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4 . Ensaios e Estudos Preço: 8 € Elementos para a história da Polícia de Investigação Criminal . Polícia de Investigação Criminal versus Po- lícia Política durante a primeira República e o regime de Salazar . Três crimes mediáticos cometidos no de- curso da Primeira República . Genética Forense - Uma Ciência com Passado, Presente e Futuro . Lofoscopia e identificação criminal . Balística Forense, contributo atual para a investigação criminal . Ensaio sobre coope- ração policial bilateral Portugal – Espanha . Manifes- tações delinquenciais do género feminino – o elemento violência . O papel do médico dentista na deteção de maus tratos . Pensar a Deontologia INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

IC4-1 ApresentaÁ„o 1 · para responder a cada situação. É esta a nossa Pedra Filosofal. Com este número da revista Investigação Criminal, procuramos ir ao encontro da questão

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4 . Ensaios e Estudos

Preç

o: 8

Elementos para a história da Polícia de Investigação Criminal . Polícia de Investigação Criminal versus Po-lícia Política durante a primeira República e o regime de Salazar . Três crimes mediáticos cometidos no de-curso da Primeira República . Genética Forense - Uma Ciência com Passado, Presente e Futuro . Lofoscopia e identificação criminal . Balística Forense, contributo atual para a investigação criminal . Ensaio sobre coope-ração policial bilateral Portugal – Espanha . Manifes-tações delinquenciais do género feminino – o elemento violência . O papel do médico dentista na deteção de maus tratos . Pensar a Deontologia

INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

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4. Ensaios e Estudos

Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária

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Investigação Criminal. Nº 4

Propriedade e edição: ASFICPJ – Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Crimi-nal da Polícia Judiciária - Rua Gomes Freire, nº 174, 1119-007, LisboaDirector Executivo: Mário CoimbraDireção Editorial: Nuno Almeida (Coordenação), Carlos Ademar, João Paulo Ventura, José LealConselho Consultivo: Professor Doutor Cândido da Agra, Professor Catedrático, Director daFaculdade de Direito da Universidade do Porto, Diretor da Escola de Criminologia | ProfessoraDoutora Eugénia Cunha, Professora Catedrática FCTUC, Consultora Nacional para a Antropo-logia Forense do INML | Professora Doutora Constança Urbano de Sousa, Doutorada em DireitoComunitário, docente universitária | Professor Doutor Rui Abrunhosa Gonçalves, Doutorado emPsicologia, Professor Associado da Escola de Psicologia da Universidade do Minho | Dr. AgostinhoSoares Torres, Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa | Dr. Vítor Magalhães,Procurador da República no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) |Dr. António Santos Carvalho, Juiz Conselheiro no Tribunal de Contas | Dr. Adriano Cunha,vice-Procurador Geral da República | Professora Doutora Fátima Pinheiro, Directora do Depar-tamento de Genética e Biologia do INML, Delegação do Porto | Professora Doutora Mafalda Fa-ria, Palinologista, Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz | Professor Doutor DuarteNuno Vieira, Presidente do Conselho Administrativo do Instituto Nacional de Medicina Legal eProfessor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra | Dr. Carlos Farinha,Director do Laboratório de Polícia Científica | Dr. Magalhães e Silva, Advogado, antigo membrodo Conselho Superior da Ordem dos Advogados, membro da Comissão Revisora do Código de Processo Penal 1998 | Dr. José Braz, Assessor de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, apo-sentado, ex-dirigente da Polícia Judiciária.Revisão: Carlos Ademar, João Paulo Ventura, José Leal, Nuno AlmeidaSecretariado/publicidade/Assinaturas: Helena Santos – Telefone: 915799104e-mail: [email protected] | www.asficpj.org | http://www.facebook.com/asficpj.policiajudi-ciaria | http://www.facebook.com/revista.investigacao.criminal?fref=tsDesign e Paginação: Atelier João BorgesImpressão: Sersilito, Empresa Gráfica Lda.Tiragem: 1000 ExemplaresISSN: 1647-9300Depósito Legal: 322803/11Dezembro / 2012Preço: PVP: 8€ Desconto para membros de entidades com protocolo com a ASFIC/PJ

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Índicep. 6 Apresentação: – Direção Editorial

p. 10 Elementos para a história da Polícia de Investigação Criminal – século XIXa 1945 – Artur Pereira e Nuno Silva

p. 50 Polícia de Investigação Criminal versus Polícia Política durante a PrimeiraRepública e o regime de Salazar: Notas de um arquivo – Leonor Sá

p. 70 Três crimes mediáticos cometidos no decurso da Primeira República (1910-1926) – Carla Costa

p. 88 Genética forense - Uma ciência com passado, presente e futuro – Carla Cruz

p. 112 Lofoscopia e identificação criminal: uma visão histórica, técnico-científica ejurídica – José Carlos Oliveira

p. 134 Balística forense, contributo atual para a investigação criminal – HélderFigueiredo

p. 148 Ensaio sobre cooperação policial bilateral Portugal – Espanha– Marcial Rodriguez y Rodriguez

p. 166 Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência– José Manuel Pires Leal

p. 188 O papel do médico dentista na deteção de maus tratos – Maria Inês Guimarães

p. 198 Pensar a Deontologia – Ana Sofia Silva

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A revista Investigação Criminal visa a divulgação do conhecimento técnico-científico no âm-bito das ciências forenses, bem como a promoção do debate sustentado entre perspetivas pro-fissionais relacionadas com a investigação criminal, integrada no sistema de justiça, e as disci-plinas que contribuem para a produção de saber relativo à realidade criminal na sociedadeportuguesa.A orientação editorial pauta-se, predominantemente, por princípios de qualidade científica,bem como pela seleção criteriosa de textos de base empírica, com especial relevância técnico --profissional.A filosofia de edição assenta na conjugação de artigos da autoria de funcionários da Polícia Ju-diciária com a de outros agentes do sistema judicial e fora dele, designadamente oriundos domeio académico e das profissões que interagem com a investigação criminal.Os trabalhos propostos para publicação devem ser enviados em formato digital (para [email protected]), ou em formato papel para os editores da revista Investigação Criminal,Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal.Os artigos deverão ser originais e a publicação depende da avaliação positiva da direção edi-torial e do conselho consultivo. Os autores comprometem-se a não submeter os artigos parapublicação noutros periódicos nacionais.Os critérios de avaliação dos artigos assentam na qualidade e rigor dos argumentos apresen-tados, na validade dos dados expressos, na atualidade e adequação das referências contidas notrabalho e na oportunidade e relevância do artigo no âmbito da produção de saber.Os textos deverão ser impressos em formato A4, fonte Times New Roman, corpo 12, recuo deinício de parágrafo, justificado, espaço 1.5, numa única face, com um limite máximo de70.000 caracteres (cerca de 20 páginas), incluindo notas, bibliografia, quadros e figuras.Cada artigo deve ser acompanhado de um resumo com um máximo de 650 caracteres, retro-vertido em inglês.

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As referências a outras publicações devem constar diretamente no texto - de preferência a con-cluir frases ou períodos - apenas com a indicação do apelido do autor, ano e número da pá-gina, se for o caso, com automática remissão para a lista de referências bibliográficas a figurarno final do respetivo artigo, contendo o nome próprio e apelido do autor citado, ano, títuloe local de publicação.São permitidas notas de rodapé, que portanto não sirvam para citações autorais, que deverãoser feitas no decurso do texto nos termos que antecedem.As referências a websites devem ser colocadas em notas de rodapé.

Todos os conteúdos dos artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores.

Fundada em 2010 no seio da ASFIC/PJ, a Investigação Criminal projeta-se como veículo in-dependente de posições sindicais e pretende ocupar posição na dialética inerente a esta área doconhecimento.A direção da revista é assegurada por um diretor executivo, uma direção editorial e um con-selho consultivo. São publicados dois números por ano.

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Apresentação

História da investigação criminal

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Direção Editorial

Entendeu a Direção Editorial (DE) destinar o presente número ao labor daqueles queao longo de gerações foram criando e burilando saber no campo da investigação cri-minal, mas também no domínio das técnicas e ciências que lhe servem de base e apoio.Pretende-se prestar uma justíssima homenagem a todos quantos, tendo ficado nabruma do tempo, estão sempre presentes, porque deram o seu contributo para que oedifício fosse crescendo de forma sustentada. Encontra-se ainda subjacente nesta op-ção temática uma outra ambição: centrarmo-nos no que de mais importante recebe-mos como herança nesta matéria e aquilatar da sua relevância no conhecimento quehoje utilizamos, no sentido de contribuirmos, ainda que modestamente, para algumaantevisão do futuro.Parece-nos pacífico que, por vezes, fazer um ponto de situação pode ser determinantepara a tarefa que desenvolvemos. Obriga-nos a olhar um pouco para trás, sem dú-vida, mas essa mirada pode ser refrescante porque nos leva quase sempre a retomar ocaminho mais certos do que fazemos e, por isso, com renovada convicção. Em for-malização processual, quando um processo vai longo e a matéria abunda, impõe-se ochamado relatório intercalar. Todas as diligências e a informação que delas resultou,passam a figurar em resumo naquela peça e, assim, assentes em bases sólidas, estamosprontos para prosseguir mais esclarecidos sobre os detalhes da investigação e, logo,para rasgar novos caminhos ou manter os que seguíamos, mas mais assertivos e mo-tivados por força do saber que ficou cimentado. A propósito de História, impõe-se invariavelmente em parangonas o verso de Ary dosSantos: «Todo o passado é lastro do futuro.» Na mesma perspetiva, faz todo o sentidoevocar a tela de Paul Gauguin, «Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos?»As eternas questões filosóficas que o artista do impressionismo imortalizou, emboradesvalorizadas por estes dias, mantêm-se insuperáveis. A elas temos a obrigação devoltar amiúde para nos reposicionarmos na nossa real dimensão face ao Universo,tentando minimizar as distorções que a dinâmica do dia-a-dia, marcada por uma com-petição desenfreada, pode gerar e certamente gera. Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos? A revista Investigação Criminal, pelas ligações que procura manter e fortalecer com omeio científico, de que os números já editados deixam testemunho, visa, com toda aimodéstia, estar à frente do seu tempo. Ainda que não tenhamos a ilusão de conseguir

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responder cabalmente à pergunta «para onde vamos?», temos, justiça nos seja feita,procurado desbravar caminhos novos, na expectativa de que sejam os mais ajustadospara responder a cada situação. É esta a nossa Pedra Filosofal. Com este número da revista Investigação Criminal, procuramos ir ao encontro daquestão «Donde vimos?». É de História que falamos, claro, certos de que as respostasque encontrarmos servem de «lastro», na palavra do poeta, para melhor antevermoso futuro nesta matéria. Conhecedores do passado e cientes dos desafios do presente,podemos tentar decifrar as necessidades do futuro, ficando assim, presunção legítima,mas ilidível por ser apenas nossa, mais próximos de poder responder, em termos abstra-tos à pergunta em falta, quiçá a mais complexa das três: «Quem somos?» Para o efeito, convidámos especialistas nas diversas áreas técnicas ou científicas e de-safiámo-los a discorrerem sobre as matérias que dominam de forma a cumprirem ospressupostos delineados pela DE. Assim, o presente número abre com um artigo pro-duzido a quatro mãos que, por abordar a história da investigação criminal até 1945,é de alguma forma estruturante no contexto da temática selecionada. Artur Pereira,um antigo dirigente da Polícia Judiciária (PJ) e Nuno Silva, especialista superior naÁrea de Documentação e Tradução da PJ, são os autores; José Carlos Oliveira, espe-cialista-adjunto, a trabalhar em lofoscopia desde o início da sua carreira, redigiu umtexto que procura levar o leitor até aos primórdios do estudo das chamadas impres-sões digitais e da respetiva utilização na investigação criminal, não se coibindo deabordar a questão na perspetiva técnica e jurídica; Carla Cruz, especialista superior daSecção de Biologia do Laboratório de Polícia Científica (LPC), abraçou a causa de queestá mais próxima em termos profissionais, dando-nos conta do tempo em que se re-corria ao termo «tipo secretor» até às mais modernas ferramentas que estão à dispo-sição da investigação para a determinação do perfil de ADN e consequente identifi-cação genética individual; Hélder Figueiredo, especialista-adjunto, afeto às equipasde cena de crime do LPC, lavrou um texto sobre a sua área de eleição, a balística,confrontando a inexorável marcha do tempo entre o que era e o que é nos dias de hoje,e a sua relevância na investigação dos crimes violentos; José Leal, inspetor-chefe da PJ,centrou a sua atenção nas manifestações criminais do género feminino; Carla Costa,inspetora da PJ, colocada na Escola de Polícia Judiciária, apresenta-nos um trabalhosobre três dos crimes que, pelas repercussões que tiveram na imprensa de então, maismarcaram o tempo conturbado que foi a Primeira República. Leonor Sá, conservadoraresponsável do Museu de Polícia Judiciária, preparou um artigo que espreita os pon-tos de contacto entre a Polícia de Investigação Criminal e a polícia política ao longodo Estado Novo; um destaque especial para o artigo da autoria de Marcial Rodriguezy Rodriguez, inspetor-chefe do Cuerpo Nacional de Policía de Espanha, que elaborou

Direcção Editorial

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um trabalho subordinado ao tema da cooperação bilateral em matéria policial entrePortugal e Espanha, por ser o primeiro autor estrangeiro que publicamos; prossegui-mos com Ana Sofia Silva, advogada e professora do Instituto Politécnico de CasteloBranco, debruça-se sobre a ética e a deontologia direcionada aos funcionários da PJ;Maria Inês Guimarães, médica dentista e professora universitária, laborou sobre o pa-pel do médico-dentista enquanto perito, na deteção de maus-tratos.

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Elementos para a história da Polícia de Investigação Criminal

– século XIX a 1945

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Artur PereiraLicenciado em Direito. Antigo dirigente e Assessor de Investigação Criminal da Polícia Judiciária aposentado.

Nuno SilvaLicenciado em História. Pós-Graduado em arquivística e documentação. Especialista Superior da PolíciaJudiciária.

“O que a história nos ensina é que a história não nos ensina nada.”George Bernard Shaw

Não é objectivo deste pequeno estudo fazer a história da polícia de investigação criminaldo nosso país. Pretende-se sim, redescobrir certos elementos históricos, maioritaria-mente legislativos e organizados cronologicamente, que permitam recordar o longo eerrático percurso traçado pela polícia de investigação criminal até um passado relati-vamente recente. Por outro lado, não se almeja também fazer a história da Polícia deInvestigação Criminal, aqui entendida como instituição, que viria a ser “baptizada” dePolícia Judiciária em 1945, mas apenas revisitar as longínquas raízes desta última ins-tituição que conta com muito mais do que os 66 anos que lhe atribuem. Qualquerum destes estudos implicaria extravasar o número de páginas limitadas deste artigo eaprofundar outras fontes e métodos históricos.Desta forma, analisamos somente: a evolução de uma polícia de investigação crimi-nal, inicialmente entendida como função, exercida pela Polícia Civil (PC); depois,coincidindo com uma fase de autonomização relativa, a sua evolução para repartiçãoou secção inserida noutras “polícias”; para, a seguir, assistirmos à afirmação da sua au-tonomia como instituição; por último, sumariamente, veremos como ocorreu a suatransição para a instituição actualmente conhecida. Aí, ao contrário da sucessão geral-mente referida, não encontraremos mais do que um caso de dupla identidade.Entretanto, até chegarmos a esse ponto, se ao longo da revisão da vária legislação apre-sentada tivermos conseguido estimular a curiosidade do leitor por este período dainstituição relativamente desconhecido e o tivermos levado a reflectir sobre o sentidoem que se operou a sua evolução, então aí já teremos atingido o nosso objectivo.Neste percurso histórico de mais de 145 anos evidenciar-se-ão alguns problemas, preo-cupações e angústias pelo que alguma da turbulência actual, mais não é do que a re-visitação de um passado sempre conturbado, salvaguardada a devida proporção decontextos políticos e sociais diferentes.

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1. Introdução

A Polícia Judiciária (PJ), como a conhecemos hoje, foi instituída em 1945, pelo De-creto-Lei n.º 35.042, de 20 de Outubro, no âmbito de uma reestruturação geral dapolícia em Portugal. Mas é costume e consensual, remontar as suas origens à ante-cessora: a Polícia de Investigação Criminal (PIC). No entanto, sendo inequívoca a data do surgimento da PJ, com esta designação, já asorigens da PIC são muito menos evidentes, tornando-se difícil encontrar um marcoúnico para a sua fundação, sendo até comum vários investigadores atribuírem-lhe di-versas datas que assinalem o seu aparecimento1.Não pretendendo este estudo fazer a completa história da investigação criminal emPortugal, resolvemos centrar-nos somente no período entre o aparecimento de umainstituição policial devidamente estruturada (a PC, em 1867) e o do “baptismo” daPJ, em 1945. Passando adiante das notícias do surgimento de uma incipiente investigação criminalcom os Quadrilheiros Fernandinos, os homens do Julgador, Regedor ou Alcaides (sécs.XVI e XVII)2 e os Corregedores, Ouvidores, Juízes e mais Justiças da primeira metadedo séc. XVIII, devemos deter-nos perante a criação da Intendência Geral da Polícia daCorte e do Reino, no séc. XVIII3. Esta seria a primeira organização com funções poli-ciais em Portugal com contornos relativamente modernos4, mas ainda distante dacriação de uma instituição policial, devidamente estruturada, dedicada somente à in-vestigação criminal5.

Elementos para a história da Polícia de Investigação Criminal – século XIX a 1945

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1 A correcta análise da questão do aparecimento da PIC requer que se atente na confusão semântica provocada pelaPolícia de Investigação Criminal, enquanto instituição, e pela polícia de investigação criminal, como função, que, aolongo dos séc. XIX e XX, foi desempenhada por instituições/repartições/secções com diferentes nomes. Esta dificul-dade é ainda acrescida pelo facto de existir uma certa ambiguidade, inclusive dentro de um mesmo diploma legal, mis-turando-se o nome do organismo ou unidade orgânica (repartição, secção ou instituição), com o nome pelo qual, nagíria, era conhecido (Polícia de Investigação, Polícia de Investigação Criminal, Polícia de Investigação Judiciária). 2 E.g. inter alia Lapa (1954), Barreto (1979), Carrilho (2006).3 Por determinação do Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, foi pu-blicado, em 26 de Junho de 1760, Alvará Régio criando a Intendência.4 Note-se, como curiosidade comparativa, que esta polícia já praticava, no séc. XVIII, o registo de moradores de bair-ros, a exigência de passaporte e a vigilância de certos grupos marginais, como vagabundos, mendigos, etc. Apesardisso, observava ainda um quadro legal ultrapassado: os regimentos antigos e as Leis de 12 de Março e de 30 de De-zembro de 1605, de 25 de Dezembro de 1608 e de 26 de Março de 1742.5 A institucionalização da polícia, como corpo burocratizado, hierarquizado e pago pelo Estado para manter a ordeme combater o crime só apareceria no séc. XIX, sob a influência dos ideais da Revolução Francesa – Cf. Santos (2006,p. 131).

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2. A investigação criminal na Monarquia Constitucional – contexto

O regime saído da revolução de 1820 caracterizava-se por intensa actividade legisla-tiva, o que se compreende tendo em conta o movimento de ampla renovação jurídicaque atravessava toda a Europa e as necessidades de alteração institucional em Portu-gal6. A convulsão política e social constante do séc. XIX português terá ajudado à in-definição de um caminho claro nas reformas gerais penais e processuais penais, alémde as protelar7. Apesar da progressiva acalmia política entre absolutistas e liberais, é no-tória a incapacidade de, paralelamente, estabelecer-se um quadro legal estável, suce-dendo-se múltiplas reformas e alterações à legislação.No campo da ordem pública, assinalaram-se alguns progressos com a reforma setem-brista de 1838 das Guardas Nacionais8, já preconizada por Almeida Garrett. Con-tudo, as reformas setembristas seriam substituídas em 1840 pela Novíssima ReformaJudiciária9, de Costa Cabral, que perdurou até 1929, data da aprovação do Código deProcesso Penal. Para se fazer uma ideia do estado caótico a que entretanto se tinha chegado,Cruz (1975, p.186, nota 462), refere que “no fim do séc. XIX, [quanto à] nossa legis-lação avulsa sobre processo penal, bastará dizer que são esse respeito, os diplomas legislati-vos complementares citados como «mais importantes»”. Citando Mourisca (1931),

Artur Pereira e Nuno Silva

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6 Contudo, estas alterações não foram globais, mantendo-se, entretanto, e em especial ao nível das instituições crimi-nais, algumas orientações e práticas do período pré-revolucionário. A falta de coerência e dispersão de normas enfer-mou a obra legislativa das cortes liberais e, no que toca à investigação criminal, Barreiros (1980) cita como exemplo ofacto de, não obstante a aprovação de alguns diplomas relativos a penas e organização judiciária, a Intendência-Geralda Polícia, num nítido retrocesso do caminho liberal, aplicar, numa Circular de 22 de Fevereiro de 1822, algumas dis-posições de Leis do regime absolutista, de forma a combater o aumento do crime registado em Portugal. 7 A título de exemplo, Barreiros (1980), apresenta o Código de Delitos e Penas: apesar de ter sido nomeada uma co-missão encarregue de o preparar em 26 de Dezembro de 1821, só em 1852 seria publicado um Código Penal. Para-lelamente, no período entre 1821 e 1852 foi publicada inúmera legislação avulsa, parcial, sem articulação sistémica,sobre o mesmo âmbito, além de inúmeros projectos de códigos e nomeadas várias comissões para o mesmo fim. Noano seguinte, pelo Decreto de 6 de Julho de 1853, foi mandatada uma comissão para reformar o processo criminal,com resultados nulos. A mesma sorte teve a comissão nomeada pelo Decreto de 30 de Dezembro de 1857. Mais afor-tunada foi a terceira comissão, nomeada em 1870, tendo o seu trabalho sido aproveitado por Navarro de Paiva, queapresentou um projecto de Código de Processo Penal em 1874. Em 12 de Julho de 1875, foi nomeada uma comissãopara a revisão do seu texto que não chegou, no entanto, a fazer qualquer trabalho útil, pelo que foi o próprio autorque teve de, sozinho, trabalhar no objectivo referido, apresentando em 1886 uma terceira versão do projecto inicial.8 A Guarda Real de Polícia, criada em 25 de Dezembro de 1801, foi extinta em 1834 por ter apoiado a causa Miguelista,sendo substituída pela Guarda Municipal. Em 1823, foi criada a Guarda Nacional, com funções iniciais de manutençãoda ordem, que no entanto foi perdendo terreno, sendo dissolvida ao nível local, existiam ainda os regedores e cabos depolícia. Em 1835, todos os corpos de segurança pública foram colocados na dependência dos governadores nos 17 dis-tritos administrativos em que o reino se dividia. Em 1869, seriam unificadas as Guardas Municipais de Lisboa e Portonum comando único, em substituição da Guarda Real de Polícia. Estes corpos de polícia resistiram à criação e desapa-recimento de outras polícias e mantiveram-se em actividade até à implantação da República – Cf. Jesus (1996).9 Aprovada pelo Decreto de 21 de Maio de 1841, na sequência da autorização legislativa concedida pela Carta de Leide 28 de Novembro de 1840.

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Cruz (1975)10 aponta “nada menos de 274 diplomas legislativos, desde 1929, que me-xem directa ou indirectamente em matéria de processo penal”11.

2.1. A criação da Polícia Civil (1867)Pela Carta de Lei de 2 de Julho de 1867, outorgada pelo rei D. Luís12, “é o Governo au-torizado a criar em cada uma das cidades de Lisboa e do Porto um corpo de polícia imedia-tamente subordinado ao governo do distrito, que será denominado corpo de polícia civil”13.A criação desta polícia – que não dispunha de uma unidade funcional e orgânica a ní-vel nacional – insere-se, como vimos, num conjunto de reformas de modernização dopaís, é erigida à semelhança das existentes em outros países europeus e era, também,um anseio da população. Pensada para servir a nova sociedade liberal e os seus valo-res, a PC estava dotada de um corpo profissionalizado inteiramente civil e destinava-se a actuar no quadro das novas clivagens sociais e de novas formas de criminalidadee delinquência, que tinham como cenário preferencial os meios urbanos14.A sua organização era, em súmula, a seguinte: um comissário geral, nomeado peloGoverno e sujeito directamente ao governador civil do distrito, superintende em cadaum dos Corpos das referidas cidades15. Para efeitos policiais são criadas tantas divisõesquantos os bairros de cada cidade; cada divisão terá o número de esquadras que fo-rem reputadas necessárias e estas subdividem-se em secções (Cf. Fonseca, 1924). Hie-rarquicamente, abaixo do comissário geral (que só existia em Lisboa e no Porto), ha-via o comissário de divisão ou de bairro, os chefes de polícia, os cabos e os guardas nabase da pirâmide hierárquica16.Nesta polícia (pela primeira vez devidamente estruturada, em comparação com osmodelos anteriores) a função de investigação criminal é ainda incipiente e não tem anecessária autonomização e especialização, uma vez que aos comissários de polícia são

Elementos para a história da Polícia de Investigação Criminal – século XIX a 1945

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10 Idem, ibidem. O autor cita Mourisca, José (1931). Código de Processo Penal – Anotado. Vila Nova de Famalicão, vol. I,págs. 21.11 Seria com este corpo legal que a PIC ainda se haveria de reger durante os seus primeiros anos.12 O ano de 1867 foi também o ano da publicação dos Códigos Civil e Administrativo e da abolição da pena de morte(Carta de Lei de 1 de Julho de 1867). Foi ainda publicada a importante Lei de 1 de Julho, conhecida como ReformaPenal de Barjona de Freitas. 13 O mesmo diploma autorizava que nos outros distritos fossem criados, conforme as necessidades, corpos de políciade natureza idêntica aos daquelas duas cidades. Na realidade, só em 1868 os primeiros polícias começariam a percorreras ruas de Lisboa e do Porto – Cf. Gonçalves (2007, p. 37).14 Cf. Santos (2006, p. 132); Gonçalves (2007, p. 41).15 As Portarias de 25 de Julho e de 5 de Agosto de 1867 aprovam o plano da divisão de Lisboa e Porto, respectiva-mente, em circunscrições de esquadras e de secções para o serviço da polícia civil.16 O comissário geral era, pelo menos, um bacharel formado em direito. No entanto, as suas investigações não tinham,perante os tribunais, força de corpo de delito, como aconteceria mais tarde, com os directores da polícia de investigação.

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atribuídas as diversas funções de agentes de polícia administrativa17 (“polícia geral e mu-nicipal”), oficiais de polícia judicial (investigação)18 e ainda de oficiais de polícia cor-reccional19. A competência dos comissários estendia-se a toda a circunscrição do con-celho, sede do distrito20. Apesar da inovação da institucionalização da polícia e desse facto ser muito bem re-cebido pela população, Lapa (1954, p.173-174)21 diria, uns anos mais tarde, que “apolícia de Lisboa sofria principalmente de uma anemia, mas uma anemia curável, e, logoque a vigorassem, adquiria toda a vitalidade e robustez que lhe faltava. Fora desta debi-lidade geral remediável e remediada, os males que a afectavam eram meramente de ordemlocal e de pronta cura”. A causa dessa anemia residiria no facto de se assistir “flagran-temente à disparidade de, por exemplo, um comissário de polícia de segurança pública, de-sempenhar ao mesmo tempo o cargo de agente de polícia administrativa e oficial de polí-cia judicial” pois ele era “obrigado a investigar crimes, inspeccionar a execução de posturasmunicipais, o que tudo isto dava uma amálgama de confusões de serviços e que algunsbrigavam com outros”.

2.2. A necessidade de autonomização da investigação criminal (1876)Apesar da regulamentação22 da PC ter ocorrido ainda em 1867 e de se ter reformadonovamente23 o “regulamento dos corpos de polícia” em 1876, “devido a toda esta confusão”de competências concentradas na mesma entidade24, a efectiva separação das diversasfunções só viria a ocorrer em 1893, mediante uma reforma estrutural dos serviços dapolícia civil.

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17 Na vertente de “polícia geral e municipal”, tinham funções de manutenção da ordem e segurança pública; fiscali-zação de armas e estrangeiros; inspecção e fiscalização de estabelecimentos de várias actividades, bem como das pos-turas camarárias; policiar a mendicidade e vadiagem; polícia sanitária; aplicar coimas e multas; entre outras. Na qua-lidade de “polícia administrativa”, tinham como função “coadjuvar os “empregados fiscais” na repressão do contrabando”- Art.°s 12.º e 13.º da Carta de Lei de 2 de Julho de 1867.18 “Como oficiais de polícia judicial têm a seu cargo descobrir os crimes ou delitos e as contravenções, coligir as provas e en-tregar os criminosos aos tribunais. Nesta qualidade pertence-lhes: 1.º Prender ou mandar prender os culpados, nos casos emque não se exige a prévia formação de culpa, observando as formalidades prescritas nas leis; 2.º Formar autos de investiga-ção de todos os crimes ou delitos que chegarem a seu conhecimento, remetendo-os com informação para o ministério público;3.º Satisfazer as requisições das autoridades judiciais que lhes forem directamente dirigidas, ou às autoridades administra-tivas” - Art.º 14.º da Carta de Lei de 2 de Julho de 1867.19 Art.º 15.º da Carta de Lei de 2 de Julho de 1867.20 Paralelamente, ao nível dos municípios, a mesma Lei estipula que “em todos os municípios do reino, com excepção deLisboa, deve haver guardas campestres” de nomeação e manutenção camarária. Todos estes corpos de polícia eram no-meados e pagos pelas câmaras municipais.21 Um dos poucos estudos sobre este período, publicado numa revista ligada à PJ.22 Decreto de 14 de Dezembro de 1867 – Regulamento do corpo de polícia civil.23 Novo Regulamento do corpo de polícia - 21 de Dezembro de 1876. No mesmo ano, pela Carta de Lei de 27 de Ja-neiro de 1876, é elevado para 350 o número de elementos do corpo de polícia civil de Lisboa e para 180, o do Porto.24 Art.°s 34.º e 35.º do Regulamento de 21 de Dezembro de 1876.

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Com efeito, em 1876, a investigação criminal, pelo Regulamento de 21 de Dezem-bro, andava ainda “nas mãos dos comissários de polícia, que, em geral, eram pessoas quenão tinham competência especial nem tempo para exercer essas atribuições, dada a cen-tralização de funções que neles havia. Seria preciso ignorar, por completo, para se não verisso, o que constitui a variedade e complexidade dos três ramos policiais – segurança pú-blica, inspecção administrativa e investigação criminal – que esses comissários exerciam”(Macieira, 1913, p. 9).Esta necessidade de autonomização fazia-se sentir nos mais variados aspectos: - Subtracção da investigação criminal à influência da administração - sublinhe-se,neste ponto, que naquela época os serviços dos corpos de polícia civil eram limitadosàs circunscrições dos respectivos concelhos25 e dependiam directamente dos GovernosCivis26. Pelo Regulamento de 1876 os serviços de polícia tinham de “remeter diaria-mente ao governo, pelo ministério do reino, e ao governador civil, um mapa das ocorrên-cias policiais do dia anterior, dando sempre parte imediatamente dos acontecimentos demaior gravidade” 27 colocando-se assim em causa a independência de poderes e o si-gilo de uma eventual investigação;- Separação da entidade julgadora e entidade investigadora - Gradualmente, o prin-cípio da separação de poderes e da garantia de direitos fundamentais do cidadão,ideias básicas do movimento liberal, começam a influenciar o processo penal portu-guês. Urgia, assim, separar estas entidades. Nesse sentido, foi criado, para o exercícioda investigação criminal, um órgão próprio - o Ministério Público (MP) - a quempassou a competir o exercício da acção penal.- Dependência, em termos organizacionais, em relação ao poder político - atente-seque, pelo Regulamento 1876, os comissários gerais de polícia, comissários de divisão,escrivães e amanuenses dos comissariados eram cargos de nomeação régia. Apesar de,aos governadores civis somente competir a nomeação dos chefes de esquadra, cabose guardas28, esse mesmo governador civil podia “recomendar” ao governo - a fim de se-rem “recompensados” pelos serviços prestados - os comissários de polícia e empregadosdas respectivas secretarias. Por fim, lembrando aos guardas de quem dependiam, aosque se distinguissem - pela sua aptidão e zelo ou no cumprimento das ordens quelhes fossem transmitidas - poderiam ser atribuídas recompensas, entre outras formas,de prémios pecuniários ou de promoções29;

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25 Ao contrário dos corpos de polícia dos restantes distritos, em que as suas competências se alargavam a todos os con-celhos do respectivo distrito, a PC de Lisboa e Porto tinha o serviço limitado às circunscrições dos seus concelhos.26 Sobre o papel dos Governos Civis ao longo dos sécs. XIX e XX, vide Gonçalves (2007, p.45-53).27 Art.º 31.º, n.º 11 do Regulamento de 21 de Dezembro de 1876.28 Art.ºs 11.º e 12.º do Regulamento de 21 de Dezembro de 1876.29 Art.ºs 97.º e 98.º do Regulamento de 21 de Dezembro de 1876.

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- Em termos operacionais - a título de curiosidade, refira-se que os guardas da PC de-veriam andar sempre uniformizados, excepto no uso de licença ou quando empre-gues em “diligências policiais, em que será conveniente andar à paisana, o que todavia sópoderão fazer com expressa autorização dos comissários”30.

2.3. As reformas de 1893 e 1896 – a especialização: criação da Repartição de Investigação Judiciária e PreventivaNestes termos, a reforma dos serviços policiais da cidade de Lisboa - que viria a ocor-rer em 1893, com Hintze Ribeiro - impunha-se “como uma necessidade indeclinável”porque as “disposições legais em vigor, deficientes e incompletas, obedecem a um critérioque se não harmoniza com as actuais exigências destes serviços e dos importantes e com-plexos factos sociais que eles abrangem”31. Sobre o anterior regulamento, de 1876, re-conhecia-se que “concentrando na mesma entidade a competência para o desempenho defunções da mais diversa índole, lançou as bases de um sistema, que veio praticamente a pro-duzir os resultados menos satisfatórios”32. Assim, o princípio capital desta reforma era a distribuição dos serviços policiais da ci-dade de Lisboa em três ramos fundamentais especializados (denominados de “repar-tições”33) – “segurança pública”, “inspecção administrativa” e “investigação judiciária epreventiva” - cada um deles com uma direcção privativa e uma organização própria,embora sem prejuízo do mútuo auxílio e da colaboração recíproca34. Procurava-se, desta forma, pôr termo a uma situação que se vinha tornando intolerávelpelas rivalidades e contendas que diariamente surgiam entre os funcionários policiais,

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30 Estes guardas andavam somente armados com “terçados” (pequena espada curta) e “extraordinariamente, poderão usarde revólveres e carabinas, segundo as circunstâncias, e precedendo autorização dos comissários respectivos” - art.°s 61.º e 78.ºdo Regulamento de 21 de Dezembro de 1876.31 Preâmbulo do Decreto de 28 de Agosto de 1893.32 Em relação ao regulamento de 1876, o texto da reforma de 1893 criticava: “A manutenção da ordem, a investigaçãodos crimes, e até a inspecção da execução das posturas municipais, editais e regulamentos administrativos, ficaram entreguesaos mesmos funcionários. Daí alguns dos mais graves inconvenientes práticos, que impõem hoje uma remodelação profundaem tais serviços, modificando essencialmente a exagerada e inconveniente centralização, que foi porventura a causa mais efi-caz e mais decisiva de muitos erros, que importa de vez corrigir e evitar”.33 Sobre esta designação e sobre a estrutura orgânica de todos os Ministérios, ver o Decreto de 25 de Novembro de1897 [Diário do Governo (DG) n.º 273, de 2 de Dezembro] estabelecendo as “normas que devem observar-se na re-forma dos serviços a cargo das diversas secretarias de estado”. Este diploma estabelece a composição de todos os minis-térios (com excepção do da Guerra) em secretarias-gerais, direcções-gerais, repartições e secções.34 Esta divisão, sistematização e classificação dos serviços, segundo o legislador, derivava “da própria natureza peculiarque eles revestem”. Enquanto a polícia de segurança era entregue a um oficial do exército, militarizando-a e dando-lhe“a disciplina, a consistência, os elementos de ordem e regularidade que só podem alcançar-se com uma instrução militar eum regime severo”, a polícia de investigação – a preventiva e a judiciária - “fica inteiramente separada da polícia de se-gurança, e particularmente confiada a um magistrado judicial, coadjuvado por um ajudante, também jurisperito, que ofe-recerão todas as garantias de autoridade e de competência” - Preâmbulo do Decreto de 28 de Agosto de 1893.

