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COMER E PERTENCER: um estudo do fitness como linguagem da alimentação e a construção de identidades no Instagram 1 EAT AND BELONGING : a fitness study as the power language and the construction of identities in Instagram Helena Jacob 2 Resumo: Esta comunicação fez um estudo da linguagem fitness, derivada do sistema cultural alimentação, na sua mediação representada na rede social Instagram. O objetivo foi identificar padrões e estratégias comunicativas deste ambiente midiático digital. Se temos como linguagens deste sistema a culinária e a gastronomia, originalmente, a linguagem fitness vem ganhando força comunicativa no digital, apoiada nas mediações realizadas pelas fotos dessa rede social. Observamos que há padrões comunicativos relacionados à biopolítica, relembrando o trabalho de Foucault, relacionando alimentação e mediações corporais, que estetizam e geram um controle comunicativo sobre os corpos e sobre as estratégias de convencimento e de poder nestes ambientes. Considerando que o digital não mais se separa do real, chegamos à conclusão de que tais estratégias comunicativas se mostram como dominantes e moldam processos identitários que tornam os indivíduos cada vez mais particularizados em suas produções digitais mas, ao mesmo tempo, pertencentes a 1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom DTI 5 – Comunicação e Identidades Culturais do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. 2 Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUCSP e pesquisadora do ESPACC (Espaço-Visualidade/ Comunicação-Cultura), coordenado pela Profª Drª Lucrécia D’Alessio Ferrara. Coordenadora e professora do Curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e professora do Centro Universitário Fecap. 1

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COMER E PERTENCER: um estudo do fitness como linguagem da

alimentação e a construção de identidades no Instagram 1

EAT AND BELONGING : a fitness study as the power language and the construction of identities in Instagram

Helena Jacob2

Resumo: Esta comunicação fez um estudo da linguagem fitness, derivada do sistema cultural alimentação, na sua mediação representada na rede social Instagram. O objetivo foi identificar padrões e estratégias comunicativas deste ambiente midiático digital. Se temos como linguagens deste sistema a culinária e a gastronomia, originalmente, a linguagem fitness vem ganhando força comunicativa no digital, apoiada nas mediações realizadas pelas fotos dessa rede social. Observamos que há padrões comunicativos relacionados à biopolítica, relembrando o trabalho de Foucault, relacionando alimentação e mediações corporais, que estetizam e geram um controle comunicativo sobre os corpos e sobre as estratégias de convencimento e de poder nestes ambientes. Considerando que o digital não mais se separa do real, chegamos à conclusão de que tais estratégias comunicativas se mostram como dominantes e moldam processos identitários que tornam os indivíduos cada vez mais particularizados em suas produções digitais mas, ao mesmo tempo, pertencentes a um grupo social. Neste caso, o grupo de pessoas que segue os preceitos da linguagem fitness que gere o modo de se alimentar e de se portar nas redes sociais.Palavras-Chave: Alimentação. Identidade. Fitness. Gastronomia. Biopolítica.

Abstract: This paper made a study of fitness language, derived from cultural power system, represented in its mediation in the social network Instagram. The objective was to identify patterns and communicative strategies of this digital media environment. If we have this system as languages cuisine and gastronomy, originally, the fitness language is gaining strength in digital communication, supported the mediation carried out by the photos of this social network. We found a communicative patterns related to biopolitics, recalling Foucault's work, relating food and bodily mediations, which estheticize and generate a communicative control over their bodies and on the strategies of persuasion and power in these environments. Whereas the digital no longer separates from the real, we concluded that such communication strategies appeared as dominant and shape identity processes that make individuals increasingly individualized in their digital productions but, at the same time, belonging to a social group . In this case, the group of people who follow the precepts of fitness language that manages the way of food and behave in social networks.Keywords: Power. Identity. Fitness. Gastronomy. Biopolitics.

