ahiptese de anlise a de que na raiz do atual perfil assumido pela questo social

    na Amrica Latina encontram-se as polticas governamentais de favorecimento da esfera

    financeira e do grande capital produtivo das instituies e mercados financeiros e empresas

    multinacionais -, como fora que captura o Estado, as empresas nacionais, o conjunto das

    classes e grupos sociais que passam a assumir o nus das exigncias dos mercados.

    (SALAMA, 1999; CHESNAIS, 1996). Estabelece-se uma estreita relao entre a

    responsabilidade dos governos no campo econmico e financeiro e a liberdade dada aos

    movimentos de capital concentrado para atuar, no pas, sem regulamentaes e controles,

    transferindo lucros e salrios oriundos da produo para valorizar-se na esfera financeira e

    especulativa, que re-configuram a questo social na cena contempornea..

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    20/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 20

    Nessa perspectiva, a questo social no se identifica com a noo deexcluso social,

    hoje generalizada, dotada de grande consenso nos meios acadmicos e polticos. Ela torna-seuma palavra mgica, que tudo e nada explica, ocorrendo uma fetichizao conceitual da

    noo de excluso social. (MARTINS, 1997).

    Castel (1997) refere-se s armadilhas da excluso, denunciando a sua inconsistncia

    terica: uma palavra valise, utilizada para definir todas as misrias do mundo. uma noo

    que se afirma pela qualificao negativa a falta de , empregada com uma

    heterogeneidade de usos, sem dizer, com rigor, no que consiste e de onde vem. O amplo

    estudo desenvolvido por Castel (1998) sobre as metamorfoses da questo social parte de uma

    noo fortemente enraizada na escola sociolgica francesa, na tica da integrao social:

    uma dificuldade central a partir da qual uma sociedade se interroga sobre sua coeso social

    e tenta conjurar os riscos de sua fratura (CASTEL, 1997, 1998). Todavia, sua pesquisa leva-o

    a afirmar a centralidade do trabalho assalariado na emergncia e desenvolvimento da

    questo social. Na atualidade, sua base encontra-se no questionamento da funo

    integradora do trabalho assalariado, com a desmontagem do sistema de proteo e garantia

    do trabalho protegido e com status, ou seja, da sociedade salarial. Ela fruto dadesestabilizao dos estveis, da instalao da precariedade, da cultura do aleatrio -em

    que cada um chamado a viver o dia a dia -, do crescimento dos sobrantes, aqueles que

    no tm lugar nesta sociedade. E o caminho anunciado encontra-se na trilha da luta pelo

    direito ao trabalho.

    Martins (1997, 2002), tambm questiona o rigor analtico e a novidade da noo de

    excluso. A sua novidade a sua velhice renovada, resultado de uma metamorfose de

    conceitos - passando pelas teorias da marginalidade social e da pobreza -, que procuravam

    explicar a ordenao social capitalista e o descompasso crnico que a caracteriza entre o

    desenvolvimento econmico e o desenvolvimento social. Em outros termos, o apelo a incluso

    indica a necessidade de compreenso de uma antiga questo: as desigualdades sociais, um

    dos aspectos da crise da sociedade de classes. O chamamento excluso supe a

    insuficincia da teoria das classes, diluindo a figura da classe trabalhadora na do excludo,

    que no um sujeito de destino, destitudo da possibilidade de fazer histria. O protesto

    social e poltico em nome dos excludos se resolve no horizonte da integrao na sociedade

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    21/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 21

    que os exclui, na reproduo ampliada dessa mesma sociedade. O autor salienta que os

    excludos no protagonizam nem realizam uma contradio no interior do processoprodutivo, mas so tidos como o resduo crescente de um desenvolvimento econmico

    considerado anmalo. Redunda em uma luta conformista e fala de um projeto de afirmao

    do capitalismo, dos que a ele aderiram. Segundo o autor, o discurso da excluso expresso

    ideolgica de uma praxis limitada da classe mdia e no de um projeto um anticapitalista e

    crtico, cujo desafio tornar a sociedade beneficiria da acumulao. Considera a excluso

    social um sintoma grave de uma transformao social, que vem, rapidamente, fazendo de

    todos seres humanos descartveis, reduzidos condio de coisa, forma extrema da vivnciada alienao e da coisificao da pessoa, como j apontava Marx em seus estudos sobre o

    capitalismo (MARTINS, 2002:20).

    2.4. O assistente social como trabalhador assalariadoO Servio Social regulamentado como uma profisso liberal, dispondo de estatutos

    legais e ticos que atribuem uma autonomia terico-metodolgica, tico-poltica e tcnico-

    operativa e conduo do exerccio profissional. Ao mesmo tempo, o exerccio da profissose realiza mediante um contrato de trabalho com organismos empregadores - pblicos ou

    privados-, em que o assistente social afirma-se como trabalhador assalariado. Estabelece-se

    uma tenso entre autonomia profissional e condio assalariada.