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tão “ofensivas ao decoro oficial como nocivas ao regular funcionamento daqueles serviços”(Fonseca, 1924). Esperava-se ainda que, nestes termos, desaparecessem os “desastra-dos efeitos até hoje produzidos pela confusão ou acumulação de todos os serviços policiais,dentro de uma dada área da cidade, no mesmo funcionário e nos mesmos agentes. Daí re-sultava que as exigências simultâneas de serviços de diversa índole, incidindo sobre os mes-mos indivíduos, prejudicavam o andamento regular dos negócios, embaraçavam e torna-vam frouxa e intermitente a acção policial, sacrificando principalmente os serviços deinspecção administrativa, e não raro perturbando com delongas e desleixos lamentáveis, em-bora forçados, os trabalhos e indagações da polícia judiciária”35.Aos governadores civis, não obstante competir-lhes ainda a inspecção de todos estesserviços policiais, reduzia-se a intervenção na organização e funcionamento das re-partições policiais e dos seus agentes, em virtude das “amplas faculdades concedidasaos chefes respectivos”. Alegava-se que parecia conveniente “arredar quanto possível ogovernador civil, cujo cargo é essencialmente político, da ingerência directa nos serviçospoliciais” e que os funcionários ficassem “no desempenho das suas funções, com toda apossível autonomia e liberdade de acção, para que tenham um maior estímulo ao rectocumprimento dos seus deveres e haja uma indicação mais precisa e irrecusável no apura-mento eventual respectivas responsabilidades”36.Ao entregar-se a polícia de investigação à direcção de um juiz de instrução criminal, doquadro da magistratura judicial - por um prazo de seis anos - e a um ajudante - bacharelformado em direito - esperava-se obter “sérias garantias de imparcialidade”, substi-tuindo-se o “arbítrio, tanta vez condenado, de simples funcionários policiais, escolhidos àvontade dos governos” pela “rectidão e a competência de magistrados independentes, co-nhecedores das leis, e pessoalmente responsáveis pela sua execução”37. Confessava-se, nesta reforma, que não se introduziam novas disposições que alterassemos regulamentos e práticas vigentes. Apenas se consagrava “o que já se executa, regulari-zando-se, normalizando-se e fixando-se, em termos definidos, as atribuições e competência,agora conferidas ao juiz instrutor, e que até aqui eram confiadas aos comissários de polícia”.A reforma de 1893, completada pela Lei de 3 de Abril de 1896 e por regulamentos pos-teriores38, permite-nos assistir, pela primeira vez, à independência e autonomização

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35 Preâmbulo do Decreto de 28 de Agosto de 1893. Agora, com esta divisão “metódica” e “racional” previa-se que “cadarepartição poderá concentrar no que especialmente lhe competem a sua actividade e o seu zelo, e as instâncias superiores po-derão também discriminar e impor imediata e facilmente as responsabilidades que a cada qual pertencerem pelo modocomo desempenhar as funções que lhe são incumbidas”.36 Preâmbulo do Decreto de 28 de Agosto de 1893.37 Desejava-se ainda que, nestes termos, a instrução dos processos poderia “correr pronta e ordenada” ao passo que, ante-riormente, os autos de investigação “quase para nada serviam, sem falar nas demoras e nas confusões produzidas pela acumu-lação de serviços e de atribuições, que anarquizava a polícia de Lisboa” - Preâmbulo do Decreto de 28 de Agosto de 1893.38 Além de pequenas alterações ao Decreto de 1893, a Lei de 1896, de João Franco, fazia aplicar certas disposições aocorpo de polícia da cidade do Porto.

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funcional - se bem que relativa, pois ainda inserida na PC - dos serviços de investi-gação, surgindo a Polícia de Investigação Judiciária e Preventiva como uma das três“Repartições” da PC, com directores e quadros de pessoal privativos39, bem como or-çamentos próprios, separados das restantes polícias/repartições40.No entanto, essa autonomia funcional da investigação criminal, ainda não é total (nemséria), por vários motivos. Um deles prende-se com o facto de, na realidade, a “re-partição da Polícia de Investigação Judiciária e Preventiva”41 ainda se subdividir em doisserviços distintos, pois compreendia os serviços de polícia preventiva (na dependên-cia directa do governador civil) e os da polícia de investigação (“judiciária”)42. Assim,a “determinação dos serviços de polícia preventiva” continuaria a pertencer exclusiva-mente ao governador civil, que, além do pessoal da polícia de investigação, poderiatambém, quando o julgasse necessário, colocar neste serviço o pessoal de qualquerdas outras repartições policiais, “dando para este efeito ao comandante do corpo e aos ma-gistrados da polícia as instruções precisas para a respectiva execução”, tal como podiam,com autorização do governo, “cometer a direcção de determinados serviços a indivíduoda sua confiança”43. Para o desempenho dessas tarefas, o quadro do pessoal da polícia de investigação deLisboa era composto, de acordo com o diploma, da seguinte forma: um juiz de ins-trução criminal, um ajudante, três chefes de polícia, 20 agentes44 e 60 polícias da re-partição da segurança pública (como auxiliares).Os chefes e agentes da polícia de investigação eram ainda nomeados pelo governador ci-vil, mas agora sob proposta do juiz, a partir de um recrutamento efectuado exclusivamente

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39 Não obstante a faculdade de fornecimento, pela polícia de segurança pública, “às repartições de polícia de inspecçãoe de investigação os guardas requisitados pelos competentes chefes, quando sejam necessários para coadjuvar a execução deserviços a seu cargo […]”. Todavia, os agentes da PC deixavam de exercer todas as funções em simultâneo, como atéentão sucedia, e passaram a desempenhar as funções específicas do serviço de polícia onde eram colocados.40 Nota ainda para o início da utilização, em cada repartição, separadamente, de “livros para registo do pessoal, da cor-respondência entrada, da correspondência expedida, de circulares e ordens de execução permanente, das receitas e despesasprivativas, dos emolumentos, das transgressões e multas, os de índice dos negócios entrados e expedidos em cada ano […]”(art.º 4.º do Dec. de 28 de Agosto de 1893).41 Surge assim, pela primeira vez, a designação de “Polícia de Investigação Judiciária” traduzindo uma clara separaçãode funções desta repartição, embora, como vimos, ainda inserida na estrutura da PC. Esta designação será, ao longodos tempos, muitas vezes alterada, mas mantendo sempre a raiz nominal de “investigação” ou “judiciária”. Paralela-mente, estabelece-se também a designação de “Segurança Pública” a outra Repartição da PC.42 Competia particularmente à repartição da polícia de investigação, entre outras funções, receber queixas, proceder atodas as investigações e diligências necessárias para a descoberta de crimes e proceder a vigilâncias de suspeitos e con-denados.43 Esta mistura de funções, essencialmente políticas (por ingerência do governador civil), na repartição da Polícia deInvestigação Judiciária e Preventiva, viria a dar muito mau nome, por contágio, à polícia de investigação criminal pro-priamente dita e, em especial, ao juiz de instrução criminal que superintendia os dois serviços distintos, como vere-mos adiante.44 Estes agentes recebiam, diariamente, 700 réis, e os guardas da segurança pública 500 reis.

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entre os chefes de esquadra, cabos e guardas do corpo da PC. O juiz de instrução cri-minal45, provinha de qualquer das classes da magistratura judicial, serviria por seisanos e era pago pelo Ministério da Justiça (MJ). Com excepção do juiz de instruçãocriminal, todos os funcionários poderiam ser demitidos pelo governo (nomeadamentepelo governador civil, por proposta do comandante do corpo), sem estar previsto ne-nhum tipo de processo disciplinar que acautelasse os seus direitos e garantias.

2.4. A agonizante Monarquia liberal – A polícia de investigação no JICEm 1898, com o novo governo presidido por Luciano de Castro, pelo Decreto de 20de Fevereiro46, os serviços policiais de Lisboa ficariam divididos em duas categorias:a polícia civil (subdividida em duas “secções”, a de segurança e a de inspecção adminis-trativa) e a polícia de investigação (compreendendo a de investigação do crime comum- polícia de investigação - e a de investigação do crime político – a polícia preventiva).Fundiam-se assim os serviços da polícia preventiva e judiciária, “visto que, tendo porfim estas duas polícias evitar os crimes de qualquer ordem, cumpre que uma e outra se au-xiliem”47, ficando ambas a “pertencer” ao Juízo de Instrução Criminal48, separando-asda dita polícia civil.Como o Juiz de Instrução Criminal era nomeado pelo Governo49, optou-se por man-ter no cargo o juiz que o vinha exercendo (art.º 42.º) - se bem que agora em comis-são - e alargou-se a sua jurisdição a toda a comarca de Lisboa e não só à cidade, mas,

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45 Nas suas funções seria coadjuvado por um magistrado do MP escolhido na classe dos delegados do procurador ré-gio ou por bacharel formado em direito. Este juiz de instrução tinha poderes para ordenar a captura e prisão de sus-peitos da prática de certos crimes, em flagrante delito ou mesmo sem culpa formada, e a detenção por prazo não su-perior a oito dias ou a sua incomunicabilidade pelo prazo de 48 horas, sem ter que justificar a medida, de determinadossuspeitos sob vigilância, bem como proceder ao julgamento de transgressões de posturas, regulamentos e editais mu-nicipais e administrativos.46A ideia que presidiu a esta nova reforma dos serviços policiais - num período de agudização dos conflitos sociais ecrescente contestação ao poder vigente - conforme se pode ler no preâmbulo, “foi a de eliminar as disposições restriti-vas dos direitos e garantias individuais, que tantas e tão intensas reclamações haviam suscitado ao publicar-se a reforma de1893, aproveitando ao mesmo tempo as lições da experiência, corrigindo os defeitos […]”. Assim se satisfaziam as “justasreclamações” da opinião pública, “sem desarmar a polícia dos meios defensivos indispensáveis à manutenção da ordem pú-blica” – Decreto de 20 de Fevereiro de 1898.47À polícia de investigação criminal incumbia, mais uma vez, “descobrir todos os crimes e contravenções e seus autores,cúmplices e encobridores, e remeter aos competentes tribunais os presos, quando os haja, e todos os elementos de prova quetiver alcançado”, e à preventiva cumpria “tomar conhecimento de todos os factos que, embora não sejam criminosos, pos-sam influir na ordem e tranquilidade públicas, e na administração e segurança do estado, dando conhecimento de tudo aogoverno e ao governador civil” – Decreto de 20 de Fevereiro de 1898.48 Tratava-se do “mesmo corpo de investigação, funcionando no mesmo local, com os mesmos homens, mas agora sob umaoutra designação que enfatizava o poder da magistratura judicial sobre este ramo de serviço” (Gonçalves, 2007, p. 72).49 “Porque sendo o governo responsável pela ordem e tranquilidade pública, não pode recusar-se-lhe a responsabilidade deescolher para o desempenho dos serviços destinados a assegurá-las funcionários da sua plena confiança”.

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por outro lado, reduziu-se-lhe os seus poderes em matéria de prisão sem culpa formadae de detenção policial para averiguações, que poderiam dar lugar a abusos50. Apesar de continuarem na polícia de investigação os “chefes e agentes de polícia judiciá-ria” de 1896, esta reforma previa o alargamento do âmbito de recrutamento dos agen-tes a um concurso, não restringindo a selecção a elementos já existentes nas forças dapolícia (como acontecia em 1896), embora “as praças do corpo de polícia civil” fossempreferidas em igualdade de circunstâncias. Em termos disciplinares, surge a hipótesede recurso (que não existia no anterior regulamento), para o Governo, das decisões doconselho disciplinar.Data de 1898, também por este decreto, “a instituição oficial dos trabalhos de fotografiae de antropometria a fim de se organizarem devidamente os cadastros de delinquentes”51.

2.4.1. A progressiva autonomização da investigação criminal (1902) - uma políciade âmbito nacional

Mais tarde, pelo Regulamento de polícia judiciária e de investigação, de 19 de Setem-bro de 190252, estando novamente no governo Hintze Ribeiro, alargam-se substan-cialmente as competências da polícia de investigação, conferindo-lhe a responsabili-dade, a nível nacional, para investigar os “crimes contra a segurança do estado, contra aordem social e os de fabrico ou passagem de moeda ou notas falsas”.Paralelamente, e de forma a cumprir as novas funções, são reforçados os poderes doJuiz de Instrução Criminal de Lisboa, director da polícia (na dependência do Ministé-rio do Reino, de plena confiança do Governo e por ele nomeado), atribuindo-lhe adirecção superior, em todo o continente, da investigação, vigilância e fiscalização dossuspeitos daqueles ilícitos, sendo centralizadas no Juízo todas as informações a elesrelativas, ficando todas as autoridades obrigadas a prestar-lhe auxílio e a transmitir --lhe todas as informações53.

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50 “Eliminando-se todas as disposições que podiam dar ocasião ou pretexto a violências e ofender a liberdade que a todos oscidadãos garantiu a constituição do reino”, como se referia no preâmbulo do Decreto de 20 de Janeiro de 1898.51 Sobre este serviço, “tão conhecido e apreciado noutros países pelos seus excelentes resultados”, e ainda não existente emPortugal, sublinhava-se que era “importante preencher esta lacuna”. Igualmente se propunha a criação de um “necro-tério (morgue) para o reconhecimento de cadáveres, e mais diligências necessárias à investigação criminal. Desnecessário éencarecer a conveniência e até a necessidade de se criar este importante serviço, que é um poderoso e eficacíssimo auxiliardas averiguações policiais”. Os serviços da fotografia, antropometria e morgue eram, nesta data, considerados “insti-tuições auxiliares da investigação criminal”.52 Pela primeira vez, é publicado um regulamento de polícia judiciária/investigação sem se enquadrar numa reformamais ampla dos serviços policiais (Gonçalves, 2007, p. 71).53 Para o exercício destas novas funções, o pessoal de que dispunha foi também alargado: para estes fins, não só eracoadjuvado pelos agentes privativos do juízo criminal, como se lhe subordinou todos os “diversos chefes e agentes depolícia judiciária de todo o continente do reino, sendo também coadjuvado não só pelos corpos de polícia geral, mas ainda

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2.4.2. O Juízo de Instrução Criminal

Desta forma, pelo alargamento de competências e centralização a nível nacional, oJuízo de Instrução Criminal, dependente do Ministério do Reino e aglutinando as ver-tentes de investigação criminal e de polícia secreta/preventiva na mesma instituição,adquiriu um enorme poder que vem a ser evidenciado por Francisco Maria da Veiga- o famoso “Juiz Veiga”. Este juiz, que entre 1893 e 1907 chefiou o Juízo, foi consi-derado o principal instrumento de repressão e de fortalecimento do poder real, so-bretudo no Governo de João Franco, com as múltiplas acções de censura e vigilânciada imprensa e das actividades de republicanos e anarquistas, montando sucessivasoperações policiais de infiltração e perseguição dos “suspeitos”, sendo, por isso, acusadode ser uma “polícia secreta” (Pereira & Patrício, 2010). Efectivamente, no período entre 1893 e 1897, durante a ditadura política de JoãoFranco/Hintze Ribeiro, foi aprovada uma série de diplomas54 que fortaleceram este Juízode Instrução Criminal que duraria até ao advento da República55. Na realidade tratava-sede uma polícia de investigação política, à qual foram conferidos poderes majestáticos noque toca à prisão preventiva (que não tinha qualquer limite temporal)56 e ao valor pro-batório dos seus autos de investigação, aos quais foi conferida a força do corpo de delito57.Quanto aos efeitos da associação da “polícia” a este “juízo”, basta referir que a sede dapolícia – que neste tempo funcionava no Governo Civil de Lisboa – era chamada pelapopulação como “Manicómio da Parreirinha” (Lapa, 1954), avaliando-se por estaspalavras o “prestígio” da instituição58.

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pela repressiva da emigração clandestina, que proveitoso auxílio pode prestar neste assunto, como já tem demonstrado” e aindapelos “agentes comissionados” pelo Banco de Portugal “na investigação dos crimes de falsificação e passagem de notas fal-sas, em cuja repressão ele tem especial interesse”. Estas precauções tinham por base os acordos internacionais sobre o as-sunto que Portugal tinha assinado. Por fim, o legislador sublinhava, de forma esclarecedora, que todas as “despesas comestes serviços são obrigatórias e estão legalmente autorizadas, visto que se compreendem nas de polícia preventiva”. Esta“centralização”, em detrimento dos poderes “locais”, foi uma grande inovação, só vindo a ser norma – para todas aspolícias - na década de 30 do séc. XX.54 Lei de 21 de Abril de 1892, Decretos de 28 de Agosto de 1893, de 12 de Abril de 1894 e de 3 de Abril de 1896.55 Houve quem considerasse que esta instituição não era mais do que o ressuscitar dos antigos serviços policiais per-secutórios e de repressão política da Intendência-Geral de Polícia. A história dos abusos desta instituição – que foi vul-garizada como “A Bastilha da Calçada da Estrela” – foi tão sinistra que a I República Democrática, quando preten-deu criar um genuíno órgão instrutório judicial, sentiu necessidade de baptizá-lo como Juízo de Investigação Criminal,para evitar o escolho semântico da expressão que a consciência jurídica nacional repudiara. De facto, «o juiz de ins-trução não era senão o velho intendente da polícia do Absolutismo, à frente dos seus esbirros e aguazis» (Barreiros, 1980).56 Art.º 21.º, n.º do Decreto de 20 de Janeiro de 1898.57 Mas, enquanto o Absolutismo compreendeu que a polícia não “instruía” os processos criminais e apenas “perse-guia” como lhe cumpria, a Monarquia “liberal” pretendia que o novo “Intendente”, por ter sido juiz, continuasse asê-lo enquanto polícia e conferia aos seus actos realizados à margem de toda a legalidade, o valor de “provas judiciais”[Barreiros, 1980, citando Zenha, Francisco Salgado (1968, p.37), Notas sobre a Instrução Criminal, Braga]. 58 Apesar da má memória - em especial para os republicanos - deixada por este juízo, Fonseca (1924), que atribui aautoria da reforma de 1893 ao Juiz Veiga, tece-lhe alguns elogios: “ […] magistrado distinto e certamente o juiz de ins-

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Mais tarde, a nova conjuntura política – subsequente ao assassinato do Rei D. Car-los e do seu filho Luís Filipe em 1908 – não tinha também grande simpatia pela PC,na medida em que a sua actuação durante a ditadura franquista granjeou-lhe fortescríticas por parte dos republicanos, sendo acusada de estar ao serviço do poder cessante(Alves & Valente, 2006).

3. A investigação criminal na Primeira República

Derrubado o regime monárquico e implantada a República em 5 de Outubro de191059, o sistema policial sofreria alterações de vulto. O Corpo de PC de Lisboa foidissolvido no dia 6 de Outubro, mas no dia 9 renasceria, sob a nova designação: Po-lícia Cívica de Lisboa60. Um dia depois, por decreto de 10 de Outubro de 1910, continuaria o desmantela-mento do sistema monárquico61 ao revogarem-se “todos os diplomas que instituíram e

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trução criminal mais competente que houve no nosso país, cônscio de que a reorganização da polícia de investigação se im-punha como uma necessidade indeclinável, visto as disposições então em vigor serem deficientes e incompletas, não se harmo-nizando o seu critério demasiadamente acanhado e centralizado com as necessidades sociais da época […]”. Não obstanteesta característica visionária, aquele autor observou também que o Juízo de Instrução Criminal se tinha tornado par-ticularmente odioso, especialmente por ter tido a faculdade de deportar diversas categorias de delinquentes por tempoindeterminado.59 Mais precisamente às 11 horas da manhã, segundo o Suplemento ao DG n.º 222, de 5 de Outubro de 1910.60 A Polícia Cívica ficava circunscrita apenas a algumas cidades e, “no plano sociológico, vê-se numa conjuntura poucofavorável, uma vez que o regime republicano pretendia uma força de índole militar, que lhe garantisse a defesa e consoli-dação do regime republicano, o que – após ter tomado o poder – rapidamente desiludiu os entusiastas” – Cf. Alves & Va-lente (2006). Esta “nova” Polícia Cívica seria composta pelos elementos sobreviventes ao saneamento dos quadros da“antiga” PC e por novo pessoal, proveniente dos batalhões de voluntários republicanos, a quem, no período convul-sivo da revolução, havia sido confiada a segurança da cidade – Cf. Clemente (1998, p.86). Note-se que a nova de-nominação de “Cívica” aplica-se, inicialmente, só à Polícia de Lisboa, alargando-se, progressivamente, a outras cida-des do país. Atente-se ainda que a polícia, nos documentos oficiais (DG) até Outubro de 1910 (período monárquico)só é denominada de “Polícia Civil” (e nunca de “Cívica”, denominação esta de cariz republicano, que seria popula-rizada). Por fim, cumpre ainda referir que a designação de “Polícia Civil” ainda subsiste em alguns corpos policiaisde algumas cidades do país até aos inícios da década de 20 do séc. XX (ex.: Portaria 2616 e Decreto 7606, de 1921,sobre a “Polícia Civil” do Porto”) e nas colónias ultramarinas até à década de 50. Indiciando um uso indiferenciadodas duas designações temos ainda o caso do Decreto n.º 1109 (de 27 de Novembro de 1914), reorganizando o “corpode polícia cívica de Leiria”, que sofreria a seguinte rectificação (no DG de 10 de Dezembro de 1914): “Rectificaçãoao decreto n.º 1109, que reorganizou o corpo de PC do distrito de Leiria”).61 Ainda sob o impulso revolucionário, por Decreto de 12 de Outubro de 1910, criava-se a Guarda Republicana, quesubstituiria, provisoriamente, a PC nas cidades de Lisboa e Porto. Esta Guarda Republicana substituiu também a GuardaMunicipal de Lisboa e Porto e, um ano mais tarde, viria a ser denominada de Guarda Nacional Republicana (Decretode 3 de Maio de 1911). Como o próprio nome indica, esta nova força policial passava a ter um âmbito nacional e des-tinava-se a velar pela segurança pública e manutenção da ordem. O seu diploma de criação destaca o papel do alarga-mento do policiamento - até aí quase um exclusivo dos centros urbanos - à área rural (campos e povoações rurais).Tal como as instituições policiais, os próprios ministérios alterariam os seus nomes. O Ministério do Reino passaria a de- signar-se por Ministério do Interior, que continuaria com alçada sobre os assuntos de polícia – Cf. Clemente (1998, p. 86).

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deram competência e atribuições ao chamado «Juízo de Instrução Criminal», o qual ficaextinto para sempre”62.A instabilidade sentida pelo poder político republicano face à Polícia Cívica reflectiu-se,entre outros aspectos, na selecção dos seus novos elementos bem como no afastamentode outros. Nesta polícia entra-se num período de alguma confusão, com ausência deestatuto legal, tendo sido repristinado o diploma de 1876 e confiando-se no “bomsenso e ilustrado arbítrio dos seus chefes” (Pereira & Patrício, 2010), enquanto se aguar-dava o relatório da comissão nomeada a 17 de Outubro de 1910 para “estudar e pro-por ao governo a reorganização do antigo corpo de polícia civil que passará a chamar-sePolícia Cívica de Lisboa”63.Quanto à direcção da polícia de investigação criminal (até aí a cargo do juiz de ins-trução), o Decreto de 10 de Outubro de 1910 nada determinou, “ficou, portanto, essapolícia a ser directamente dirigida pelo comandante da polícia cívica, oficial do exército”.Mas em breve se reconheceu “que os complexos e difíceis serviços daquela investigação po-licial não podiam continuar a ser dirigidos por essa autoridade, desconhecedora, por com-pleto, do que hoje são os interessantes e complicados trabalhos de polícia de investigação,vendo-se, a cada passo, cercada de enormes dificuldades e a quem, finalmente, faltava acompetência profissional e legal para praticar actos de processo criminal” (Macieira, 1913).Não podendo, com efeito, manter-se esta situação, o Governo Provisório da Repúblicapublicou, em 27 de Maio de 1911, um decreto criando no comando da Polícia Cí-vica de Lisboa o lugar de “Chefe da Repartição de investigação criminal”64, preenchidopor um bacharel em direito65, de nomeação governamental66.

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Enquanto não fossem remodelados os serviços judiciais, seriam mantidos os tribunais de 1.ª instância de Lisboa e Portoe para as funções criminais de Lisboa, passariam a existir dois Juízes de Investigação Criminal, funcionando o primeiropara crimes, delitos e contravenções ocorridas nas áreas cometidas. Sobre o desmantelamento pela Nova Situação dasinstituições da Antiga Situação e sobre como esse desmantelamento acaba, frequentemente, por ficar a meio cami-nho, vide Barreiros (1982).62 Publicado no DG n.º 14, de 21 de Outubro de 1910. Este diploma revogaria, nomeadamente, o Decreto de 28de Agosto de 1893, a Lei de 3 de Abril de 1896, o Decreto de 20 de Janeiro de 1898 e o Decreto de 19 de Dezem-bro de 1902. “Abolimos o juízo de instrução criminal por ser atentatório das atribuições do Poder Judicial», afirmaria oPresidente do Governo Provisório na Assembleia Nacional Constituinte, no começo dos seus trabalhos.63 Despacho de 17 de Outubro de 1910, publicado no DG, a 18 de Outubro, de António José de Almeida - comoministro do Interior - sendo nomeado para presidir ao grupo de trabalho o major de artilharia António Carlos da Sil-veira. Essa reorganização iniciou-se com a alteração regulamentar da Polícia de Lisboa, somente, por decreto de 27de Maio de 1911, dado que a reorganização completa da instituição policial, a nível nacional, carecia ”de demoradoestudo e larga discussão, e não pode ser resolvido sem uma grande cópia de esclarecimentos”. Estas alterações incidiam so-bre o Regulamento de 4 de Agosto de 1898 e diziam respeito, em especial, às condições de admissão de pessoal paraa Polícia Cívica de Lisboa, reformas, instrução e vencimentos.64 Dizia-se, mais tarde, no preâmbulo da Portaria 1015, de 14 de Julho de 1917 que se evitou o uso da expressão “di-rector”, não querendo “dar aos serviços desta polícia uma amplitude e autonomia que importassem o restabelecimento doextinto juízo de instrução criminal”. No entanto, quer na linguagem corrente quer mesmo normativa era usual utili-zar a designação de “director”.

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No entanto, a direcção desta repartição, entretanto confiada a um juiz, entraria mui-tas vezes em conflito com o comandante da Polícia Cívica. Este comandante, que nãoprescindia de se ingerir nos assuntos da polícia de investigação, criando assim muitosproblemas no relacionamento hierárquico, estaria na origem da demissão do então di-rector/chefe da repartição da polícia de investigação de Lisboa pelo ministro do Inte-rior que o acusava de incompetência.

3.1. A interpelação no Senado a propósito da demissão do directorda polícia de investigação criminal de LisboaUm bom retrato desta época encontra-se na interpelação do senador António Ma-cieira67 ao ministro do Interior, Duarte Leite, na sessão do Senado de 29 de Novem-bro de 1912, sobre a “exoneração violenta” do Sr. Mário Calisto, director (ou melhor)Chefe da Repartição da polícia de investigação criminal de Lisboa68. A qual permite sur-preender que algumas questões, malgrado os diferentes contextos políticos e jurídicos,se repetem ao longo da História, mesmo da mais recente.Na verdade, duas ideias sobressaem deste debate parlamentar: a generalizada repulsapor um poder judicial todo-poderoso, fazendo lembrar a criticada “república de juí-zes” de tempos mais recentes e a autonomia da “polícia/investigação criminal”, quesem prejuízo da dependência hierárquica em relação ao poder político, dele deve man-ter a imprescindível distância, como garantia da sua independência.Comportando dois aspectos, esta interpelação estava relacionada, primeiro, com a or-ganização e competência da polícia de Lisboa – com o senador a acusar o ministro detentar restaurar o antigo Juízo de Instrução Criminal - e, segundo, com as liberdadesindividuais e garantias dos funcionários – acusando o ministro de permitir que o

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65 DG n.º 124, de 29 de Maio de 1911. A este “Chefe” competia “dirigir os serviços de investigação policial, da prevençãodo crime e da identificação de delinquentes e criminosos, mandando lavrar auto das diligências efectuadas. Estes autos te-rão fé em juízo até prova em contrário”.66 Meses mais tarde, em 24 de Julho de 1912, reforçando os meios da polícia de investigação criminal, é “criado o lu-gar de ajudante do director da polícia de investigação criminal, junto do comando da polícia cívica de Lisboa, que será de-sempenhado por um bacharel formado em direito, de nomeação do Governo. O ajudante terá as mesmas atribuições que odirector, nos termos do decreto com força de lei de 27 de Maio de 1911, serve sob sua direcção e substitui-lo-há nos seus im-pedimentos. […] Os lugares de director da polícia de investigação criminal e do seu adjunto, quando desempenhados emcomissão por magistrados judiciais, ou do Ministério Público, serão considerados, para todos os efeitos, como de serviço efec-tivo na magistratura a que pertencem […]” – DG n.º 174, de 26 de Julho de 1912.67 Adjunto do Procurador-Geral da República durante o Governo Provisório (anterior às Constituintes de 1911).Ministro da Justiça de Novembro de 1911 a Junho de 1912. Senador em Novembro de 1912.68 Caso muito falado na imprensa da época, daria azo a uma brochura de 62 páginas com a transcrição da referidasessão, publicada pela Imprensa Nacional em 1913, onde, além de perpetuar no papel o caloroso debate no Senado,se analisava “o que é a polícia” e o caminho da mesma desde meados do séc. XIX até aos primeiros anos da Repú-blica. Disponível, também, em: http://debates.parlamento.pt/ .

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comandante da Polícia Cívica se intrometesse na actividade do juiz, director da polí-cia de investigação criminal.De forma a evidenciar a difícil posição - em termos de liberdades individuais e ga-rantias - em que se colocou o director da polícia de investigação criminal (ou seja, nadependência do poder político), o senador António Macieira fazendo uma retros-pectiva desde os tempos da criação da Polícia Civil69, recorda que após 1910 ficou apolícia de investigação criminal a ser directamente dirigida pelo comandante da Po-lícia Cívica, oficial do exército, até Julho de 1911, data em que se criou, no comandoda Polícia Cívica de Lisboa, o lugar de “Chefe da repartição de investigação criminal”70.Posteriormente, segundo o senador, a Lei de 27 de Julho de 1912 veio clarificar queo director da investigação criminal seria um jurisperito, com atribuições judiciais, au-tónomo e de modo nenhum “dependente absolutamente do Ministro do Interior”, massim “um funcionário às ordens do Ministério do Interior”, porque, logicamente, a “le-gislação republicana não podia ir falsear os seus próprios princípios”. Logo, esse funcio-nário não poderia estar numa “dependência absoluta, cega, sob pena de demissão” do co-missário da Polícia Cívica, do governador civil e do ministro do Interior71.Retomando os motivos da intervenção, esclarece sobre a situação em 1912: “Por umaerrada interpretação da lei, que não com más intenções, é evidente, o actual comandante dapolícia [cívica] chamou a si serviços da investigação criminal que não lhe pertencem nem po-dem pertencer e para os quais carece, em absoluto, de competência legal e profissional”72.

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69 Sumariamente, Macieira(1913) invoca a autonomia que a reforma de 1893, aparentemente, pretendia dar às trêsrepartições de polícia, bem como o papel - na hierarquia do funcionalismo - da figura do governador civil (de quemos próprios magistrados, directores da repartição de investigação criminal, dependiam). Ainda em relação à depen-dência em relação ao poder político, Macieira (1913) refere que no Regulamento da polícia judiciária e de investiga-ção, de 19 de Setembro de 1902 “já se fala abertamente [sem esconder os reais intentos], dizendo-se que o juiz de ins-trução criminal seria um magistrado de comissão, de plena confiança do governo, e nomeado por este”, submetendo, emúltima análise, todo este poder ao Governo. Recordando esses tempos de opressão violenta e as suas lutas republica-nas contra esta instituição odiada, Macieira (1913) relembra que “por isso mesmo, ainda pelo Ministro da Justiça e nãopelo Ministério do Interior” foram revogados, em 1910, todos os diplomas que instituíram e deram competência aochamado Juízo de Instrução Criminal. Na interpretação do senador, “a República disse: não mais juiz de instrução cri-minal, não mais poderes discricionários nas mãos duma só pessoa, não mais funcionários do Poder Judicial, simples máquinasnas mãos do Ministro do Interior”.70 Macieira (1913, p.13), via nessa medida – de 1911 - o desejo da República não ter mais “magistrados dependentesdo Ministério do Interior, e sim nomeação, por parte do Governo, dum bacharel formado em direito, que pode ser um ma-gistrado do Poder Judicial, ou um simples advogado, a quem se permite que faça o lugar de chefe duma repartição, diri-gindo os serviços de investigação com inteira independência, com inteira autonomia, sobretudo no que diz respeito às suasatribuições técnicas e profissionais”, mas nunca com os poderes do antigo Juiz de Instrução Criminal.71 Efectivamente, esse “funcionário” que, “à face da lei, efectua diligências cujos autos fazem fé em juízo até prova em con-trário” nunca poderia “estar nas mãos do Ministro do Interior ou qualquer daqueles seus dois delegados de confiança”, poisestes, assim, seriam “uns verdadeiros déspotas, uns verdadeiros potentados que, dum dia para o outro, poderiam dispor àvontade da liberdade de todos nós, visto como não lhes seria difícil encontrar quem se prestasse a exercer um tal lugar, coma missão, preestabelecida, de praticar as maiores arbitrariedades, as maiores tropelias à lei e à verdade […] até que qual-quer cidadão que se visse envolvido em tão apertadas malhas, pudesse fazer a prova em contrário! Seria simplesmente mons-truoso!” (Macieira, 1913, p.15).

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Afirmando que esta situação não poderia continuar da forma em que estava, “porque éilegal tudo o que se está fazendo”, sugere que o ministro do Interior “faça ou encarreguealguém de fazer uma reforma dos serviços da polícia, mas alguém que se não limite a tra-duzir uma lei francesa, como, porventura, se anda a fazer…” (Macieira, 1913, p.27).Concluindo, sublinhava ainda que um bacharel formado em direito desempenhandoo cargo de chefe da investigação criminal sem ser em comissão73 estaria totalmentedesprotegido, carecendo sempre da confiança do ministro, o que contrariava as in-tenções republicanas. E rematava: “O que demonstrei foi que o Governo Provisório e a leirepublicana nunca tiveram por fim tornar dependente a investigação do comandante daPolícia Cívica ou do Ministério do Interior” (Macieira, 1913, p.54) – sendo, portanto,indevida a demissão aplicada ao Sr. Mário Calisto.Argumentação que, naturalmente, o ministro rebateu, frisando que sem prescindirde dever ser o governo a nomear o director da investigação criminal, era defensor dasua autonomia, não se imiscuindo na condução das investigações concretas, acabandopor dizer que “Exonerei o Sr. Mário Calisto, porque, reconhecendo em S. Ex.a muitacompetência para quaisquer outros serviços, verifiquei por igual que não dispunha dos in-dispensáveis predicados que se exigem a um bom investigador policial”.

3.2. A Primeira Guerra Mundial e Sidónio PaisApesar da apresentação de vários projectos de lei (Lapa, 1954) na Câmara dos De-putados nos anos seguintes à implantação da República, visando a reestruturação dosserviços policiais e assegurar “uma unidade que a tornasse profícua, e uma coordenação,porque a polícia se encontrava toda desconexa”, a polícia, em 1914, na verdade, aindase regulamentava pela Lei de 189874.

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72 O senador enumerou então vários casos, quase anedóticos, de ingerência do comissário da Polícia Cívica nos as-suntos da polícia de investigação. Além das interferências com a actividade da investigação criminal, Macieira (1913)refere que, também por esta altura, o comandante da Polícia Cívica deu ordens para se por de parte o Instituto de Me-dicina Legal (IML) passando todos os exames a ser feitos num “posto antropométrico de identificação criminal” entãoexistente na polícia. Este posto, que deveria servir somente para a identificação de criminosos, não podia ocupar-sede exames directos, segundo a legislação em vigor. Contudo, por ordem do comandante, o posto destacava “guardasde polícia para procederem aos complexos e difíceis exames de polícia científica” que “nem o próprio médico [do posto] temcompetência legal, para intervir, como perito, em tais exames” (Macieira, 1913, p.26).73 Tal como acontecia quando o cargo era desempenhado pelos magistrados judiciais ou do MP, a quem seria consi-derado, “para todos os efeitos, como de serviço efectivo na magistratura a que pertencerem os nomeados”, dando-lhes algumaindependência.74 Confusão também nas nomenclaturas. Uma lei de 27 de Julho de 1912, aumentava o quadro do pessoal da PJ doPorto. Nos mesmos termos se assinalava no Boletim do MJ do 1º trimestre de 1916, referente a Dezembro de 1915,que um delegado do procurador da República exercia as funções de inspector da PJ do Porto. Em 1915 o Congressodecretava autorização ao governo para remodelar todos os serviços da polícia, na dependência do Ministério do In-terior (MI), por ela se encontrar na “mais completa desorganização”, contribuindo para isso, o permanente alvoroçoem que andava a ordem pública – Cf. Lapa (1954).