1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom DTI 5 – Comunicação e Identidades Culturais do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015.2 Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUCSP e pesquisadora do ESPACC (Espaço-Visualidade/ Comunicação-Cultura), coordenado pela Profª Drª Lucrécia D’Alessio Ferrara. Coordenadora e professora do Curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e professora do Centro Universitário Fecap.

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Fitness: a linguagem do comer e cozinhar de forma saudável

A palavra Fitness significa “estar em boa forma física”. Estar em forma implica em comer

de forma adequada – poucos e bons alimentos – e fazer atividade física com frequência.

Indo além do universo da saúde e da estética, hoje o termo fitness vem sendo apropriado

por diversos grupos identitários, transformando fitness em denominação para grupos que

seguem uma vida fitness, os autodemonimados “fitners”. Como a alimentação é peça-

chave para esse estilo de vida, podemos afirmar que existe, na contemporaneidade, o

desenvolvimento de linguagem fitness que vem impactando e invadindo o território de

encontro onde nascem as linguagens do sistema cultural que é a alimentação. O fitness já

atua com força na indústria da alimentação, uma das mais poderosas do mundo e dá nome

até a restaurantes, pratos, receitas e logomarcas (figuras 1 a 3).

Figura 1. Banner de divulgação do serviço de comidas congeladas Fitness Food, localizado em São Paulo/SP.Figura 2. Material de divulgação do site “Corpo e Suplemento”, que oferece receitas fitness, como a de brigadeiro, para seus leitoresFigura 3. Logomarca do restaurante Fitness Food, localizado em São José dos Campos/SP.

O desenvolvimento recente e em larga escala da linguagem fitness mostra que existe um

mercado de grande consumo para esse grupo social preocupado com o corpo e a boa forma

física, que estimula a criação de novos textos da cultura e complexifica essa linguagem.

Como nos interessa aqui nesta comunicação o território da comunicação, podemos afirmar

que alimentação, gastronomia, culinária e fitness constroem, hoje, em conjunto, um cenário

de estratégias comunicativas que as aproxima constantemente e que se encontra em intensa

explosão cultural. Não podemos considerar que a preocupação com a qualidade dos

alimentos e com suas funções orgânicas seja recente3, mas essa atuação foi ressignificada 3 A alimentação era tratada como remédio até o século XVIII, quando as preocupações estéticas e de paladar ligadas à gastronomia ganharam mais representatividade na alimentação (Flandrin, 1998, p. 323)

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na contemporaneidade e, nesta semiose, surge uma nova estratégia comunicativa muito

adequada à era do espetáculo na qual estamos totalmente inseridos na contemporaneidade

(Debord, 1997).

Tal linguagem, que existe desde que as dietas começaram a surgir ainda na Antiguidade

Clássica (Foxcroft, 2013), foi denominada e potencializada graças às redes sociais de

compartilhamento de informações, especialmente o Instagram4, especializada em imagens.

No Instagram adeptos do universo fitness postam fotos de suas refeições, dietas, rotinas de

treinamento físico e, claro, fotos de seus próprios corpos, mostrando os resultados daquilo

que os próprios usuários chamam de estilo de vida fitness – geralmente fotos de antes do

regime fitness e do depois, quando se destacam os corpos magros, com muitos músculos à

mostra e quase nenhuma gordura.

Na linguagem fitness o alimento em sua identidade cultural é ignorado, porque não

importam os hábitos de consumo alimentar de um determinado grupo – hábitos, que vale

confirmar, são formados ao longo do processo histórico dos grupos sociais. Importa

mesmo a identificação com o grupo fitness, seguir as regras e conceitos de estilo de vida

deste agrupamento de pessoas - assim, se observarmos perfis do Instagram de diversos

países, veremos que a comida ali representada é sempre a mesma, sem as nuances de

diferenciação cultural típicas da alimentação, como retrata Montanari na sua discussão da

comida como cultura (Montanari, 2008).