    Assim, assistente social tambm um(a) trabalhador(a) assalariado(a), qualificado(a), que

    depende da venda de sua fora de trabalho especializada para a obteno de seus meios de vida. A

    objetivao dessa fora de trabalho qualificada enquanto atividade (e/ou trabalho) ocorre no mbito

    de processos e relaes de trabalho, organizados por seus empregadores, que detm o controle das

    condies necessrias realizao do trabalho profissional. Assim, as alteraes que incidem no

    chamado mundo do trabalho e nas relaes entre o Estado e a sociedade - que tm resultado em

    uma radicalizao da questo social , atingem diretamente o trabalho cotidiano do assistente social.

    O trabalho profissional , pois, parte do trabalho coletivo produzido pelo conjunto da sociedade,

    operando a prestao de servios sociais que atendem a necessidades sociais e realizando, nesse

    processo, prticas scio-educativas, de carter poltico-ideolgico, que interferem no processo de

    reproduo de condies de vida de grandes segmentos populacionais alvos das polticas sociais.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    22/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 22

    O Servio Social reproduz-se como uma especializao do trabalho por ser socialmente

    necessrio: o agente profissional produz servios que tm um valor de uso, porque atendem as

    necessidades sociais. Por outro lado, os assistentes sociais tambm participam, enquanto

    trabalhadores assalariados, do processo de produo e/ou de redistribuio da riqueza social. Seu

    trabalho no resulta apenas em servios teis, mas ele tem um efeito na produo -ou na

    redistribuio- do valor e/ou da mais valia e nas relaes de poder poltico e ideolgico. Assim, por

    exemplo, na empresa industrial, o assistente social, como parte de um trabalhador coletivo, participa

    do processo de reproduo da fora de trabalho, essencial produo da riqueza. Na esfera estatal

    participa do processo de redistribuio da mais valia, via fundo pblico. A seu trabalho se inscreve,tambm, no campo da defesa e/ou realizao de direitos sociais de cidadania, na gesto da coisa

    pblica. Pode contribuir para o partilha do poder e sua democratizao - no processo de construo

    de uma contra-hegemonia no bojo das relaes entre as classes - ou ainda, para o reforo das

    estruturas e relaes de poder pr-existentes.

    Em outros termos, passar da anlise profisso para o seu processamento no mbito de

    condies de trabalho e relaes sociais determinadas representa um avano importante. Essa

    perspectiva incorpora os avanos terico-metodolgicos, tico-polticos e tcnico-operativosacumulados nas ltimas dcadas e, ao mesmo tempo, abre um leque de possibilidades, ainda

    no integralmente exploradas, no sentido de afinar, com maior rigor, as propostas analticas

    sobre o Servio Social com as provocaes e desafios enfrentados no dia a dia do trabalho

    cotidiano.

    Embora o assistente social disponha de uma relativa autonomia na sua conduo de seu

    trabalho o que lhe permite atribuir uma direo social ao exerccio profissional - os

    organismos empregadores tambm interferem no estabelecimento de metas a atingir. Detm

    poder para normatizar as atribuies e competncias especficas requeridas de seus

    funcionrios, definem as relaes de trabalho e as condies de sua realizao salrio,

    jornada, ritmo e intensidade do trabalho, direitos e benefcios, oportunidades de capacitao

    e treinamento, o que incide no contedo e nos resultados do trabalho. E oferecem o back-

    ground de recursos materiais, financeiros, humanos e tcnicos para a realizao do trabalho

    no marco de sua organizao coletiva. Portanto articulam um conjunto de condies que

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    23/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 23

    informam o processamento da ao e condicionam a possibilidade de realizao dos

    resultados projetados5.

    Todavia as atividades desenvolvidas sofrem outro vetor de demandas: as necessidades

    dos usurios, que, condicionadas pelas lutas sociais e pelas relaes de poder, transformam-

    se em demandas profissionais, reelaboradas na tica dos empregadores, no embate com os

    interesses dos usurios dos servios profissionais. nesse terreno denso de tenses e

    contradies sociais que se situa a atividade profissional.

    Portanto, as condies de trabalho e relaes sociais em que se inscreve o assistentesocial articulam um conjunto de mediaes que interferem no processamento da ao e nos

    resultados individual e coletivamente projetados, pois a histria o resultado de inmeras

    vontades projetadas em diferentes direes que tm mltiplas influncias sobre a vida social.