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Porém, durante a I Guerra Mundial, o aumento do custo de vida e o consequenteagravamento da situação sócio-económica deu origem a uma nova realidade social degrande contestação, instabilidade e conflitualidade social – que era necessário travar- pelo que o poder político se viu obrigado a revalorizar a Polícia Cívica. Nesta fase,musculando-se a polícia, iniciou-se um processo de aproximação às forças militares(Alves & Valente, 2006)75.A 25 de Abril de 1917, num clima político difícil, de carestia de bens essenciais, cons-titui-se o 3.º Governo de Afonso Costa. Em Maio desse ano são frequentes as greves,motins e assaltos a armazéns, reflexo da escassez e racionamento de géneros. A cres-cente contestação social e consequente repressão resultariam em tumultos, com de-zenas de vítimas, culminando na declaração do estado de sítio em Lisboa a 12 de Ju-lho. Dois dias depois, a Portaria n.º 1015 declara que “a parte dos serviços policiais deLisboa respeitante à investigação criminal está sob a dependência administrativa e disci-plinar do comandante da polícia cívica”76. No preâmbulo deste diploma, clarifica-seque, desde 1910, nunca a legislação republicana quis dar aos serviços da polícia de in-vestigação criminal, ao contrário do que poderia parecer, “uma amplitude e autonomiaque importassem o restabelecimento do extinto juízo de instrução criminal” e que, quandose utilizou a expressão “director”, isso não implicava que ele fosse “realmente autó-nomo” em relação ao comando da Polícia Cívica. Esclarecia-se, portanto, que o “pes-soal da polícia de investigação […] era pessoal da polícia cívica de Lisboa”, de modo que,“para a boa ordem dos serviços policiais de Lisboa”, se resolvessem “as dúvidas que há jábastante tempo têm surgido entre os mais graduados funcionários a cujo cargo estão osmesmos serviços”. Aclarava-se assim que o comandante da Polícia Cívica era o superiorhierárquico de todos estes funcionários.A 5 de Dezembro de 1917 dá-se o golpe de Estado do major Sidónio Pais e logo em20 de Dezembro, o Decreto n.º 3673, em virtude da “confusão que reinava nos servi-ços da investigação criminal”77, determinou que a direcção da polícia de investigação

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75 Paralelamente, quanto à polícia de investigação criminal de Lisboa, em Fevereiro de 1917, estipula-se que os seusagentes serão providos por concurso de provas públicas a que somente poderão concorrer os guardas da Polícia Cí-vica de Lisboa que tenham mais de um ano de serviço como auxiliares de investigação e os cabos do serviço de segu-rança. O júri seria composto pelo pessoal superior da polícia de investigação criminal e a nomeação dos candidatosseria feita pelo governador civil, segundo a ordem de classificação - Decreto n.º 2981, de 8 de Fevereiro de 1917, pu-blicado no mesmo dia, no DG n.º 22.76 Portaria n.º 1015, de 14 de Julho de 1917, publicada no mesmo dia, no DG n.º 115.77 “[…] atendendo à necessidade que há de modificar o quadro de pessoal da polícia de investigação de Lisboa, pela insu-ficiência manifesta do número de agentes em serviço (30), que levou os governos transactos a utilizarem-se de indivíduossem idoneidade bastante para o desempenho das delicadas funções que exercem esses agentes; atendendo à necessidade quehá de evitar que se reincida nos passados erros que tem trazido em sobressalto constante a população de Lisboa, laboriosa esofredora, mercê de um bando de desvairados arruaceiros que acobertados com a autoridade civil e investidos em funções depolícia irregular, perseguiam, vexavam não só os adversários políticos da situação que estava, mas também cidadãos que nãose imiscuíam nas lutas partidárias; atendendo à necessidade que há de colocar à frente da polícia de investigação, não só

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poderia ser exercida por um oficial do exército, tendo como adjunto um bacharel for-mado em direito e que, no seio da polícia de investigação, seria criado um corpo depolícia preventiva, “com um chefe e quarenta agentes que serão nomeados pelo director dapolícia de investigação”.Porém, apenas três meses depois, a 16 de Março de 1918, pelo Decreto n.º 3940, reconhecendo-se que a “experiência” tinha “demonstrado os inconvenientes” da novaorganização e que a polícia de investigação não podia estar “assim confundida com apolícia preventiva, dado o carácter contencioso daquela”, decretava-se de novo a sua se-paração78. O Decreto n.º 4058, de 5 de Abril de 1918, veio discriminar as competências de cadaum desses corpos policiais79, reassumindo a PIC, grosso modo, as competências an-teriores. Essas polícias constituíam-se como “corpos de polícia autónomos, com inteira inde-pendência quanto aos demais serviços policiais, sem prejuízo porém das relações de coor-denação que devem existir entre os mesmos serviços”. Não obstante dependerem direc-tamente do ministro do Interior, o director da PIC e o seu ajudante veriam reforçadasas suas garantias de independência ao não poderem “ser demitidos dos seus respectivoscargos senão nos termos dos regulamentos disciplinares dos funcionários civis” (Garção,1926).

3.2.1. A criação da DGSP e a grande reforma policial de 1918

No entanto, no mesmo mês de Abril de 1918, ainda durante o consulado de SidónioPais, é publicada uma reforma dos serviços policiais, através do Decreto n.º 4.166, de27 de Abril80, subordinando todos os serviços policiais e de segurança a nível nacio-nal “a uma direcção autónoma que funcionará no Ministério do Interior e que será de-nominada Direcção-Geral de Segurança Pública81” (DGSP).

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quem saiba orientar o trabalho dos agentes mas também quem lhes incuta sentimentos de disciplina e ordem, que a insti-tuição policial mais que a nenhuma outra cumpre observar […]” - Preâmbulo do Decreto n.º 3673, publicado no DGde 21 de Dezembro de 1917.78 Decreto n.º 3940, publicado no DG de 19.03.1918. Além dos inconvenientes de se atribuir à mesma entidade asfunções de investigação do crime comum e do crime político, sentia-se também a falta da direcção de um jurisperitoà frente da instituição, pelo que o mesmo diploma estabelece que o “director da polícia de investigação será diplomadoem direito”.79 Publicado no DG n.º 73 de 10 de Abril de 1918.80 Decreto n.º 4.166, de 27 de Abril, publicado no DG n.º 91, de 29 de Abril de 1918.81 À frente desta Direcção, superintendendo todos os serviços da segurança pública e recebendo directamente ordense instruções do ministro do Interior, estará o Director-Geral da Segurança Pública que “exercerá o seu cargo por inter-médio das seguintes repartições: Repartição do Expediente; Repartição da Polícia de Segurança; Repartição da Polícia de In-vestigação; Repartição da Polícia Administrativa; Repartição da Polícia Preventiva (confiança do governo); Repartição daPolícia de Emigração; Repartição da Polícia Municipal”.

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O director da polícia de investigação criminal82 contava agora, para o exercício das suascompetências83, com três inspectores (como “auxiliares”), três adjuntos, seis chefes e120 agentes a nível nacional, distribuídos somente pelas cidades de Lisboa, Porto,Coimbra e Braga84. Apesar deste diploma também autonomizar organicamente a Polícia de Investigaçãocomo “repartição” (a par das outras seis), na realidade, Sidónio Pais, muitas vezesapontado como o “pai” da PIC85 (como antecessora da PJ), ainda a mantém incluídana Polícia Cívica e submetida à superintendência da DGSP, então criada. Com efeito,

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82 Apesar de “imediatamente subordinado ao director geral da segurança pública”, o director da polícia de investigaçãocriminal, teria agora “jurisdição em todo o continente da república e ilhas adjacentes” (art.º 28.º) num claro progressoem relação às disposições organizativas de reformas anteriores. Reforçando a sua independência, adiante, no art.º29.º, refere-se que o director “será nomeado livremente pelo Governo, devendo recair num magistrado judicial ou do Mi-nistério Público, ou bacharel formado em direito que tenha exercido as funções de advogado ou outras funções judiciais pormais de cinco anos […]”. Ou seja, ao não se estabelecerem prazos para a duração dessa nomeação, nem nenhum re-gime em comissão, aparentemente este cargo era “vitalício”. Com efeito, Campos (1924), advogado e inspector daPIC de Coimbra, analisava a revogação desta disposição, em 1922, como um “gravíssimo erro”, ao dar a possibilidadeaos “interesses políticos” de afastarem do cargo um director.83 De acordo com o disposto no artigo 33.º, competia à “polícia de investigação criminal: 1.º Receber todas as queixas,denúncias e participações que lhe fossem feitas de delitos e contravenções; 2.º Proceder a todas as investigações e diligênciasnecessárias para o descobrimento e verificação de todos os crimes, delitos e contravenções de que por qualquer forma tiverconhecimento, interrogando os culpados, inquirindo testemunhas, procedendo a exames, fazendo apreensões, nos termos dalei, e praticando todos os demais actos e diligências necessários para a instrução dos processos; 3.º Prender os culpados, tantoem flagrante delito como nos casos em que se não exige a prévia formação de culpa, e ainda aqueles contra quem se lhe apre-sentar mandados assinados pela autoridade competente; 4.º Vigiar os indivíduos suspeitos e interrogar aqueles que inspiramdesconfiança; 5.º Vigiar os condenados a que for concedida a liberdade provisória […]. 6.º Vigiar os loucos e os menoresconsiderados nos termos dos artigos 47.º e 48.º do Código Penal; 7.º Prestar o auxílio que as autoridades públicas lhe re-quisitarem para desempenho das suas funções; 8.º Desempenhar cumulativamente com a polícia de segurança as funções quea esta são atribuídas pelo artigo 20.ª [providências urgentes de ordem, segurança e saúde pública e outras medidas au-xiliares]”. Por fim, no art.º 34.º afirma-se que “os autos levantados e as investigações feitas pela polícia de investigaçãocriminal, bem como os trabalhos do posto antropométrico, têm fé em juízo e valem por corpo de delito”.84 Nas demais circunscrições policiais “a polícia de investigação fica a cargo dos respectivos comissários de polícia, que nomea-rão para o desempenho destes serviços os cabos e guardas da polícia de segurança que, pelas suas habilitações e aptidões, melhorpossam desempenhar as suas funções” (art.°s 30.º e 31.º do Decreto n.º 4.166, de 27 de Abril). Quanto à forma de nomea-ção, os “inspectores e os adjuntos serão nomeados, por proposta do director, de entre os indivíduos que possuam formatura em di-reito”, os chefes serão nomeados pelo director de “entre os chefes de esquadra que mais conhecimento tenham mostrado de ser-viços de investigação criminal” (no Porto, Coimbra e Braga essas nomeações seriam feitas sob proposta dos inspectoresrespectivos). Os agentes serão nomeados também pelo director, provisoriamente, ficando a sua nomeação definitiva de-pendente do respectivo concurso (sendo motivo de preferência, serem cabos e guardas com mais de três anos de serviço eo conhecimento das línguas francesa e inglesa - art.º 30.º do mesmo diploma). Além do recrutamento ser efectuado en-tre os agentes da Polícia Cívica, o director da polícia de investigação criminal podia ainda requisitar ao comissário geralos guardas da polícia de segurança que forem indispensáveis nas inspecções de polícia como auxiliares da polícia de in-vestigação e ainda para os serviços extraordinários (art.º 35.º, n.º 13.º, do Decreto n.º 4.166, de 27 de Abril). Nota aindapara o pessoal das secretarias da polícia de investigação, recrutado entre os agentes da respectiva polícia que possuam me-lhores habilitações literárias (art.º 32.º). Por fim - noutro claro progresso em relação ao Regulamento da Polícia Cívica de1876 - estabelecia-se que “as nomeações dos funcionários policiais, com excepção da polícia preventiva, são de carácter perma-nente, e só dos seus cargos poderão ser afastados por efeito de promoção ou motivo disciplinar” (art.º 5.º do mesmo diploma).85 Note-se que a utilização da expressão “polícia de investigação criminal” é muito anterior a 1918 (cf., por ex., n.º 2 doart.º 3.º do Decreto de 20-01-1898; Decreto de 22-12-1911; Lei de 26-07-1912; Decreto n.º 2981, de 08-02-1917).Mesmo como “repartição” (e semelhante à situação de 1918) ela surge já em 1893, na forma/designação de “Repartiçãode Investigação Judiciária”.

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apesar do sumário da lei e os primeiros artigos omitirem qualquer referência à polí-cia cívica, entre os art.ºs 94.º e 152.º (disposições comuns a todas as repartições depolícia – ex.: montepio da polícia; cooperativa; fundo de pensões; emolumentos evencimentos) são constantes as referências à Polícia Cívica como o corpo onde todasas repartições se inseriam. Mesmo quanto à “Repartição da Polícia de Investigação”,ela surge por vezes como “Repartição de…”, outras vezes como “polícia de investiga-ção criminal” e ainda como “judiciária” (art.º 131.º).Esta reforma de Sidónio Pais reservava ainda uma atenção especial para a polícia téc-nica, aperfeiçoando os serviços criados oficialmente na polícia de investigação crimi-nal em 189886. Apesar das inovações desta reforma, os anos seguintes continuaram a ser de reestru-turações, reorganizações e dissoluções constantes, um pouco à semelhança dos go-vernos do final da Monarquia e dos primeiros anos da República87.Assim, no início de 1919, atendendo a que contra as polícias de segurança e preven-tiva se tinham formulado “persistentes reclamações” e que urgia “remediar de pronto omal-estar de que visivelmente sofrem os referidos serviços policiais, de forma que, por umarápida selecção entre os elementos componentes desses organismos, se possam congraçar aslegitimas exigências da tranquilidade pública com o mais severo respeito e observância dadisciplina”, dissolviam-se as corporações das polícias de segurança e preventiva, “semprejuízo das responsabilidades que, por força dos inquéritos já abertos ou que venham aabrir-se, porventura possam caber aos indivíduos que as compunham, a fim de serem ime-diatamente reorganizadas nos termos do decreto n.º 4.166, de 27 de Abril de 1918”88.

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86 Assim, no art.º 38.º estabelece-se que “junto das repartições de polícia cívica de Lisboa e na dependência da polícia deinvestigação criminal haverá os necessários gabinetes para a execução, expediente e registo dos serviços de cadastro e identi-ficação foto-antropométrica e dactiloscópica, pelos quais se prestarão às diferentes secções de polícia e aos tribunais todas asinformações, boletins fichas e mais elementos necessários para a descoberta dos criminosos e para a vigilância dos indivíduossuspeitos e recidivistas. Enquanto não for publicado o regulamento dos serviços de cadastro policial e de identificação, ob-servar-se-á, na parte aplicável, o disposto no regulamento de 12 de Abril de 1894, e proceder-se-á à identificação pelos maismodernos processos geralmente adoptados. Os serviços de identificação ficarão a cargo de um médico que do assunto tenhaconhecimentos especiais […]”. Flores (1994. p.53-54), refere que, em 1908, Rudolfo Xavier da Silva (mais tarde Pro-fessor do Curso Superior de Medicina Legal, Director da 1.ª Secção do Instituto de Criminologia de Lisboa, MédicoAntropologista do IML de Lisboa e Director do Boletim do Instituto de Criminologia) conseguiu a primeira identi-ficação de um cadáver através das impressões digitais. Num país em que ”as morgues estavam repletas de cadáveres ape-nas identificados pela alcunha”, esta descoberta terá tido um impacte tão grande que a dactiloscopia se tornaria numdos exames possíveis para a finalização do curso de medicina. 87 Campos (1924), afirmava: “Desde a proclamação da República que se buzina que é indispensável reorganizar os serviçospoliciais de modo a que eles sejam de utilidade geral. Nomeiam-se comissões e se para essas comissões há sempre o cuidadode escolher homens de nome retumbante na política e na jurisprudência, tem havido sempre o esquecimento de nomear téc-nicos, que são os únicos, pelos seus estudos, conhecimentos e prática, capazes de fazerem obra útil”. .88 Decreto 5171, de 22 de Fevereiro de 1919. Semanas depois, a 7 de Abril, era criada a Polícia de Segurança do Es-tado (secreta).

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Em Março do mesmo ano, todos os serviços policiais, com excepção dos da Polícia deEmigração, voltam à dependência dos governos civis89. Segundo o preâmbulo do di-ploma, a “experiência” tinha demonstrado os inconvenientes resultantes da polícia es-tar directamente subordinada ao Ministério do Interior (MI) nos diversos distritos,como determinava o decreto de Sidónio Pais, publicado um ano antes. Desta forma,as autoridades policiais passavam a corresponder-se com a DGSP por intermédio dosrespectivos Governos Civis, que as superintendiam90.Nestes anos conturbados, o ambiente de conflitualidade social91 fez com que a Polí-cia Cívica não ficasse unicamente adstrita à manutenção da ordem pública e, em1920, chegou a ser utilizada como força anti-motim, paralelamente a uma militari-zação dos seus quadros superiores (Alves & Valente, 2006).Comprovando a falência dos serviços a vários níveis (organizativos, disciplinares e atémorais), em 1921 foi iniciada uma sindicância aos serviços da polícia de investigaçãocriminal92.

3.3. As reformas de 1922Durante a presidência de António José de Almeida, através do Decreto n.º 8.435, de21 de Outubro de 1922, reorganizaram-se os serviços de polícia, reafirmando-se oseu papel de natureza essencialmente civil, dividindo em “quatro grandes secções” os ser-viços da Polícia Cívica de Lisboa e Porto: Polícia de segurança pública; Polícia de in-vestigação criminal; Polícia administrativa; Polícia preventiva e de segurança do estado93.

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89 Decreto n.º 5291, de 22 de Março de 1919, publicado no DG n.º 60.90 Segundo Campos (1924) com a publicação deste decreto, a reforma de Sidónio Pais “recebia a primeira machadada[…] que de novo entregou a polícia às contingências políticas!”. Jesus (1996) é da opinião que a reforma de SidónioPais, prevista no Decreto n.º 4166, nunca foi implementada em toda a sua extensão, em especial na parte em que seprevia a criação das polícias e comissários de polícia municipais, omissos na reforma de 1922.91 Cite-se, como exemplo, o episódio da “noite sangrenta”, em 1921, quando é assassinado, entre outros, Machadodos Santos, considerado pela imprensa “pai da República” juntamente com António Granjo, que por duas vezes foi1ºMinistro. A 10 de Maio de 1919 (Decreto n.º 5574, publicado no DG n.º 98) em virtude da “afluência dos servi-ços”, é criado mais um lugar de chefe de polícia de investigação criminal e de cinco agentes em Lisboa. O mesmo di-ploma estabelece também que os chefes da polícia de investigação criminal serão nomeados de entre os agentes damesma polícia (esta disposição viria a ser alterada quatro anos depois - pelo art.º 22.º do Decreto n.º 8.435, de 21de Outubro de 1922 - alargando o âmbito de recrutamento a outras polícias, motivando um grande descontentamentono corpo de investigação criminal). Como apontamento curioso, refira-se que os vencimentos nesta época (Decreton.º 5574, de 10 de Maio de 1919 e Lei n.º 886, de 18 de Setembro de 1919), dentro da própria polícia de investi-gação criminal, eram diferenciados: um chefe em Lisboa recebia 2$50 por dia, no Porto 2$00 e 1$50 em Coimbra eBraga. Quanto aos agentes, em Lisboa recebiam 1$60 diários, no Porto 1$50 e 1$20 em Coimbra e Braga.92 Devido à falta de verbas disponíveis para pagamento de ajudas de custo, os quatro ou cinco sindicantes (e secretá-rios) iam sucessivamente desistindo dos seus intentos – Cf. Fonseca (1924) e também Garção (1926).93 À Polícia de segurança pública competia “a manutenção da ordem na via e lugares públicos, enquanto a sua alteraçãonão for de carácter tão grave que exija a intervenção da força armada”, à PIC “a investigação criminal, como base da ins-trução judiciária e repressão penal, e os serviços de identificação dos delinquentes e criminosos, lavrando das diligências autos

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À frente de cada uma destas “secções” haveria um “chefe de repartição, que será o direc-tor da respectiva polícia”. Todas estas secções da Polícia Cívica continuavam subordi-nadas ao ministro do Interior, por intermédio da DGSP94. Ao contrário da Polícia de segurança pública, à frente da qual, como comissários geraisou adjuntos, permaneciam oficiais superiores do exército, na Polícia de investigaçãocriminal pontificavam juízes95, propostos pelos respectivos governadores civis (Lisboae Porto) e nomeados pelo ministro do Interior, “para servirem durante quatro anos,podendo ser reconduzidos sucessivamente por iguais períodos e serão inamovíveis”96. Em Coimbra e Braga subsistirá a polícia de investigação criminal, mas agora os “sub-inspectores” estariam imediatamente subordinados ao ministro do Interior, que os no-meariam após concurso por provas públicas. Nos restantes distritos do país a investi-gação criminal ficaria a cargo dos respectivos comissários de polícia.Regenerando os serviços, dissolviam-se as secções de polícia de investigação criminal deLisboa e do Porto, conforme existiam desde 1918 (art.º 80.º), para, a seguir, serem res-tabelecidas e reorganizadas segundo as disposições do novo decreto97.

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que farão fé em juízo até prova em contrário”, a Polícia administrativa incumbia-se da “fiscalização do cumprimento dosregulamentos administrativos e sanitários e das posturas municipais” e a Polícia preventiva e de segurança do estado eradestinada “à vigilância dos elementos sociais perniciosos ou suspeitos e ao emprego de diligências tendentes a prevenir e evi-tar os seus malefícios”. Na PIC assegurava-se ainda também as detenções, buscas, apreensões, interrogatórios, inqué-ritos e exames para fins de segurança do Estado (art.º 36.º do Decreto n.º 8435, de 21 de Outubro de 1922), poistinham sido extintos os quadros de “agentes efectivos” da Polícia de Defesa Social (art.º 82.º), mantendo-se apenas os“agentes eventuais”, secretos (art.º 35.º). Esses serviços eram feitos a requisição do comissário ou comissário adjun-tos da Polícia de Segurança do Estado (que, anteriormente, a 4 de Fevereiro de 1922, pelo Decreto n.º 8031, passaraa denominar-se Polícia de Defesa Social).94 Paralelamente, o governador civil do distrito respectivo superintendia os serviços de todas as polícias com o objec-tivo de “manter o espírito de disciplina e ordem entre todos os funcionários da corporação”, bem como uma completa ecabal coordenação entre todos esses serviços - Art.º 61.º do Decreto n.º 8.435, de 21 de Outubro de 1922. Assim,com a excepção das polícias de Lisboa e Porto, que se subordinavam directamente ao Director-Geral de Segurança Pú-blica, as restantes ficaram dependentes do governador civil do distrito respectivo. Note-se ainda o facto de o directorda capital deixar de ser, novamente, o superior hierárquico de todos os funcionários da PIC.95 “A direcção da polícia de investigação criminal será confiada, em Lisboa e no Porto, em comissão, a juízes de direito de2.ª ou 3.ª classe, tendo por adjuntos juízes mais modernos, preferindo-se sempre os magistrados diplomados com o curso su-perior de medicina legal. Tendo prestado bons serviços, continuarão no exercício do seu cargo, embora promovidos à classeou categoria imediata” - art.°s 6.º e 21.º do Decreto n.º 8.435, de 21 de Outubro de 1922.96 Art.º 21.º do Decreto n.º 8.435, de 21 de Outubro de 1922. Substituíam-se assim os bacharéis em direito por ma-gistrados judiciais de carreira, tentando reforçar a sua independência.97 A PIC definia-se agora nestes termos, extraídos do preâmbulo: “A Polícia de Investigação Criminal é um dos ramosmais importantes da administração policial. A esta polícia incumbe assistir permanentemente a toda a vida social, averi-guando dos crimes, dos delinquentes, e das contravenções, com o saber jurídico e uma prudência especiais, pelo que o direc-tor e os respectivos adjuntos da Polícia de Investigação Criminal devem ser técnicos de competência saídos da magistraturajudicial. E a estes magistrados devem ser dadas garantias correspondentes às suas responsabilidades, e devem ter como agen-tes polícias habilitados a cooperar com aqueles magistrados. E porque assim não tem sido, daí as notadas deficiências, entrenós, de tão importante serviço público. A ordem pública depende muito deste ramo policial, e a polícia de segurança comoa polícia administrativa terão dificuldades invencíveis, se não forem auxiliadas por uma boa polícia de investigação crimi-nal. A esta polícia deve competir, como se faz já hoje nas nações mais cultas, o julgamento de certos delitos que podem e de-vem ser reprimidos correccional e sumariamente por via da penalidade da multa”. Como curiosidade, aponte-se que o

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Estabelecia-se assim que “os serviços da polícia de investigação criminal são de protecçãoe garantia dos direitos dos cidadãos, de instrução judiciária e de repressão penal, pelo quese exercitam permanente e continuadamente, estando as suas repartições sempre abertas”98. Porém, pondo em evidência a falta de autonomia que ainda subsistia, estipulava-se,no art.º 22.º, que os seus “chefes” seriam nomeados, pelo governador civil, medianteproposta do director, de entre o pessoal das “secções” da investigação criminal, da se-gurança pública e da administrativa (novamente), com “exemplar comportamento eaptidão comprovada por serviços especiais e boas informações dos seus superiores hierár-quicos”. Os agentes também seriam nomeados, da mesma forma, apenas entre o pes-soal daquelas secções99, em especial “os candidatos que demonstrem conhecimento delínguas estrangeiras, preferindo-se os que tiverem sido empregados de tribunais, de escri-vães de direito, de advogados, de bancos, de caminhos-de-ferro, de empresas de navegação,ou exercido outros mesteres de contacto com o público nas diversas categorias sociais”100. Apesar de se manterem junto da PIC de Lisboa e Porto - “e sob direcção de médico dereconhecida competência” - os postos antropométricos101 (“com os actuais anexos de fo-tografia e serviço de cadastro, e aplicados como laboratórios técnicos”) aos directores da PICde ambas as cidades (ou aos seus adjuntos) era facultada a possibilidade de “requisi-tar ao respectivo Instituto de Medicina Legal exames directos e fotográficos ou quaisquer

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seu director (ou adjuntos) eram “obrigados a comparecer nos locais onde se dê qualquer facto anormal de relativa gravi-dade, para impedirem que se alterem os vestígios do crime e determinarem as providências que pareçam adequadas; a assis-tir, nesses casos, às declarações dos ofendidos e outras pessoas que verosimilmente possam esclarecer a verdade, aos interroga-tórios dos detidos e ao inquérito de testemunhas; e nos demais casos, quando não possam assistir a estes actos, a fazerem leros autos na sua presença e na dos declarantes, detidos ou testemunhas, para que estes o confirmem ou alterem, conforme ascircunstâncias”. A estes directores competia ainda “o julgamento em processos sumários dos réus em flagrante delito, den-tro da área da respectiva cidade, por: jogos de azar, ajuntamentos ilícitos na via pública, assuadas, injúrias e desobediên-cias aos funcionários policiais de serviço em lugares públicos, tiradas de presos aos agentes policiais, uso público de trajes pró-prios de outro sexo, mendicidade, ofensas corporais cometidas em lugar público não tendo produzido doença ouimpossibilidade para o trabalho ou tendo produzido doença ou impossibilidade para o trabalho não superior a três dias,ameaças, ultraje ao pudor, ofensas à moral pública cometidas em lugar público, danos por acidentes na via pública, trans-gressões de leis e regulamentos sobre teatros e espectáculos públicos”. Nestes processos exerceriam as funções de “agente doMinistério Público o adjunto da polícia de investigação mais moderno” - art.º 70.º do Decreto n.º 8.435, de 21 de Ou-tubro de 1922.98 Art.º 20.º do Decreto n.º 8.435, de 21 de Outubro de 1922. Esta “disponibilidade permanente” era outra das ino-vações da lei de 1922.99 Complementarmente, os directores da polícia de investigação de Lisboa e Porto e os subinspectores de Coimbra eBraga, podiam requisitar ao comissário geral “os guardas de polícia de segurança indispensáveis para auxiliar o serviçoda sua secção e ainda para os serviços extraordinários” (art.º 31.º).100 Essa admissão só se tornava efectiva ao fim de dois anos, se as provas dadas em serviço fossem classificadas comoboas e houvesse aproveitamento nos “cursos de tirocínio e aperfeiçoamento”. Estes cursos, de frequência obrigatória,funcionavam nos IML de Lisboa e Porto e eram ministrados por pessoal contratado dos mesmos Institutos, em con-formidade com o n.º 3 do art.º 29.º do Decreto n.º 5.023, de 29 de Novembro de 1918.101 Estes trabalhos do posto antropométrico, bem como os autos levantados e as investigações feitas pela polícia deinvestigação criminal, tinham “fé em juízo” e valiam por “corpo de delito” (art.º 30.º).

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outras diligências do mesmo instituto necessárias à investigação, devendo porém satisfazer --lhe as despesas com o transporte de pessoal e material indispensável”102.De sublinhar, ainda, que por esta altura tinha sido estabelecida também na PIC uma“secção internacional destinada a receber e expedir toda a correspondência relativa a as-suntos de polícia internacional, pedir a captura de indivíduos foragidos, assinalar a pas-sagem ou permanência em território português de indivíduos suspeitos e ainda a fazer apolícia contra os fabricantes de notas falsas” (Fonseca, 1924), graças a um entendimentocom a Comissão Internacional Criminal (antecessora da OIPC-Interpol), com sede emViena de Áustria103.Não obstante todas estas inovações, várias personalidades da área da polícia criticariamacerrimamente esta reforma104. Sumariando, Fonseca (1924) sentenciava: “Enquanto

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102 Art.ºs 24.º e 26.º do Decreto n.º 8.435, de 21 de Outubro de 1922.103 Em 1938, aquando do Anschluss (anexação da Áustria) os arquivos (e a própria sede) da antecessora da OIPC/In-terpol foram transferidos para Berlim. Alegadamente, os arquivos terão sido, mais tarde, retirados (em 1945) pelo exér-cito russo para a URSS – Cf. Comissão Internacional de Polícia Criminal (1953).104 Campos (1924), ditava: “Salvo o devido respeito, pode-se afirmar que o Dec. 8.435 é um amontoado de anomalias”.Analisando o diploma, este inspector da PIC de Coimbra via nele “a pata política pretendendo dominar todos os servi-ços policiais”, exemplificando com o facto de no recrutamento dos chefes da polícia de investigação ser “preferida todaa gente e postos à margem, como inúteis, os únicos que deveriam ser preferidos - os agentes de investigação!... De nada va-lem a estes funcionários os seus trabalhos, as suas canseiras, os perigos a que se expõem, porque em face da lei, nasceram agen-tes e agentes hão-de morrer!...”. Da mesma opinião era o director da PIC de Lisboa (Fonseca, 1924) ao considerar que“esta organização não podia sair mais incompleta, confusa e incompetente”. Lamentando a falta de “escrúpulo” e de “co-nhecimento do métier” do legislador, criticava o facto de, já em 1918, não se ter tido em conta que o director de Lis-boa, chefe supremo da instituição, deveria ser de uma categoria superior, pelo menos, do da segunda maior cidadedo país. Numa crítica ao seu antecessor, adiantava que “tal superintendência não deveria ser simplesmente burocrática,mas essencialmente de carácter técnico, para o que, de resto, o director de Lisboa não tinha competência, simples bacharelformado em Direito, ao qual nem ao menos se exigiam conhecimentos de polícia científica e de criminologia”. Apesar de“mau”, esse laço que “mantinha ainda assim para todos os agrupamentos policiais uma certa solidariedade” viria a ser que-brado agora em 1922, em nome de “uma suposta autonomia a todas essas repartições, deixando-as por outro lado la-mentavelmente subordinadas aos Governadores Civis dos Distritos, quer expressamente, quer, como sucede às de Lisboa ePorto, a pretexto de coordenação e manutenção do espírito de disciplina!”. No mesmo relatório dava ainda contas do seupesar por “até hoje” ninguém ter encarado “com sinceridade o interessante e complexo problema da Investigação Crimi-nal”. Apontando o dedo à política, “interpretada ao sabor de interesses e vaidades, inutilizou sempre as intenções daque-les que, votados a estes serviços apenas por paixão, desejariam levá-los à máxima perfeição e eficiência”, verificava tambémque “as lições do passado e da prática não foram atendidas”. Alegando que os serviços de polícia necessitavam de co-nhecimentos técnicos para o seu “pleno desenvolvimento e aperfeiçoamento”, protestava contra o facto dos serviços po-liciais estarem sob a “direcção superior de quem, a não ser por mero capricho do acaso, nenhuma competência pode ter paraos chefiar” (neste caso o governador civil do distrito, autoridade política que, extravasando as suas competências, in-gerindo-se nos assuntos de polícia, violava, inclusive, a lei: em específico, o § único do art.º 61.º do Decreto n.º 8435- só fora de Lisboa e Porto é que a polícia ficaria “imediatamente subordinada ao governador civil do distrito”). Fon-seca (1924) observava ainda que “a autonomia […] de forma alguma colide com o mútuo auxílio, contínua e íntima coo-peração de serviços que, entre todos os ramos policiais, devem existir”. Provando essa observação com as boas relações exis-tentes entre a PIC e outras instituições (com o IML, por exemplo, entre outras), referia, por outro lado, as “muitovulgares” divergências com a polícia da secção de segurança. Socorrendo-se de Guyot (1888), relembra que “a políciadeve servir-se das descobertas da ciência. Não é pela brutalidade, é pela superioridade intelectual que ela poderá garantir asegurança. […] Em lugar de uma polícia nervosa, brutal, teatral, amando o reclame, é preciso ter uma polícia tranquila,fazendo a sua obra em silêncio, funcionando sem estrépito, mas com a precisão e a continuidade da máquina bem acabada,

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não se der à investigação a autonomia que a natureza melindrosa das suas funções ins-tantemente reclama, pondo-a sob a superintendência de um técnico e subtraindo-a à acçãointermitente de autoridades políticas; enquanto não se desligar da Polícia de Segurança Pú-blica, de índole, fins diversos e processos por vezes antagónicos, à qual, pela direcção doscalabouços, Conselho Administrativo e disciplinar e outras disposições, está demasiada-mente unida, jamais aquela polícia poderá eficazmente resolver os múltiplos problemasde ordem social e criminal que se lhe exigem. Não haja ilusão!”.Com efeito, apesar de aos directores – magistrados - ser garantida a inamobilidade,por estarem dependentes do governador civil do distrito bastaria “um pequeno conflito,que é de presumir, dado o carácter essencialmente político daquela autoridade, para quetal inamobilidade redunde praticamente em uma verdadeira ficção”105.

3.3.1. Adriano António Crispiniano da Fonseca

A agitação política que caracterizou toda a Primeira República, e que, de facto, ape-nas prolongava a situação vivenciada nos últimos anos da Monarquia, repercutiu-senecessariamente na organização de todas as “forças policiais”, assistindo-se a cons-tantes reestruturações e dissoluções, de acordo com o partido ou coligação partidáriano poder. Apesar da última reorganização de 1922, no mesmo ano e em 1923 foramapresentados na Câmara dos Deputados diversos projectos de reforma tendo comofim uma nova reorganização das polícias.Entre estes, de notar, em especial, um projecto de lei de 1923, de Adriano AntónioCrispiniano da Fonseca, à data Director da PIC de Lisboa, onde se pedia a reorgani-zação da PIC no seio do Ministério da Justiça e dos Cultos106. Seria precisamente o

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bem montada e composta por materiais de primeira ordem”. Antes de terminar, dando, em traços largos, uma ideia daspéssimas instalações da altura (ainda no edifício do Governo Civil), apela a que se unifiquem “todos os serviços de in-vestigação do país, com a superintendência de uma entidade técnica, sob a égide do Ministério da Justiça, com a garantiade uma autonomia séria”.105 Fonseca (1924), relembrando que os adjuntos da Polícia de Investigação são propostos pelo governador civil (aocontrário da Administrativa que são-no pelo director daqueles serviços).106 Segundo este projecto visionário, seria criado no MJ uma Prefeitura Geral de Polícia de Investigação Criminal (àsemelhança da existente no Ministério do Interior para a segurança pública) e seria dirigida por um juiz, um secre-tário, dois amanuenses e um contínuo. Essa Prefeitura superintenderia aos Postos Antropométricos de Lisboa e Porto,ao IML e Arquivo Central de Identificação e Estatística. Criar-se-iam escolas de instrução física e instrução. Lisboaficaria com quatro prefeitos, um para cada bairro, três chefes e 80 agentes. Existiriam prefeitos para o Porto, Coim-bra, Braga, Coimbra, Barcelos e pedia a extinção dos Juízes Criminais de Braga, Coimbra, Barcelos e Setúbal e de In-vestigação de Lisboa e Porto. Em Lisboa a Prefeitura teria as seguintes brigadas: brigada volante destinada ao serviçofora da cidade; de investigação dos crimes de furto, roubo, burla, abuso de confiança e vadiagem, de investigação defalsificação de escritas e de negócios financeiros; de investigação de homicídio, ofensas corporais, ameaças, atentadosao pudor e estupro; mista para os serviços não especializados; de informações e vigilância e de serviço de julgamentode pequenos delitos.

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Dr. Crispiniano da Fonseca, a redigir, em 1923, o primeiro relatório autónomo sobreos serviços107.

3.4. O falhanço da I República e a ditadura militarAlguma razão deveriam ter os detractores da lei de 1922, pois, não obstante a reformapolicial, por volta desta altura “a rua estava um caos. Toda a gente se olhava com descon-fiança, pois tinha-se voltado quase ao tempo dos quadrilheiros” e a Polícia Cívica, “além deestar indisciplinada, era uma anarquia na disciplina. Grupos de homens, que viviam à mar-gem da lei e protegidos por maus políticos, traziam a cidade em constante sobressalto e a po-lícia nada podia fazer” (Lapa, 1954). Estes eram os tempos da famosa “Legião Vermelha”(verdadeiro bando de assassinos políticos, especializados em assaltar bancos e cobrado-res), sendo até o próprio Comissário-Geral da Polícia Cívica vítima de um atentado108.Nas polícias é replicada esta desorganização da sociedade109, sendo um dos sintomas as con-vulsões, na forma de extinção e ressurgimento constantes, da DGSP110. No próprio Par-lamento era frequentemente discutida a ineficácia policial, interpelando-se o Governo so-bre casos concretos e referenciando-se sistematicamente a necessidade de reorganização111. Comprovando essa falência organizacional, no final de 1925, quando rebenta o es-cândalo do “Angola e Metrópole”, o Presidente Manuel Teixeira Gomes, na vésperade se demitir, a 10 de Dezembro, determina112 que “a Procuradoria-geral da República

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107Cf. Fonseca (1924). Chama-se a atenção para este acto autonomista, bem como para o facto de as Ordens de Ser-viço da PJ (conservadas no seu Centro de Documentação) iniciarem nesta data uma série ininterrupta que se prolonga,sem grandes alterações, até hoje. Nesse relatório, num tom desassombrado e no primeiro parágrafo, faz menção à ine-xistência de uma disposição legal que o obrigasse a elaborar qualquer relatório, mas, ciente que poderia interessar afuturos directores da instituição, aqueles que se interessam por reorganizar a Polícia de Investigação ou a qualquer umque se interessasse pelos estudos da criminologia ou estatística criminal, acabou por escrever uma obra recheada deelementos valiosos. Campos (1924), referia-se nestes termos ao trabalho de Crispiniano da Fonseca: “Ninguém ignoraque à frente da investigação de Lisboa está o Dr. Crispiniano da Fonseca que, a par da mais alta competência para o de-sempenho deste cargo, o exerce com a devoção indispensável a tão melindrosas e difíceis funções. Amanhã, por interesse par-tidário, qualquer governo lhe poderá dar por finda a sua missão, e assim todos os trabalhos, lutas e sacrifícios - que são mui-tos – do Dr. Crispiniano da Fonseca ficarão perdidos e prejudicados ficarão os serviços de investigação, porque ficam sem acontinuidade exigida e reclamada por Reiss, D’Alongi, Du Champ e tantos outros que sabem o que é a polícia”. 108 Fidelino de Figueiredo, citado por Barreto (1979, p.217) refere que os anos da I República caracterizaram-se pe-los mais de 40 governos (revolucionários, partidários e de concentração), com cerca de meio milhar de ministros, saí-dos de 20 partidos, impostos ou expulsos, por oito parlamentos e mais de 20 revoluções ou pronunciações.109 Confrontada com as frequentes perturbações orgânicas e funcionais, a ausência de meios técnicos e um quadro depessoal escasso, impreparado e mal remunerado, a Polícia Cívica não conseguia, de modo satisfatório, cumprir a suamissão de garantia da segurança e realização de uma investigação eficaz, face à criminalidade galopante, resultante dasconvulsões sociais que de forma generalizada sacudiam o país. Barreto (1979, p.218) refere que, por esta altura, “aPolícia Cívica, desautorizada, atemorizada, já nem actua em casos de crime comum e fecha-se nos quartéis”.110 Atentaremos nas intermitências da DGSP adiante.111 Vide, por exemplo, as sessões do Senado de 20 e 28 de Abril de 1926. Na primeira, a propósito de um caso de ho-micídio, criticava-se que a polícia só agiu depois do jornal “O Século” a ter acusado de inércia.112 Decreto n.º 11339, de 10 de Dezembro de 1925, publicado no DG n.º 264.