Os adeptos da alimentação fitness se baseiam no conceito do alimento como remédio,

identificado prioritariamente por suas atribuições como elemento químico; assim, batata é

carboidrato (principal componente nutricional deste alimento); carne é proteína; legumes,

vitaminas e frutas, alimento muito polêmico entre os “fitners”, carboidrato5. Nesta

4 Instagram é um aplicativo gratuito para smartphones para tirar fotos, escolher filtros e compartilhar o resultado nas redes sociais. Além dos efeitos, é possível seguir outros usuários no próprio Instagram para visualizar, curtir e comentar nas imagens postadas. In: http://www.techtudo.com.br/artigos/noticia/2012/07/o-que-e-instagram.html. Acesso em 15.07.2014.

5 As frutas, durante séculos consideradas um alimento bom e natural, são vilanizadas na linguagem fitness graças á frutose - o açúcar das frutas - que as coloca como um alimento de alto potencial energético e que atrapalham a conquista do corpo magro e musculoso almejado pelos “fitners”.

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linguagem o principal valor da comida vem da sua capacidade biológica de fazer bem à

saúde e ajudar o comensal a atingir os objetivos pré-determinados para o seu corpo, como

emagrecer e ganhar músculos. Tanto que o termo “alimento funcional” é uma das pedras

de toque fundamental desta linguagem.

Os alimentos funcionais caracterizam-se por oferecer vários benefícios à saúde, além do valor nutritivo inerente à sua composição química, podendo desempenhar um papel potencialmente benéfico na redução do risco de doenças crônicas degenerativas, como câncer e diabetes, dentre outras (MINISTÉRIO DA SAÚDE BRASIL, 2014) 6.

Considerando que, na pós-modernidade e na contemporaneidade, grupos sociais se formam

graças à crenças e costumes em comum (Hall, 1999), acreditamos que os fitners formam

um grupo que desenvolve estratégias de comunicação que devem ser melhor exploradas e

analisadas nos estudos da alimentação. Tendo em vista o enorme espaço midiático que a

alimentação, especialmente a culinária e a gastronomia, alcançaram nas últimas décadas

em todo o mundo e o grande desenvolvimento e engajamento nas redes sociais,

procuraremos mostrar como identidades culturais são suprimidas em prol de uma

identidade maior, a de denominação fitness. A da rede social Instagram, nosso objeto de

estudo, é tão familiarizada com as linguagens da alimentação, especialmente com o fitness,

que é apelidada por muitos dos seus usuários de “Instafit”.

As linguagens da alimentação

Em trabalhos anteriores destacamos a formação das duas principais linguagens do sistema

cultural alimentação: a gastronomia, ligada à exponebilidade do alimento, e a culinária,

ligada ao preparo do alimento (JACOB, 2013). Acreditamos que ambas são as mais

representativas e que atuam como textos-códigos na geração de novas linguagens, mas não

são as únicas. Na retroalimentação natural dos sistemas culturais, outras linguagens

surgem, muitas vezes como anomalias da cultura (Lotman, 1996; Fischler, 2001) – tal

como acreditamos que acontecesse com a linguagem fitness, que particulariza e objetifica

o alimento como nutritivo e operacional. Tal abordagem só será possível no campo

científico se considerarmos que tal linguagem nasce no senso comum e é categorizada no

ambiente cientifico, embora saibamos que não há tal distinção no mundo real:

6 In: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/dicas/220_alimentos_funcionais.html. Acesso em 13 de julho de 2014.