    Os objetivos e projetos propostos, que direcionam a ao, tm uma importncia fundamental,

    na afirmao da condio dos indivduos sociais como sujeitos da histria. Como assinala

    Engels:

    a vontade move-se pela reflexo e pela paixo. Mas a reflexo e a paixo tmtambm uma determinao social, porque so impulsionadas por foraspropulsoras que agem por detrs dos objetivos. Se os objetivos visados, aonvel individual e coletivo, so produto da vontade, no o so os resultados quedela decorrem, que passam por mltiplos vnculos sociais no mbito dos quaisse realiza a ao. (ENGELS, 1977).

    5 - A anlise do significado social do trabalho profissional, na tica da totalidade, supe decifrar as relaes sociaisnas quais se realiza em contextos determinados: as condies de trabalho, o contedo e direo social atribudas aotrabalho profissional, as estratgias acionadas e os resultados obtidos, o que passa pela mediao do trabalhoassalariado e pela correlao de foras econmica, poltica e cultural no nvel societrio. Articula, pois, um conjuntode determinantes a serem considerados: as particulares expresses da questo social na vida dos sujeitos, suas formasde organizao e luta; o carter dos organismos empregadores, seu quadro normativo, polticas e relaes de poderque interferem na definio de competncias e atribuies profissionais; os recursos materiais, humanos e financeirosdisponveis viabilizao do trabalho. Aliam-se a estes determinantes os compromissos firmados no contrato detrabalho (salrio, jornada, benefcios, etc) e sua efetivao, envolvendo padres de produtividade, formas de gesto,entre outras dimenses, que afetam o contedo do trabalho do assistente social. Certamente as respostas acionadasdependem do perfil social e profissional dos assistentes sociais e, em particular, da apropriao terico-metodolgicapara leitura dos processos sociais, princpios ticos, a clareza quanto s competncias, atribuies e o domnio dehabilidades adequadas ao trabalho concreto realizado, o que condiciona a eleio das estratgias acionadas, a

    qualidade e resultados dos servios prestados.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    24/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 24

    Logo, no h uma identidade imediata entre a intencionalidade do projeto profissional e

    resultados derivados de sua efetivao. Para decifrar esse processo necessrio entender asmediaes sociais que atravessam o campo de trabalho do assistente social.

    Concluindo, para atribuir densidade histrica ao projeto profissional necessrio

    reconhecer as foras sociais que o polarizam. E, concomitantemente, efetuar a anlise da

    organizao dos processos de trabalho em que se inscreve o assistente social para estabelecer

    uma base realista -, sem perder o encanto do sonho e da utopia -, s projees profissionais e

    sua viabilizao. Exige caminhar da anlise da profisso ao seu efetivo exerccio, o que supe

    articular projeto profissional e trabalho assalariado.

    3. O projeto profissional

    Segundo Netto (1999:95), os projetos profissionais, construdos coletivamente pela

    categoria, apresentam a auto-imagem da profisso; elegem valores que a legitimam

    socialmente; delimitam e priorizam seus objetivos e funes; formulam requisitos (tcnicos,institucionais e prticos) para o seu exerccio, prescrevem normas para o comportamento dos

    profissionais e estabelecem balizas de sua relao com os usurios dos seus servios, com

    outras profisses e com as organizaes e instituies, pblicas e privadas (entre estes,

    tambm e destacadamente, com o Estado, ao qual coube historicamente o reconhecimento

    jurdico dos estatutos profissionais).

    Os projetos profissionais so indissociveis dos projetos societrios que lhes oferecem

    matrizes e valores e expressam um processo de lutas pela hegemonia entre as foras sociais

    presentes na sociedade e na profisso. So, portanto, estruturas dinmicas, que respondem

    tanto s alteraes das necessidades sociais decorrentes de transformaes econmicas,

    histricas e culturais da sociedade, quanto expressam o desenvolvimento terico e prtico da

    respectiva profisso e as transformaes operadas no perfil de seus agentes (idem).

    O Servio Social brasileiro, nas ltimas dcadas, redimensionou-se e renovou-se no

    mbito da sua interpretao terico-metodolgica no campo dos valores, da tica e da

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    25/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 25

    poltica. Realizou um forte embate com o tradicionalismo profissional e seu lastro conservador

    e buscou adequar criticamente a profisso s exigncias do seu tempo, qualificando-aacademicamente. E o Servio Social fez um radical giro na sua dimenso tica e no debate

    nesse plano: constituiu democraticamente a sua base normativa, expressa na Lei da

    Regulamentao da Profisso, que estabelece as competncias e as atribuies profissionais, e

    no Cdigo de tica do Assistente Social, de 1993. Este prescreve direitos e deveres do

    assistente social, segundo princpios e valores humanistas guias para o exerccio cotidiano,

    dentre os quais destacam-se:

    O reconhecimento da liberdade como valor tico central, que requer oreconhecimento da autonomia, emancipao e plena expanso dos indivduos sociais

    e de seus direitos;

    A defesa intransigente dos direitos humanos contra todo tipo de arbtrio eautoritarismo;

    A defesa, aprofundamento e consolidao da cidadania e da democracia dasocializao da participao poltica e da riqueza produzida;

    O posicionamento a favor da equidade e da justia social, que implica auniversalidade no acesso a bens e servios e a gesto democrtica;

    O empenho na eliminao de todas as formas de preconceito, e a garantia dopluralismo;

    O compromisso com a qualidade dos servios prestados na articulao com outrosprofissionais e trabalhadores. (CRESS-7Regio, 2000).

    A efetivao desses princpios remete luta, no campo democrtico-popular, pela

    construo de uma nova ordem societria. E os princpios ticos ao impregnarem o exerccio

    quotidiano, indicam um novo modo de operar o exerccio profissional. Aqueles princpios

    estabelecem balizas para a sua conduo nas condies e relaes de trabalho em que se

    realiza e para as expresses coletivas da categoria profissional na sociedade.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    26/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 26

    nos limites dos princpios assinalados, que se move o pluralismo, que supe o

    reconhecimento da presena de distintas orientaes na arena profissional assim como oembate respeitoso com as tendncias regressivas do Servio Social, cujos fundamentos liberais

    e conservadores legitimam o ordenamento social institudo. Porm o pluralismo propugnado

    no se identifica com a sua verso liberal, em que todas as tendncias profissionais so tidas

    como supostamente paritrias, mascarando os desiguais arcos de influncia que exercem na

    profisso, os diferentes vnculos que estabelecem com projetos societrios distintos e

    antagnicos, apoiados em foras sociais tambm diversas.

    Os outros pilares em que se apia o projeto profissional so: a legislao relativa

    regulamentao da profisso6, que representa uma defesa da profisso na sociedade e as

    diretrizes curriculares para a formao em Servio Social, que vm sendo construdas

    coletivamente no bojo do processo de renovao do Servio Social nos vrios pases.

    O desafio maior para a efetivao desse projeto na atualidade torn-lo um guia efetivo

    para o exerccio profissional, o que exige um radical esforo de integrar o dever ser com sua

    implementao prtica, sob o risco de se deslizar para uma proposta ideal, abstrada darealidade histrica.

    Assim considerado, o projeto profissional expressa uma condensao das dimenses tico-

    polticas, terico-metodolgicas e tcnico-operativas no Servio Social, englobando a formao e o

    exerccio profissional.

    6 - A Lei da regulamentao da profisso de Servio Social no Brasil estabelece as competncias e atribuies

    privativas do assistente social, que expressam a capacidade de apreciar e dar resolutividade a determinados assuntos:1)coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos, programas e projetos na rea deServio Social; com a participao da sociedade civil; 2) planejar, organizar e administrar programas e projetos emunidades de Servio Social; 3) prestar assessoria e consultoria a rgos da administrao pblica direta e indireta,empresas privadas e outras entidades em matria do Servio Social; 4) realizar visitas, percias tcnicas, laudospericiais, informaes e pareceres em matria do Servio Social; 5) encaminhar providncias e prestar orientaosocial a indivduos, grupos e populao; 6) realizar estudos scio-econmicos com os usurios para fins de benefciose servios sociais, junto a rgos da administrao pblica direta e indireta, a empresas privadas e outras entidades.

    Considera-se que a matria diz respeito ao objeto ou assunto sobre o que se exerce a fora de um agente; rea ocampo delimitado ou o mbito de atuao do Servio Social; e a unidade do Servio Social, mais do que uma unidadeadministrativa pode ser interpretada como o conjunto de profissionais dentro da unidade de trabalho.

    Atribuir contemporaneidade s funes e atribuies profissionais pressupe, certamente, apreender e explicar o que oassistente social faz na realidade, elucidando os fundamentos do trabalho profissional e seu significado social no

    processo de reproduo das relaes sociais. (Cf. IAMAMOTO, 2002; CRESS-7 Regio,2000).

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    27/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 27

    4. O Servio Social e as estratgias para o enfrentamento da questo social7

    As estratgias para o enfrentamento da questo social tm sido tensionadas por projetos

    sociais distintos, que presidem a estruturao e a implementao das polticas sociais pblicas

    e que convivem em luta no seu interior. Vive-se uma tenso entre a defesa dos direitos sociais

    e a mercantilizao e re-filantropizao do atendimento s necessidades sociais, com claras

    implicaes nas condies e relaes de trabalho do assistente social (OLIVEIRA E

    SALLES:1998; BRAVO:1996; PEREIRA:1998).