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assuma a direcção superior das investigações sobre os casos ocorridos com o Banco Angolae Metrópole, e que lhe fiquem subordinadas as Polícias de Investigação Criminal e de Se-gurança do Estado”. Pretendia-se assim dar “unidade às investigações” destas duas en-tidades, bem como às desenvolvidas pela Inspecção do Comércio Bancário113. A instauração de um novo regime político, após o golpe militar de 28 de Maio de1926, intervém uma vez mais, na estrutura organizacional das polícias, com a disso-lução e posterior reconstituição de alguns Corpos de Polícia Cívica, até porque al-guns responsáveis também se envolveram na luta política114.Na PIC, em 1926, é novamente alargada a base de recrutamento dos seus dirigentesa “bacharéis ou licenciados em direito de reconhecida competência”, além dos juízes dedireito em comissão115. Entretanto, as organizações policiais continuavam a sua lenta e caótica agonia, demodo que em 24 de Setembro de 1926 o director da PIC de Lisboa – o bacharel JoãoElói Pereira Nunes Cardoso - foi encarregue pelo Governo de sindicar as polícias deinvestigação criminal, administrativa e de segurança pública de Lisboa116. Em Outubro do mesmo ano, “considerando que o aumento assustador dos crimes de va-diagem e dos de comércio e uso de estupefacientes impõe a aplicação de sanções severas e ime-diatas” e “considerando que a repressão destes crimes para ser eficaz exige ainda julgamentorápido”, os directores e adjuntos da PIC vêem ser aumentada a sua competência, emtermos de julgamento em processo sumário, destes crimes117.

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113 Os “super-poderes” atribuídos por este diploma ao magistrado encarregue deste caso voltavam a trazer à memó-ria o antigo Juiz de Instrução Criminal, mas punham em evidência a desarticulação policial desta época. Na Sessão de20 de Abril de 1926, o próprio ministro do Interior, Manuel Maria da Silva, referindo-se à investigação que ficou maisconhecida como o “Caso Alves dos Reis”, reconhecia o mau funcionamento da polícia de investigação, afirmando noSenado: “No que respeita à polícia de investigação criminal, é certo que ela tem deixado um pouco a desejar. Viu-se isso nocaso do Angola e Metrópole, em que se teve que recorrer a estranhos para se dar uma satisfação à opinião pública.…. Su-ponho que o mal será também, quem sabe, um pouco do edifício e das instalações. Parece-me que aquele ambiente pesa naspessoas que lá entram e como que as modifica. Pena é que não tenhamos um edifício novo onde pudéssemos estabelecer es-ses serviços pela forma como devem funcionar”.114 Mas, no geral, a Polícia Cívica e a Guarda Republicana apoiaram o movimento encabeçado por Gomes da Costa(Barreto, 1979, p.219).115 Decreto n.º 12319, de 16 de Setembro de 1926, publicado no DG n.º 206. Os motivos desta decisão prendiam --se com as perturbações para o quadro desta magistratura, com graves prejuízos para os serviços, da frequente requi-sição de magistrados para funções estranhas à da judicatura propriamente dita, mas também porque podiam “existirfora dessa classe indivíduos com reconhecida competência para o desempenho dos mencionados cargos”. De forma seme-lhante, os adjuntos poderiam agora ser magistrados judiciais ou bacharéis e licenciados em direito ou ainda magis-trados do MP.116 Decreto n.º 12369, de 24 de Setembro de 1926, publicado no DG n.º 213. Em causa estavam as inúmeras quei-xas que contribuíam para o desprestígio das mesmas corporações e as insistências das “autoridades policiais superiores”para “que se apurem responsabilidades para efeito de serem dispensados dos serviços os que não tenham idoneidade necessá-ria”. Para tal intento, o director da polícia de investigação é revestido dos “poderes necessários para rápida e eficazmenteagir” e colocados à sua disposição todos os meios que ele considere necessários.117 Decreto n.º 12469, de 12 de Outubro de 1926, publicado no DG n.º 227.

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A 3 de Fevereiro de 1927 inicia-se no Porto um levantamento militar republicanocontra a ditadura militar que viria a ser sufocado no dia 7. Em Lisboa, a revolta pro-longa-se até ao dia 10, envolvendo militares e civis republicanos, socialistas, anar-quistas e comunistas. Destes confrontos militares, os mais duros dos que tentaramdestituir o regime saído do 28 de Maio de 1926, resultaram centenas de mortos, mi-lhares de feridos, enormes prejuízos e centenas de prisões e deportações. Na sequên-cia deste golpe, a 15 de Fevereiro, o governo demitiu todos os funcionários públicosdirecta ou indirectamente envolvidos nos movimentos «reviralhistas», tendo as ondasdeste impacto chegado a alguns quadros da PIC118. Em Março de 1927 reconhecia-se que “a extinção da antiga Direcção-Geral da SegurançaPública, longe de produzir as vantagens calculadas, só perturbações trouxe ao serviço”119

e uma vez que importava restabelecê-la, é novamente extinta a Inspecção Superior daSegurança Pública (criada dois anos antes120) e restaurada a DGSP. Desta vez, além deabranger todos os serviços policiais e o Comissariado-Geral dos Serviços de Emigração,incluía também a Guarda Nacional Republicana121.

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118 No mesmo dia, são dissolvidas as unidades do Exército e da GNR que, total ou parcialmente, tomaram parte nasrevoltas (Decreto n.º 13138, de 15 de Fevereiro de 1927, publicado no DG n.º 31). Além da mesma medida se apli-car a todas as organizações políticas ou cívicas neles participantes, ainda no mesmo dia é publicado o Decreto n.º13139, que, tendo em conta as “contínuas alterações da ordem pública e a eclosão do último movimento revolucionário”- o que levara o governo a tomar medidas urgentes que assegurassem a “ordem e a disciplina sociais” - e ainda por ter“chegado ao conhecimento do governo que dos diferentes organismos policiais muitos dos seus funcionários e agentes se en-volveram no aludido movimento”, é facultada aos diferentes governadores civis a dissolução das “corporações policiaisde investigação criminal, administrativa e de segurança pública dos diversos distritos, as quais serão reconstituídas com apossível urgência, tendo em atenção o disposto nos regulamentos respectivos em vigor”. Possivelmente na sequência de umaeventual sangria realizada em todas as polícias, de cujos números não temos conhecimento, faz-se publicar, por de-creto de 7 de Março de 1927, o novo “Regulamento dos concursos para as vagas de chefes e agentes de 1.ª e 2.ª classe exis-tentes na polícia de investigação criminal de Lisboa” (Decreto n.º 13230, de 7 de Março de 1927, publicado no mesmodia, no DG n.º 47). Neste regulamento, alarga-se o âmbito do recrutamento para agentes de 1.ª e 2.ª classe a todosos indivíduos que “não tenham mais de 35 nem menos de 21 anos de idade”, exigindo-se somente, além das provas, queos candidatos apresentassem, com os demais documentos, “uma declaração por eles escrita e assinada, em que por suahonra afirmem não estarem filiados em qualquer partido político, sendo a verificação da falsidade de tal declaração causasuficiente para exclusão ou demissão do funcionário”. Para os lugares de chefes, serão admitidos não só os agentes de 1.ªclasse e chefes de quaisquer outras corporações policiais, mas ainda “qualquer indivíduo, embora estranho ao funcio-nalismo policial e que tenha, pelo menos, o 3.º ano do liceu” e a mesma idade exigida para os agentes.119 O Decreto de Janeiro de 1924 extinguia a DGSP, passando o órgão superior da Polícia Cívica a Inspecção-Geralde Segurança Pública. Três anos depois, pelo Decreto n.º 13242, de 8 de Março de 1927, publicado no DG n.º 47, aDGSP é novamente restaurada assumindo a superintendência de todas as polícias, incluindo a GNR, para ser maisuma vez extinta em 1928, pelo Decreto 15825, de 13 de Agosto, que restaurou novamente a IGSP, agora acrónimopara Intendência Geral de Segurança Pública, dirigida superiormente “por um general ou um coronel do activo ou da re-serva, nomeado em comissão, e da confiança do Ministro do Interior”.120 Pelo Decreto n.º 10790, de 25 de Maio de 1925.121 Alguns autores apontam também esta data como uma reestruturação das Repartições de Segurança Pública da Po-lícia Cívica de Lisboa e do Porto, que se passariam a designar de Polícia de Segurança Pública, na dependência daDGSP. Assiste-se assim, segundo os mesmos, à extinção da Polícia Cívica de Lisboa e Porto – Cf. Clemente (1998,p. 88); Alves & Valente (2006, p.71).

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4. A autonomização – a inserção no Ministério da Justiça em 1927Através do primeiro artigo do Decreto n.º 14.657, de 5 de Dezembro de 1927, do Mi-nistério da Justiça e dos Cultos122, “são transferidos para o Ministério da Justiça, ondeficam constituindo serviços autónomos, dependentes do respectivo Ministro, os serviços daspolícias de investigação criminal de Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, que continuarãosendo desempenhados pelos seus actuais funcionários [...]123”.Aparece assim, pela primeira vez, a nosso ver, a PIC propriamente dita. Orgânica efuncionalmente separada da Polícia Cívica, do MI.Esta transferência viria a ser complementada, nos seus aspectos financeiros, patrimo-niais, logísticos e disciplinares por outros diplomas124, instituindo-se, pela primeiravez, o Conselho Administrativo em cada uma das polícias de investigação criminal (Lis-boa, Porto, Coimbra e Braga).Paralelamente, à separação ocorrida na tutela da PIC, urgia também separar fisica-mente as polícias: assim, em 1927, a PIC de Lisboa abandona as suas instalações noGoverno Civil e passa a funcionar no Palácio do Torel125.Contudo, esta autonomização da PIC viria a ser interrompida, mais tarde - por umano - quando o Decreto n.º 21.194, de 4 de Maio de 1932, subordinou todas as po-lícias ao MI, por intermédio de uma ressurgida DGSP126.Finalmente, ao Decreto-Lei n.º 22.708, de 20 de Junho de 1933, atribui-se a transi-ção definitiva da PIC para o MJ127, situação essa que se tem mantido inalterada atéaos dias de hoje.

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122 Republicado no dia 9 de Dezembro, no DG n.º 272, “por ter saído com inexactidões”. Os restantes cinco artigosdo diploma tratam somente da transferência para o MJ das verbas do orçamento do MI respeitantes à PIC, venci-mentos, cofre dos emolumentos e de pensões.123 Apesar de manter o quadro de pessoal oriundo da agora extinta “secção de polícia de investigação criminal” da Po-lícia Cívica, inicia-se assim uma fase de progressiva estabilidade no seio da instituição, em nada comparada às fre-quentes perturbações orgânicas e funcionais dos anos anteriores. 124 Decretos n.º: 14893, de 16 de Janeiro de 1928; 14917, de 20 de Janeiro de 1928; 15635, de 26 de Junho de 1928.125 O Palácio Torel, originalmente mandado construir pelo Desembargador João Caetano Thorel da Cunha Manuelnos princípios do séc. XVIII, localizado na zona do Campo Mártires da Pátria (Campo de Santana) em Lisboa, foihabitado por D. Nuno José Severo de Mendonça Rolim de Sousa Barreto, 1.º Duque de Loulé. Destruído pelas cha-mas em 1875 outro edifício foi no mesmo local erigido, por indicação do fidalgo-cavaleiro Manuel de Castro Gui-marães, futuro Conde de Castro Guimarães, até que em 1927, foi vendido ao Estado. Aí funcionou a PIC, e depoisa PJ, até 1958. Actualmente o edifício é ocupado pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais.126 Substituindo a Intendência-Geral de Segurança Pública criada em 1928 em sua substituição.127 Este diploma subordinava a PIC ao ministro da Justiça, por intermédio da Direcção-Geral dos Serviços Centrais deJustiça (art.º 64.º).

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4.1. Primeiro esboço de lei orgânica – 1929Em 1929, o Decreto n.º 17640, de 22 de Novembro128, referia ser conveniente que“enquanto se não publicar um diploma único com a organização completa dos serviços dapolícia de investigação criminal”, devia-se, para já, regular o funcionamento da PIC,em especial no que respeita à competência jurisdicional. Nesse diploma consideravam-se funcionários superiores de polícia de investigação cri-minal os directores, subdirectores e seus adjuntos. Como “pessoal subalterno” sur-giam os chefes e os agentes129, estes últimos de 1.ª e 2.ª classe130. Outra inovação, foi a assunção de um conselho disciplinar específico da instituição,constituído apenas por funcionários superiores131.No mesmo diploma alargam-se os poderes jurisdicionais dos funcionários superioresda PIC em matéria de julgamentos sumários e estipulava-se que das decisões conde-natórias haveria apenas recurso, por incompetência, para o Supremo Tribunal de Jus-tiça132. Aumentam-se também os poderes dos funcionários da PIC que, na persegui-ção de um criminoso ou numa investigação, poderiam entrar na área pertencente à“fiscalização de qualquer outra polícia ou autoridade administrativa, inclusivamente abordo de barcos ou navios, podendo requisitar a colaboração da respectiva autoridade”133. Em 1930, extingue-se a Polícia Internacional Portuguesa (criada dois anos antes), quefuncionava junto da Polícia de Informações (MI) e é criada em sua substituição, na PICde Lisboa, uma secção, denominada Secção da Polícia Internacional Portuguesa, assu-mindo assim a responsabilidade pelo controlo de estrangeiros e fronteiras134.

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128 Novamente publicado, com rectificações, em 11 de Dezembro do mesmo ano.129 Como curiosidade, refira-se que este grupo de pessoal só tinha direito a 15 dias de férias, ao contrário dos fun-cionários superiores que dispunham de 30 (art.º 46.º).130 Note-se que, agora, as formas de progressão na carreira para o “pessoal subalterno” (chefes de secção, agentes de 1.ª classee de 2.ª classe) passavam por concurso (e não por “indicação”) e o recrutamento para agente de 2.ª classe alargava o âm-bito de selecção a indivíduos que não fossem funcionários das polícias já existentes, embora esse fosse um factor prefe-rencial. As nomeações provisórias convertiam-se em definitivas passados dois anos, caso os nomeados “revelarem com-petência profissional e idoneidade moral e obtiverem aprovação no curso elementar de preparação e tirocínio” ministradono Instituto de Criminologia e de Medicina Legal (em harmonia com o Decreto n.º 13254, art.º 28.º, n.º 3.º). Os ser-viços médicos, incluindo os exames, seriam assegurados por médicos privativos (em Lisboa e Porto) contratados.131 Em Lisboa e Porto pelo director e dois adjuntos e em Coimbra pelo director, juiz do juízo criminal e por funcio-nário superior de Lisboa ou Porto.132 Art.ºs 19.º e 25.º do Decreto n.º 17640, de 22 de Novembro.133 Pela primeira vez, “para fazerem reconhecer prontamente a sua qualidade, sempre que isso se torne necessário”, os fun-cionários da polícia de investigação criminal “usarão permanentemente um distintivo metálico aposto em sítio de fácil exi-bição”. Fora das cidades de Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, os agentes da PIC, sem prejuízo da subordinação aos fun-cionários superiores da respectiva polícia (ex. comissários da polícia de segurança nos restantes distritos), trabalhavamsob a direcção das autoridades requisitantes (ex. governador civil). Sempre que comparecesse algum funcionário su-perior da respectiva polícia, assumiria este a direcção das investigações. Finda a investigação, a autoridade requisitanteenviaria informação dos serviços prestados pelo agente ou agentes que a ela tinham procedido. Os sumários destasinformações, quase sempre elogiosas, eram alvo de uma publicação constante nas primeiras Ordens de Serviço da PIC[conforme já referido, disponíveis no Centro de Documentação (ADT) da PJ].134 Decreto n.º 18849, de 13 de Setembro de 1930.

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No ano seguinte, o governo da ditadura militar dissolve a Polícia de Informações do MI,passando as suas atribuições para a Polícia de Segurança Pública135. Por seu turno, au-tonomizou-se a Polícia Internacional Portuguesa, saindo da PIC, regressando à de-pendência do MI136.Em 1931, pelo Decreto n.º 20108, de 27 de Julho, dividem-se os serviços da PIC emtrês “directorias” (termo novo) autónomas: Lisboa, Porto (com uma “delegação de ins-trução judiciária” em Braga) e Coimbra137. Cada “directoria” tinha um “director” quese subordinava directamente ao Ministro da Justiça e dos Cultos e não a um director-geral, de âmbito nacional.Por esta altura, salvo algumas alterações pontuais138, a situação da PIC, inserida no MJ,era de relativa acalmia e, no geral, a sua estrutura manteve-se inalterada até 1945. Poroutro lado, no MI continuava ainda a constante reorganização de serviços. Além dajá referida intermitência da DGSP, em Agosto de 1933 extinguia-se a Polícia Inter-nacional Portuguesa e a Polícia de Defesa Política e Social139 e criava-se a Polícia de Vi-gilância e Defesa do Estado (PVDE)140.No dia 16 de Maio de 1935, no mesmo dia em que, ironicamente, era aposentadocompulsivamente, o antigo Director da PIC de Lisboa, na década de 20, o bacharelAdriano António Crispiniano da Fonseca141, é decretada a extinção da Direcção -Geralde Segurança Pública.

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135 Decreto n.º 20033, de 8 de Junho de 1931.136 Decreto n.º 20125, de 28 de Julho de 1931. Como veremos adiante, esta polícia viria a ser profundamente re-modelada e transformada na nova polícia política do regime. Tinha como principais missões a detecção, prevençãoe repressão de iniciativas contrárias aos «interesses do Estado e da Nação» e efectuar a «repressão do comunismo, designa-damente no que toca às ligações entre elementos e agitadores estrangeiros».137 Reconhecem-se as PIC de Lisboa, Porto e Coimbra como organismos autónomos, ficando o “instrutor” de Braga(antes subinspector) directamente subordinado ao Director da PIC no Porto. O mesmo diploma fixa o quadro dopessoal e determina que os cargos de director, subdirector e adjuntos sejam exclusivamente providos com magistra-dos judiciais de 1.ª instância, “em comissão pelo prazo de três anos, que poderá renovar-se, com garantia de inamovibili-dade […]” e o de “instrutor” de Braga, seria delegado do procurador da República ou candidato habilitado com o res-pectivo curso.138 Em 1932, pela Portaria n.º 7367, de 22 de Junho de 1932, mandava-se à PIC e aos agentes do MP junto dos tri-bunais de 1.ª instância que oficiassem às corporações de bombeiros “impondo-lhes que, em todos os casos de sinistros quelevantem suspeita de crime, elaborem relatórios, devidamente fundamentados” e os remetessem a esses mesmos magis-trados. Isto devia-se ao facto de as companhias de seguros, face a sinistros que representavam “calculadas e estudadasextorsões”, se viam obrigadas a “liquidar para não prejudicarem o seu crédito”. Dada a repetição frequente dessas ocor-rências, tinham começado a “abster-se de tomar riscos industriais em determinados centros”.139 Criada, entretanto, a partir da extinção da Secção de Vigilância Política e Social da Polícia Internacional Portuguesa,em 23 de Janeiro de 1933, pelo Decreto n.º 22151.140 Pelo Decreto-Lei n.º 22992, de 29 de Agosto de 1933. Em Outubro, esta polícia seria reforçada com pessoal dosserviços de emigração (da Inspecção-Geral de Emigração), em virtude de, à Secção Internacional da PVDE, ter sido atri-buída a competência para “verificar nos postos da fronteira terrestre e marítima a legalidade dos passaportes dos nacionaisque pretendam entrar ou sair do País” (Decreto-Lei n.º 23163, de 24 de Outubro de 1933, publicado no DG n.º242).141 Crispiniano da Fonseca, juiz do 8.º juízo criminal de Lisboa em 1935, seria incluído entre os muitos funcionários pú-blicos opositores ao Estado Novo que seriam demitidos (aposentados ou reformados compulsivamente) no âmbito do

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4.2. As exéquias da Direcção-Geral de Segurança PúblicaPassados três anos do seu reaparecimento, a DGSP seria extinta, pelo Decreto-Lein.º 25.338, de 16 de Maio de 1935 (já depois, portanto, da saída definitiva da PICpara o MJ), criando-se no seu lugar o Comando Geral da Polícia de Segurança Pública,a quem ficariam “subordinados os serviços de polícia de segurança do continente e dos dis-tritos da Horta e os de inspecção e fiscalização dos géneros alimentícios”142.Desde o início, os detractores da DGSP invocavam que a sua criação (em 1918, ouseja, num “período de ditadura”, segundo os mesmos) arredou os princípios liberais deseparação de poderes e visou, claramente, tornar dependente do executivo, a políciade investigação, anulando do mesmo passo, qualquer possibilidade de intervençãoexterna, em especial da administração da justiça (magistraturas).

4.3. A polícia dos juízes vs a polícia dos capitãesPor esta altura, já se tinha estabilizado a prática da PIC ter como dirigentes magis-trados judiciais ou do MP, bem como bacharéis ou licenciados em direito, ao contrá-rio do que foi comum no séc. XIX, em que, em conjunto com os restantes corpos po-liciais, a direcção era assegurada por oficiais do exército. No MI, a tradição de ter oficiais do exército na direcção das polícias continuaria du-rante muito mais tempo143 e, ao longo do séc. XX, com a separação progressiva144 dapolícia de investigação das polícias de segurança, de manutenção da ordem pública esecretas, este facto terá ditado um certo distanciamento em relação às outras polícias,dirigidas por oficiais do exército, senão mesmo, por vezes, um certo antagonismo.

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Decreto-Lei 25317, de 13 de Maio de 1935. Entre os penalizados encontram-se 33 docentes do ensino superior, a par deoficiais militares, directores-gerais, professores, etc., cujo único «crime» era o de se terem manifestado contrários ao regime.142 Reza o preâmbulo deste diploma . […] Pelo que fica dito, fácil é de concluir que a Direcção Geral da Segurança Pú-blica, restabelecida pelo decreto n.º 21194, do 4 de Maio de 1932, já não tem razões que justifiquem a sua existência. […]A polícia de investigação criminal, de atribuições conexas com os tribunais comuns, foi integrada no Ministério da Justiça,onde tinha melhor cabimento, deixando igualmente de estar subordinada à segurança pública. […] Preenchem-se peque-nas omissões da lei, outras se corrigem, e reconduz-se para o Ministério da Justiça, onde mais apropriadamente e em me-lhores condições poderá desempenhar o papel que lhe pertence, o Posto Antropométrico de Lisboa [cf. art.º 17.º], com todosos serviços do identificação e registo policial ali concentrados. […] Os lugares que se suprimem e as dependências de edifí-cios do Estado que se libertam para a acomodação de outros serviços traduzem-se numa economia anual de algumas deze-nas de contos, sem perturbação das funções ou prejuízo para os funcionários […]”.143 Como reflexo desse facto, são comuns, por exemplo, os vários artigos publicados nos primeiros números da revistada polícia da PSP, a “Polícia Portuguesa”, sobre o treino militar dessa polícia, a utilização de carros de assalto ou a uti-lização de granadas de fumo e de morteiros na repressão de manifestações e na manutenção da ordem pública.144 Em especial com a transferência da PIC para o MJ, em 1927, afastando-a das funções de polícia política. Con-tudo algumas dessas funções subsistiram, em 1930-1931, como vimos, por intermédio da inserção na estrutura PICda Secção da Polícia Internacional Portuguesa, oriunda da extinta PIP. Posteriormente, e em especial, a partir de 1933(data da criação da PVDE), a PIC vocacionou-se somente para a investigação criminal.

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Um dos episódios desse antagonismo latente145, entre uma “polícia dos juízes” e as“polícias dos capitães” (expressões nossas), ocorre aquando da investigação do atentadocontra o Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar, em 4 de Julho de 1937, ondea PIC, numa investigação paralela à da PVDE, descobre os verdadeiros autores doatentado, provocando o vexame público da antecessora da PIDE, que entretanto, erradamente, já tinha anunciado publicamente a captura dos autores do atentado.A PVDE, precipitando-se, atribuiu a autoria do atentado a um “grupo de comunis-tas” e apressou-se a demonstrar o fruto do seu trabalho de “investigação” nos meiosde comunicação social da altura. A PIC, posteriormente, a partir de uma informaçãode um oficial da PSP, inicia uma investigação que iria levar à descoberta dos verda-deiros autores do atentado (neste caso um “grupo de anarquistas”)146.

5. PJ: o baptismo da PIC

Nas vésperas do Decreto-Lei 35042, de 20 de Outubro de 1945, a PIC tinha uma vidapenosa e cheia de dificuldades, em termos humanos, materiais e organizacionais. A in-suficiência, impreparação e cansaço do pessoal147, aliadas à carestia de meios148

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145 Pimentel (2007) aludindo ao, por vezes, difícil relacionamento entre a PIDE/DGS e o MJ, refere que, não obs-tante o dever geral de colaboração entre todas as polícias e serviços de segurança, a colaboração da PJ com a PIDEfoi muito menor do que, por exemplo, o referido em relação à PSP ou GNR, também tuteladas pelo MI. Seria pre-cisamente pelo MI que essa colaboração entre as polícias e serviços tutelados (PSP, GNR, GF, Polícia Marítima, Le-gião Portuguesa) seria estimulada, servindo o MI de ponto central de contacto e difusão de informações relativas a“crimes políticos” e à “segurança do Estado”.146 O processo instruído na PIC (cujas cópias estão conservadas no Centro de Documentação da PJ), conforme ostrâmites do processo penal da época, é um documento raro, onde, além de constarem todas as diligências e averi-guações de uma investigação criminal nos anos 30, também contém vários documentos onde se desmascaram as ten-tativas da PVDE de encobrimento do caso, procurando evitar o embaraço. Este documento é mais raro ainda por-que nele se denunciam, oficialmente (na forma de autos de “perguntas” ou de interrogatório) os maus-tratos infligidosna sede da PVDE aos suspeitos do atentado. Através das declarações desses arguidos recolhidas pelo então director,Juiz, Dr. José Alves Monteiro Júnior, instrutor do processo na PIC, sabemos que a PVDE, em desespero, chegou aoponto de espancar brutalmente os verdadeiros autores do atentado para que eles não assumissem a autoria do aten-tado, tentando encobrir, assim, que dissessem a verdade, ou seja, que a PVDE prendera os homens errados. Já du-rante o desmoronar da “investigação” da PVDE, um dos seus oficiais, despeitado, escreve uma missiva ao Dr. AlvesMonteiro, confirmando a sua fé nas “investigações” da PVDE e acusando o juiz, por ser civil, de não compreendero “nojo” que lhe causou o facto de ver as suas conclusões da investigação contrariadas, pois - para ele - essa era “umaquestão de educação que só se aprende na escola que nos dá a posse das virtudes militares…”.147 Lapa (1954, p.179) refere que “os servidores, a maioria, ontem dedicadíssimos ao serviço, já tinham entrado no cansaçoque os anos traziam consigo. Os meios já não correspondiam ao sentido prático da vida que se vivia. Tornava-se necessáriorenovar um corpo por assim dizer que se encontrava moribundo”. Como particularidade acrescente-se ainda que todosos funcionários administrativos tinham sido agentes da investigação – Cf. Santos & Silva (1980).148 Recorde-se as acanhadas instalações do Torel, bem como as constantes referências à inexistência de um parque auto-móvel adequado nas obras autobiográficas de Afonso (1973), Augusto (2010) e também do Chefe Pereira dos Santos.

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impunham uma renovação da instituição que, logicamente, deveria ser acompanhadade uma reorganização institucional149.E foi precisamente isso que sucedeu: uma renovação e não propriamente, uma criaçãoa partir do nada. Efectivamente, são várias as evidências de que as duas instituições,entendidas formalmente, não são mais do que o mesmo organismo - se bem que re-novado, com a integração dos departamentos regionais, centralizando os serviços -apenas com designações diferentes. A título de exemplo, podemos apontar o facto doquadro de pessoal ter transitado para a PJ (incluindo, no caso de Lisboa, o seu direc-tor, o Juiz de Direito Dr. José Alves Monteiro Júnior150, a manutenção das instalaçõesno Torel e a continuidade das ordens de serviço da instituição151).Flores (1994), partilhou da mesma opinião: “É que ao reportar-se á publicação do De-creto-Lei 35042/45 como o momento em que surgiu a PJ, e a partir daí ritualizar as ce-rimónias de aniversário, na nossa opinião, conduz a um negligente e desnecessário aten-tado contra a memória histórica da instituição, evocando como momento criador o ano dobaptismo e não o ano do nascimento”152. Este Decreto de 20 de Outubro de 1945 constituiu a grande viragem nos caminhos dainvestigação criminal no Pais, até aí - como vimos - entregue a organizações policiais

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149 “A PIC estava regionalizada […]. Cada Directoria articulava-se por si própria, funcional e administrativamente in-dependente, sendo dirigida por um director que também tinha funções de Juiz Auxiliar da Investigação Criminal junto dorespectivo Instituto de Medicina Legal, única entidade com competência para a realização de toda a espécie de exames e pes-quisas científicas de natureza policial e criminal.” – Cf. Santos & Silva (1980). O próprio preâmbulo do diploma de1945 reconhece os defeitos existentes na PIC e a necessidade de reorganização da instituição.150 Director da PIC de Lisboa desde a reforma de 27 de Julho de 1931, passou a ser o Director-Geral da PJ. Cf. Bo-letim Oficial do Ministério da Justiça (anos de 1944, 1945 e 1946), contendo listas nominativas dos quadros e cor-respondentes categorias.151 Em 1945 não se regista a menor alteração imediata nas práticas de funcionamento interno dos serviços, conti-nuando, inclusive, as ordens de serviço da nova PJ a ser manuscritas no mesmo livro onde estavam a ser redigidas asda extinta PIC. Esta mudança, no volume em apreço (n.º 21, de 18-VI-1945 a 26-VI-1946) não tem direito à me-nor menção, destaque, separador ou mudança de paginação. O mesmo sucedeu na nova “Subdirectoria” do Porto quese manteve no velho “Casarão do Aljube”, sito no Largo Primeiro de Maio, tendo o anterior director da PIC, Dr. Ma-nuel Guilherme Abreu Fonseca, assumido, interinamente, até 23 de Março de 1946, o cargo de Subdirector.152 Se bem que com uma argumentação diferente, pois remontava o aparecimento da instituição a 1918 e como her-deira da “Polícia Científica” do IML (este, por sua vez, evoluído a partir da antiga Morgue, pois em 29 de Novem-bro de 1918, com Sidónio Pais, pelo Decreto n.º 5023, a actividade das três Morgues existentes foi reformada - dandoorigem aos IML - regulamentando o funcionamento das três circunscrições de Lisboa, Coimbra e Porto, apetrecha-das com laboratórios, museu, biblioteca e arquivo). É esta a polícia que o autor vê como embrião de uma “nova” po-lícia, na dupla acepção da palavra, pois seria a partir dela que iria nascer, mais tarde, a PJ e porque, apesar de con-temporânea e paralela à Polícia Cívica, a Polícia Científica representava uma “medicalização” da investigação criminal- com a sua preocupação pela produção de prova criminal objectiva e pelo papel do perito – em contraponto à Re-partição de Investigação Judiciária e Preventiva que, “dependendo de um comando centralizado no Governo Civil de Lisboa,continuava mais preocupada com os problemas do regime do que com a defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão”.Ao mesmo tempo e no mesmo artigo, Flores (1994) deitava também por terra o argumento de que a adjec tivação de“judiciária” só surgiu em 1945, ao lembrar que já em 1893 esta era a designação para os agentes da polícia que coadju- vavam os Juízes de Instrução Criminal. Sendo assim, a adjectivação era ainda mais antiga do que a própria data queele considerava como merecedora de “evocação”, “comemoração” e “exaltação”.

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mais ou menos precárias e dependendo muitas das vezes dos administradores políti-cos dos concelhos (Santos & Silva, 1980). Revogando a Lei de 20 de Julho de 1912e os Decretos n.º 8435 (parcialmente), 17640 e 20108, o preâmbulo do Decreto-Lei35.042 integrava devidamente a nova PJ “no plano geral do sistema processual comume das instituições de prevenção e repressão criminal”. Estabelecendo-lhe funções bem de-finidas (de investigação criminal ou post-delituais153), afirmava também a sua espe-cialização nos “processos técnicos de luta contra o crime”, já que o crime revestia tam-bém “formas cada vez mais aperfeiçoadas de execução e os criminosos não cessam deprocurar novos processos de iludirem a acção de polícia”154. Numa linguagem clara, definindo bem os conceitos de modo a não se permitir in-terpretações divergentes e sobreposições de funções, atribuíram-se então à PJ três es-pécies de competências para proceder à instrução preparatória: a territorial, que lheconferia a realização da instrução preparatória dos delitos nas comarcas de Lisboa,Porto e Coimbra e as diligências a efectuar nessas mesmas comarcas, referentes a pro-cessos pendentes noutras; a exclusiva, nos termos da qual lhe cabia, em todo o terri-tório do Continente, instruir os processos de “crimes de falsificação de moeda, notas debanco e títulos da dívida pública e tráfico de estupefacientes, de mulheres e menores e depublicações obscenas”; e a deferida, segundo a qual, por ordem ou autorização do Pro-curador-Geral da República, poderia ser atribuída à PJ a instrução de determinadosdelitos independentemente do local da sua ocorrência (Pereira & Patrício, 2010). Expurgou-se da sua competência toda a matéria de julgamento, mas ao atribuir à PJa competência para a instrução preparatória de todos os crimes nas comarcas ondeexistam os seus serviços (nas grandes cidades) e ainda, por deferimento do MP, a ins-trução preparatória da criminalidade mais grave e complexa em todo o território na-cional, o Decreto-Lei n.º 35042, de 20 de Outubro, afirmava a natureza parajudicialda PJ.

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153 “As funções de prevenção do chamado perigo agudo da criminalidade pertencem à polícia de segurança, à qual incumbe,por acção da presença, impedir a prática das infracções. Mas já é do domínio da competência da polícia judiciária, por vir-tude da estreita conexão com a exteriorização criminosa, a prevenção do perigo crónico da criminalidade. Há na verdadecertas formas de actividade criminal para cuja prevenção não basta a simples acção estática de presença, antes exigem atu-rado trabalho de investigação e activa vigilância por agentes especializados no conhecimento do meio e dos processos crimi-nais» - Decreto-Lei 35042, de 20 de Outubro de 1945.154 Era então ministro da Justiça o Prof. Cavaleiro Ferreira, que reorganizou profundamente a investigação criminale lançou as estruturas da nova PJ. Não podemos porém dissociar desta data outros diplomas: o Decreto-Lei 35.007,publicado dias antes, a 13 de Outubro de 1945, que veio restaurar a plenitude das funções do MP, consagrando-ocomo titular de toda a acção penal (até aí, limitado a uma «simples expressão formal» na orgânica dos Tribunais, oMP retomou, com o 35.007, o comando da acção penal, libertando o poder judicial para as funções de jurisdição,apenas para julgar e decidir - Cf. Santos & Silva (1980); o Decreto-Lei n.º 35.046, de 22 de Outubro de 1945, quecria a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (a partir da extinta PVDE).