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Ao contrário, parece que a tensão entre os dois cientistas não decorre tanto da possibilidade de considerar ou desconsiderar o senso comum, mas da complexa relação que se estabelece entre a epistemologia e a atividade empírica, quase sempre confundida com a aderência ao objeto, à sua descrição e explicação emanada dos domínios filosóficos ou da prática do senso comum. A polêmica gerada pela tensão entre ciência e senso comum reforça a necessidade de responder à questão proposta no início desse item. Parece que, nos dois casos, entende-se a atividade empírica como adesão “às coisas mesmas”, ao fenômeno que se presta à descrição e justifica uma ciência menos dogmática, linear e progressiva, mas descritiva. Ao contrário. o empírico deve ser entendido como prudente afastamento dos crivos descritivos que, em geral, caracterizam posições aderentes a uma fenomenologia, frequentemente parcial, porque submissa a óticas subjetivas que valorizam alguns aspectos em detrimento de outros, quando não se concilia com posições existencialistas de foco individual e hermenêutico. Sem os condicionamentos fenomenológicos, a necessidade empírica do conhecimento mostra-se na sua complexidade e exige outras atitudes do pesquisador, agora transformado em agente ou sujeito não do conhecimento, mas atento às perguntas que formula para ser possível conhecer o que não se conhece. De todo modo, a validade da pergunta anterior permanence (FERRARA, 2014: p.4-5).

No campo epistemológico da comunicação, a gastronomia tem obtido tamanho espaço

midiático nas últimas décadas da contemporaneidade que defendemos a existência de uma

gastronomídia, ou seja, que a gastronomia já opera hoje como uma mídia que independe do

suporte comunicacional utilizado (JACOB, 2013), por exemplo. A gastronomídia atua

estabelecendo vínculos diretos com seus consumidores, que não precisam se ater apenas ao

consumo das mediações diretas da gastronomia, podendo consumir a gastronomia

diretamente por meio desta mediação/midiatização.

Tais manifestações culturais só existem hoje porque a alimentação, especialmente a

gastronomia, atingiu tal grau de exposição midiática, que Lipovtesky levanta a existência

de um Homo gastronomicus contemporâneo:

Os guias de cozinha e os livros de receitas que detalham os prazeres gastronômicos invadem as prateleiras das livrarias. Jamais a gastronomia, os chefs, os grandes restaurantes, os bons vinhos foram tão comentados, auscultados, postos em cena pelas mídias. Ao mesmo tempo, o mercado (vinho, café, chá, queijos, pão, água...) evoluiu para níveis de qualidade superior: se os vinhos rotineiros declinam, os de qualidade progridem. Em toda parte a oferta diversifica-se em sintonia com uma demanda maior de sabores variados, de frescor, de “naturalidade”. (LIPOVTESKY, 2008, p. 235).

Nesse contexto de superexposição midiática, precisamos ponderar que é a mente da cultura

a organizadora de tais processos cognitivos e que as operações comunicativas geradoras

dessas linguagens – e acreditamos também geradoras da linguagem fitness – operam na

ambiência biosmidiática, o quarto bios ressaltado por Muniz Sodré (2006). O biosmidiático

é uma espécie de quarto âmbito existencial que vai além da própria vida, mas opera como

essa vida e atua na esfera dos negócios e numa pretensa virtualidade, onde a experiência

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humana é definida como relação de extensão da informação e no qual o meio configura-se

como parte inescapável da relação mídia/sujeito – que se torna visceral:

Do ponto de vista epistêmico, a ambiência biosmidiática deve acelerar a implosão daquele pensamento que nos conduz às heranças que se consolidaram através de visões dicotômicas entre a natureza e a cultura, como mecanismo de controle e sobrevivência de uma sociedade disciplinar (CIMINO, 2010: 129).

Apesar de a linguagem fitness apontar para esta separação entre natureza e cultura, já

apontada como errônea por Cimino no ambiente biosmidiático, precisamos colocar

veementemente que esta situação não existe. Mesmo que os adeptos desta linguagem

digam acreditar que aquilo que importa é o valor nutricional do alimento, de ponto de vista

comunicativo e cultural, usar uma linguagem e as estratégias comunicativas dela derivadas

significa pertencimento a um determinado sistema de valores e crenças – ou seja, um modo

de criar identidades culturais. No caso, acreditar na dietética da alimentação é estar imerso

em um determinado padrão cultural e pertencer a um grupo de identidade facilmente

destacável. Grupo para o qual o ato de comer precisa ser uma atividade controlada,

mensurada, quase que religiosamente pensada, como lembra Fischler:

L’alimentation comporte presque toujours un enjeu moral. Le choix de aliments et le et donc sanctionnés par des jugements. Dans le cours du changement social et civilisationnel, les critères qui président à ces jugements évoluent, quelquefois massivement. Le statut moral de certains aliments, leurs significations et leurs connotations subissent de plein fouet l’effet de ces évolutions: comportement du mangeur sont inévitablement soumis à des normes religieuses, médicales, sociales (2001, pag. 275).