    O primeiro projeto, de carter universalista e democrtico aposta no avano dademocracia, fundado nos princpios da participao e do controle popular, da universalizao

    dos direitos, garantindo a gratuidade no acesso aos servios, a integralidade das aes

    voltadas defesa da cidadania de todos na perspectiva da equidade. Pensar a defesa dos

    direitos requer afirmar a primazia do Estado enquanto instncia fundamental sua

    universalizao - na conduo das polticas pblicas, o respeito ao pacto federativo,

    estimulando a descentralizao e da democratizao das polticas sociais no atendimento s

    necessidades das maiorias. Implica partilha e deslocamento de poder, combinando

    instrumentos de democracia representativa e democracia direta, o que ressalta a importncia

    dos espaos pblicos de representao e negociao. Supe, portanto, politizar a

    participao, considerando a gesto como arena de interesses que devem ser reconhecidos e

    negociados8.

    No Brasil, no mbito governamental, da maior importncia o trabalho que vem sendo

    realizado na seguridade social e, em especial junto aos Conselhos de Sade e de Assistncia

    Social nas esferas nacional, estadual e municipal. Somam-se os Conselhos Tutelares eConselhos de Direitos, responsveis pela formulao de polticas pblicas para a criana e o

    adolescente, para a terceira idade e pessoas portadoras de necessidades especiais9.

    7 - Recupero aqui extrato de trabalho publicado anteriormente. Cf. Iamamoto (2002)

    8 - Conforme pronunciamento de Marco Aurlio Nogueira no II Encontro Nacional de Servio Social e SeguridadeSocial. Porto Alegre (RS), nov. de 2000.

    9 Segundo dados do MPAS/SEAS, em fevereiro de 2000, existiam conselhos de assistncia instalados em 4383

    municpios, dos 5 506 existentes no Brasil. (Cf. Demonstrativo dos Conselhos, Fundos e Planos de Assistncia Social,fevereiro, 2000).

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    28/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 28

    O propsito promover uma permanente articulao poltica no mbito da sociedade

    civil organizada, para contribuir na definio de propostas e estratgias comuns ao campodemocrtico. Esse projeto requer aes voltadas ao fortalecimento dos sujeitos coletivos, dos

    direitos sociais e a necessidade de organizao para a sua defesa, construindo alianas com

    os usurios dos servios na sua efetivao. Nesse sentido fundamental estimular inseres

    sociais que contenham potencialidades de democratizar a vida em sociedade, conclamando e

    viabilizando a ingerncia de segmentos organizados da sociedade civil na coisa pblica .

    Ocupar esses espaos coletivos adquire maior importncia quando o bloco do poder passa a

    difundir e empreender o trabalho comunitrio sob a sua direo, tendo no voluntariado seumaior protagonista. Representa uma vigorosa ofensiva ideolgica na construo e/ou

    consolidao da hegemonia das classes dominantes em um contexto econmico adverso, que

    passa a requisitar ampla investida ideolgica e poltica para assegurar a direo intelectual e

    moral de seu projeto de classe em nome de toda a sociedade, ampliando suas bases de

    sustentao e legitimidade.

    Nesse sentido faz-se necessrio reassumir o trabalho de base, de educao, mobilizao

    e organizao popular, que parece ter sido submerso do debate profissional ante o refluxodos movimentos sociais10. necessrio ter a clareza que a qualidade da participao nesses

    espaos pblicos no est definida a priori. Podem abrigar experincias democrticas, que

    propiciem a partilha do poder e a interveno em processos decisrios, ou estimular vcios

    populistas e clientelistas no trato da coisa pblica.

    de suma importncia impulsionar pesquisas e projetos que favoream o conhecimento

    do modo de vida e de trabalho - e correspondentes expresses culturais - dos segmentos

    populacionais atendidos, criando um acervo de dados sobre as expresses da questo social

    nos diferentes espaos ocupacionais do assistente social. O conhecimento criterioso dos

    processos sociais e de sua vivncia pelos indivduos sociais poder alimentar aes

    inovadoras, capazes de propiciar o atendimento s efetivas necessidades sociais dos

    segmentos subalternizados, alvos das aes institucionais. Aquele conhecimento pr-

    10 - CARDOSO (1995), ABREU (2002) e SILVA (1995) so partes de um grupo de intelectuais que vem mantendo vivoeste debate no interior do projeto profissional de ruptura como o conservadorismo.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    29/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 29

    requisito para impulsionar a conscincia crtica e uma cultura pblica democrtica para alm

    das mistificaes difundidas pela mdia. Isso requer, tambm, estratgias tcnicas e polticasno campo da comunicao social no emprego da linguagem escrita, oral e miditica -, para

    o desencadeamento de aes coletivas que viabilizem propostas profissionais capazes para

    alm das demandas institudas.