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Conclusão

Ao olharmos para a evolução das instituições policiais em Portugal desde 1867 po-demos observar um movimento constante (a par de todos os sobressaltos, avanços erecuos derivados das várias e constantes reorganizações policiais) que é o da autono-mização espontânea e crescendo de importância da polícia de investigação criminal.Partindo de um primitivo momento de “dualismo policial”, em meados do séc. XIX– onde coexistiam a Polícia Civil e as Guardas Nacionais, ambas de carácter local/re-gional – houve uma longa evolução dos serviços policiais do Estado em que se acen-tuou a separação entre a prevenção estática e simples da criminalidade, efectuada pelasegurança pública, e a acção de investigação criminal ou post-delitual, (Gonçalves,2007).A técnica/teoria desta última área especializou-se de tal forma que a isolou, natural-mente, dos restantes serviços policiais. A separação funcional dos serviços de segu-rança pública/administrativa e de investigação criminal (final do séc. XIX) é aindamais sublinhada quando este último ramo vê a sua direcção ser assumida por um juiz,simbolizando assim o poder da magistratura na investigação criminal.Já então, há mais de 100 anos, era evidente que apenas um corpo especializado e au-tónomo em relação às restantes polícias podia de forma eficiente cumprir o mandatode que estava investido. Vendo a sua estrutura ser paulatinamente aumentada desde 1893, a consolidação deum quadro de pessoal próprio permitiu-lhe, de facto, forjar uma cultura profissionalprópria (assente na “cientifização” e nos requisitos de tecnicidade da investigação cri-minal), que, nos anos 20, irá ser fundamental para a total separação institucional e,simultaneamente, a mudança de tutela ministerial (Gonçalves, 2007, p.72).Como vimos, esta evolução não seria linear, sofrendo atrasos e recuos derivados dereorganizações policiais mal planeadas e não consensuais, bem como de percalçosaquando de épocas de afirmação de ditaduras (a de Sidónio Pais, em 1918, e no iní-cio do Estado Novo, em 1932) onde se tentou submeter a investigação criminal auma instituição - dependente do poder político - que pretendia coordenar todas as ins-tituições policiais: a DGSP. A partir daí, a polícia de investigação criminal conseguiu recuperar a sua autonomia,no que seria um processo sem retorno até aos dias de hoje.

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50 Polícia de InvestigaçãoCriminal versus Polícia

Política durante a PrimeiraRepública e o regime de

Salazar: Notas de um arquivo

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Leonor SáEspecialista Superior da Polícia Judiciária. Conservadora responsável do Museu de Polícia Judiciária e docente na Escola de Polícia Judiciária. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas. Pós-Graduadaem Museologia. Mestre em Estudos Alemães. Doutoranda em Estudos de Cultura.

A partir de uma pesquisa no Arquivo Histórico Documental do Museu de Polícia Ju-diciária – com o objectivo de identificar e compreender as ligações entre a polícia deinvestigação criminal e a polícia política durante o período abrangido por este ar-quivo (1916 e 1960 aproximadamente) – este artigo identifica e analisa uma série dedocumentação, concluindo e explicitando as formas específicas que essass ligações to-maram. Por fim, a autora faz o enquadramento histórico e jurídico dessa documen-tação, clarificando também o seu contexto político e social no Portugal da época.

I.Este artigo1 constitui o resultado de uma pesquisa levada a cabo no Arquivo Histó-rico Documental2 do Museu de Polícia Judiciária – tutelado pela Escola de PolíciaJudiciária - com o objectivo de tentar identificar e compreender:– As ligações entre a polícia de investigação criminal e a polícia política durante o pe-ríodo abrangido por este arquivo - grosso modo 1916-1960;– As formas que as supra referidas ligações tomaram e qual o seu grau de extensão;– O enquadramento histórico e jurídico da evolução dessas ligações.

II.Durante a nossa pesquisa sistemática no Arquivo Histórico Documental do Museu dePolícia Judiciária procurámos todos os elos de ligação, ou seja, todo o tipo de documen-tos isolados ou conjuntos tematicamente interligados que denotassem qualquer formade ligação entre a Polícia de Investigação Criminal – a PIC, até 1945, e depois a Po-lícia Judiciária (PJ) – e a polícia política, de percurso mais atribulado, à qual foram atri-buídas múltiplas e sucessivas designações.

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1 Trata-se da versão alargada e adaptada de um texto primeiramente publicado em versão francesa numa antologia detextos sob a direcção de Jean-Marc Berlière e Denis Peschanski nas Editions Complexe, sob o Título Pouvoirs et Po-lices au XXe Siècle, Bruxelas: 1997 e, seguidamente, publicado em português, em versão abreviada, na revista His-tória, nº15, Junho de 1999.2 Este arquivo é pesquisável seguindo as condicionantes da Lei dos Arquivos (Dec.Lei nº16/93, nomeadamente as res-trições do seu art.nº17) .

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Os vários “elos” serão apresentados como entradas, por ordem cronológica, sendo alvode uma abordagem linear que permitiu a prossecução do nosso fio de Ariadne.Estas entradas serão seguidas ou precedidas de informação que pretenderá explanar oseu contexto histórico e jurídico, dando-lhes assim o necessário enquadramento, quepermitirá a sua cabal compreensão.

III.

- 1916O primeiro elo encontrado reporta ao ano de 1916 e engloba vários documentos.De acordo com o teor destes, o director da PIC recebe ordens do ministro do Inte-rior para investigar os tumultos ocorridos a 31 de Agosto desse ano, em Lisboa. Nessedia, violentos confrontos entre uma multidão de manifestantes e as autoridades ti-nham causado uma série de vítimas. Estas desordens tinham sido provocadas por umareacção extremamente negativa a uma proposta de projecto de lei que visava a res-tauração da pena de morte em Portugal. O então director da PIC, Adolfo Coutinho, cumpre as ordens do ministro e, ao dara investigação por concluída, envia-lhe um relatório. Neste relatório, porém, o mesmodirector faz questão de salientar um detalhe que visivelmente considera da maior im-portância e que, aparentemente, fora ignorado pelo ministro:“... Eu não dirijo a polícia preventiva...” escreve A.Coutinho logo no início do seu re-latório ao ministro do Interior “... mas apenas e exclusivamente a polícia de investiga-ção criminal ”.Enquadremos esta citação: Na verdade, a “Polícia Preventiva” – só formalmente assu-mida como polícia política em 1918 – e a “Polícia de Investigação Criminal” nãoapresentaram, durante muito tempo, diferenciação legal, pertencendo ambas a umasecção da “Polícia Civil de Lisboa” (de origem monárquica), juntamente com as sec-ções de segurança pública e de inspecção administrativa. A República instaurada em 1910 não tinha levado a cabo nenhuma reforma profundada estrutura policial, tendo-se limitado a introduzir algumas alterações pontuais, fo-cando a sua maior atenção na substituição de elementos policiais conotados com o re-gime monárquico deposto (Ribeiro, 1992: pp. 31-32; Barreiros, 1982: p. 815).Contudo, o comentário do director da PIC acima citado demonstra-nos que nesta al-tura se ousavam fazer, abertamente, certas destrinças em termos de funções policiais:em 1916, a direcção da PIC fazia questão de se demarcar muito claramente da polí-cia política.

Polícia de Investigação Criminal versus Polícia Política durante a primeira República e o regime de Salazar:Notas de um arquivo

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- 1917No que diz respeito ao ano de 1917, encontrámos dois conjuntos documentais per-tinentes, analisando-se aqui apenas um deles.Reporta ele a uma busca efectuada pela PIC à residência de Afonso Costa. O conjuntoinclui: documentos referentes a procedimentos legais respeitantes à busca e apreensãode documentos e objectos, no referido domicílio; um requerimento da parte de umrepresentante de Afonso Costa e sua mulher, com vista à subsequente devolução dosmesmos; e, finalmente, vários documentos e manuscritos presumivelmente perten-centes ao próprio Afonso Costa.Líder do partido democrático e figura-chave da política portuguesa entre 1911 e 1917,Afonso Costa, que chefiara três governos (1913, 1915 e 1917) e se ocupara das pastasda Justiça (1910) e das Finanças (1915, 1917) em muitos outros executivos, desempe-nhou, relativamente à repressão política, um papel decisivo para a época: começou porapoiar bandos armados de cariz político – as Carbonárias e Carrapatas – tornando as ruasinseguras para todos os líderes políticos, exceptuando a sua própria pessoa. Mais tarde,quando os mesmos bandos se tornaram numa ameaça para ele próprio, tudo indica queterá criado a “formiga branca” – grupos de civis armados, constituídos por espiões e fi-guras de carácter e passado duvidosos. Estes eram recrutados pelo Governador Civil deLisboa, a mesma entidade oficial da qual a PIC hierarquicamente dependia, criandouma situação no mínimo bizarra, de autêntica concorrência na acção policial.Em Dezembro de 1917 Afonso Costa, deposto pelo golpe militar liderado por Sidó-nio Pais, teve de exilar-se. O conjunto de documentos que mencionámos dizem res-peito ao período de queda e desgraça do qual Afonso Costa não mais recuperou. Apesar de Sidónio ter permanecido no poder um ano apenas, o seu papel no que diz res-peito à repressão política e à polícia foi determinante mesmo para os anos seguintes.Decidido a pôr um ponto final na desordem pública e instabilidade crónicas dos úl-timos vinte anos, uma das prioridades de Sidónio Pais consistiu na reorganização dasforças policiais.Ainda em Dezembro, imediatamente a seguir ao golpe militar, introduziu algumas al-terações de menor envergadura na PIC, nomeadamente no que diz respeito à sua or-ganização e composição, com vista a imbuí-la com maior “orientação” e “disciplina”.O decreto3 compreende uma referência explícita a um corpo de “Polícia Preventiva”composto por 40 agentes e um chefe, nomeados pelo director da PIC. Em Março de 1918 surge o decreto que separa a “Polícia Preventiva” da PIC4. No con-texto do nosso trabalho, este decreto adquire particular relevância. Nele se afirma que:

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3 Decreto 3673, de 20 de Dezembro de 1917.4 Decreto 3940, de 16 de Março de 1918.

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“A polícia de investigação criminal não pode estar assim confundida com a polícia pre-ventiva, dado o carácter contencioso daquela”.Um terceiro decreto, em Abril5, vem completar o anterior, descrevendo as diferentesfunções dos dois “corpos autónomos de polícia”. A partir desse momento e até 1928,as sucessivas formas de polícia política vão assumir explicitamente a função de “pre-venir” “crimes políticos e sociais”.Ainda em Abril de 1918 um quarto decreto6 vem introduzir uma profunda reformapolicial, desta feita envolvendo todas as forças policiais. Apesar do assassinato de Si-dónio em Dezembro e da retoma do poder dos seus adversários pouco tempo depois,a estrutura global das forças policiais criada por esta reforma permanecerá, no essen-cial, a mesma, até 1922.Esta reforma centraliza todas as forças policiais sob a direcção de um único orga-nismo, a “Direcção Geral de Segurança Pública”, dependente do ministro do Interior.Esta Direcção comanda todas as secções policiais então criadas – incluindo a políciade investigação criminal e a polícia preventiva, agora separadas. Os elos entre estes doiscorpos de polícia ficam circunscritos a uma “relação de coordenação”, que se estendea todas as forças policiais. A “Preventiva”, como ficou conhecida a polícia política do efémero ditador SidónioPais, cedo se tornou tristemente célebre pelos excessos repressivos cometidos.

- 1919/1926O conjunto documental seguinte data de 1919 e diz respeito a acontecimentos ime-diatamente subsequentes à queda dos partidários de Sidónio Pais. Mais especifica-mente, esta documentação refere a exoneração de um número de agentes de investi-gação criminal; este conjunto está diretamente ligado a outro, datado a partir de 1926,que, por esse motivo, será apresentado no final deste ponto, fora da sua ordem cro-nológica.Enquadramento: os governos “sidonistas” lograram resistir à morte do seu líder porpouco tempo, apesar de terem conseguido esmagar uma confusa intentona revolu-cionária, de inspiração monárquica, no Norte do país. A pressão dos seus opositorespolíticos cedo se transformou numa vaga de despedimentos, que se iniciou antesmesmo do último governo sidonista cair. A polícia preventiva não constituíu, natu-ralmente, excepção. Pelo contrário, em consequência da sua violenta acção repressiva,foi uma das primeiras a sofrer purgas, em Fevereiro de 1919.

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5 Decreto 4038, de 5 de Abril de 1918.6 Decreto 4166, de 27 de Abril de 1918.

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O presente conjunto documental, como referido datado de 1919, prova que houvetambém despedimento de alguns agentes da PIC, apesar de legalmente separada dapolícia política. Estes agentes surgem aí referenciados como “não sendo da confiança doregime republicano”, constituindo, supostamente, uma ameaça de cariz monárquico. O outro conjunto documental relacionado com este, mas temporalmente desfasado,consiste em requerimentos e pedidos de reintegração de alguns destes agentes de in-vestigação criminal, e numa proposta do director da PIC, João Eloy, dirigida ao mi-nistro do Interior, no sentido de favorecer a reintegração a um número consideráveldestes agentes.Significativamente, todos estes requerimentos são posteriores ao 28 de Maio de 1926.Este facto sugere que o motivo que causou estes despedimentos na PIC em 1919 nãoterá sido tanto a alegada ameaça monárquica, mas a ameaça, certamente mais real, deuma ditadura republicana. Assim, após o golpe de 28 de Maio, muitos agentes des-pedidos em 1919 sentem-se encorajados a pedir a reintegração. E de facto, em mui-tos casos esta foi concedida, conforme consta na já mencionada proposta de reinte-gração, datada de 5 de Abril de 1927.A sequência destes dois conjuntos de documentos levanta, assim, a importante ques-tão de saber até que ponto as inclinações políticas individuais pesavam na selecção depessoal da PIC e, porventura, até que ponto a separação de jure entre a PIC e a funesta“Preventiva” terá sido efectiva e a PIC terá deixado, de facto, de estar envolvida na re-pressão política.

- 1923De 1923 datam os conjuntos documentais seguintes: - Ofício (nº4491), de Julho, dirigido à PIC e proveniente da “Polícia de Segurança doEstado”, solicitando três agentes para “processos políticos”.- Ofício (nº134), de Setembro, explicitando que a “Polícia de Segurança do Estado”fora extinta e que 20 dos seus agentes seriam transferidos para a PIC. - Conjunto parcialmente datado de Dezembro de 1923, constituído por uma se-quência de ofícios interligados que terminam com um requerimento de 23 de No-vembro de 1926, dirigido ao ministro do Interior por um agente da PIC, solicitandoque o tempo que esteve ao serviço da “Polícia de Segurança do Estado” – desde 21 deNovembro 1921 – seja contado para efeitos de reforma.O 4º conjunto documental de 1923 consiste em correspondência entre a PIC e a po-lícia política, que começa por ser a “Polícia de Segurança do Estado” (ofícios da primeirametade de 1923) e passa depois a “Polícia Preventiva e de Segurança do Estado” (segunda

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metade de 1923), com o seguinte teor: a polícia política solicita informações sobre in-divíduos, sobretudo sindicalistas suspeitos de manufacturarem e colocarem bombas;a PIC fornece as informações solicitadas.O que se passou, então, entre 1919 e 1923 que nos possa fazer compreender este ce-nário de intensa cooperação entre a PIC e as sucessivas polícias políticas?A múltipla alteração de designações da polícia política poderá hoje em dia confundir --nos, mas certamente que já na época terá lançado a confusão nos espíritos, num pe-ríodo em que a luta organizada das classes trabalhadoras atingia um pico (cerca de2000 greves entre 1919 e 1920 [Ramos, 1994: p.602]) e a correspondente respostarepressiva da República se tornava crescentemente aguda e severa. De facto, no curto período entre 1919 e 1922 a polícia política muda de designaçãotrês vezes: em Abril de 1919 passa de “Polícia Preventiva” a “Polícia de Segurança doEstado”7; em Fevereiro de 1922 passa a “Polícia de Defesa Social”8; e em Outubro domesmo ano a “Polícia Preventiva e de Segurança do Estado”9.No entanto, embora mude de designação tantas vezes (e por vezes também de pessoal),a sua estrutura permanece a mesma - exceptuando a última das alterações.De facto, entre 1918 e 1922 a reforma policial de Sidónio Pais permaneceu uma referêncialegal explícita nos vários decretos referentes à polícia publicados pelos efémeros governosdeste período, que se limitavam a tentar aplicar operações de cosmética a uma políciapolítica crescentemente impopular, cujos violentos excessos já ninguém podia ignorar.Outubro de 1922, porém, trouxe consigo uma nova reforma policial global, que pre-tendia substituir o decreto “sidonista” de Abril de 1918, que tinha sido “publicado numperíodo de ditadura” e “sistematicamente condenado” pelo Parlamento desde então10. Este novo decreto sublinha a importância da formação e da qualidade técnica do tra-balho policial numa sociedade moderna de crescente complexidade, especialmenteno que dizia respeito à PIC, “um dos mais importantes ramos da administração policial”.Por outro lado, reconhece a necessidade de uma profunda alteração na nova políciapolítica, agora designada “Polícia Preventiva e de Segurança do Estado”, “de modo queo público não reconheça os seus agentes”. A PIC deveria, por isso, contribuir para a “na-tureza essencialmente secreta” da polícia política, dando-lhe “practibilidade extensiva àsinvestigações”.A separação levada a cabo pela legislação de 1918 vê-se, assim, de certo modo, anu-lada em 1922. Na prática, converte-se a polícia política num autêntico “braço invisí-vel da PIC” (Ribeiro, 1992: p.38).

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7 Decreto 5367, de 7 de Abril de 1919.8 Decreto 8013, de 4 de Fevereiro de 1922.9 Decreto 8435, de 21 de Outubro de 1922.10 Idem.

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- 1926, anterior ao 28 de MaioO conjunto de documentos seguinte, datado de 1926, é particularmente representa-tivo da continuação das ligações entre os dois corpos policiais, revelando um piconesta cooperação. De facto, este foi o período em que encontrámos mais pedidos derequisição de agentes de um serviço policial para o outro. O conjunto de documentos consiste em cinco ofícios da “Polícia Preventiva e de Se-gurança do Estado” para o director da PIC, três dos quais requisitando urgentementeum número considerável – e até aqui inédito nesta pesquisa – de agentes da PIC. Significativamente, as datas coincidem com o período imediatamente anterior ao 28 deMaio de 1926.

- Outubro 1926 - 1927Todos os conjuntos documentais seguintes datados de 1926 são posteriores ao 28 de Maio.Em nenhum deles encontramos já referência à “Polícia Preventiva e de Segurança doEstado”. De facto, foi extinta logo em Junho de 1926, através de um decreto no qualo novo governo considera que os objectivos para os quais a polícia política tinha sidocriada, “a defesa e segurança do Estado, podem muito bem ser alcançados através da po-lícia de investigação criminal”11. Este novo enquadramento legal constitui a razão pela qual os quatro conjuntos documentais seguintes têm características específicas que os diferenciam dos restan-tes documentos seleccionados deste arquivo:- O 1º conjunto, datado de 7 de Outubro de 1926, consiste num ofício confidencial,com apêndices, do chefe da “Polícia de Segurança Pública” para o director da PIC, porordem do ministro do Interior, sobre relatórios realizados por organizações anti-co-munistas francesas e espanholas, com informações confidenciais de teor financeirosobre o Komintern e informações pessoais sobre comunistas estrangeiros. - O 2º conjunto é relativo aos últimos meses de 1926, e testemunha vários procedi-mentos por parte de agentes da PIC seguindo ordens directas da “Inspecção Superiorde Segurança Pública”, sucessora da já mencionada “Direcção Geral de Segurança Pú-blica”, que detinha sob seu comando todas as forças policiais. Engloba diligênciasefectuadas por agentes da PIC em organizações potencialmente “subversivas”, no-meadamente sindicatos de ferroviários.- O 3º conjunto consiste em dois ofícios confidenciais datados de 7 e 29 de Janeirode 1927, reportando-se a uma carta “insultuosa” enviada pelo “Comité da Federação

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11 Decreto 11727, de 15 de Junho de 1926.

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Anarquista da Região Central” ao representante de Mussolini em Portugal. O Governoitaliano pede explicações ao executivo português e a PIC é incumbida de “proceder àsnecessárias investigações”.A partir do início de 1927 não mais encontramos documentação da PIC exclusiva-mente relacionada com assuntos políticos.Por que motivo? Em Dezembro de 1926, seis meses após o golpe militar, havia sidocriada uma nova polícia política em Lisboa, desta feita sob a designação de “Políciaespecial de informações de carácter secreto”, mais tarde simplesmente designada por“Polícia de Informações”12. Sob a autoridade do Governador Civil de Lisboa, as suasfunções eram vagamente descritas como “todas aquelas que o governador lhe cometer”.Em Março de 1927 é criado um corpo análogo de polícia política no Porto13, comoreacção a uma importante rebelião militar que tinha alastrado a partir daquela cidade,em Fevereiro.Em Dezembro de 1927 a separação entre polícia política e polícia de investigação cri-minal torna-se ainda mais notória: a PIC é transferida do Ministério do Interior (MI)para o Ministério da Justiça (MJ)14. Esta transferência será irreversível: em Portugalnão mais a PIC, nem a sua sucessora, a Polícia Judiciária (PJ), serão tuteladas pelo MI,permanecendo na dependência do MJ até ao presente.

- 1928Em Março de 1928 os corpos de “Polícia de Informações” de Lisboa e Porto são reuni-dos numa única organização, que mantém a mesma designação. Está directamente su-bordinada ao MI e expande a sua acção a todo o território nacional15.Significativamente, o decreto que a cria substitui por “repressão” a expressão “preven-ção” de crimes políticos e sociais, utilizada desde 1918 em decretos relativos a esta te-mática policial.A nova “Polícia de Informações”, criada pela ditadura militar, é mais poderosa e au-tónoma do que as anteriores. Pela primeira vez são formalmente atribuídas a uma po-lícia política importantes competências instrutórias, pois “os autos por ela levantadose as investigações por ela realizadas fazem fé em juízo e valem como corpo de delito”.A partir destas inovações que se foram sucedendo rapidamente no tempo, constatamosque uma profunda mudança se operara no quadro de relações entre as duas polícias.

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12 Decreto 12972, de 16 de Dezembro de 1926.13 Decreto 13342, de 26 de Março de 1927 e Decreto 14143, de 11 de Agosto de 1927.14 Decreto 14657, de 5 de Dezembro de 1927.15 Decreto 14084, de 2 de Junho de 1927.

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A polícia política não só já não dependia da PIC, como era detentora de enorme po-der. Além disso, ocorrera uma separação completa em termos legais: dependiam,mesmo, de ministérios diferentes.Um dos documentos encontrados no arquivo vem demonstrar-nos que as transfor-mações legais entre as duas forças policiais chegaram a atingir outros moldes:Deparamos com uma queixa de um agente da PIC aos seus superiores hierárquicos,de Julho de 1928, relativa a um conflito alegadamente provocado pela “Polícia deInformações”. O agente relata ter sido arbitrariamente preso, por ordem directa dodirector da “Polícia de Informações”, tenente-coronel Pestana Lopes. Além disso,acrescenta alguns pormenores pitorescos ao seu relato. Segundo ele, o director da“Polícia de Informações” teria afirmado, em público, que na PIC “eram todos unsmalandros!”O tom deste incidente indica-nos que, pelo menos por esta altura, as muitas alteraçõesocorridas, sobretudo aquelas que tinham afectado as ligações hierárquicas e de inter- dependência entre as duas forças policiais, haviam causado um clima de conflitualidadeentre ambas.Por outro lado, a separação entre a polícia política e a PIC não significou que as con-vicções políticas do pessoal desta última fossem descuradas.De facto, encontrámos alguns manuscritos datados de Fevereiro de 1927, da autoriade 10 agentes da PIC, nos quais estes procuram explicar, de modo tanto quanto pos-sível convincente, a sua ausência ao serviço aquando da importante rebelião militarde 3 a 7 de Fevereiro. Alegam, p.ex., terem-se visto impedidos de circular nas ruas con-troladas pelos rebeldes, vendo-se obrigados a refugiar-se em casa de familiares. Um de-les declara ter sido oficialmente louvado no passado por ter combatido uma organi-zação esquerdista radical violenta; curiosamente, declara também nunca ter pertencidoà polícia política anterior, a “Polícia de Segurança do Estado”, nem nunca ter sidomembro de nenhum partido político.A vermelho, a margem deste manuscrito curiosamente ostenta as seguintes palavras: “Não seria conveniente investigar?”Com efeito, sob a ditadura militar, a repressão política intensificara-se. Várias rebeliõesmilitares tinham sido esmagadas (Outubro de 1926, Fevereiro de 1927, Agosto de 1927).Internamente, a base que sustentava a ditadura também não apresentava grande es-tabilidade.Na verdade, esta base de sustentação era um autêntico “melting pot” que incluía mui-tos segmentos políticos diferentes, desde radicais de extrema-direita a democratas con-servadores. Na tentativa de salvar a situação calamitosa que a República tinha atingido,um largo espectro de políticos tinha-se unido na disposição de apoiar o 28 de Maio,

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produzindo o que já foi considerado como “um programa mínimo com um máximo deapoio” (Rosas, 1994: pp. 152-155).Apesar do primeiro Governo que Salazar chefiou datar só de Julho de 1932, a sua in-fluência em todos os assuntos governamentais revelou-se decisiva logo após a sua entradapara o governo, a 27 de Abril de 1928. Com a ascensão da sua influência e poder, o sec-tor político que encarava a ditadura como uma transição necessária, mas transitória,no caminho para um regime mais democrático, entra num declínio inexorável.Com Salazar a repressão política não só aumenta, como sobretudo se torna mais or-ganizada e temida.

- 1932O conjunto documental seguinte reporta a 1932 e a emigração ilegal. Consiste numprocesso pertencente à “Polícia Internacional”, embora inclua vários documentos ori-ginários da PIC, evidenciando colaboração entre as duas. Enquadramento: Em 1928 a “Polícia Internacional” consistia apenas num serviço da“Polícia de Informações”16. Em Setembro de 1930, porém, este serviço de polícia in-ternacional é suprimido - reaparecendo como secção especializada da PIC17. Nas fron-teiras, contudo, os serviços eram executados pelo “pessoal da Polícia de Informações oupela entidade que a venha substituir no futuro”.As linhas de demarcação entre a polícia política e a PIC mais uma vez se tornavam di-fusas. Em Junho de 1931 a “Polícia de Informações” é abolida18.O motivo principal da sua extinção consistia na imagem deveras negativa que gran-jeara na opinião pública, pelos excessos e violências cometidos contra opositores po-líticos (Cruz, 1988: pp. 86-87).Na verdade, o ano de 1931 tinha sido um ano particularmente difícil para a ditadura,que teve de enfrentar a rebelião militar da Madeira em Abril, grande agitação socialem Maio, em Lisboa e no Porto, e ainda outra rebelião militar em Agosto, em Lisboa. As competências desta força policial “extinta” são transferidas para uma secção especialna Polícia de Segurança Pública (PSP). Porém, tudo indica que esta força policial “extinta”tenha continuado a funcionar exactamente nos moldes anteriores, com total autono-mia. De facto, em Maio de 1932 um simples ofício – e não um decreto – foi suficientepara a transferir e a transformar numa secção da “Polícia Internacional Portuguesa”

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16 Decreto 15884, de 24 de Agosto de 1928.17 Decreto 18849, de 8 de Setembro de 1930.18 Decreto 20003, de 3 de Junho de 1931.

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(Ribeiro, 1992: p.55), a nova polícia política criada em Julho de 193119. Esta nova sec-ção chamava-se “Secção de Vigilância Política e Social”.A partir do conjunto documental mencionado como entrada, datado de 1932, po-demos concluir que a cooperação entre a Polícia Internacional Portuguesa e a PICnão se tinha perdido. Na verdade, as razões que levaram à nova designação “Polícia Internacional Portu-guesa” não terão sido, certamente, aleatórias. Na verdade esta terminologia vinha so-lucionar simultaneamente dois problemas:Em primeiro lugar, em Abril de 1931 a República tinha sido proclamada em Espa-nha. Tal facto tinha como consequência que as principais ameaças para o regime por-tuguês passavam a ser de origem externa. O controlo das ideias esquerdistas e de “agi-tadores” vindos do estrangeiro, sobretudo de Espanha, tornara-se uma prioridade. Por outro lado, e segundo as próprias palavras de Agostinho Lourenço, era essencialque “a nova secção e seus funcionários vejam afastados o labeo desprimoroso que sobre esteserviço tem impendido” (Ribeiro, 1992: p.56).A solução consistiu num eufemismo insuspeito - “Polícia Internacional Portuguesa”,que apontava para assuntos internacionais, sem assumir propósitos políticos.Depois da já mencionada “Secção de Vigilância Política e Social” ter sido criada na“Polícia Internacional Portuguesa”, em Maio de 1932, outras alterações ocorreram.Em Janeiro de 1933 a secção tornou-se novamente autónoma. Chamava-se agora “Po-lícia de Defesa Política e Social”.Finalmente, em Agosto de 1933 a “Polícia Internacional Portuguesa” e a “Polícia deDefesa Política e Social” reunem-se, criando a “Polícia de Vigilância e Defesa do Es-tado” (PVDE).Tal como tínhamos visto no período 1919-1922, também aqui constatamos múlti-plas mudanças de designação da polícia política. Com brevíssimos intervalos de per-meio, decreto após decreto vão sucessivamente extinguindo e criando novas políciaspolíticas, cujo crescente impacto repressivo parece corresponder a períodos de vida dedurabilidade inversamente proporcional. Como então, também o período entre 1926e 1933 constituiu um período de violentas convulsões sociais. Neste último período,porém, tudo indica que não são apenas as designações da polícia política que mu-dam. Há também mudanças estruturais em termos legais. Vemos que polícia políticavai sendo sucessivamente alvo de separação ou união em relação a outras forças poli-ciais, com também sucessivas alterações no que concerne a atribuição de autonomiaou dependência entre as mesmas.

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19 Decreto 20125, de 28 de Julho de 1931.

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O que não sabemos é se, por um lado, muitas destas mudanças estruturais terão sidoapenas pretensamente criadas, nunca tendo sido de facto implementadas, como emdiversos exemplos anteriormente referidos; por outro lado e inversamente, quantasdestas alterações não terão constituído autênticos balões de ensaio para o que estavapara vir, após a legitimação do Estado Novo pelo plebiscito constitucional e a novaConstituição de 1933.E o que de facto veio foi a PVDE. Inserida num contexto internacional favorável,com regimes similares e ventos fascistas soprando de feição pela Europa fora, destafeita a polícia, a PVDE, fundia a “Polícia de Defesa Política e Social” e a “Polícia In-ternacional Portuguesa”, que permaneceram como as suas duas secções constitutivase complementares, a primeira dirigida contra opositores internos, a segunda contraameaças vindas do exterior. Não só preservou e concentrou num só organismo todasas funções e poderes das suas duas antecessoras, como viu as suas competências subs-tancialmente alargadas.Para além dos seus amplos poderes processuais – os autos por ela levantados e as in-vestigações por ela efectuadas valiam em juízo como corpo de delito – um novo de-creto, em Novembro de 193320, veio determinar uma nova sistematização dos “crimespolíticos e sociais” e o cumprimento das respectivas penas em prisões especiais. Umoutro decreto, em Junho de 1934, entrega à PVDE a jurisdição das referidas prisõesespeciais.Além disso, estes crimes eram julgados em tribunais militares. Segundo (Barreiros,1982, p. 823), “A ditadura militar, ciente da fidelidade programática dos seus juízes mi-litares, passava bem sem os encargos de uma justiça especial.”Nesta fase, a PVDE controlava quase completamente um sistema de justiça políticasem qualquer constrangimento judiciário externo. O decreto que criara a PVDE de-terminava também que a PIC e a PSP providenciassem toda a ajuda requerida e lhefornecessem os agentes necessários. Todas as autoridades, de resto, e representantes pú-blicos (incluindo representantes diplomáticos) estavam obrigados a prestar colabora-ção à PVDE.

- 1935O conjunto documental seguinte é tão sintomático deste novo contexto e da sua po-derosa polícia política que não necessita de qualquer comentário adicional.Consiste em três processos da PIC, vindos da Secção Internacional da PVDE. Partesubstancial dos procedimentos legais foi, pois, levada a cabo pela PVDE. Os processos

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20 Decreto 22203, de 6 de Novembro de 1933.

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dizem respeito a três indivíduos estrangeiros, com longos cadastros, que já tinhamsido expulsos várias vezes de Portugal.Na página 14 de um destes processos da PVDE, um despacho manuscrito datado de3 de Setembro de 1935 refere que, tendo sido condenado e expulso de Portugal porseis anos e tendo desobedecido, determinado indivíduo deverá ser entregue ao tribu-nal para ser julgado.No final, porém, o mesmo despacho, significativamente, acrescenta: “Solicita-se aomesmo tribunal que o entregue a esta mesma polícia se o réu for absolvido.”

- 1936Através de outro caso, datado de 1936, temos a oportunidade de vislumbrar os mé-todos da polícia política na época. Desta vez somos confrontados com um longo pro-cesso de homicídio, de cinco volumes, inteiramente dirigido pela PIC. Este homicí-dio, que alcançou uma certa notoriedade no tempo, tornou-se conhecido na imprensacom “o caso Ureña”.A parte inicial deste processo é a única que nos interessa aqui directamente. De facto,os primeiros acontecimentos que são relatados no processo não se referem ainda a umhomicídio, mas tão-somente ao desaparecimento de um indivíduo do sexo masculinode apelido Ureña. Familiares deste, ignorando o seu paradeiro, haviam comunicadoo desaparecimento à polícia.Não podemos evitar uma certa surpresa e perplexidade ao verificar que uma das pri-meiríssimas averiguações da PIC, ao investigar este desaparecimento, consiste em con-tactar a PVDE com o objectivo de “averiguar se o homem desaparecido está detido nessapolícia”.A prioridade desta medida, por parte da PIC, constitui um inequívoco indicador so-bre a frequência deste tipo de detenções na época e não deixa margem para dúvidassobre a maneira como essas detenções eram, em muitos casos, efectuadas.

-1951O caso que focaremos de seguida - e último - reporta-se já a 1951.Durante a última parte da segunda guerra mundial, e especialmente depois de 1945e da vitória dos aliados, o regime de Salazar viu-se obrigado a ajustamentos tácticos ànova conjuntura internacional democrática dominante. Para manter os princípios bá-sicos em que assentava o estado corporativo e de partido único português, as altera-ções reduziram-se a operações de cosmética das estruturas existentes.

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O caso da nova polícia política constituiu um caso paradigmático. De facto, a 22 de Outubro de 194521, a PVDE é abolida e substituída pela “PolíciaInternacional e de Defesa do Estado” – a tristemente célebre PIDE – substituição essainserida numa reforma de todo o sistema policial.Em comparação com o decreto que criara a PVDE em 1933, que assumia explicita-mente objectivos de repressão política, o decreto que cria a PIDE é notoriamentevago e omisso. No que diz respeito à descrição da estrutura organizacional, toma comoreferência a PJ – criada dois dias antes para substituir a vetusta PIC. De acordo com o decreto que cria a PJ22, são-lhe conferidas importantes competên-cias de instrução preparatória de cariz territorial e nos crimes cuja averiguação se re-velasse particularmente difícil, após autorização do Procurador-Geral da República;além disso, adquire as mesmas competências, mas desta feita exclusivas, no que con-cerne a “crimes de falsificação de moeda, notas de banco e títulos da dívida pública e trá-fico de estupefacientes, de mulheres e menores e de publicações obscenas”.Embora este decreto atribua, pois, à PJ, em algumas circunstâncias, uma posição pa-ralela à do Ministério Público, no mesmo decreto a PJ fica sujeita à fiscalização do Pro-curador-Geral da República e dos Procuradores da República nos respectivos distri-tos judiciais. A PIDE, pelo contrário, está longe de ficar sujeita a tal controlo. Apoiada num im-portante circuito de informadores (actuando nos locais de trabalho, escolas, centrosde convívio social), os seus métodos operacionais permanecem os mesmos da PVDE,além de conseguir um significativo alargamento da sua autonomia e dos seus pode-res legais de repressão política.De facto, a nova polícia política mantém os seus poderes de instrução processual noscasos de crimes contra a segurança interna e externa do Estado, podendo mesmo de-terminar, com quase total independência, o regime de prisão do arguido antes do jul-gamento. Os tribunais para crimes políticos, porém, deixam de ser entregues a entidades mili-tares; são criados, especialmente para este efeito, os “Tribunais plenários criminais”,cujos juízes e acusador público são nomeados segundo critérios de rigorosa confiançapolítica. Além disso, o período de prisão sem culpa formada, anteriormente circuns-crito a um máximo legal de oito dias, é alargado por um período de mais três meses,sujeito a alargamento de mais dois períodos de 45 dias. Em termos práticos, isto que-ria dizer que a PIDE podia agora, legalmente, alargar sucessivamente prisões semculpa formada por períodos até seis meses.

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21 Decreto 35046, de 22 de Outubro de 1945.22 Decreto 35042, de 20 de Outubro de 1945.