Alimentação e saúde são palavras estão intimamente relacionadas no universo da língua

natural e, especialmente, na mente da cultura (Lotman, 1999). Somos constantemente

bombardeadas pela mídia sobre a necessidade de se ter uma boa alimentação para se ter

boa saúde. E a indústria da alimentação, uma das mais poderosas do mundo, sabe bem

disso. Tanto que usa benefícios à saúde e o termo alimentos funcionais (aqueles que

funcionam bem para o organismo) como armas de marketing para vender e criar marcas

que possam dominar o mercado. Propor que ele apresente vitaminas ou funções a mais

além da nutrição pode ser uma inverdade biológica, mas uma ótima arma de marketing.

Assim, como lembra Montanari:

A comida não é ‘boa’ ou ‘ruim’ por sí só: alguém nos ensinou a reconhecê-la como tal. O órgão do gosto não é a língua, mas o cérebro, um órgão culturalmente (e, por isso, historicamente) determinado, por meio do qual se aprendem e transmitem critérios de

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valoração. Por isso esses critérios são variáveis no espaço e no tempo: o que em determinada época julgado positivamente, em outra pode mudar de caráter; o que em um lugar é considerado uma guloseima, em outro pode ser visto como repugnante. A definição de gosto faz parte do patrimônio cultural das sociedades humanas (idem, 2008, pag.95).

Mesmo considerando as ponderações do autor, hoje podemos observar uma

homogenização da construção dos textos derivadas da linguagem da comida e da cozinha:

por um lado há a força da culinária e da gastronomia como linguagens da alimentação que

fazem parte da sobrevivência humana: por outro lado, a força industrial e financeira da

indústria dos alimentos que, aliada às anomalias próprias desses sistemas, como alimentos

altamente industrializados, vão gerando a necessidade de se criar novas linguagens ou

reestruturar aquelas antigas: é o que acreditamos que acontece com a linguagem fitness,

que adentra o território daquilo que o sociólogo francês Claude Fiscler chamou de “gastro-

anomia” e nela se controem identidades igualmente anômalas – tal como pode ser

considerada a linguagem fitness.

As caras e os corpos do Instagram: identidades imagéticas

Observamos que nos espaços midiáticos das redes sociais se constrói uma personalidade

muito forte, marcada por características individuais que acabam por se estabelecer e se

mostrar estratégias coletivas de identificação. Nas redes sociais impera o que Sibilia (2008)

chama de “Show do Eu”, um universo comunicativo onde as particularidades rapidamente

se transformam em territórios de identificação e agrupamento, e nas quais um modelo de

comportamento é seguido. Tal qual as capas de revistas em um passado não muito distante

(Ali, 2001, p.68) – e até porque não no presente – os perfis de Instagram atuam como

indicadores de comportamento que formam identidades no processo comunicativo,

partindo da figura do indivíduo:

Se é isso que se constrói e cultiva com esmero nesses espaços da internet saturados do eu, o que seria mesmo uma personalidade? Existem várias definições possíveis para esse termo tão rico em conotações. Neste contexto, porém, personalidade é sobretudo algo que se vê: uma subjetividade visível, uma forma de ser que se cinzela para ser mostrada. Por isso, estas personalidades são um tipo de construção de si altererigida, ou orientada para e pelos outros – em oposição ao caráter introdirigido ou orientado para dentro de si mesmo, um tipo de subjetividade característica de outros contextos históricos. (Sibilia, 2008, p.234)

A construção de estratégias das personalidades fitness do Instragram se apoia em algumas

características muito sensíveis e visíveis ao mesmo tempo, e que impactam fortemente os

grupos constituídos nessas redes sociais. Essas características podem advir de

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personalidades famosas nessas redes, como a blogueira Gabriela Pugliesi, que já conta com

mais de 1 milhão de seguidores no Instagram e que se transformou em uma marca

poderosa no universo da linguagem fitness digital.