    Esse primeiro projeto polarizado por um outro tipo de requisio, de inspirao neoliberal, que

    subordina os direitos sociais lgica oramentria, a poltica social poltica econmica, em especial

    s dotaes oramentrias e, no Brasil, subverte o preceito constitucional. Observa-se uma inverso e

    uma subverso: ao invs do direito constitucional impor e orientar a distribuio das verbas

    oramentrias, o dever legal passa a ser submetido disponibilidade de recursos. So as definies

    oramentrias - vistas com um dado no passvel de questionamento - que se tornam parmetros para a

    implementao dos direitos sociais, justificando as prioridades governamentais. A leitura dos

    oramentos governamentais, apreendidos como uma pea tcnica, silencia os critrios polticos que

    norteiam a eleio das prioridades nos gastos, estabelecidas pelo bloco do poder. A viabilizao dos

    direitos sociais e em especial aqueles atinentes seguridade social - pauta-se segundo as regras de

    um livro-caixa, do balano entre crdito e dficit no cofre governamental. Conforme foi discutido no

    II Encontro de Servio Social e Seguridade Social, realizado no Brasil,o oramento pblico a caixa

    preta das polticas sociais governamentais, em especial da seguridade social. A elaborao e

    interpretao dos oramentos passam a ser efetuadas segundo os parmetros empresariais de

    custo/benefcio, eficcia/inoperncia, produtividade/rentabilidade. O resultado a subordinao de

    respostas s necessidades sociais mecnica tcnica do oramento pblico, orientada por uma

    racionalidade instrumental. A democracia v-se reduzida um modelo de gesto, desaparecendo os

    sujeitos e a arena pblica em que expressam e defendem seus interesses.11

    As condies de trabalho e relaes sociais em que esto inscritos os assistentes sociais

    so indissociveis da contra-reforma do Estado (BEHRING, 2003). Segundo a tica oficial,

    verifica-se um esgotamento da estratgia estatizante, afirmando-se a necessidade de

    11 Essas consideraes tambm desafiam as instncias de formao universitria no sentido de capacitar os

    futuros assistentes sociais, mediante elementos tericos e tcnicos, para a leitura crtica dos oramentos

    sociais, de modo a viabilizar estratgias voltadas negociao de recursos para programas e projetossociais que fortaleam o projeto tico-poltico ora em construo.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    30/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 30

    ultrapassar a administrao pblica tradicional, centralizada e burocrtica. Considera-se que

    o Estado deva deslocar-se da linha de frente do desenvolvimento econmico e social epermanecer na retaguarda, na condio de promotor e regulador desse desenvolvimento.

    Observa-se uma clara tendncia de deslocamento das aes governamentais pblicas

    de abrangncia universal- no trato das necessidades sociais em favor de sua privatizao,

    instituindo critrios de seletividade no atendimento aos direitos sociais. Esse deslocamento da

    satisfao de necessidades da esfera pblica para esfera privada ocorre em detrimento das

    lutas e de conquistas sociais e polticas extensivas a todos. exatamente o legado de direitos

    conquistados nos ltimos sculos, que est sendo desmontado nos governos de orientao

    neoliberal, em uma ntida regresso da cidadania que tende a ser reduzida s suas dimenses

    civil e poltica, erodindo a cidadania social. Transfere-se, para distintos segmentos da

    sociedade civil, significativa parcela da prestao de servios sociais, afetando diretamente o

    espao ocupacional de vrias categorias profissionais, dentre as quais os assistentes sociais.

    Esse processo expressa-se numa dupla via: de um lado, na transferncia de

    responsabilidades governamentais para organizaes da sociedade civil de interesse pblicoe, de outro lado, em uma crescente mercantilizao do atendimento s necessidades sociais, o

    que evidente no campo da sade, da educao entre muitos outros.