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Estas e outras medidas mais tarde postas em prática (como a implementação e suces-siva transformação e agravamento das “medidas de segurança”) tornaram legalmentepossível aplicar o que em termos práticos poderia significar prisão perpétua, mesmoa réus que tivessem sido absolvidos. Na realidade, significava que era a PIDE que aca-bava por ter o poder de decisão sobre quem tinha, ou não, o direito de viver em li-berdade.De facto, a PIDE, dependente do ministro do Interior mas “sempre, no essencial, pes-soalmente dirigida pelo chefe do governo” (Rosas, 1994: p. 275), constitui o elementocentral de um sistema repressivo que Cruz (1988: pp. 88-90) classifica como “justiçapolítica”, no qual a polícia política se articula com as suas prisões especiais, tribunaisespeciais, medidas de segurança e saneamento político (Rosas, 1994: p. 275).Neste quadro, todas as autoridades públicas estavam também formalmente obrigadasa cooperar nesta vasta rede repressiva. A nova PJ naturalmente que não constituía excepção a esta obrigatoriedade formal.O decreto que a cria refere explicitamente, e por mais de uma vez, a necessidade decooperação com a PIDE, especialmente no que concerne à repressão do crime orga-nizado internacional. O mais explícito elo de ligação entre as duas polícias encontra-se plasmado no artigo 65 do mencionado decreto, que prevê a possibilidade de trans-ferência de agentes de uma para a outra polícia, embora sujeita à autorização dosministros do Interior e da Justiça, e a parecer favorável dos directores de ambas as for-ças policiais.O único caso respeitante a este período que vamos focar, data, como já foi referido,de 1951. Trata-se do polémico homicídio de um dos antigos dirigentes do Partido Co-munista Português (PCP), Manuel Domingues, ocorrido em 1951.Manuel Domingues fora membro do comité central do PCP e tinha sido afastadodesta posição de chefia algum tempo antes da sua morte. O seu homicídio ocorreu emcondições misteriosas e o caso envolve substancial complexidade, cuja extensão excedepor completo os objectivos deste trabalho.Apesar dos antecedentes e do cenário político, o processo tinha sido entregue à PJ. Aolongo do processo, vemos que a PJ envia amiúde ofícios à PIDE, solicitando infor-mações sobre a organização e membros do PCP. A PIDE vai fornecendo as informa-ções solicitadas, por vezes com algum atraso.Durante o processo, a antiga companheira de Manuel Domingues é detida. Sob suspeitade pertencer também ao PCP, é considerada potencial cúmplice no acto perpetrado.Além disso, considera-se também que há indícios de que a detida poderia ter conheci-mento de factos tidos como fulcrais para a resolução do caso. Interrogada várias vezespela PJ e aconselhada pelo seu advogado (que aparentemente esteve sempre presente),

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sempre se recusou a responder a perguntas que pudessem confirmar a sua filiação noPCP ou potenciais ligações de outras pessoas com o mesmo partido. Esta situação ar-rastou-se por alguns meses.Quando a PJ concluiu que esta mulher não iria mudar de ideias e que estava deter-minada a guardar silêncio em questões consideradas cruciais, é feita uma sugestão porescrito para ser entregue à PIDE. Um ofício da polícia política acolhe favoravelmenteesta proposta de entrega. No final do processo, Maria Branco é entregue à PIDE.

IV.

Ao observar com objectividade o percurso evolutivo destas duas polícias no períodoem questão, não podemos deixar de atentar nalguns fenómenos que sobressaem commaior evidência, sob a forma de algumas conclusões e questões levantadas pelo con-junto de informação reunida, constituindo-se como potenciais pontos de partida parafuturos estudos:1. - Em primeiro lugar, sobressai a instabilidade da polícia com funções políticas, emcomparação com a evolução da instituição policial dedicada à investigação criminal de de-litos comuns: como vimos, durante o período analisado, a polícia política vê a sua desig-nação e a sua estrutura oficial legalmente alterada mais de 10 vezes23, enquanto a políciacom funções de investigação criminal de crimes comuns apenas muda de designação umavez, sofrendo alterações estruturais mais ligeiras ao longo de todo o percurso analisado.2. - Em segundo lugar, o período e os momentos em que a maior parte destas altera-ções ocorre, coincidindo com nítidas alterações políticas. De facto, observámos quetodas as mudanças de designação da polícia política no percurso temporal analisado– com uma excepção – se dão entre 1918 e 1933, portanto predominantemente du-rante a conturbada 1ª República e início da ditadura militar. Entre a estabilização daditadura do Estado Novo em 1933 e o ano de 1945 assistimos a uma única mudança,após a vitória dos aliados, correspondendo aos ajustamentos necessários à nova situa-ção política internacional. De 1945 até à revolução de 1974, ocorre uma outra únicaalteração, em 1969, já sob os auspícios tão cedo malogrados da Primavera Marcelista.3. - O traço mais visível nas ligações entre as duas polícias aqui analisadas envolve osseus diferentes graus de proximidade e o modo como este movimento evolui ao longodo tempo. Estas tendências evolutivas reflectem-se na documentação pesquisada, onde

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23 1918-Polícia Preventiva; 1919-Polícia de Segurança do Estado; 1922-Polícia de Defesa Social; Polícia Preventivae de Segurança do Estado; 1926-Polícia de Informações de Lisboa; 1927-Polícia de Informações do Porto; 1928-Po-lícia de Informações; 1931-Polícia Internacional Portuguesa; 1933-Polícia de Defesa Política e Social; Polícia de Vi-gilância e Defesa do Estado (PVDE); 1945-Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE).

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os elos de ligação entre as duas polícias que encontrámos não são quantitativamentehomogéneos ao longo de todo o período temporal coberto.Como observámos, no início deste processo evolutivo não se fazia qualquer destrinça– ou apenas de um modo extremamente vago – entre os dois serviços policiais, per-tencendo ambos à mesma e única secção de polícia. Este estado de coisas foi evoluindoao longo do tempo até uma separação definitiva ter sido levada a cabo nos anos trinta. Esta evolução em direcção a uma total separação, porém, não foi gradual nem clara,mas extremamente irregular, retrocedendo por diversas vezes em diferentes pontos.Será talvez importante referir aqui que a frequência e transitoriedade das alterações en-tre 1918 e 1933 relativamente à polícia política e por vezes à polícia de investigaçãocriminal terão também certamente condicionado em grande medida a sua efectivaimplementação. De facto, as alterações sucederam-se por vezes a um ritmo tal quenão poderemos deixar de nos questionar até que ponto é que realmente foram efec-tivadas. No mesmo sentido, em alguns pontos deste trabalho fomos confrontadoscom leis e factos não coincidentes. Para além disso, os decretos que determinavamestas várias alterações caracterizavam-se muitas vezes por serem extremamente vagose omissos. Como consequência desta indefinição (deliberada ou não) e da falta decredibilidade causada pela sua efemeridade, muitas matérias e decisões importantes terãosido, certamente, na prática, deslocadas da esfera formal e institucional para uma es-fera informal, com todas as consequências daí advenientes.Entre outras coisas, esta situação terá sem dúvida contribuído para diluir as frontei-ras e a diferenciação de funções já bastante vagas entre as duas forças policiais até1933, e sugere que, em muitos casos, estas possam ter sido arbitrárias. Esta circunstância torna-se mais significativa ainda se considerarmos que muitas des-tas mudanças diziam directamente respeito ao pessoal dos dois serviços policiais. Eramsobretudo os agentes policiais que estavam sujeitos a diversas movimentações entre asduas polícias. Como vimos, estas movimentações não só correspondiam a requisiçõespor parte da polícia política à polícia de investigação criminal para serviços específi-cos durante períodos muito curtos ou circunscritos, como também a transferências depessoal de um serviço policial para o outro por períodos indefinidos e, até, a integra-ção de brigadas inteiras ou serviços em diferentes forças policiais.4. - Outro aspecto interessante deste percurso consiste no modo como a hierarquia,a relação de poder e a interdependência entre os dois serviços policiais evoluíram e amedida em que tal evolução afectou o seu relacionamento formal e informal.Em termos gerais, poderemos dizer que, tendo partido de uma posição original de dependência da polícia de investigação criminal, a polícia política progressivamenteemancipou-se desta subordinação formal.

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Há fases intermédias durante as quais as duas forças policiais são mais ou menos in-terdependentes e as relações hierárquicas não são explícitas nem claras.No final deste processo evolutivo, porém, as posições iniciais invertem-se: as últimasformas de polícia política – a PVDE e a PIDE do Estado Novo de Salazar – são ser-viços policiais fortemente autonomizados com possibilidades de acção quase ilimita-das, que contam com a cooperação institucionalizada não só da PIC, mas também dasoutras forças policiais e autoridades públicas em geral.Esta inversão, embora diluída no tempo, surge naturalmente ao observador como poten-cial causadora de problemas nas relações formais e informais entre as duas forças policiais.E de facto, alguma informação reunida nesta pequena pesquisa indica-nos que momen-tos houve em que existiram conflitos entre ambas, tanto a nível formal como informal. 5. - Só se deu uma separação definitiva das duas forças policiais após a formalizaçãoe estabilização da ditadura, em 1933.Curiosamente, para Leone Santoro, chefe de uma missão da polícia italiana enviadaa Portugal – solicitada a Itália depois do atentado a Salazar em Julho de 1937 – estaseparação constituiu motivo de grandes críticas (Ribeiro, 1992: p.62). Os relatóriosfeitos por este representante da polícia italiana, que permaneceu em Portugal até 1940,defendem a completa unificação das forças policiais portuguesas sob uma direcçãogeral policial, afirmando que tal seguiria o exemplo do regime de Mussolini24. Deacordo com ele, um Estado forte não poderia ter uma polícia fraccionada. Sintomaticamente, o processo de separação tinha começado uns meses após o golpede Estado que instaurou a ditadura militar em 1926. Em 1927 as duas forças policiaistinham-se mesmo tornado dependentes de diferentes ministérios. Mas até 1931 aindatinha havido transferência de serviços de uma para a outra polícia. Esta separação torna-se ainda mais significativa se considerarmos o facto de anterior-mente só uma vez se ter tentado uma separação total entre as duas polícias, em 1918,precisamente durante o outro regime ditatorial deste período, a efémera ditadura deSidónio Pais. Isto significa que a separação jurídica destas duas forças policiais foi de-terminada em Portugal apenas durante os dois períodos de governo autocrático, em-bora apresentando formas diferentes e específicas. Este facto, juntamente com os anteriores, constituem certamente tópicos interessantespara futuras pesquisas, especialmente se trabalhadas numa perspectiva comparativacom a História das polícias dos outros países europeus, que tem sido alvo de estudossistemáticos ao longo dos últimos 50 anos.

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24 Apesar de a OVRA ter sido, pelo menos durante um determinado período, uma polícia independente.

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BibliografiaBARREIROS, José António (1982), «Criminalização política e defesa do Estado», inAnálise Social, nº 72, 73-74, pp. 813-828.CRUZ, Manuel Braga da (1982), «Notas para uma caracterização política do salaza-rismo», in Análise Social, nº 72, 73-74, pp. 773-794.CRUZ, Manuel Braga da (1988), O Partido e o Estado no Salazarismo, Presença, Lisboa.MARQUES, A.H. de Oliveira (1986), História de Portugal, vol. III, Palas, Lisboa.MATTOSO, José (1994), RAMOS, Rui, A Segunda Fundação (1890-1926), Histó-ria de Portugal, Vol. VI, direc. , Círculo dos Leitores, Lisboa.RIBEIRO*, Maria da Conceição (1992), ‘A Polícia Política no Estado Novo (1926-1945)’,Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UniversidadeNova de Lisboa. ROSAS, Fernando (1994), O Estado Novo (1926-1974) História de Portugal, Vol.VII,direc.* Esta tese foi entretanto publicada - Ribeiro, Maria da Conceição, A Polícia Políticano Estado Novo 1926-1945, Estampa, Lisboa 1995 - mas as páginas indicadas nesteartigo referem-se à versão policopiada.

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Primeira República (1910-1926)

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Carla Fonseca CostaInspetora da Polícia Judiciária. Licenciada em Ciências Farmacêuticas e pós-graduada em Segurança Interna

No presente artigo, foram escolhidos três dos crimes que, para além do impacto nasociedade de então, encheram as manchetes dos jornais e foram motivo de conversae especulação de muitos portugueses, que acompanharam os “avanços” das investiga-ções e seguiram, com emoção e avidez, as sucessivas notícias veiculadas pelos media.Seguindo esta linha orientadora, abordaremos, como não poderia deixar de ser, o as-sassinato do Pai da Polícia de Investigação Criminal - antecessora direta da PolíciaJudiciária - Sidónio Paes, que, na noite de 14 de dezembro de 1918, caiu inanimadona Estação do Rossio, defronte de inúmeros agentes da Polícia, que se viram incapa-zes de proteger o Presidente, vítima de homicídio, à semelhança de outros nomes so-nantes como Abraham Lincoln e John F. Kennedy. De seguida, faremos alusão a uma das noites mais macabras da História da nossa de-mocracia, que ficou conhecida como “noite sangrenta” e que consistiu no extermínio deuma série de figuras de renome, que tinham lutado pelos ideais liberais e democráticosda nação portuguesa e que se terão tornado personas non gratas, tendo sido “arrastadas”de suas casas, perante as súplicas dos seus familiares, que agoiravam uma morte inevi-tável, barbaramente assassinadas a sangue frio, manchando as mãos dos seus vis exe-cutores. Pereceram, nessa fatídica noite de 19 de outubro de 1921, António Granjo,Machado dos Santos, Carlos da Maia, Freitas da Silva e Botelho de Vasconcelos.Para o fim, ficará uma breve passagem por um crime de natureza passional, que envolveuo homicídio de Maria Alves, uma conhecida atriz do teatro Maria Vitória, que morreu àsmãos de Augusto Gomes, seu empresário, amante e (ex) protetor, a 31 de março de 1926.

Introdução

Na segunda metade do século XIX, verificou-se uma alteração do paradigma das prá-ticas criminais, mormente na forma como eram percecionadas pela sociedade. Se, naera pré-movimento de Regeneração1, a pequena criminalidade andava de braço dado

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1 Movimento que se seguiu à insurreição militar de 1 de maio de 1851, que levou à queda de Costa Cabral e dos go-vernos de inspiração Setembrista, que visava a renovação do sistema político e a criação de infra-estruturas básicas quepermitissem que Portugal se aproximasse dos níveis de desenvolvimento da Europa.

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com as revoluções políticas e sociais, na sequência da paz social e política decorrentedesse mesmo movimento, passou a ser encarada como um problema social, que urgiaser combatido.Assim, em 1867, foi criada, por Decreto d`El-Rei D. Luís I e iniciativa de MartensFerrão2, a Polícia Cívica, também designada por Polícia Civil, sob a alçada do Minis-tério da Justiça e do Reino. Vinte e seis anos após a sua criação, verificou-se uma restru-turação que culminou na distinção das funções de polícia de segurança pública, admi-nistrativa e de investigação criminal, que passou a ser da competência da Polícia deInvestigação Judiciária e Preventiva.Já em 1917, foi criada a Polícia de Investigação Criminal (PIC), através do Decretonº 3673, de 20 de dezembro de 1917, promulgado pelo então Presidente da Repú-blica Portuguesa, Dr. Sidónio Paes3, que encabeçara a revolta de 05 desse mês e ano.Face ao contexto sociopolítico da época, cuja instabilidade se traduziu em sete Parla-mentos, oito Presidentes da República e 45 Governos, entre 1910 e 1926, torna-se fa-cilmente compreensível que a PIC não tivesse uma existência fácil. Tinha por in-cumbência levar a cabo a investigação de crimes comuns e, em paralelo, os de naturezapolítica, movendo-se nos meandros de uma sociedade fechada e fértil em conspirações,prendendo e levando à Justiça os autores materiais dos crimes praticados, mas nemsempre logrando identificar os verdadeiros autores, aqueles que determinaram a prá-tica de alguns atos hediondos, como adiante se verá.

O assassinato de Sidónio Paes

Estávamos no ano de 1918. Sidónio Paes havia completado um ano de governação deum regime presidencialista – a “República Nova” – após deposição do então PresidenteBernardino Machado4, convidado a deixar o País.Homem culto, major e professor (regeu a cadeira de matemática, em Coimbra), Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Paes exerceu o poder com autoritarismo, não

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2 João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Martens, defensor acérrimo do movimento de Regeneração, deputado eministro, foi responsável pela aplicação de um pacote legislativo que abarcava vários setores da vida pública, como aextinção da mendicidade, criação de redes de apoio social, a reforma do ensino, bem como a criação de corpos de po-lícia e guarda civil.3 O “Presidente-Rei”, epíteto pelo qual ficou conhecido, tomou conta do país, que atravessava uma situação políticade grande instabilidade e de convulsões sociais, com “pulso de ferro”, reclamando para si todos os poderes e instau-rando um regime presidencialista à semelhança do americano, tendo sido eleito Presidente da República nas eleiçõesdiretas de abril de 1918. 4 Bernardino Luís Machado Guimarães exerceu o cargo de Presidente da República por duas vezes: de 06 de agostode 1915 a 05 de dezembro de 1917, regressando ao cargo em 1925 até ser novamente destituído, na sequência da re-volução militar de 28 de maio de 1926.

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descurando o aspeto social, tendo implementado algumas medidas populistas, comoo fim do envio de tropas portuguesas para os campos de batalha da Primeira GuerraMundial e a criação da “Sopa dos Pobres”, uma panaceia para as carências alimentaresde uma franja significativa da população da capital, que rapidamente lhe atribuiu oestatuto de “herói popular” e que regozijava com as suas aparições públicas, montadono seu corcel branco, qual D. Sebastião, rompendo o nevoeiro.Amado por uns, odiado por outros, Sidónio Paes - que, no dia 05 de dezembro de1918, sobrevivera a um atentado5 - pelas 23H50, do dia 14 de dezembro desse mesmoano, quando se preparava para cumprir uma visita à cidade do Porto, no sentido deapaziguar alguns tumultos, dirigiu-se à Estação do Rossio, onde o aguardava umamultidão de apoiantes entusiastas. Enquanto rompia caminho perante os seus admiradores, foi, subitamente, atingidopor um tiro. Sidónio Paes ainda foi transportado com vida ao Hospital de São José,mas acabou por falecer, na sequência do ferimento sofrido.A notícia do crime rapidamente se disseminou pelos vários jornais da época, enchendoprimeiras páginas com títulos sensacionalistas e relatando os pormenores, que viti-maram o Presidente. Não podemos deixar de fazer referência à frase “Morro bem… Salvem a Pátria!...”,que ficou, de forma permanente, associada a Sidónio Paes, correspondente às últimaspalavras proferidas pelo Chefe de Estado antes de expirar. Esta frase foi plasmada naspáginas do Jornal O Século, fruto da mente criativa de um dos repórteres mais me-diáticos da época, Reinaldo Ferreira, conhecido por “Repórter X”6. Efetivamente, Rei-naldo Ferreira acabou por, mais tarde, confessar que a frase foi de sua autoria e visavaenfatizar o seu relato. Quanto aos autores do crime, inicialmente, a investigação apontou para dois suspei-tos, José Júlio da Costa e Luís Furtado Saraiva. Este último, mortalmente, atingidopor disparos da polícia, em reação imediata ao tiro que vitimou Sidónio Paes. A teo-ria do envolvimento de Luís Saraiva assentava no facto de ter sido encontrado um re-vólver num dos seus bolsos, para além de se situar próximo de José Júlio da Costa naaltura do atentado.Contudo, tal como se veio a apurar depois, a morte de Luís Saraiva não passou de um“dano colateral”, uma vez que este nada tivera a ver com o homicídio; apenas se terádeslocado ao Rossio, à procura de um agente que tinha a seu cargo a investigação de

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5 Atribuído à Maçonaria, na sequência da invasão da sua sede, em Lisboa, por apoiantes de Sidónio Paes, não obs-tante este ter sido maçon, filiado na Loja “Estrela de Alva”, em Coimbra, com o nome de irmão Carlyle.6O “Repórter X” era pródigo em “colorir” os seus artigos, de forma a deliciar os leitores, sem grandes receios de de-turpar a essência da notícia – a sua veia artística sobrepunha-se, inúmeras vezes, ao simples dever de informar, comoteremos oportunidade de verificar no presente artigo.

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um crime de roubo, cometido contra um seu vizinho, o General Negrão, tendo apro-veitado para assistir à partida do Presidente. Luís Saraiva estava à hora errada, no sítioerrado. O seu nome acabou por ser limpo pelo Alferes Paixão, que o descreveu comouma “pessoa ordeira e afeiçoado à atual situação”7 e explicou quais as circunstânciasque o colocaram na Estação do Rossio, no trágico dia 14 de dezembro. Acresce aindaque o exame ao revólver demonstrou inexistência de “cápsula ferida”.O assassino confesso de Sidónio Paes foi José Júlio da Costa, indivíduo natural deGarvão (Alentejo), com cerca de 30 anos, descrito pelos media como um “fanático pe-rigoso, pertencente à Maçonaria” 8. Presumivelmente, na origem desta conclusão terásido pertinente a apreensão, num dos bolsos do homicida, de uma carta que com-prometia Magalhães de Lima9, na qual José Júlio da Costa declarava os seus intentose demonstrava esperança de encontrar o Presidente na Estação, algo de per se de-monstrativo de algum grau de premeditação.José Costa foi interrogado, diversas vezes, pelo próprio Comandante da Polícia e peloAgente Fazenda da 2.ª Secção de Investigação, tendo sempre negado a existência decúmplices, não obstante as conclusões da investigação apontarem para um “vasto com-plot para matar o Chefe de Estado”10. A polícia escrutinou os meandros da sociedade edeu início a uma série de prisões e interrogatórios de indivíduos conspiradores contrao Governo de Sidónio Paes, dos quais se destacam Germano Martins, Diretor-Geralda Secretaria de Estado da Justiça, Baptista Duarte, proprietário do Hotel Duas Na-ções, o Reitor e vários funcionários do Liceu Gil Vicente e o próprio Grão-mestre daMaçonaria, Magalhães Lima.O homicida foi preso e internado no Hospital de Rilhafoles (que, mais tarde, ficouconhecido por Hospital Miguel Bombarda), acabando por ser libertado na sequênciados acontecimentos de 19 de Outubro de 192111. Com a morte de Sidónio Paes, o País ficou mergulhado num luto profundo, que aca-lentava a desilusão de todos aqueles que haviam depositado a sua esperança no “Presi-dente-Rei” e que, um pouco por toda a capital, foram atores de manifestações pelo Chefede Estado, herói que perecera às mãos de um lunático assassino. As cerimónias fúne-bres arrastaram-se por vários dias, tendo o seu corpo permanecido em câmara ardente,permitindo-lhe alcançar o estatuto de mártir. Enquanto os lisboetas se perfilavam,

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7 Diário da República de Domingo, Ano 54.º, n.º 20.8 Diário da República de Domingo, Ano 54.º, n.º 20.9 Sebastião de Magalhães Lima exerceu, durante vários anos, o cargo de grão-mestre da Maçonaria portuguesa. Paraalém disso, foi advogado, político, escritor e jornalista, tendo fundado o Jornal “O Século”.10 Diário da República de Domingo, Ano 54.º, n.º 20.11 José Júlio da Costa ficou sob a proteção de Alberto Midões, proprietário do Hotel e Café Central, em Matosinhos,até ser recapturado, a 15 de janeiro de 1927. Foi de novo internado no Hospital Miguel Bombarda, onde viria a fa-lecer, em meados dos anos quarenta.

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a fim de prestar a última homenagem a Sidónio Paes, eram distribuídos panfletosenaltecendo as qualidades daquele que fizera palpitar o coração de inúmeras damas lis-boetas.O Chefe de Estado foi a sepultar no dia 21 de dezembro, num cortejo fúnebre fértilem incidentes, que versaram desde a detenção, em flagrante delito, de um incautocarteirista, que pretendia reverter a distração da multidão a seu favor, de um cavaloque puxava um carro se ter espantado e, consequentemente, provocado uma onda depânico na turba que acompanhava o cortejo, até a um pretenso tiroteio no Hotel In-ternacional, no qual se havia hospedado o assassino de Sidónio Paes. Tal facto moti-vou uma rusga policial desencadeada logo após o encerramento das exéquias, quer aesse estabelecimento de hotelaria, quer ao Hotel Duas Nações, que, ainda hoje, al-bergam turistas ávidos de visitar a nossa capital, face às suas localizações privilegiadas(o primeiro, na Rua da Betesga, enquanto que o segundo está erigido na esquina darua Augusta, com a rua da Vitória).E assim desapareceu uma grande personalidade da nossa História, substituída, no Po-der, pelo Vice-almirante Canto e Castro12. Contudo, com o desaparecimento do pi-lar que sustentava o Sidonismo, a tendência dominante apontava para a desagregação,deixando o País à mercê das disputas entre os interesses monárquicos e republicanos,numa constante instabilidade política e social.Quanto ao autor mediato do homicídio de Sidónio Paes, apenas podemos especular,face à inexistência de elementos que permitam uma conclusão assertiva e inatacável.Aliás, José Júlio da Costa sempre afirmou ter atuado sozinho, sem o auxílio de cúm-plices ou sob as ordens de mandantes. Existem, no entanto, correntes que defendem atese do envolvimento da Maçonaria, assente na carta apreendida no bolso do assassino,comprometendo o grão-mestre Magalhães de Lima, enquanto outras defendem queapenas a Monarquia teria um verdadeiro interesse na aniquilação do Chefe de Estado.

Noite Sangrenta

19 de outubro de 1921, fica para a História como um dia negro. Um conjunto de acon-tecimentos macabros levou a que fossem pré-selecionadas e posteriormente assassi-nadas, sem qualquer espécie de comiseração, uma série de figuras públicas de renome.Vivia-se, em Portugal, uma situação de grande instabilidade, caraterizada por umagestão ineficiente, que levou ao incremento do custo de vida dos portugueses. Há que

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12 João do Canto e Castro foi eleito Presidente da República, na sequência do assassinato de Sidónio Pais, tendo ocu-pado o cargo durante trezentos dias e nomeado quatro Governos, nesse período. Foi substituído a 06 de outubro de1919, por António José de Almeida.

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salientar que, no período que sucedeu à Primeira Guerra Mundial, surgiram os “no-vos-ricos” que criaram e aumentaram as suas fortunas em negócios de transparência du-vidosa. Findo o conflito, esta “nova” classe social aplicou o seu dinheiro, originandoum excesso de liquidez no País e um balão de ar fresco para as Finanças debilitadas.Contudo, sensivelmente, a partir de 1919, a política adotada pelo Partido Democrá-tico acabou por clivar a sociedade em duas fações distintas, colocando em rota de co-lisão as classes mais desfavorecidas e a dos “novos ricos”, que somavam regalias, en-quanto que, aos primeiros eram exigidos cada vez mais sacrifícios, para fazer face aocrescente endividamento do Estado e consequente aumento do custo de vida.A instabilidade política que se fazia sentir resultava, em grande parte, das múltiplasalianças interpartidárias, uma vez que o partido que detinha o Poder (Partido De-mocrático) não dispunha da maioria necessária à governação. Acrescia a inexistênciade uma estratégia, sendo que as consequentes e sucessivas mudanças de governo eramum obstáculo considerável à implantação de medidas que permitissem ao País sair dasituação em que se encontrava.A 24 de Maio de 1921, o Presidente da República, António José de Almeida13 entre-gou o poder a Barros Queiroz14 e, em julho desse mesmo ano, foi o Partido Liberalque venceu as eleições sufragadas pelos portugueses. Das sucessivas convulsões sociais resultou o aumento da violência, o que motivou umincremento da capacidade militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), refor-çada com efetivos e equipamento militar, dotando-a de maior poder, o que poderá terpotenciado os primeiros movimentos revolucionários inconsequentes de 05 de março,18 de abril e 21 de julho de 1921 no seio dos círculos militares.Em Agosto, António Granjo, republicano, maçon15 e carbonário16, forma Governo edesencadeia uma onda de protestos contra si.A contestação foi de tal ordem que culminou numa sublevação de marinheiros e outrosmilitares, chefiada pelo Coronel Manuel Maria Coelho17 – assessorado pelos oficiais

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13 António José de Almeida, Presidente da Primeira República Portuguesa, que exerceu o cargo entre 05 de outubrode 1919 e 05 de outubro de 1923.14 Tomé José de Barros Queiroz exerceu o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, em simultâneo com a tutelados Assuntos Fiscais, no período compreendido entre 24 de maio e 30 de agosto de 1921. O fracasso do seu Governodeveu-se, essencialmente, à tentativa frustrada do recurso ao crédito externo, através de um empréstimo de 50 milhõesde dólares nos Estados Unidos da América, o que acabou por contribuir para descredibilizar as instituições da Pri-meira República e potenciar a instabilidade sociopolítica.15 Conhecido pelo nome simbólico Buffon.16 A Carbonária era uma associação “secreta”, originária de Itália. Em Portugal, foi fundada em 1896, pela mão deLuz Almeida. A Carbonária apresentava algumas similitudes com a Maçonaria, diferenciando-se no estrato social dosseus membros (mais elevado na Maçonaria), uma vez que a Carbonária incluía as classes trabalhadoras e tinha umavertente “operacional”, mais voltada para a ação.17 Manuel Maria Coelho, oficial do Exército Português, militante republicano e maçon, foi um dos sublevados da Re-volta do 31 de janeiro de 1891.

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da GNR Camilo de Oliveira, Cortêz dos Santos e Procópio de Freitas, capitão-de-fra-gata – que, no dia 19 de outubro, fizeram do Arsenal da Marinha (antigas instalaçõesde reparação e manutenção das embarcações da Marinha Portuguesa), a sede do seunúcleo revolucionário, funcionando como “sala de comando”, donde foram emanadasuma série de instruções, que se traduziram numa “limpeza dos maus republicanos”.Nesse dia, o comandante Procópio de Freitas e o capitão Tires Falcão, deram instru-ções aos marinheiros que se encontravam no Arsenal, que se deslocassem a bordo daFragata D. Fernando, ancorada no porto de Lisboa, se armassem, equipassem e re-gressassem com a maior brevidade possível, secundando uma primeira leva de mari-nheiros que já o havia feito, sob o comando do guarda-marinha, Benjamim Pereira. António Granjo, que se demitira nesse mesmo dia, do cargo de Primeiro-Ministro, afim de evitar derramamento de sangue e temendo pela sua vida, atento às movimen-tações no seio da marinha, pediu guarida ao seu amigo e adversário político CunhaLeal18, que não hesitou em fazê-lo, interrompendo a comemoração do aniversário dasua esposa. “Leal” não só de nome, mas também de personalidade, tomou iniciativade ligar para o capitão Sousa Guerra, alertando para o facto de António Granjo po-der correr perigo concreto.Assim, sabendo onde António Granjo se tinha acoitado, o capitão Sousa Guerra deuordens para que uma escolta se deslocasse a casa de Cunha Leal, a fim de prender António Granjo, recorrendo a todos os meios necessários, incluindo a entrada for-çada no prédio e no apartamento. Contudo, os revoltosos estavam sedentos de sangue, pelo que a prisão dos (maus) republicanos, não lhes acalmava os ânimos. O capitão Sousa Guerra terá, inclusiva-mente, manuscrito e assinado um bilhete, dando instruções para a execução de António Granjo, nos termos “tem ordem para matar o bicho!”A fim de serem reunidas as condições necessárias para a execução das ordens, após con-ferência entre Benjamim Pereira, os tenentes Malta e Mergulhão e o capitão SarmentoRodrigues, ficou determinada a cedência de uma camioneta19 da GNR, que se en-contrava sob as ordens do tenente Mergulhão e era conduzida por Rogério Augustoda Silva, para transportar a escolta que deveria recolher os alvos da ira e da revolta dosrepublicanos radicais.Pouco tempo depois, a dita camioneta deixava o Arsenal, transportando uma escoltadeterminada a resgatar, a qualquer custo, António Granjo, subtraindo-o à proteção de

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18 Francisco Pinto da Cunha Leal, militar e político português. Exerceu o cargo de Presidente do Conselho de Ministrosde 16 de dezembro de 1921 a 06 de fevereiro de 1922, acumulando a Presidência com a pasta de ministro do Interior.19 Veículo que serviu para escoltar e transportar as vítimas da “noite sangrenta”, deslocando-se, durante a madrugadade 19 para 20 de outubro, pelas ruas de Lisboa e arredores, missão que lhe valeu o epíteto de Camioneta Fantasma.

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Cunha Leal. Não foi necessário forçar a entrada em casa de Cunha Leal que, conti-nuando a fazer jus ao nome, acompanhou António Granjo, presumindo que, dessaforma, este ficaria a salvo. E, assim, António Granjo foi escoltado e entrou na camio-neta, rumo ao seu trágico destino. A camioneta não entrou no Arsenal, dirigindo-seantes para o Terreiro do Paço, onde um aglomerado de marinheiros e civis aguardava,gritando “Mate-se!”. Só a intervenção de Cunha Leal20 em defesa do amigo, impediu que o mesmo viessea ser selvaticamente executado nesse local, levando a escolta a reconduzir AntónioGranjo ao Arsenal.Já no local e, na sequência de uma manobra ardilosa, foi possível separar Cunha Leal deAntónio Granjo, que, sem a proteção do amigo, acabou por ser morto pelos revoltosos.Cumprida a missão, o grupo encarregue de escoltar e executar António Granjo rece-beu novas ordens, pelo que se dirigiu ao número 10 das Janelas Verdes, no sentido decapturar o capitão Carlos da Maia21, intento não logrado já que o mesmo, poucotempo antes, se havia mudado para a Rua dos Açores.Nessa morada, acabou por ser localizado e capturado, não sem antes Carlos da Maia,conhecedor dos protocolos em vigor nas forças armadas, ter exigido ser detido por al-guém da sua patente ou de patente superior, imposição que não foi atendida, pelo queacabou por acompanhar os seus captores.Berta da Maia, a esposa inconformada, bem suplicou para que não lhe levassem o ma-rido, pressagiando o triste destino que o esperava. Mas o seu pedido não logrou aco-lhimento por parte da escolta designada para transportar Carlos da Maia ao Arsenal.Chegados ao destino veio a ser executado por Francisco António Benevides, que, decarabina empunhada, insultou Carlos da Maia e, ato contínuo, lhe desferiu um tirona cabeça.E a noite ainda não terminara…De seguida, o mesmo grupo dirigiu-se ao número 14 da Rua José Estevão, na zonada Estefânia, local de residência do almirante António Maria de Azevedo Machado dosSantos, onde ordenaram, sob ameaça das armas, que os acompanhasse. Foi este ho-mem que, após o suicídio do almirante Reis, aguentou estoicamente um pequenogrupo de revoltados militares e civis da Carbonária, permitindo a vitória do 5 de ou-tubro de 1910 e a implantação da República.Contudo, o almirante não chegou ao Arsenal da Marinha… No Largo do Intendente,a camioneta sofreu uma avaria, que impossibilitou a continuação da macabra missão.

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20 Cunha Leal terá recordado a bravura do amigo, alegando que António Granjo “tinha combatido na Flandres e quenão tinha tido medo das balas dos alemães e que, por isso, não tinha também medo das balas portuguesas”.21 José Carlos da Maia, oficial da marinha portuguesa e político republicano. Ocupou o cargo de ministro da Mari-nha, durante cerca de três meses, em 1918, no governo de Sidónio Paes.

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Os marinheiros, sedentos de sangue, ordenaram ao almirante que se apeasse e deci-diram fuzilá-lo ali mesmo, pelo que rapidamente improvisaram um pelotão de fuzi-lamento, desferindo alguns tiros no almirante.Os algozes, a fim de se livrarem do corpo, mandaram parar uma tipóia22, que trans-portava em direção a casa, o empresário Augusto Gomes23e requisitando-a para otransporte do corpo do almirante à morgue do Hospital de São José. Chegados ao lo-cal e apercebendo-se que o herói do 05 de Outubro se recusava a abandonar estemundo, finalizaram o “trabalho” iniciado no Largo do Intendente, desferindo-lhemais tiros e coronhadas.Também Carlos César Freitas da Silva, capitão-de-fragata e chefe de gabinete do mi-nistro da Marinha, Ricardo Pais Gomes, foi escoltado, a pé, pela Baixa Lisboeta,desde o seu domicílio, até ao Arsenal. A meio caminho, o grupo de marinheiros, co-mandado pelo segundo-sargento da marinha, João Nazareth Palmela Arrebenta epelo sinaleiro da armada, José Maria Félix, foram interpelados por uma viatura comelementos da GNR, sob a responsabilidade do capitão Camilo de Oliveira, que, apósse inteirar da identidade do “preso”, ordenou que o mesmo lhe fosse entregue, dis-ponibilizando-se a conduzi-lo ao Arsenal, presumindo que o mesmo aí estaria a salvo.Contudo não logrou concretizar os seus intentos, pois após algumas trocas de pala-vras com os marinheiros de ânimos exaltados, choveram tiros que trespassaram ocorpo de Freitas da Silva, acabando por engrossar o número de vítimas desta noitesangrenta.O mesmo se passou com o coronel Carlos Alexandre Botelho de Vasconcelos, con-duzido ao Arsenal pelo sargento Heitor Charles Gilman, em cumprimento de ordensemanadas pelo major Oliveira e pelo tenente Graça, ambos oficiais de polícia. Carlos Vasconcelos foi surpreendido em sua casa, sita no número 44 da Rua Gonçal-ves Crespo, em Lisboa, pelo séquito de indivíduos, sob a vigilância atenta e passiva deuma patrulha da GNR. Homem honrado e corajoso, não obstante as rudes maneirasdos seus captores, pediu licença para envergar a sua farda e, só depois, se dispôs aacompanhá-los. Seguiu, a pé, no meio da corja de facínoras, a caminho do destino queo esperava: a morte. Aconteceu junto ao portão do Arsenal, como resultado da inter-venção de alguns marujos sanguinários que, sem misericórdia, lhe desferiram váriostiros e o deixaram a esvair-se em sangue, presumindo-o morto.

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22 Carro puxado a cavalos.23 Indivíduo que desempenhou um papel preponderante no próximo caso narrado, que reporta ao homicídio de Ma-ria Alves. A sua intervenção nos acontecimentos de 19 de outubro não ficou devidamente esclarecida, uma vez quese desconhece se se tratou apenas de uma coincidência (que se resume ao empréstimo do carro em que se fazia trans-portar), ou se Augusto Gomes teve alguma participação adicional.