Gabriela Pugliesi tem um perfil na internet altamente polêmico, alvo de vários

questionamentos sobre a exposição que ela faz de produtos comerciais sem lhes atribuir o

rótulo de propaganda7. O perfil no Instagram foi originado no blog “Tips 4 Life”, que

Pugliesi iniciou em 2013, quando precisou emagrecer alguns quilos. Como o Instagram

rapidamente se firmou como um meio de alta exposição do mundo fitness, é fácil entender

porque o perfil de Gabriela cresceu tanto e já passe de 1 milhão de seguidores. Hoje todos

os produtos midiáticos da “blogueira fitness”, termo usado por esse grupo para se

autodefinir, são gerenciados por uma empresa de comunicação.

As postagens são diárias, de 3 a 5 posts por dia, em média. Neles Pugliesi sempre mostra

refeições, produtos que prometem ajudar na conquista do corpo ideal, exercícios com igual

propósito e locais para se alimentar e ajudar a emagrecer e a comer bem. Em boa parte das

postagens a dona do perfil exibe o corpo considerado perfeito: magro, sem gordura extra

nenhuma, firme e bronzeado. O verdadeiro sonho de consumo de mulheres comuns – mas

Pugliesi é uma celebridade, não uma mulher comum.

Consideramos que tal exibição acaba por sugestionar as seguidoras dos perfis de que elas

só não conseguem ter o corpo dos sonhos porque não se esforçam para isso. Tal condição

acaba funcionando como mais um mecanismo opressor, que leva as mulheres a se sentirem

sempre infelizes pelos corpos que teem, mesmo sem serem ricas, famosas e terem perfis

que se transformam em marcas a serem trabalhadas em comunicação e marketing – como

no caso dos exemplos das famosas blogueiras.

No artigo “Com que corpo eu vou (2005, p.174), Maria Rita Kehl afirma que para nós, o

corpo costuma ser a primeira condição de felicidade, pois a imagem que o individuo

apresente à sociedade vai determinar a felicidade não por despertar o desejo de alguém,

mas visa construir autoestima e amor próprio. Ela diz ainda que a possibilidade de esculpir

7 In: vilamulher.com.br/bem-estar/nutricao/explicapugli-veja-a-opiniao-de-nutricionistas-e-do-conar-12118.html. Acesso em 15/03/2015.

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um corpo ideal, com a ajuda de técnicos e químicos do ramo, confunde-se com a

construção de um destino, de um nome, de uma obra. Hoje as pessoas acham que podem

traçar seu destino, e dentre os itens do destino estaria o corpo, perfeitamente moldável

nessa perspectiva.

Na construção de identidades no Instragram, o corpo ideal, perfeito, é o objeto de consumo

e de desejo mais valorizado – uma herança cultural que vem, certamente, da mídia

impressa em revistas, do cinema e da televisão. No Instagram praticamente todas as ações

de comunicação se destinam ao incentivo da construção de um corpo ideal, adequado aos

padrões estéticos de magreza e músculos à mostra. Nas comparações entre celebridades

como Gabriela Pugliesi e as seguidoras dela, conseguimos identificar um grupo que se

segue e se olha também para ficar vigiar e ser vigiado, numa estratégia muito foucaltiana,

de “vigiar e punir” constante (Foucault, 2000). Quem deixa para trás as recomendações do

grupo pode ser incentivado a seguir em frente, mas pode ser punido com pessoas que

deixam de seguir aquele perfil ou que falam que houve um erro de conduta.