    O chamado terceiro setor, na interpretao governamental, tido como distinto do

    Estado (primeiro setor) e do mercado (segundo setor). O chamado terceiro setor

    considerado como um setor no governamental, no lucrativo e voltado ao

    desenvolvimento social, e daria origem a uma esfera pblica no estatal, constituda por

    organizaes da sociedade civil de interesse pblico. No marco legal do terceiro setor noBrasil so includas entidades de natureza as mais variadas, que estabelecem um termo de

    parceria entre entidades de fins pblicos de origem diversa (estatal e social) e de natureza

    distinta (pblica ou privada). Engloba, sob o mesmo ttulo, as tradicionais instituies

    filantrpicas; o voluntariado e organizaes no governamentais: desde aquelas combativas

    que emergiram no campo dos movimentos sociais, quelas com filiaes poltico-ideolgicas

    as mais distintas, alm da denominada filantropia empresarial. Chama ateno a tendncia

    de estabelecer uma identidade entre terceiro setor e sociedade civil. Esta passa a ser reduzida

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    31/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 31

    a um conjunto de organizaes as chamadas entidades civis sem fins lucrativos -, sendo dela

    excludos os rgos de representao poltica, como sindicatos e partidos, dentro de umamplo processo de despolitizao. A sociedade civil tende a ser interpretada como um

    conjunto de organizaes distintas e complementares, destituda dos conflitos e tenses de

    classe, onde prevalecem os laos de solidariedade. Salienta-se a coeso social e um forte

    apelo moral ao bem comum, discurso esse que corre paralelo reproduo ampliada das

    desigualdades, da pobreza e violncia. Estas tendem a ser naturalizadas, onde o horizonte a

    reduo de seus ndices mais alarmantes.

    A universalidade no acesso nos programas e projetos sociais, abertos a todos os

    cidados, s possvel no mbito do Estado, ainda que no dependam apenas do Estado.

    Sendo um Estado de classe expressa a sociedade politicamente organizada e condensa um

    campo de lutas e compromissos em que a sociedade civil joga um papel decisivo para

    democratiz-lo e control-lo. Ao mesmo tempo, necessrio que o Estado se expanda para a

    sociedade de modo a fazer prevalecer interesses mais coletivos e compartilhados, o que

    depende da luta entre as foras sociais.

    Os projetos levados a efeito por organizaes privadas apresentam uma caracterstica

    bsica, que os diferencia: no se movem pelo interesse pblico e sim pelo interesse privado de

    certos grupos e segmentos sociais, reforando a seletividade no atendimento, segundo

    critrios estabelecidos pelos mantenedores. Portanto, ainda que o trabalho concreto12 do

    assistente social seja idntico no seu contedo til e formas de processamento - o sentido e

    resultados sociais desses trabalhos so inteiramente distintos, visto que presididos por lgicas

    diferentes: a do direito privado e do direito pblico, alterando-se, pois, o significado social do

    trabalho tcnico-profissional e seu nvel de abrangncia.

    Constata-se uma progressiva mercantilizao do atendimento s necessidades sociais,

    decorrente da privatizao das polticas sociais. Nesse quadro, os servios sociais deixam de

    expressar direitos, metamorfoseando-se em atividade de outra natureza, inscrita no circuito de

    compra e venda de mercadorias. Estas substituem os direitos de cidadania, que, em sua

    12 - Trabalho concreto aqui utilizado no sentido de Marx, como trabalho de uma qualidade determinada queproduz valores de uso voltados satisfao de necessidades sociais de uma dada espcie.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    32/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 32

    necessria dimenso de universalidade, requerem a ingerncia do Estado. O que passa a

    vigorar so direitos atinentes condio de consumidor (MOTA,1995). Quem julga apertinncia e qualidade dos servios prestados so aqueles que, atravs do consumo,

    renovam sua necessidade social. O dinheiro aparece em cena como meio de circulao,

    intermediando a compra e venda de servios, em cujo mbito se inscreve o assistente social.

    O grande capital ao investir nos servios sociais, passa a demonstrar uma preocupao

    humanitria, coadjuvante da ampliao dos nveis de rentabilidade das empresas,

    moralizando sua imagem social. Trata-se de um reforo necessidade de transformar

    propsitos de classes e grupos sociais especficos em propsitos de toda a sociedade: velhaartimanha, historicamente assumida pelo Estado e que hoje tem a mdia importante aliada

    nesse empreendimento.

    Os assistentes sociais trabalham com as mais diversas expresses da questo social,

    esclarecendo populao seus direitos sociais e os meios de ter acesso aos mesmos. O

    significado desse trabalho muda radicalmente ao voltar-se aos direitos e deveres referentes s

    operaes de compra e da venda. Enquanto os direitos sociais so frutos de lutas sociais e

    negociaes com o bloco do poder para o seu reconhecimento legal, a compra e venda deservios no atendimento a necessidades sociais de educao, sade, habitao, assistncia

    social, etc. pertencem a outro domnio - o do mercado -, mediao necessria realizao do

    valor e eventualmente da mais valia decorrentes da industrializao dos servios.