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Foi solicitada a intervenção da Cruz Vermelha cujos enfermeiros, ao constatarem quea vítima ainda tinha um sopro de vida, cometeram o erro de o comunicar aos bárba-ros executores que, investiram novamente contra o corpo do oficial, alvejando-o eagredindo-o com coronhadas. O corpo do coronel Botelho de Vasconcelos chegou ao Hospital de São José às qua-tro da madrugada, onde veio a falecer dois dias depois, na sequência dos ferimentosinfligidos.Mas estas não foram as únicas vítimas daquela noite: um intelectual da época, cujonome não foi possível apurar, bem como um motorista de uma tipóia, Jorge Gentil,foram eliminados pelos facínoras, por entrarem em discussão com eles.Consta que estas mortes não foram decididas no momento, de ânimo leve, mas terãosido premeditadas. Há, inclusivamente, referência a uma lista de indivíduos a abater.Outros nomes fariam parte dessa lista, como é o caso de Fausto de Figueiredo, in-dustrial português que transformou o Estoril numa estância turística de reputação in-ternacional, de Alfredo da Silva, industrial ferido a tiro, perto de Leiria, e do próprioministro da Marinha, Ricardo Gomes, que se encontrava em Viseu e, dessa forma, es-capou à ira dos revoltosos. De igual sorte não se pôde gabar o seu chefe de gabinete,Freitas da Silva, chacinado a caminho do Arsenal.Já João Tamagnini de Sousa Barbosa, político português que se juntou à maçonariaem 1911 e desempenhou o cargo de ministro das Colónias, do Interior e, posterior-mente, das Finanças, no período do sidonismo, cujo nome também faria parte dalista de indivíduos a abater, ficou a dever a vida à enérgica intervenção do chefe de es-tação de Santo Amaro de Oeiras, João Miguel Maia, de sua graça, que intercedeu porele, junto do grupo designado para o eliminar.As justificações do grupo, portador de ordens superiores para liquidar Tamagnini Bar-bosa, bem como outras individualidades residentes na linha de Cascais (entre as quaisse encontrava Fausto de Figueiredo), que se gabava de já ter liquidado Machado dosSantos, não surtiram efeito no chefe de estação, que manteve a sua posição durantetoda a discussão e, dessa forma, permitiu que a vida do político fosse poupada.Nessa noite infame, polícias e civis armados deslocaram-se à penitenciária e liberta-ram José Júlio da Costa, o assassino de Sidónio Paes. Salienta-se que, à exceção deAntónio Granjo, todas as vítimas do massacre - republicanos moderados - haviamsido sidonistas. Parece-nos, pois, que os assassinos não quereriam vingar o 5 de ou-tubro de 1910, mas sim o 05 de dezembro de 1917 e daí o simbolismo da libertaçãode José Júlio da Costa.Aos carniceiros não bastou a atitude de António Granjo e do seu Governo, que se de-mitira na véspera, a fim de evitar o derramamento de sangue, entregando o poder ao

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então Presidente, António José de Almeida, que se recusou a entregá-lo a Manuel Ma-ria Coelho, líder da revolta radical e interveniente na sublevação de 31 de janeiro de189124, no Porto, que acabou por ser reprimida e lhe custou um degredo de cinco anosem Angola.Não obstante a recusa inicial de António José de Almeida, os acontecimentos de 19 deoutubro acabaram por permitir que Manuel Maria Coelho segurasse o leme da go-vernação do país, ainda que por um breve período, mediado entre 19 de outubro e05 de novembro de 192125. Efetivamente, os crimes hediondos que marcaram estemovimento revolucionário impediram que alguns dos nomes sonantes da época qui-sessem ser conotados com um “governo de assassinos”. A GNR viu, em pouco tempo, o seu período áureo terminado, passando a cingir-sea uma força de policiamento rural.O inquérito instaurado para apurar a identidade dos autores dos assassínios cometi-dos a coberto do movimento de índole nacional foi designado pela imprensa da épocacomo “um processo monstruoso”, mal instruído pelo então subdiretor da PIC, que, paraalém da sublevação dos republicanos radicais, encabeçada por Manuel Maria Coe-lho, ignorou a tese da eventual existência de uma conspiração monárquica.O julgamento do caso iniciou-se a 23 de novembro de 1922, tendo sido a sentençalida a 1 de junho de 1923. Resultou da mesma a condenação dos executores, mas nãose considerou provado que o movimento revolucionário tivesse determinado a práticados homicídios.A dúvida relativa à autoria mediata dos bárbaros homicídios permaneceu até à atua-lidade: há quem defenda que a conspiração tem origem nos monárquicos, outrosapontam para a intervenção de republicanos radicais, nunca se tendo identificadoquem determinou o massacre de outubro de 1921.Inconformada com a decisão do tribunal, a viúva de José Carlos da Maia, Berta daMaia, iniciou uma investigação por conta própria e chegando a ganhar a confiança deum dos executores, Abel Olímpio, o Dente de Ouro26, com as sucessivas visitas à pe-nitenciária de Coimbra, onde este se encontrava a cumprir pena de prisão.O calvário de Berta da Maia, que apenas pretendia resolver o mistério que a Políciase revelara incapaz de fazer, não permitiu a reunião de provas consideradas suficien-tes para a reabertura do processo, mas permitiu-lhe escrever uma obra, à qual deu o

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24 Consistiu no primeiro movimento revolucionário que visava a implantação do regime republicano, em Portugal.25 A 16 de dezembro de 1921, Cunha Leal, um sobrevivente do massacre, assumiu a chefia do Governo.26 Ouvido no âmbito dos processos-crime (um instaurado logo após o massacre e outro, com o n.º 1055, aberto em abrilde 1926), no qual assumiu ter sido um dos tripulantes da Camioneta Fantasma, acompanhado por Manuel José Carlos,Cipriano dos Santos, Manuel Combo, Porfírio Messias, José Maria Félix, Palmela Arrebenta, Timóteo Rodrigues e outros.

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título “As minhas entrevistas com Abel Olímpio, o Dente D`Oiro”, que resultou das in-findáveis conversas que entabulou com um dos assassinos da noite sangrenta, conde-nado a 12 anos de prisão e 20 de degredo.Curiosamente, o processo veio a ser reaberto, a 13 de abril de 1926, na sequência deum requerimento apresentado por Augusto Zeferino d`Azevedo Machado Santos,que visava apurar se o empresário Augusto Gomes, que seguia na tipóia utilizada paratransportar o cadáver do seu irmão, vice-almirante Machado dos Santos, à morgue,se teria ilegitimamente apropriado da carteira e demais haveres do morto.Augusto Gomes, empresário do Teatro Apolo, refutou veementemente as acusaçõescontra a sua pessoa e esclareceu as circunstâncias que rodearam o homicídio de Ma-chado dos Santos, uma vez que foi testemunha ocular do mesmo.Segundo o empresário, na madrugada de 19 de outubro, seguia em direção ao seudomicílio, numa tipóia. No Largo do Intendente, foi mandado parar por um grupode indivíduos, que lhe transmitiram que necessitavam daquele meio para transportarum corpo à morgue. Depressa se apercebeu que o corpo ainda não o era, uma vez que assistiu à ordem paraque Machado dos Santos se apeasse e, testemunhou, impotente, o seu fuzilamento,por um conjunto de oito elementos.Nesse processo foram novamente ouvidos os executores, bem como uma série de tes-temunhas, entre as quais merece o nosso destaque o famoso Reinaldo dos Santos, quenão pôde deixar de dar o seu (parco) contributo, alegando que “sobre o Dente de Ouro,este deixou-lhe a impressão que tinha sido de facto um dos assassinos da noite trágica, masnunca o seu organizador e, muito menos, o seu inspirador”.O inquérito reaberto, não obstante a pertinácia dos investigadores, nada de novo acres-centou ao processo inicial, tendo sido concluído a 9 de novembro de 1927, sem miti-gar a curiosidade daqueles que gostariam de ver identificados os verdadeiros mandan-tes da chacina, bem como de compreender de que forma a “mão da Igreja”27, através deum padre católico, Maximiniano de Lima, influiu no desenrolar dos acontecimentos…Segundo esclarecimentos prestados pelo Dente De Ouro no âmbito do processo-crime,ao padre Lima cabia o importante papel de “agente de ligação” entre a Marinha de GuerraPortuguesa, principal apoiante do movimento revolucionário em ascensão, e o núcleoconspiratório de uma organização de caráter conservador, cujo fim último seria a reim-plantação da Monarquia, disponibilizando a sua casa para a ocorrência de reuniões28, nas

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27 A Igreja Católica perdeu muita da sua importância, decorrente da queda da Monarquia e consequente subida aopoder dos republicanos, pelo que veria, com bons olhos, o restabelecimento do extinto regime monárquico. Presume-se, igualmente, que os nuestros hermanos que acolheram alguns pró-monárquicos portugueses, após a implantação daRepública, em 1910, também veriam o movimento republicano como uma possível ameaça ao regime espanhol, peloque poderiam ter interesse em, sub-repticiamente, instilar o caos e a desarmonia nas hostes lusas.

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quais compareciam os conspiradores iniciais, bem como indivíduos arregimentados noseio da marinha, que se sabia estarem descontentes com a situação do país.

O homicídio de Maria Alves

Por fim, abordaremos um crime, de natureza passional, que vitimou Maria Alves. Mu-lher interessante, mas de feitio indomável e temperamental, atributos esses que, se-gundo consta, compensariam a sua falta de vocação para a expressão dramática, inicioua carreira artística como corista no Teatro Carlos Alberto do Porto, trocando, poste-riormente, a cidade invicta pelo glamour da capital. Em Lisboa, tornou-se atriz e par-ticipou em várias peças de teatro, em cena nos Teatros da Trindade e Maria Vitória. O caso foi de tal forma mediatizado que os periódicos da época lhe dedicavam páginasinteiras, fazendo com que os leitores seguissem com avidez o desenrolar das investigações.Sem desprestigiar nenhum digno jornalista do período em apreço, destacamos o pa-pel do já referenciado “Repórter X”, que dedicou especial cobertura ao caso, investi-gando por conta própria, elaborando hipóteses e tecendo considerações, que parti-lhava, semanalmente, com os atentos leitores.Na madrugada do dia 31 de março de 1926, alguém chamara um polícia de giro,para acudir a uma jovem mulher, caída na rua Frei Francisco Foreiro, uma travessa per-pendicular à Av.ª Almirante Reis, em Lisboa. Ainda estava viva, mas sangrava abun-dantemente… Apresentava feridas na testa e hematomas num braço. Foi, de ime-diato, transportada ao hospital, porém já nada havia a fazer, pelo que o cadáver dajovem mulher teve, como destino final, a morgue. Só às 11 da manhã foi possível darum nome àquele corpo despojado de vida: era Maria Alves, a atriz. Uma das hipóteses iniciais era a de que o homicídio poderia ter sido obra dos “grava-teiros29”, gatunos especializados no “golpe da gravata”, uma vez que a vítima havia sidopreviamente despojada dos seus haveres (anéis, brincos, carteira e casaco de peles).O seu empresário e antigo protetor, Augusto Gomes, desolado e inconformado coma morte da “sua Maria”, foi chamado à polícia, para prestar todos os esclarecimentosnecessários à investigação, entretanto iniciada. Augusto Gomes tinha ceado com a vítima, na véspera, tendo-a, inclusivamente, acompa- nhado num encontro com o empresário do meio artístico Óscar Ribeiro, responsávelpor uma tournée da atriz ao Porto. Maria Alves ainda não recebera o pagamento pelotrabalho efetuado.

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28 Há, igualmente, indicação da ocorrência de reuniões no Café Martinho e Suísso, em Lisboa.29 Gatunos especializados na aplicação do “golpe de gravata”, isto é, o(s) agressor(es) colocam-se por trás da vítima eestrangulam-na, apertando-lhe o pescoço com um braço, de forma a poderem retirar-lhe os seus pertences.

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Findo o encontro, Maria Alves, acompanhada por Augusto Gomes até à Rua da Betesga,terá apanhado o penúltimo elétrico do Arco do Cego, em direção a Santa Bárbara, di-rigindo-se, já sozinha, para o seu domicílio, sito na Rua de Arroios. Com o desenrolar da investigação e a escassez de outros elementos, ganhava consis-tência a tese de que a atriz teria sido alvo de um roubo. Esta hipótese era constante-mente contrariada nos jornais e periódicos, pois, já na altura, alguns jornalistas, quiçávítimas de “policite aguda”, efetuaram diligências de investigação, deslocando-se ao lo-cal, entrevistando vizinhos, esboçando croquis, na tentativa de demonstrar aos leito-res que a tese policial era inverosímil, face aos indícios recolhidos.E lá diz o ditado: “A verdade é como o azeite… vem sempre à tona da água”. Augusto Gomes foi traído pela consciência translúcida do seu cúmplice, João Fer-nandes, o chauffeur do táxi30 no qual foi cometido o crime, que transportou a vítimae o seu assassino, na noite de 31 de março. Não obstante ter sido ameaçado de morte, por Augusto Gomes, João Fernandes, quenão queria ser cúmplice de tão hediondo ato, contou à polícia que apanhou AugustoGomes e Maria Alves à saída do Teatro Maria Vitória e dirigiu-se, a pedido dos mes-mos, para a Rua de Arroios, na qual residia a atriz. Durante o percurso, o casal dis-cutira e, Augusto Gomes, acometido por uma crise de ciúmes incontrolados, estran-gulara a amante. Chegados à Rua Frei Francisco Foreiro, que liga Av.ª Almirante Reisà Rua de Arroios, o assassino, na tentativa de se desfazer do corpo, atirou-o do auto-móvel em andamento.O testemunho deste chauffeur foi crucial para a detenção de Augusto Gomes, cercade 15 dias após o homicídio. O empresário acabou por confessar à polícia ter assassi-nado a amante, num ato de desespero, após ter sabido da sua traição.A imprensa da época, com a chancela do “Repórter X”, não poupou ataques ao em-presário, levantando suspeitas sobre a intervenção do mesmo nas mortes da sua mu-lher, Virgínia de Jesus31 (falecida após uma queda) e da sua amante, Piedade de Jesus32,corista de profissão.Ávido de notícias na primeira pessoa, o jornalista visitou o empresário no estabeleci-mento prisional, conseguindo matéria para alimentar a curiosidade dos leitores en-tusiastas. Augusto Gomes confidenciou-lhe ter assassinado Maria Alves, com as suas

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30 Táxi n.º 9297, um automóvel da marca Citröen, pertencente à Cooperativa dos Chauffeurs Palhinhas, que serviu deinspiração para o título de um romance, de um filme e de uma peça de teatro sobre o caso em apreço.31 Segundo o “Repórter X” veiculou na imprensa, Virgínia de Jesus, residente na Aldeia Galega (concelho de Alen-quer) era vítima de violência doméstica e terá falecido na sequência de um pontapé desferido por Augusto Gomes,que a terá feito cair de umas escadas e lhe terá provocado a morte. 32 A certidão de óbito de Piedade de Jesus aponta, como causa da morte, uma intoxicação urémica, motivada pelo maufuncionamento dos rins, que impede a depuração do organismo.33 Pena de desterro ou exílio, aplicada como forma de punição de um crime grave.

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próprias mãos, mas refutou quaisquer responsabilidades nas mortes quer da sua mu-lher legítima, quer da amante.O caso saiu dos media algum tempo após a detenção de Augusto Gomes (maio), regres-sando à ribalta em novembro desse mesmo ano, por altura do julgamento, que teveinício a 21 de novembro, no 6.º Juízo do já inexistente Tribunal da Boa Hora, tendoo empresário sido sentenciado a 25 anos de degredo33.

Conclusões

Pretendeu-se, com este artigo, fazer uma breve abordagem de três dos crimes emble-máticos da Primeira República, investigados pela PIC, antecessora direta da Polícia Ju-diciária.O período abrangido (1910-1926) foi pródigo em convulsões sociais, sendo que amorte precoce de Sidónio Paes deixou o país num clima instável, quer política, quersocialmente, que contribuiu sobremaneira para os trágicos incidentes de 19 de outu-bro de 1921, precursores do golpe de 28 de maio de 192634.Ressalta que os casos ora abordados são sobejamente conhecidos do público em ge-ral, tendo servido de inspiração para livros, filmes e até séries televisivas35. Contudo,este artigo (cuja essência se baseou num extenso trabalho de pesquisa nos periódicosda época), traduz a tentativa de transmitir a visão dos contemporâneos das situaçõesnarradas.Merece-nos, por conseguinte, especial destaque, o papel de Reinaldo Ferreira, o RepórterX36, detentor de mente criativa e sensacionalista, que atribuía o seu cunho pessoal àssuas narrativas, com um colorido destinado a aguçar a curiosidade dos leitores.Salienta-se que, em 1919, o Repórter X foi enviado a Paris, com o intuito de chefiara Agência Americana, em Madrid, Barcelona e Bruxelas, tendo residido na capitalbelga, entre 1920 e 1922, altura em que regressou a Portugal. Por este motivo, nãofez a cobertura jornalística dos incidentes de 19 de outubro de 1921. Personagem ímpar, não obstante o sucesso almejado, acabou por cair no vício dasdrogas, morrendo a 04 de outubro de 1935, com apenas 38 anos.

Carla Fonseca Costa

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34 Movimento que pôs termo à Primeira República, conduzindo à implantação da ditadura militar (que mais tardese passou a designar por ditadura nacional, transformada em Estado Novo, através da Constituição de 1933).35 Os acontecimentos de 19 de outubro serviram de mote para uma minissérie televisiva de 2 episódios de 50 minutos,intitulada “Noite Sangrenta”, alusiva ao centenário da República Portuguesa.36 Consta que o pseudónimo “Repórter X” terá nascido fruto de um acaso, que se terá devido ao facto de um tipógrafonão ter percebido um rabisco (propositadamente) ilegível de Reinaldo Ferreira, numa crónica em que este denunciavaas prepotências do ditador espanhol, Miguel Primo de Rivera.

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BibliografiaA Capital – Diário da República da Noite n.ºs 2986 (15/12/1918) a 2988 (31/12/1918);3907 (20/10/1921) a 3920 (05/11/1921); 5200 (01/04/1926) a 5216 (20/04/1926);Diário da República de Domingo, Ano 54.º, n.º 19;http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugal;http://hemerotecadigital.com-lisboa.pt.Processo de Investigação n.º 1055, Arquivo do Museu da Polícia Judiciária;Revista ABC, Ano VI, n.ºs 299 (08/04/1926) a 305 (20/05/1926);SAMARRA, Maria Alice (2003), Verdes e Vermelhos – Portugal e a Guerra no anode Sidónio Pais, Lisboa, Editorial Notícias;SUCENA, Eduardo (1996), O Fabuloso Repórter X, Lisboa, Vega;

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Carla Cruz Licenciada em Biologia Microbiana e Genética. Mestre em Ciências Farmacêuticas. Especialista Superior no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária".

A implementação de tecnologias que permitem a identificação humana através daanálise de regiões específicas de ácido desoxirribonucleico (ADN) revolucionou osprocedimentos de identificação biológica no âmbito forense. O contínuo progressoda investigação e do desenvolvimento de novas tecnologias, que permitem o estudoda variabilidade genética ao nível do ADN nuclear e mitocondrial, é o principal res-ponsável pela evolução observada na área da genética forense. Ao longo deste artigo se-rão abordadas as principais etapas do processo evolutivo da genética forense, a reali-dade actual e as perspectivas futuras desta área do conhecimento.

Introdução

A genética forense é a ciência que se dedica à aplicação dos conhecimentos de gené-tica, tendo como objectivo a identificação biológica, constituindo importante ferra-menta auxíliar dos tribunais na resolução de questões sociais de âmbito criminal e ci-vil. No entanto, a genética forense não é um ramo novo da genética, tendo se assistidoa significativa evolução das metodologias utilizadas e, consequentemente, da diversi-dade e qualidade da resposta às entidades requerentes de perícias de identificação bio-lógica. A principal função do geneticista forense é a comparação de amostras reco-lhidas do local do crime com as dos suspeitos, resultando num relatório que deveinformar o requerente.Este artigo apresenta as principais etapas de desenvolvimento da genética forense, asmetodologias actualmente mais utilizadas nos laboratórios forenses e as perspectivasfuturas para esta área.

Primeiros sistemas de marcadores genéticos

Karl Landsteiner, em 1900, descobriu os grupos sanguíneos humanos através dadetecção do fenómeno de aglutinação de glóbulos vermelhos de sangue humano

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por soros de outros indivíduos e verificou que os indivíduos podem ser integradosem diferentes grupos de acordo com o seu tipo de sangue. Na sequência dos seusestudos, surge o sistema de classificação actualmente designado de sistema AB0.Este foi o primeiro sistema de marcadores em que foi reconhecida variabilidade ge-nética e a sua descoberta o primeiro passo para o desenvolvimento da hemogené-tica forense. Em 1915, Leone Lattes publicou um livro que descreve a resolução doprimeiro caso de investigação de paternidade através da análise dos grupos sanguí-neos (Goodwin, 2007). Apesar de ter sido utilizado durante muitos anos para identificação de indivíduos apartir de uma amostra de sangue, o sistema ABO não apresenta elevado poder de dis-criminação uma vez que, em todas as populações, verifica-se maior frequência de umdos grupos sanguíneos. Um estudo publicado pelo Instituto Português do Sangue de-monstrou que cerca de 46% da população portuguesa apresenta sangue do tipo A (Du-ran, 2007). Assim, o estudo dos grupos sanguíneos apresenta valor probatório apenasem situações de exclusão de identidade. Estudos posteriores, realizados por outros investigadores, permitiram a identificaçãode características adicionais que diferenciam o sangue. O factor Rh do sangue, porexemplo, foi descoberto em 1937 e muitos outros factores sanguíneos foram poste-riormente identificados. São conhecidos mais de 100 factores sanguíneos diferentes,que podem ser analisados em combinação de modo a produzir perfis com mais ele-vado poder de discriminação (Duran, 2007; Saferstein, 2004).Em 1955, o desenvolvimento, por Oliver Smithies, de uma técnica de separação demoléculas, designada de electroforese em gel, a qual envolve a migração das moléculasnuma matriz de gel durante a aplicação de uma diferença de potencial, permitiu adescoberta dos polimorfismos de proteínas e dos enzimas do glóbulo vermelho. Os sis-temas de proteínas e iso-enzimas foram introduzidos em casos forenses nos anos 70.Até 1980, métodos electroforéticos de proteínas e serológicos foram utilizados para de-terminação da diversidade dos grupos sanguíneos e das proteínas e dos enzimas poli-mórficos. Apesar de estes marcadores genéticos apresentarem maior poder de discri-minação que os grupos sanguíneos AB0, a sua variabilidade ainda é muito baixa etendem a degradar-se rapidamente. Além de que, misturas de fluídos biológicos de di-ferentes indivíduos dificilmente são resolvidas (Saferstein, 2004).

Molécula de ADNA descoberta da estrutura de ADN por Watson e Crick em 1953 representa o inícioda revolução molecular, a que assistimos nos dias de hoje.

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A molécula de ADN, vulgarmente designada como “dupla hélice”, é uma dupla ca-deia de unidades de desoxiribonucleótidos, consistindo cada unidade em três molé-culas diferentes: o fosfato, o açucar desoxiribose e a base nitrogenada. Esta base ni-trogenada pode ser uma purina (adenina-A, ou guanina-G) ou pirimidina (timina-T,ou citosina-C) (Inman, 1997). O ADN armazena a informação biológica numa forma codificada, transfere a mesmapara a geração seguinte e é responsável pela sua expressão na descendência, encon-trando-se maioritariamente localizado no núcleo da célula.O ADN nuclear é constituído por cerca de três biliões de bases nucleotídicas e en-contra-se superenrolado e organizado em 46 unidades, ou seja, 23 pares de cromos-somas, dos quais 22 são autossómicos e um é determinante do sexo, pelo que é de-signado de par de cromossomas sexuais. Todas as células humanas, excepto os gâmetas,são diplóides, ou seja, apresentam 46 cromossomas no seu núcleo, sendo um mem-bro de cada par de cromossomas herdado por via materna e o outro herdado por viapaterna. Os gâmetas (óvulos e espermatozóides) são células haplóides, uma vez queapresentam apenas 23 cromossomas. Os cromossomas sexuais são designados de X eY, sendo que as mulheres possuem dois cromossomas X (XX) e os homens possuemum cromossoma X e um Y (XY) (Figura 1) (Lawrence, Liotti & Oeser-Sweat, 2005).

Figura 1 - Esquema representativo do genoma humano, constituído por 23 pares decromossomas no núcleo e ADN mitocondrial nas mitocôndrias das células (Adaptadode Butler & Hill, 2012).

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Cerca de 10% do genoma humano corresponde a genes, que codificam as proteínasresponsáveis pelas características físicas e funcionamento dos mecanismos fisiológicosdo organismo. As formas alternativas de um gene são designadas de alelos e os locaisdo cromossoma onde se encontram os genes são designados de loci (ou locus, no sin-gular) (Lawrence et al., 2005).Os restantes 90% representam regiões não codificantes, ou seja, que não contêm in-formação genética directamente relevante para a síntese de proteínas. A variação ge-nética é limitada na maior parte do ADN codificante, devido ao facto de os genes seencontrarem sujeitos a pressão selectiva para manterem a sua função específica durantea evolução. Pelo contrário, a parte não codificante do genoma não é controlada peloreferido mecanismo, resultando na manutenção e transmissão de mutações nestas re-giões, conduzindo ao aumento da variabilidade genética. Assim, as regiões não codi-ficantes são muito importantes para a genética forense, uma vez que são muito in-formativas, permitindo a identificação do indivíduo (Lawrence et al., 2005).Uma percentagem significativa do ADN não codificante, consiste em sequências re-petitivas de pares de bases. A grande maioria dos sistemas de análise de ADN actual-mente usados em genética forense são baseados em loci constituídos por estas se-quências de ADN repetidas múltiplas vezes. Estas regiões do ADN são classificadascomo minisatélites e microsatélites (Figura 2). Os minisatélites, conhecidos como repetições sequenciais de número variável(VNTRs- variable number tandem repeats), são segmentos de ADN que consistemem unidades de repetição constituidas por sete a 25 pares de bases que se encontramdispostas contíguas umas às outras. Estes segmentos, ou loci de VNTRs, podem apre-sentar mais de 100 unidades de repetição, o que corresponde a um comprimento to-tal destes loci entre os 500 e os 20000 pares de bases. Os microsatélites são designa-dos como repetições em sequência curtas (STRS- short tandem repeats), apresentandoa sua unidade de repetição entre dois a sete pares de bases num comprimento total de50 a 500 pares de bases. Estes apresentam-se mais amplamente distribuídos por todoo genoma humano que os minisatélites. A variação genética entre indivíduos nosVNTRs e STRs é baseada no número de repetições das unidades e nas diferenças dasequência das unidades de repetição (Lawrence et al., 2005).

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Figura 2 - Esquema representativo de marcador de minisatélite e de STR. (Adaptadode Butler, 2011).

O ADN de cada indivíduo é único, excepto no caso de gémeos monozigóticos, quevulgarmente são designados de gémeos idênticos. No entanto, aproximadamente99,5% do código genético é idêntico para todos os indivíduos da espécie humana,pelo que apenas 0,5% interessa aos geneticistas forenses. Ao longo da longa cadeia deADN ocorrem pequenas alterações, ou seja, mutações, as quais podem não afectar afunção do ADN ou das proteínas que ele codifica, mas permitir a distinção entre asamostras. Assim, pequenas diferenças entre as sequências de ADN humano podem serdetectadas e usadas para a diferenciação entre indivíduos (Luftig, 2001).Além do ADN nuclear, cada célula apresenta ainda outro tipo de ADN, localizado nasmitocôndrias do seu citoplasma, designado de ADN mitocondrial. Este tipo de ADN,contrariamente ao ADN nuclear, não se encontra organizado em cromossomas, con-sistindo numa pequena circular com apenas 16569 pares de nucleótidos (Figura 1).

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“Impressões digitais do ADN” (DNA fingerprinting)A análise de ADN com fins forenses, tal como a conhecemos nos dias de hoje, é rela-tivamente recente. A revolução do ADN iniciou em Leicester, no Reino Unido, quandoAlec Jeffreys, em 1984, descobriu a existência de regiões hipervariáveis no ADN, designa das de minisatélites (Jeffreys, Wilson & Thein, 1985; Jobling & Gill, 2004).Essas regiões hipervariáveis consistem em sequências de ADN que se repetem váriasvezes e sequencialmente. Jeffreys et al. (1985) descobriram também que o número derepetições pode variar de indivíduo para indivíduo. Assim, os autores introduziram acapacidade de realizar testes de identificação humana, através do desenvolvimento deuma técnica que permite a análise da variação do comprimento dessas sequências re-petidas, as quais passaram a ser designadas de repetições sequenciais de número va-riável (VNTRs - variable number tandem repeats) (Jeffreys et al., 1985; Jobling & Gill,2004; Butler, 2011).A técnica usada por Jeffreys et al. (1985) para analisar os VNTRs foi também desig-nada de análise de polimorfismos de comprimento de fragmentos de restrição (RFLPs- restriction fragments length polymorphisms), uma vez que consistia em misturar a amos-tra com uma enzima que se ligava ao ADN, cortando-o em locais específicos do ADNadjacentes aos VNTRs. O processo de análise de ADN envolvia os seguintes passos: 1)extracção de ADN das células da amostra; 2) clivagem do ADN em fragmentos por en-zimas de restrição; 3) separação dos fragmentos por técnica de electroforese em gel deagarose; 4) transferência das bandas visíveis no gel de agarose após electroforese, ouseja, dos fragmentos de ADN, para uma membrana de nylon; 5) incubação da mem-brana de nylon, contendo os fragmentos de ADN, com uma sonda radioactiva, a qualse liga a locais específicos do ADN; 6) lavagem do excesso de sonda radioactiva que nãose ligou ao ADN; 7) transferência do padrão radioactivo de ADN para filme de raios-x por exposição directa. O padrão visível na chapa de raios-x constitui as “impressõesdigitais de ADN” (DNA fingerprint) e a comparação entre as amostras de evidência ea amostra de referência permite a identificação do indivíduo dador dos vestígios bio-lógicos detectados (Gill, Jeffreys & Werrett, 1985; Holmes, 1994).Deste modo, Jeffreys et al. (1985) introduziram no mundo da justiça criminal esta téc-nica de DNA fingerprinting, a qual foi utilizada pela primeira vez para auxiliar numcaso de imigração de um rapaz. Pouco tempo depois, os autores trabalharam com apolícia na comunidade de Leicester, Inglaterra, para resolver dois casos de homicídioe violação de duas adolescentes, uma em 1983 e a outra em 1986. Após o segundo ho-micídio, um indivíduo confessou o crime, mas negou o primeiro homicídio. A polí-cia acreditava que ele era o responsável pelos dois crimes devido à semelhança domodo como os crimes ocorreram. Jeffreys et al. (1985) realizaram a análise de RFLPs

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de amostras de evidência das duas violações e do suspeito. Apesar de verificar que omesmo indivíduo violou as duas vítimas, ele não era o indivíduo que confessou o se-gundo crime. A polícia decidiu analisar todas as pessoas que poderiam ter cometidoaqueles crimes. Depois de analisar o ADN de 5811 homens, Jeffreys et al. (1985) nãoencontraram nenhum perfil de ADN semelhante ao das amostras de evidência. No en-tanto, os autores não tinham conhecimento que um indivíduo de seu nome ColinPitchfork fora substituído por um amigo a quem tinha pedido para se identificarcomo sendo ele e que fornecesse à polícia uma amostra de sangue. O caso nunca seriaresolvido se o amigo não tivesse falado acerca da substituição num bar onde bebiacom uns amigos. Uma mulher na mesa ao lado ouviu a história e informou a políciaque rapidamente prendeu o sr. Pitchfork. A análise de RFLPs a partir do sangue dePitchfork revelou coincidência com as amostras de evidência, tendo estes dois casosde violação e homicídio sido os primeiros crimes resolvidos através da aplicação da téc-nica de ”ADN fingerprinting” (Lawrence et al., 2005).A técnica de análise de “ADN fingerprinting” foi a mais utilizada até ao início dos anos 90.No entanto, esta técnica requer elevadas quantidades de ADN não degradado.

Métodos actuais de análise de ADN

PCR (Polymerase chain reaction)Em 1986, Kary Mullis desenvolveu uma técnica designada de reacção em cadeia depolimerase (PCR - Polymerase chain reaction). Esta técnica revolucionou a ciência deADN forense e toda a biologia molecular.A PCR é uma técnica que permite multiplicar uma região específica do ADN, (locus),para posterior análise das variantes dessa região (alelos). Através desta técnica é pos-sível produzir milhões de cópias de ADN a partir de uma única molécula. Uma ca-deia de ADN origina duas, que por sua vez originam quatro, as quais se multiplicamem oito e assim sucessivamente. Este processo é relativamente rápido, extremamentesensível e encontra-se automatizado (Holmes, 1994; Newton & Graham, 1994).O processo de PCR ocorre por ciclos, cada um dos quais se inicia com a desnatura-ção da molécula de ADN molde, ou seja, as duas cadeias que constituem a moléculade ADN são separadas. No passo seguinte de cada ciclo, ocorre a ligação de uma ca-deia oligonucleotídica (constituída por poucos pares de bases), designada de primer,à sequência complementar da cadeia molde que flanqueia a região específica que interessa amplificar. O ciclo termina com a síntese de uma nova cadeia de ADN, com-plementar à cadeia molde (Figura 3).

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Figura 3 - Processo de amplificação de ADN através da técnica de PCR. (Adaptadode Butler, 2011).

A amplificação por PCR apresenta a título de vantagens a análise de pequenas quan-tidades de ADN, de regiões de ADN degradado com comprimentos de apenas algu-mas centenas de pares de bases e de um grande número de sequências específicas deADN em simultâneo através de reacções em multiplex. O facto do ADN contami-nante, como por exemplo, de fungos e bactérias, não amplificar, devido à especifici-dade dos primers usados para ADN humano, constitui outra importante vantagem datécnica de PCR. Além de que se encontram disponíveis kits comerciais para amplifi-cação de ADN (Butler, 2011). No entanto, o insucesso da amplificação do ADN, devido à presença de inibidores daPCR no extracto de ADN ou de alterações (mutações) nos locais que flanqueiam a re-gião do ADN a amplificar, aos quais os primers se ligam, constitui uma das limitaçõesda PCR. Outra restrição desta técnica é que é susceptível de contaminações por outrasfontes de ADN humano durante o manuseamento das amostras, pelo que exige cuida-dos especiais durante os procedimentos de recolha e análise da amostra (Butler, 2011).

STRs (short tandem repeats)Actualmente, os loci de interesse forense são os STRs (short tandem repeats), que sãocurtas sequências de pares de bases, constituídas por unidades de repetição de dois asete pares de bases, as quais se repetem múltiplas vezes e de forma contígua.

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Os STRs variam no seu comprimento, apresentando uma sequência específica deADN como unidade de repetição. Estes marcadores encontram-se dispersos pelo ge-noma e são classificados de acordo com o comprimento da unidade de repetição,sendo os tetranucleotídicos, que contêm uma estrutura da unidade de repetição dequatro pares de bases, os mais vulgarmente usados pelos laboratórios de genética forense.STRs pentanucleotídicos (unidades de repetição de cinco pares de bases) e hexanu-cleotídicos (unidades de repetição de seis pares de bases) também são usados nestaárea. As variantes destes loci de STRs (alelos) são designadas pelo número de unida-des de repetição contíguas, que é muito variável entre indivíduos, o que explica a uti-lidade dos STRs para identificação humana (Butler & Hill, 2012).Presentemente, os casos forenses de identificação humana são resolvidos usando mul-tiplexes (reacções de PCR num único tubo que amplificam multiplos loci) de STRs au-tossómicos comercialmente disponíveis. Em 1997, o FBI (Federal Bureau of Investigation) seleccionou 13 loci para serem incluí-dos na base de dados de ADN nacional dos Estados Unidos CODIS (Combined DNAIndex System) (Figura 4). Em Abril de 2011, o FBI anunciou planos para expandir oconjunto de loci para 20 STRs, tendo como principais objectivos: a redução da pro-babilidade de falsas identidades resultantes do aumento do número de perfis genéticosarmazenados na base de dados, o aumento da compatibilidade internacional e o au-mento do poder de discriminação (Butler & Hill, 2012).

Figura 4 - Esquema representativo da localização nos cromossomas dos 13 loci deSTRs da base de dados de ADN dos Estados Unidos (Adaptado de Butler, 2011http://www.cstl.nist.gov/strbase/training.htm)

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Cromossoma YO cromossoma Y é um dos cromossomas humanos mais pequenos, apresentando 60 Mbde comprimento, e determina a masculinidade, especificando o desenvolvimento dostestículos numa fase precoce da embriogénese. É herdado de pai para filho sem altera-ções, excepto em raras situações em que ocorrem mutações pontuais. Assim, o cromos-soma Y contém um registo de todos os acontecimentos mutacionais que ocorreramnos seus antecessores, revelando a história da linhagem paterna e, consequentemente,permite a compreensão da evolução genética humana (Jobling, Pandya & Tyler-Smith,1997; Gusmão, Brion, González-Neira, Lareu & Carracedo, 1999).O estudo de STRs do cromossoma Y é actualmente realizado na rotina dos laborató-rios de genética forense, aplicado a casos criminais e de investigação de paternidade. Relativamente aos casos criminais, a grande maioria dos crimes violentos é cometidapor indivíduos do sexo masculino. Logo, o estudo de marcadores do cromossoma Ypode ser informativo, principalmente para exclusão de um suspeito. Quando a aná-lise de STRs autossómicos revela misturas de ADN proveniente de dois indivíduos,em que um é do sexo masculino e outro do sexo feminino, principalmente em situa-ções em que a contribuição de vestígios biológicos do elemento do sexo feminino épreponderante ou em casos de violação em que não é possível realizar uma extracçãodiferencial de ADN a partir da amostra, o estudo do cromossoma Y pode também serde grande utilidade, permitindo obter alguma informação acerca do contribuidor dosexo masculino. Apesar das potencialidades do estudo do cromossoma Y, existem grandes limitaçõesinerentes às suas características especiais. Enquanto um perfil genético autossómicode um indivíduo apenas poderá ser idêntico ao de um gémeo monozigótico (que éuma ocorrência rara), no caso de um perfil genético do cromossoma Y, este é idên-tico ao dos seus irmãos, pai, tios e todos os indivíduos que partilham a sua linhagempaterna. Se outras evidências não excluírem todos estes familiares, a informação refe-rente ao cromossoma Y não será suficiente para uma tomada de decisão pelo tribu-nal. Nos casos de paternidade de indivíduos do sexo masculino, a comparação do cro-mossoma Y pode constituir uma forma simples de exclusão de um pretenso pai, no-meadamente quando este se encontra ausente, podendo recorrer-se ao estudo de fa-miliares da mesma linhagem paterna. Pelas razões apresentadas, o estudo do cromossoma Y assume especial relevânciapara exclusão de um indivíduo em casos de paternidade ou criminais (Jobling etal., 1997).