Um seguidor da linguagem fitness na alimentação dentro do Instagram poderá dizer que

seguir pessoas comuns e celebridades leva as pessoas a serem motivadas na busca pelo

emagrecimento e pelo corpo perfeito. Entretanto, nas estratégias de comunicação

identificamos uma biopolítica de construção do corpo que leva os indivíduos a se

compararem continuamente. E a se autopunirem e a se punirem se algum dos seguidores

deixar de seguir aqueles preceitos, que são fortemente marcadas na comunicação de

identidades no grupo dos já citados “fitners”.

Características da linguagem fitness e as relações nas redes sociais

Após a observação de perfis diversos autodenominados fitness no Instagram por duas

semanas, podemos destacar as seguintes características de constituição dessa linguagem

(figuras 4 a 6):

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a prevalência do discurso do emagrecimento como a única opção de saúde e bem-

estar disponível– esta característica torna o “ser magro” uma figura de linguagem tão forte

quanto o “ser gostoso e ser visível” da linguagem gastronômica;

a valorização demasiada dos nutrientes em detrimento dos alimentos: todos os

alimentos são classificados com a sua principal característica nutricional: proteínas,

carboidratos, vitaminas;

a valorização do ato de cozinhar, fundamental para o preceito de comida simples e

fresca – aproximando a linguagem fitness da linguagem da culinária;

o uso excessivo de termos em língua inglesa (#eatclean, #fitness, #letscook #team

#fitfor #superfood #fitfood #low carb #low carb high fat)

a utilização excessiva da imagem de personagens simbólicos, exemplos de força e

de motivação para a cozinha e o comer fitness – caso das blogueiras famosas.

Figura 4: Postagem do perfil “dicasfit_” de 19 de março de 2014 no Instagram. Acesso via aplicativo de celular (iPhone). Figura 5: Postagem do perfil “Projetobefabolous14” de 19 de março de 2014 no Instagram. Acesso via aplicativo de celular (iPhone).

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Figura 6: Postagem do perfil “gordinha_fit” de 19 de março de 2014 no Instagram. Acesso via aplicativo de celular (iPhone). Figura 7: Postagem do perfil “canseidesergorda_” de 19 de março de 2014 no Instagram. Acesso via aplicativo de celular (iPhone).

Destacamos uma questão importante: as hashtags fazem o encadeamento e mostram que a

linguagem fitness do comer e do cozinhar já vai se impondo no universo da alimentação

como uma nova estrutura de comunicação que recupera os princípios da predominância da

dietética na cozinha. Entretanto tal estrutura gera, dentro do biosmidiático proposto,

estratégias comunicativas que acabam adentrando o território da biopolítica e do biopoder,

conceitos inicialmente estudados por Michel Foucault, e que se enquadram no uso de

questões biológicas para estruturação e até mesmo controle de grupos.

Acreditamos que usando de estratégias biopolíticas criam-se sistemas modelizantes de

comunicação onde se constroem novas linguagens comunicacionais. Consideramos aqui o

conceito de Foucault (1988, p.151) que diz que as práticas disciplinares do exercício do

poder, estudadas por ele, se baseavam no “no corpo como máquina: no seu adestramento,

na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua

utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”.

Sobre esse corpo, o biopoder zela dos processos como nascimentos e mortalidades, da

saúde da população gerenciando assim, a vida dos indivíduos como um todo. Assim, a

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biopolítica surge no uso que se faz do biopoder, ou seja, gerenciando-se e modificando a

vida de indivíduos que não estão fisicamente relacionados, necessariamente.

Percebemos nas características apresentadas e nos exemplos mostrados nas figuras 4, 5, 6 e

7, que a linguagem fitness não tem a mesma estrutura consolidada da culinária e da

gastronomia. Ela é anômala e recupera elementos das duas linguagens formativas, mas as

estratégias de comunicação que ele engendra no ambiente midiático das redes sociais

causam ecos de controle e de vigilância entre o grupo dos fitners – pessoas que fazem parte

deste universo tanto para espreitar os outros quanto para construir as suas próprias

personalidades midiáticas.