    Historicamente, os assistentes sociais dedicaram-se implementao de polticas

    pblicas, localizados na linha de frente das relaes entre populao e instituio ou, nos

    termos de Netto (1992), executores terminais de polticas sociais. Embora este seja ainda o

    perfil predominante, no mais exclusivo, sendo abertas outras possibilidades. O processo de

    descentralizao das polticas sociais pblicas - com nfase na sua municipalizao - requer

    dos assistentes sociais como de outros profissionais - novas funes e competncias. Esto

    sendo chamados a atuar na esfera da formulao e avaliao de polticas e do planejamento e

    gesto, inscritos em equipes multiprofissionais. Os assistentes sociais ampliam seu espao

    ocupacional para atividades relacionadas implantao e orientao de conselhos de

    polticas pblicas, capacitao de conselheiros, elaborao de planos de assistncia

    social, acompanhamento e avaliao de programas e projetos. Tais inseres so

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    33/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 33

    acompanhadas de novas exigncias de qualificao, tais como o domnio de conhecimentos

    para realizar diagnsticos scio-econmicos de municpios, para a leitura e anlise dosoramentos pblicos identificando recursos disponveis para projetar aes; o domnio do

    processo de planejamento; a competncia no gerenciamento e avaliao de programas e

    projetos sociais; a capacidade de negociao, o conhecimento e o know-how na rea de

    recursos humanos e relaes no trabalho, entre outros. Somam-se possibilidades de trabalho

    nos nveis de assessoria e consultoria para profissionais mais experientes e altamente

    qualificados em determinadas reas de especializao. Registram-se ainda requisies no

    campo da pesquisa, de estudos e planejamento, dentre inmeras outras funes.

    Os assistentes sociais, articulados s foras sociais progressistas, vm envidando esforos

    coletivos no reforo da esfera pblica, de modo a inscrever os interesses das maiorias nas

    esferas de deciso poltica. O horizonte a construo de uma democracia de base que

    amplie a democracia representativa, cultive e respeite a universalidade dos direitos do

    cidado, sustentada na socializao da poltica, da economia e da cultura. Tais elementos

    adquirem especial importncia em nossas sociedades latino-americanas, que se constroem no

    reverso do imaginrio igualitrio da modernidade; sociedades que repem cotidianamente ede forma ampliada privilgios, violncia, discriminaes de renda, poder, gnero, etnias e

    geraes, alargando o fosso das desigualdades no panorama diversificado das manifestaes

    da questo social.

    na dinmica tensa da vida social que se ancoram a esperana e a possibilidade de

    defender, efetivar e aprofundar os preceitos democrticos e os direitos de cidadania

    preservando inclusive a cidadania social, cada vez mais desqualificada. E para impulsionar a

    construo de um outro padro de sociabilidade, regido por valores democrticos, o que

    requer a redefinio das relaes entre o Estado e a sociedade, a economia e a sociedade, o

    que depende uma crescente participao ativa da sociedade civil organizada.

    Orientar o trabalho nos rumos aludidos, requisita um perfil profissional culto, crtico e

    capaz de formular, recriar e avaliar propostas que apontem para a progressiva democratizao

    das relaes sociais. Exige-se, para tanto, compromisso tico-poltico com os valores

    democrticos e competncia terico-metodolgica na teoria crtica em sua lgica de

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    34/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 34

    explicao da vida social. Estes elementos, aliados pesquisa da realidade possibilitam

    decifrar as situaes particulares com que se defronta o assistente social no seu trabalho, demodo a conecta-las aos processos sociais macroscpicos que as geram e as modificam. Mas,

    requisita, tambm, um profissional versado no instrumental tcnico-operativo, capaz de

    potencializar as aes nos nveis de assessoria, planejamento, negociao, pesquisa e ao

    direta, estimuladora da participao dos sujeitos sociais nas decises que lhes dizem respeito,

    na defesa de seus direitos e no acesso aos meios de exerce-los.

    Para finalizar, a sugesto do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: "Eu tropeo

    no possvel, mas no desisto de fazer a descoberta que tem dentro da casca do impossvel".

    Tropear no possvel, mas sem desistir de fazer a descoberta que tem dentro da casca do

    impossvel. O projeto tico-poltico do Servio Social certamente um desafio, mas no uma

    impossibilidade: o que se apresenta como obstculo apenas a casca do impossvel, que

    encobre as possibilidades dos homens construrem sua prpria histria.

  • 8/7/2019 iamamotto_artigo_principios__texto2-2-prof. clair

    35/37

    As dimenses tico-polticas e terico-metodolgicas no Servio Social contemporneoMarilda Villela Iamamoto

    Servio Social e Sade: Formao e Trabalho Profissional 35

    Bibliografia Citada

    ABREU, M. Servio Social e a organizao da cultura. So