A obsessão pela magreza e pelo corpo definido, aliados ao uso excessivo de hashtags que

procuram vincular indivíduos, mas acabam por separá-los em grupos de vencedores

(aqueles que conseguiram o corpo dos sonhos pela mudança na alimentação) e perdedores

(aqueles que não conseguiram são estratégias de definição do eu indivíduo no coletivo das

redes digitais. Criam-se relacionamentos virtualizados que mostram corpos imateriais que

se materializam nas postagens e naquilo que se discute sobre eles. Sibilia (2008, p.59)

coloca que as práticas de internet estariam criando esse tipo de relação mas também uma

relação com “fantasmas”, pessoas que não existem, que se escondem no anonimato virtual

e ela criam um fantasia para si mesmas. A linguagem fitness esconde esse tipo de

fantasmas, perfis que se denominam “Gordinha Fit” (Figura 6) ou “Cansei de Ser Gorda”

(Figura 7): não se denota mais o nome próprio mas sim o principal desejo, um pensamento

até mesmo de violência auto imposta pelo próprio indivíduo.

Fitness: linguagem da alimentação ou anomalia?

Partimos neste trabalho do pressuposto de que o sistema cultural alimentação gera novas

linguagens a partir das explosões culturais que são inerentes à cultura e à comunicação.

Visto que gastronomia e culinária são as linguagens fundantes e fundamentais originadas

por este sistema, consideramos sempre que outras podem surgir, mas colocamos que

muitas delas surgem exatamente no contexto não de linguagens próprias, mas de anomalias

do sistema.

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Deste ponto observamos a linguagem fitness no ambiente midiático Instagram, rede social

onde a linguagem encontra maior espaço de crescimento na contemporaneidade. No estudo

de perfis e, portanto fotos, desta rede chegamos à conclusão de que a linguagem fitness

pode realmente ser uma linguagem da alimentação, mas que hoje as representações

midiáticas e estratégias comunicacionais que ela apresenta são mais ligadas ao âmbito das

anomalias. Considerando que existe uma biopolítica de gerenciamento de corpos que foca

nos cuidados com a comida e exercícios adequados, a linguagem fitness não se restringe

apenas ao comer e ao cozinhar, mas deles toma parte para construir esse processo

epistemológico e político de imagens de corpos adequadas que nascem de imagens

adequadas da alimentação.

A partir das características da alimentação fitness no Instagram, que elencamos

anteriormente, podemos afirmar que o estudo desta linguagem, tendo em vista o impacto

que gera na indústria da alimentação e no cotidiano dos grupos em todas as classes sociais,

precisa ser continuamente estudado. Hoje algumas pessoas de classes sociais mais baixas

relatam ter medo de comer para não engordar ou medo de comer o glúten do pão ou a

lactose do leite. Como os produtos fitness são caros, informar essas pessoas com poder

aquisitivo baixo que elas podem se alimentar de modo correto sem gastos excessivos é um

desafio e que se impõem na formação de identidades em grupos sociais.

Para fazer parte do grupo fitness precisa haver um pacto de identidades que coadunam-se

com as regras, como emagrecer, exibir nas redes sociais fotos do próprio corpo

transformado pelo processo, cozinhar e comer alimentos que são proteína, carboidrato e

vitaminas. O grupo, nesse sentido, excluiria a identificação com grupos sociais sem o

poder aquisitivo para dele fazer parte. Mas a linguagem fitness, por meio dos ambientes

midiáticos digitais, atravessa qualquer fronteiro socioeconômica e se expande em

velocidade muito acelerada.

Por causa de tais fenômenos, precisamos manter a observação dessa linguagem para poder

definir, futuramente, se ela é realmente uma linguagem estruturada ou um produto anômalo

das linguagens da alimentação. Tendo em vista o papel de protagonismo que hoje a

alimentação exercício na comunicação, tal estudo certamente se aprofundará em pouco

tempo.

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