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Cromossoma XO cromossoma X apresenta 153Mb de comprimento, inclui cerca de 1100 genes e re-presenta cerca de 5% do material genético nas mulheres, as quais apresentam duas có-pias, e apenas 2,5% nos homens, que possuem apenas uma cópia no seu genoma.Ao longo do cromossoma X, tal como do restante genoma humano, os STRs são pre-valentes e durante a última década têm sido identificados e estudados mais de 40 locide X-STRs, actualmente usados em laboratórios de genética forense. Os STRs de re-petições tetranucleotídicas são os mais frequentemente usados, tal como referido paraos STRs autossómicos.O estudo do cromossoma X pode ser útil em situações de investigação de parentesco,nomeadamente em casos em que um dos progenitores se encontra ausente, em casosde incesto ou ainda de desastres de massas. Por exemplo, num caso de averiguação deparentesco do tipo pai/filha, ou ainda, em situações de averiguação de relação de pa-rentesco de irmandade, em que o pai é o parente comum a ambas, uma vez que 100%de um dos cromossomas X é transmitido pelo pai à sua filha.

ADN mitocondrialO ADN mitocondrial consiste numa molécula circular de cerca de 16569 pares de ba-ses, localizada no interior das mitocôndrias da célula. O número de mitocôndrias pre-sentes nas células depende do tipo de célula, variando entre 80 a 680 mitocôndrias,e cada mitocôndria contém várias moléculas de ADN mitocondrial. Assim, a quan-tidade de ADN mitocondrial na célula é muito mais elevada que a de ADN nuclear,o que explica o facto de ser o método de eleição para identificação de vestígios, cujaanálise de ADN nuclear se revele menos eficaz ou mesmo impossível, nomeadamenteamostras altamente degradadas, como por exemplo, ossos e dentes, ou amostras comdiminuta quantidade de ADN, como é o caso de cabelos sem raiz (Butler, 2011). A análise de ADN mitocondrial consiste na determinação da sequência de regiões hi-pervariáveis da molécula, através de técnicas de sequenciação. É um processo mais demorado e que apresenta menor poder de identificação que o ADNnuclear. A principal limitação da análise de ADN mitocondrial resulta do facto de esteser herdado via materna, pelo que todos os indivíduos da mesma linhagem maternaapresentam sequência idêntica de ADN mitocondrial. Durante a fertilização, o esper-matozóide não contribui com qualquer componente celular para além do seu núcleo,o qual se funde ao do óvulo. Assim, o ADN mitocondrial permite a identificação delinhagens maternas (Butler, 2011).

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A identificação da família Romanov foi a primeira investigação histórica na qual foiaplicado o estudado do ADN mitocondrial. Foram encontrados nove corpos esque-letizados numa vala comum em Ekaterinburgo, na Rússia, em 1991 que presumivel-mente corresponderiam ao último Czar, à Czarina, três das suas cinco crianças, o mé-dico da família e três criados. A análise de STRs autossómicos confirmou que setratava de uma família. A análise de ADN mitocondrial da presumível Czarina e dastrês crianças revelou uma sequência que coincide com um parente vivo da mesma li-nhagem materna. Relativamente ao Czar, a sequência obtida da análise de ADN mi-tocondrial é coincidente com dois parentes vivos da mesma linhagem materna. Assim,a combinação do estudo de STRs autossómicos e de ADN mitocondrial permitiu aidentificação dos restos cadavéricos da família Romanov.

SNPs (single nucleotide polymorphisms)Os polimorfismos de um único nucleótido (SNPs- single nucleotide polymorphisms)constituem variações entre indivíduos num único nucleótido, num determinadoponto do genoma. Os SNPs resultam de uma troca, delecção ou inserção de um úniconucleótido numa determinada posição do genoma humano. Cerca de 15 milhões deSNPs foram reportados até hoje e a sua análise pode ser realizada por amplificação deum curto segmento de ADN que ladeia a posição do SNP, seguida de detecção datroca de nucleótido por minisequenciação.Como referido anteriormente, a utilização da tecnologia de STRs é problemáticaquando se analisam amostras biológicas em avançado estado de degradação, resul-tante das condições ambientais a que o corpo esteve sujeito. Os SNPs são potenciaismarcadores genéticos nestes casos.Uma grande desvantagem destes marcadores relativamente aos STRs é que são ne-cessários cerca de 50 a 100 SNPs para se obter o mesmo grau de discriminação do con-junto de 10 a 16 loci de STRs (Gill, Ivanov, Kimpton & Pierce, 2004; Decorte, 2010;Butler, 2011).

Fases envolvidas na análise de ADN

1. Recolha de amostrasA recolha da amostra, sua caracterização e preservação são fases críticas para o sucessoda análise de ADN, uma vez que o manuseamento incorrecto nestes passos iniciais deuma investigação pode comprometer definitivamente a obtenção de resultados.

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2. Caracterização da amostraQuando as amostras recolhidas do local do crime são recebidas num laboratório degenética forense são realizados testes preliminares para detecção e caracterização dosvestígios biológicos, nomeadamente, sangue, sémen e saliva. A identificação de se-creções vaginais, urina e fezes também pode ser importante para a investigação. Estestestes são simples, de baixo custo, seguros, fáceis de realizar, devem ser exequíveis compequenas quantidades de amostra e não implicarem efeitos adversos à posterior aná-lise de ADN. A caracterização dos vestígios, além de ajudar a localizar o material ade-quado para análise de ADN, pode em alguns casos fornecer valor probatório a umcaso, como por exemplo, a presença de sémen numa recolha de exsudado vaginalcomo evidência de um caso de violação. A restante porção da amostra é posterior-mente processada para extracção de ADN. Relativamente à caracterização do sangue, a maioria dos testes preliminares usadosdetecta a presença de moléculas de hemoglobina, que se encontram presentes nos gló-bulos vermelhos e participam no transporte de oxigénio e dióxido de carbono.No que diz respeito à caracterização de saliva, os testes preliminares detectam a pre-sença da enzima amílase.As manchas de sémen podem ser caracterizadas através da visualização de espermato-zóides, da detecção de fosfatase ácida ou de testes do antigénio específico da prostata(PSA- prostate specific antigene). A pesquisa de espermatozóides por observação mi-croscópica é efectuada em casos de crimes sexuais. No entanto, pode ocorrer uma si-tuação de azoospermia, em que não são produzidos espermatozóides, ou de oligosper-mia, em que a quantidade de espermatozóides é diminuta no fluído seminal. Além deque, indivíduos vasectomizados não libertam espermatozóides. Nestes casos, o facto denão serem detectados espermatozóides não anula a hipótese de ter ocorrido um crimede violação. Os testes que identificam enzimas específicas do sémen são, pelas razõesdescritas, muito importantes para a pesquisa de sémen nos referidos casos. A fosfataseácida é uma enzima segregada pela glândula da próstata no fluído seminal e encontra-se presente no sémen em concentrações 400 vezes superiores às de outros fluídos cor-porais. O PSA permite identificar uma proteína designada p30, que inicialmente sepensava ser exclusiva do líquido seminal, mas que mais tarde foi descrita como estandopresente no leite materno e noutros fluídos. A concentração do PSA no sémen varia en-tre 300 a 4200 ng/ml. É de salientar, portanto, que a pesquisa da fosfatase ácida e doPSA constituem testes de orientação, uma vez que não existe especificidade para o sé-men, podendo um resultado positivo corresponder na realidade a um falso positivo. Es-tes testes deverão ser seguidos de um teste de confirmação, como por exemplo, a pes-quisa de espermatozóides ou uma extracção diferencial de ADN (Butler & Hill, 2012).

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3. Extracção do ADNEm criminalística, há que ter em conta que os vestígios biológicos encontram-se emsuportes que não são os naturais, como por exemplo uma mancha de sangue numacamisa, uma mancha de sémen num par de calças, etc. Assim, é necessário separar ascélulas do suporte e promover a ruptura das membranas celular e nuclear, de modo aque o ADN fique disponível para a sua análise. Vários métodos de extracção de ADNtêm sido desenvolvidos para separar as proteínas, outros constituintes celulares e aindavários tipos de contaminantes das moléculas de ADN. O processo de extracção re-move, portanto, inibidores que reduzem ou impedem a amplificação do ADN, pro-duzindo uma solução de ADN estável ao longo do tempo quando devidamente ar-mazenada (Butler & Hill, 2012). Os inibidores mais frequentemente presentes em amostras forenses são a hemoglobina,corantes (por exemplo tintas de tecidos, como a ganga) e a melanina responsável pelapigmentação dos cabelos. O ADN degrada-se através de uma variedade de mecanis-mos que incluem processos enzimáticos e químicos. Existem diversas técnicas de extracção e purificação do ADN, sendo as mais utilizadasa extracção com chelex, que consiste na utilização de uma resina iónica que se liga aiões. Os iões de magnésio são importantes co-factores para a actividade de enzimasDNAses, as quais danificam o ADN. A resina liga-se aos iões de magnésio protegendoa molécula de ADN da acção daquelas enzimas;- a extracção orgânica, que consiste no uso de uma mistura de fenol e clorofórmio se-guida de purificação do ADN extraído através de filtração por microfiltros;- a extracção diferencial, que também é um tipo de extracção orgânica, mas que di-fere da anteriormente referida, baseando-se no facto de os espermatozóides apresen-tarem maior resistência à ruptura da membrana celular em comparação com todas asoutras células nucleadas do organismo, permitindo separar o ADN dos espermato-zóides do ADN de outros tipos de células. Por isso, esta técnica é aplicada preferen-cialmente em casos de crimes contra a liberdade sexual (Butler & Hill, 2012).Actualmente, devido ao crescente número de amostras para análise, muitos laborató-rios forenses estão a adoptar sistemas automatizados de extracção de ADN.

4. Quantificação do ADN extraídoUma vez concluída a extracção, antes de se proceder à sua análise, é necessário conhecera quantidade de ADN presente no extracto e a sua qualidade. Essa necessidade resulta dofacto de a amplificação por PCR depender da quantidade de moléculas de ADN moldeadicionadas à reacção, uma vez que apenas uma margem estreita de concentrações de

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ADN permitem o sucesso da amplificação. Geralmente, a quantidade de ADN óptimapara amplificação de kits de STRs comerciais varia entre 0.5 e 2 ng (Butler & Hill, 2012).A amplificação de quantidade excessiva de ADN conduz a resultados de difícil inter-pretação, enquanto quantidades diminutas de ADN podem resultar em perda de alelos,ou seja, obtenção de perfis genéticos incompletos, ou mesmo ausência de resultados(Butler & Hill, 2012).Várias técnicas têm sido usadas para quantificação do ADN. A quantificação por PCRem tempo real (RT-PCR: real time-PCR), além de permitir determinar a quantidadede ADN no extracto da amostra, apresenta a vantagem de fornecer informação acercada qualidade, nomeadamente do grau de inibição e de degradação do mesmo, peloque, actualmente, é a técnica de quantificação de ADN mais utilizada nos laborató-rios de genética forense.

5. Amplificação do ADN por PCRNos laboratórios de genética forense, a análise do ADN é realizada através de kits deSTRS comercialmente disponíveis. Estes kits incluem os reagentes necessários à reac-ção de PCR para co-amplificação e detecção simultânea de um conjunto específicode STRs do genoma humano, sendo por isso designados de multiplexes (Butler &Hill, 2012). O primeiro kit comercial desenhado para a tipagem de vários STRs numaúnica reacção foi disponibilizado nos finais dos anos 90. Os kits mais actuais permi-tem a amplificação simultânea de 15 STRs e do marcador específico do sexo, a ame-logenina (Butler & Hill, 2012). Deste modo, a PCR permite a obtenção de infor-mação genética de múltiplas regiões da cadeia de ADN, a partir de quantidadesdiminutas de ADN e de uma única alíquota de extracto.

6. Detecção/Separação dos fragmentos de ADNA análise de ADN utilizava a electroforese em gel para a separação dos RFLPs e dosprodutos da PCR. A introdução da electroforese em capilar veio facilitar a análise deADN e, desde os anos 90, a separação dos produtos de PCR através desta técnica, temsido adoptada na rotina dos laboratórios forenses.

7. Interpretação dos resultadosOs resultados obtidos encontram-se sob a forma de um conjunto de picos, designado deelectrofluoretograma, os quais correspondem aos vários alelos amplificados. A conversão

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destes picos na designação dos alelos é realizada recorrendo a softwares específicos.Os perfis genéticos das amostras de evidência e das amostras referência são depoiscomparados, permitindo verificar a identidade ou a sua exclusão. Quando um perfilgenético de uma amostra recolhida do local do crime não apresenta identidade como de uma amostra referência de um indivíduo, conclui-se que o mesmo não contri-buiu para a amostra biológica recolhida, sendo reportada a sua exclusão para a enti-dade requerente da análise. As misturas de ADN de dois ou mais indivíduos são frequentes em casos forenses. Aolongo dos tempos tem-se verificado uma significativa melhoria da qualidade dos re-sultados obtidos na análise de ADN e o aumento da capacidade de detecção de mis-turas de ADN, designadamente de menores contribuidores de misturas, o que se deveà crescente sensibilidade das técnicas utilizadas para amplificação e detecção de ADN.A interpretação destas misturas constitui um dos grandes desafios para os geneticistasforenses, exigindo experiência e formação específica (Butler, 2011).

8. Análise estatísticaNos casos em que não é possível concluir a exclusão, ou seja, há identidade entre osperfis obtidos, é importante efectuar a análise estatística, que se baseia em duas hi-póteses: 1) o indivíduo dador da amostra de evidência é o mesmo da amostra refe-rência; 2) o indivíduo dador da amostra de evidência é qualquer outro indivíduo dapopulação a que o indivíduo dador da amostra referência pertence. Relativamente à interpretação estatística de misturas, esta constitui um desafio aindamaior para os geneticistas forenses. Alguns grupos de investigadores têm-se dedicado aoestudo desta temática e ao desenvolvimento de programas informáticos que auxiliem naresolução deste problema com que se deparam diariamente os laboratórios forenses.

Perspectivas futuras

Análise de ARNm (ácido ribonucleico mensageiro)Apesar de existirem, como anteriormente referido, alguns testes de orientação para ca-racterização de alguns fluídos corporais, como o sangue, a saliva e o sémen, existemoutros fluídos para os quais não existem testes específicos. Outra limitação destes testesconsiste no facto de as amostras de evidência apresentarem muito frequentemente quan-tidades limitadas de material biológico que podem não atingir os limites de sensibi-lidade dos métodos convencionais de caracterização de fluídos corporais. A detecção

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de ARNm (ácido ribonucleico mensageiro) específico da célula pode preencher estalacuna, apresentando vantagens relativamente aos referidos testes de orientação, no-meadamente elevada sensibilidade devido à possibilidade de amplificação por PCR,elevada especificidade devido ao padrão de expressão único do gene para o estadofuncional de células e órgãos e simultaneamente a extração de ADN, se necessário, semperda de material. Vários estudos têm demonstrado que o ARNm pode ser extraídoa partir de manchas armazenadas há mais de 15 anos. No entanto, o seu armazena-mento em condições desfavoráveis pode afectar mais significativamente o ARNm queo ADN, podendo nesta situação, obter-se resultados de ADN a partir de uma amos-tra e não existir ARNm suficiente para o sucesso da análise.Um estudo recente demonstrou que também é possível uma caracterização molecularde material biológico recolhido a partir de amostras de contacto, ou seja, de amostrasconstituídas por células da epiderme transferidas do dador para um objecto ou pessoadurante o contacto físico, tendo identificado novos marcadores de ARNm de elevadaespecificidade e sensibilidade para a identificação destas células (Hanson, Haac, Jucker& Ballantyne, 2012). Estudos adicionais e a validação destes marcadores são neces-sários antes da sua implementação no trabalho de rotina dos laboratórios forenses.

Automatização O aumento do número de amostras para análise nos laboratórios forenses, bem comoas limitações das metodologias que têm vindo a ser utilizadas ao longo dos tempos naanálise de ADN, tem resultado no desenvolvimento de técnicas cada vez mais sensíveise rápidas que permitem a obtenção de resultados fiáveis e de maior qualidade, comimplicação de menores custos. Assim, temos assistido a uma progressiva automatiza-ção e miniaturização dos procedimentos. O processo de automatização dos procedi-mentos, através da aplicação de conhecimentos de robótica e de electroforese capilar,tem sofrido um significativo avanço, sendo actualmente possível realizar a extracção,a amplificação e a separação dos fragmentos de ADN por sistemas automatizados emcontínuo, sem necessidade de manuseamento da amostra pelo técnico (Butler, 2011).

MicrofluídosO grande desafio dos dias de hoje consiste na integração de todo o processo da análisede ADN (extracção, quantificação, amplificação e separação de fragmentos) num dis-positivo microfluídico integrado, o que implica a transposição da escala do microlitropara a do nanolitro. Estes dispositivos, uma vez devidamente validados, apresentariam

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vantagens relativamente às actuais tecnologias, nomeadamente no que diz respeito aoaumento da eficiência da análise de ADN, a redução do risco de contaminações, devidoa redução do manuseamento da amostra pelo perito, e a redução do consumo de amos-tra e de reagentes (Horsman, Bienvenue, Blasier & Landers, 2010; Butler, 2011).Estudos publicados recentemente descrevem o desenvolvimento de alguns dispositivosde análise de microfluídos, apresentando-os como tecnologias com potencialidadespara a análise de ADN mais rápida e menos dispendiosa em laboratórios convencio-nais ou mesmo no local do crime. Têm sido descritas várias tentativas de desenvolvi-mento de dispositivos portáteis que permitam a análise de ADN em poucas horas nolocal do crime, tendo como objectivo fornecer importante contributo na orientaçãoda investigação criminal em determinadas situações específicas, como por exemplo,a exclusão de um suspeito que se encontra no local. Prevê-se, portanto, que no futuroa genética forense deixará de ser uma ciência confinada ao laboratório, passando aaproximar-se, física e temporalmente, do local onde ocorreram os factos, ou seja, osespecialistas em genética forense deslocar-se-ão ao local do crime (Horsman et al., 2010;Bienvenue, Legendre, Ferrance & Landers, 2007).

Características físicas visíveisO objectivo das análises de ADN no âmbito forense consiste em determinar se um in-divíduo é o dador dos vestígios biológicos recolhidos, ou se um indivíduo é geneti-camente relacionado com outra pessoa. Este objectivo é atingido se existir uma amos-tra referência do(s) indivíduo(s) interveniente(s) na situação para comparação com operfil de ADN da amostra problema. No entanto, se não existir um suspeito, seria im-portante os investigadores obterem alguma informação, nomeadamente característi-cas físicas do dador dos vestígios biológicos. Nos últimos anos têm sido publicados vá-rios estudos referentes às características físicas externas: cor do cabelo, cor da íris epigmentação da pele. Estes estudos baseiam-se na identificação de SNPs dentro de ge-nes específicos, ou seja, dentro de regiões codificantes do ADN que revelam associa-ção com uma característica física particular. A investigação nesta área dos traços físi-cos tem-se revelado complicada, uma vez que vários genes se encontram envolvidose interactuam entre si. Relativamente à pigmentação da pele, por exemplo, mais de200 genes foram até hoje identificados como codificantes de proteínas que regulamesta característica. No que diz respeito à cor do cabelo, foram identificadas mutaçõesnum gene que se encontram associadas à coloração vermelha.Apesar do progresso ocorrido até aos dias de hoje no que diz respeito à investigação deSNPs que “predizem” um traço físico, as associações entre eles são apenas orientadoras

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do tipo de traço físico de um indivíduo. A complexidade dos mecanismos genéticosenvolvidos nas características físicas visíveis e a variabilidade introduzida pelas dife-renças ambientais e nutricionais dificulta as referidas associações (Decorte, 2010). O estudo de marcadores de características físicas visíveis, além de implicações legais,uma vez que apenas a Holanda possui legislação que o permite, levanta ainda questõeséticas que têm que ser debatidas pela comunidade científica e pela sociedade. O grandedesafio consiste em encontrar concordância no que diz respeito aos objectivos e aoslimites desta nova ferramenta de investigação molecular e o equilíbrio entre as van-tagens do seu uso e os riscos contra valores éticos como a liberdade, autonomia, pri-vacidade e equidade (Kayser & Schneider, 2009).

Novas tecnologiasA dificuldade de obtenção de perfis de STRs a partir de amostras degradadas, assu-miu especial destaque em 2001, aquando da necessidade de identificação das vítimasdo ataque de 11 de Setembro. Nenhum outro desastre de massa, ocorrido até àqueladata, envolveu um número de vítimas e um estado de fragmentação dos corpos tãoelevado. O ataque ao World Trade Center resultou em 2792 indivíduos desaparecidos.Poucas pessoas foram identificadas sem recurso à análise de ADN, uma vez que os cor-pos se encontravam relativamente intactos ou foram recuperados fragmentos sufi-cientes. Foram recuperados cerca de 20000 fragmentos de osso ou de outros tecidosnos destroços dos edifícios, muitos dos quais meses depois do ataque. Estas amostrasencontravam-se altamente fragmentadas e degradadas, devido à explosão, fogo e co-lapso dos edifícios e, por vezes, misturadas. A quantidade de ADN extraída a partirde muitas destas amostras foi insuficiente, além de que o ADN apresentava um ele-vado grau de degradação, não tendo sido possível a obtenção de um perfil genéticode STRs. Até ao dia 11 de Setembro de 2005 foram identificados os restos de 1594vítimas, os quais correspondem a apenas 40% das amostras recolhidas. A identifica-ção baseou-se na comparação com amostras de ADN de familiares ou com objectospessoais como por exemplo, escovas de cabelo, escovas de dentes, material de barbeare, em alguns casos, foi possível obter amostras de sangue, uma vez que algumas dasvítimas eram doadoras de sangue. Assim, foi necessário recorrer a outras tecnologiasna tentativa de identificar as amostras mais degradadas, tendo sido estudados SNPs eADN mitocondrial. A quantidade e a qualidade de ADN das restantes amostras sãoinsuficientes para obtenção de um perfil de ADN pelo que a comunidade forenseaguarda futuros desenvolvimentos tecnológicos que aumentem a sensibilidade da análise(Decorte, 2010). Vários estudos publicados indicam novas tecnologias que permitirão

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ultrapassar algumas das limitações actuais, sendo apresentadas como promissoras naárea da genética forense num futuro próximo.

Conclusões:A constatação de que um indivíduo pode ser “individualizado” através da análise doseu ADN foi uma das grandes revelações do século XX. O contínuo desenvolvimentoe aperfeiçoamento das tecnologias tem sido o principal responsável pela evolução daresposta às entidades requerentes de perícias de identificação biológica. No entanto,permanece a necessidade de desenvolvimento de novas ferramentas para a identificaçãogenética que proporcionem uma resposta cada vez mais precisa e célere dos factosocorridos em circunstâncias de âmbito forense.

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112 Lofoscopia e identificaçãocriminal: uma visão

histórica, técnico-científicae jurídica

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José Carlos OliveiraEspecialista-adjunto de Criminalística no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária. Licenciado em Direito. Mestre em Direito.

Apresenta-se uma visão tripartida da disciplina de lofoscopia, com enfoque nos pla-nos histórico, técnico-científico e jurídico. Elencam-se, no primeiro destes planos,uma série de efemérides e vultos de destaque na história da lofoscopia. No âmbito téc-nico-científico sublinham-se a classificação e princípios fundamentais, novas técnicase aplicação prática da lofoscopia, em cooperação com os restantes atores processuais.Por último, uma abordagem jurídica, onde pontua legislação atinente à identificaçãocivil, criminal e judiciária e a praxis quotidiana na identificação de arguidos.

Introdução

Propõe-se nesta síntese fazer uma abordagem à lofoscopia em três planos: o histórico,o técnico-científico e o legal, este com maior incidência na identificação judiciária.Importa, contudo e para uma prévia compreensão, densificar o conceito de lofoscopia.Posto isto, dir-se-á que é a «ciência que estuda os desenhos das extremidades digitais,palmas das mãos e planta dos pés», subdividindo-se em três disciplinas: a datilosco-pia1, a quiroscopia2 e a pelmatoscopia3. Tem como capital objetivo a determinação daidentidade humana, rectius a individualização, seja ela relativa ao âmbito criminal oucivil e é consensualmente entendida como uma ciência aplicada da criminalística. Porfim, dentro das disciplinas da criminalística, refira-se que a lofoscopia é a única quelabora no domínio quantitativo e categórico, ao invés das restantes que se socorremde resultados qualitativos e probabilísticos.

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1 Em sentido amplo, estudo das figuras constantes das falanges distais e médias, denominadas vulgarmente como se-gundas e terceiras falanges ou pontas dos dedos, à exceção do dedo polegar que comporta apenas duas falanges, pro-ximal (primeira falange) e distal.2 No mesmo registo, estudo das figuras das palmas das mãos.3 Idem, da planta dos pés.

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O plano histórico

Iniciando com brevíssimas notas, e relegando eventos desprovidos de cientificidade,enunciam-se sumariamente alguns dos vultos e respetivos contributos que deram aesta disciplina a projeção e incontestável legitimidade que hoje detém.No séc. XVII, e movido pela curiosidade, o anatomista Marcello Malppighi faz a pri-meira descrição científica rudimentar dos desenhos dos dedos e dos seus componen-tes, cristas e poros.Sir William James Herschel, na segunda metade do séc. XIX, implementa uma utili-zação prática dos datilogramas4, apercebendo-se que estes não se repetiam entre in-divíduos e entre dedos no mesmo indivíduo e que eram naturalmente imutáveis. Num artigo de 1880, surge Henry Faulds, que arrogou ser o pioneiro a sugerir a re-colha de datilogramas com finalidade identificativa, sendo, além disso, o primeiroeuropeu a sugerir a importância da utilização da lofoscopia na investigação criminal.Note-se, ainda, que é tido como precursor no que concerne à exclusão de um suspeitode crime por via da análise e comparação de datilogramas (entre o produzido no lo-cal do crime e o colhido ao então suspeito, depois inocentado).Corria o ano de 1892 quando se levou ao prelo uma obra de monta, «Finger Prints»,da autoria de Sir Francis Galton, onde referiu, entre outras, as minúcias ou pontos ca-racterísticos, conhecidos como «Pontos de Galton».Igualmente nesse ano, Juan Vucetich origina um impulso irreversível na lofoscopiacom a obtenção de uma identificação datiloscópica num caso de filicídio, levando àcondenação cientificamente sustentada da autora e, de outra sorte, à exoneração daqualidade de suspeito de um indivíduo previamente detido no âmbito das diligênciasinvestigatórias.Na primeira década do séc. XX, o francês Edmond Locard, famoso pelo seu «Princí-pio da Transferência», aborda a poroscopia, sendo quem primeiro suscitou a necessi-dade de estabelecer um número mínimo de minúcias para obter uma identificação fi-dedigna. Em Portugal, o médico Rodolfo Xavier da Silva, em 1911, conseguiu o crédito depioneiro na identificação lofoscópica de um criminoso numa ocorrência criminal,embora, antes disso, tenha identificado um cadáver desconhecido pela mesma via,em 1904. Esteve, também, na génese da lofoscopia em Moçambique, na segunda dé-cada do séc. XX e deixou vasta obra.

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4 Registo das marcas ou reprodução das cristas dermopapilares para fins identificativos.

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Na Polícia Judiciária (PJ), a implementação da lofoscopia deu-se em 1957, culmi-nando na adoção do «Sistema de Oloriz»5, após curso ministrado pelo espanhol Flo-rentino Santamaria Beltran, comissário da polícia espanhola e chefe do laboratório depolícia técnica. Curiosamente, este comissário, em junho de 1953, durante a 22.ª As-sembleia Geral da Interpol, em Oslo, suscitou polémica – ainda hoje persistente – aoreferir que determinadas minúcias são mais vulgares (em maior número) que outraso que, em tese, potenciaria fatores de valoração diferenciados. Concluiu, por isso, quea exigência de um número padrão de minúcias para uma identificação poderia não sera abordagem mais adequada. Sobre a lofoscopia na PJ vislumbraram-se algumas mudanças técnicas, nomeadamenteao nível do surgimento e aplicação de novos reagentes sólidos, líquidos e gasosos quevieram incrementar as técnicas de revelação de vestígios, conjuntamente com auxiliarespoderosos como as luzes forenses e ultravioletas, vitais para a revelação de vestígios qui-mioluminescentes e bioluminescentes.Desde 1990 que também opera com AFIS6, o qual, numa primeira fase, se encontravaapenas em Lisboa, estando, atualmente, presente em várias unidades territoriais.Na sua orgânica, a lofoscopia encontra-se na dependência do Laboratório de PolíciaCientífica (LPC), integrada no Setor de Identificação Judiciária da Área de Crimina-lística. A sua abrangência territorial estende-se a todo o território nacional, atravésdas extensões do LPC nas diretorias e departamentos de investigação criminal. Em suma, e no contexto histórico, é o que se pretende destacar, conquanto não olvi-dar que outras menções poderiam ser tidas em conta, até pela miríade de informaçãodisponível – literária, televisiva ou na web – para quem pretenda aprofundar o co-nhecimento na matéria em apreço.

O plano técnico-científico

Como referido, a lofoscopia é a «ciência que estuda os desenhos das extremidades di-gitais, palmas das mãos e planta dos pés». Esses desenhos, denominados dermatógli-fos, fundam-se na anatomia da pele, onde se destacam as cristas dermopapilares, ossulcos interpapilares, as minúcias, os poros e alguma morfologia de causa natural e,eventualmente, acidental, como, por exemplo, pregas de flexão, cicatrizes, queima-duras e outras patologias.

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5 Sistema de classificação lofoscópica alfanumérico, desenvolvido por Francisco Oloriz, hoje em desuso ante a im-plementação massiva dos sistemas automatizados de identificação lofoscópica (AFIS).6 Automated Fingerprint Identification System – Sistema Automatizado de Identificação Lofoscópica.

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Os dermatóglifos, a que comummente se chamam, também, impressões digitais, sur-gem ainda durante a vida intrauterina, em estado fetal, entre as nove e as 11 semanas,consolidam-se perto das 30 semanas e perduram post mortem até à decomposição ca-davérica mais severa.A lofoscopia tem a sua trave mestra assente em três princípios fundamentais:a) A perenidade – os dermatóglifos mantêm-se, como já citado, no período com-preendido enquanto feto, em ambiente intrauterino, até à putrefação cadavérica;b) A imutabilidade – os dermatóglifos permanecem inalterados (exceto quando sofremtransformações de origem não natural) nas condições temporais da perenidade;c) A variedade – Não existem dois indivíduos com dermatóglifos iguais e nem mesmono próprio indivíduo os dermatóglifos se repetem entre dedos, palmas ou planta dos pés.Apreendidos estes pressupostos pelos especialistas, certificados e habilitados, surge anecessidade de uma classificação dos datilogramas, de modo a atingir o escopo dotrabalho: a individualização do dador, ou seja, aquele que produz um datilograma. Istopara poder relacionar o dador, excluindo-o ou associando-o com um outro datilograma,seja este um vestígio recolhido num local de crime ou datilograma registado em ou-tro suporte7.Assim, os datilogramas esteiam-se em três grandes classificações: adélticos, monodél-ticos e polidélticos (Simas, Calisto & Calado, 2002) sem prejuízo de outras classifi-cações e sub-classificações:a) Adélticos – Ausência de delta8;b) Monodélticos – Com um só delta, embora diferenciados face à situação posicio-nal do delta, i.e., à direita do centro da figura do datilograma (dextrodelta) e à es-querda (sinistrodelta);c) Polidéltico – Dois ou mais deltas.Estas classificações permitem ao especialista fazer uma abordagem «macro» dos dati-logramas (quirogramas ou pelmatogramas) e, nalguns casos, em sede de comparação,determinar a exclusão. Na terminologia científica, tais classificações designam-se poravaliação de primeiro nível.Num segundo nível, surgem as minúcias, pontos característicos ou pontos de Galton,uma variedade de «acidentes» na aparente linearidade das cristas dermopapilares dodatilograma. Sublinham-se os mais frequentes10 (Simas et al., 2002):a) Abrupta – quando uma crista dermopapilar termina de forma abrupta, sem se-quência;

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7 V.g., uma resenha ou um documento de identificação com datilograma aposto.8 Ponto de confluência das cristas dermopapilares limitantes do sistema basilar, margina e nuclear9 ACE-V, Analysis, Comparison, Evaluation, Verification. Referido pela primeira vez em 1959 mas só aplicado à Lofos-copia em 1979 por David R. Ashbaugh.

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b) Bifurcação – quando uma crista dermopapilar se divide em duas;c) Convergência – quando duas cristas dermopapilares se fundem numa só;d) Olhal – Quando uma crista papilar se bifurca e, sem interrupção, converge nova-mente, continuando o trajeto;e) Fragmento – Pedaço de crista isolado, com comprimento e altura diferentes.Existe, ainda, um terceiro nível, mais utilizado nos países de origem anglo-saxónica, quese fixa na análise dos poros, dimensão das cristas e sulcos, excrescências, entre outras.Este nível segue o procedimento denominado ACE-V9, uma espécie de método cientí-fico adaptado e que tem originado uma série de identificações erróneas10 nos países queo adotaram como regra, ao invés dos que optam pelo procedimento de número padrãode pontos característicos, não obstante seguirem grosso modo os passos do ACE-V.Em Portugal, a ritologia assumida é o procedimento de número padrão de pontos ca-racterísticos, considerando 12 pontos concordantes em ambos os datilogramas paravalidar uma identificação.Em resumo, porque não se pretende prolixidade, pois tornar-se-ia fastidiosa a enu-meração aprofundada de questões técnicas, aporta-se no contributo da praxis internade apoio à investigação criminal. Destarte, nas valências da lofoscopia, destaca-se a transversalidade de atuação, ora tra-tando vestígios recolhidos em crimes da competência reservada da PJ, ora provindosde outros órgãos de polícia criminal (OPC) de competência genérica, em ambientelaboratorial e/ou em AFIS, com a incindível componente fotográfica.Ainda no seio da PJ, um meritório sublinhado no trabalho da lofoscopia quanto à fal-sificação de documentos e usurpação de identidades que permite, bastas vezes, a celeri-dade processual e/ou um caminho mais balizado a quem compete investigar, culmi-nando com frequência na individualização do(s) agente(s) criminógeno(s).As solicitações no âmbito da cooperação internacional em matéria penal também me-recem relevo, não olvidando, outrossim, a satisfação de pedidos por banda das auto-ridades judiciárias para apurar os alegados agentes do crime e cabal identidade, indi-cando e ordenando comparações lofoscópicas. Cabem destacar, ainda, pedidos detribunais cíveis para apurar a identidade de partes ou autores de documentos cons-tantes dos autos e pedidos de autoridades diplomáticas.Por fim e como labor quotidiano, a identificação judiciária, com a feitura de resenhase clichés a arguidos, a fim de se proceder a posterior inserção no AFIS, que oferece dis-cussão e se tratará adiante com maior profundidade.

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10 O case study emblemático foi a detenção de Brian Mayfield, relacionando-o com os atentados terroristas perpetra-dos em Atocha, Espanha.

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Todo este acervo de solicitações é objeto das competentes peças processuais ou admi-nistrativas, nomeadamente relatórios periciais com as respetivas demonstrações grá-ficas11 aquando de determinação de identificação.

O plano legal12

O desiderato neste plano é procurar elencar os normativos que se prendem, direta ouindiretamente, com a lofoscopia e com a sua atividade identificativa – nomeadamentea identificação judiciária de arguidos – não sem primeiramente tributar o acórdão doTribunal da Relação de Guimarães13, de 25 de outubro de 2010, ao destacar a im-portância e transcendência da datiloscopia na investigação criminal.Nota prévia, e como bem refere Malhado (2001), «não está institucionalizado um sis-tema universal de identificação», sendo, portanto, evidente que se poderão invocar ou-tras formas ou ramos da atividade identificativa criminal tais como a identificação ju-diciária14 e a identificação judicial, ambas com sede na vertente criminal: identificaçãojudiciária, a levada a cabo pelas autoridades judiciárias15, e identificação judicial, adeterminada unicamente pelos magistrados judiciais, embora esta se aplique não sóao processo criminal como também ao processo civil, diferentemente da referida iden-tificação judiciária que apenas tem foro penal.Não existe, também, lei ou regulamentação adequada à determinabilidade do valordos datilogramas/quirogramas que acompanham os relatórios periciais, ou seja, o nú-mero de pontos padrão baseia-se, mutatis mutandis, numa espécie de costume comofonte do Direito, lançando mão dos elementos do uso e obrigatoriedade.Releva, portanto, para este plano a identificação no âmbito do direito processual pe-nal, «direito constitucional aplicado» na fórmula de Henkel, o que torna imperiosauma panorâmica dos preceitos que a regulam.Presumem-se com maior operatividade as tipologias de identificação civil e identifi-cação criminal, porque, inclusive, a lei apenas estas prevê, sem prejuízo de constru-ções jurídicas ou concetuais de subtipos de identificação, dando-se por adquirido,

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11 Reprodução de datilogramas, lado a lado, onde se encontram assinalados e numerados os pontos característicos coin-cidentes, de modo a demonstrar a inequivocidade da identificação.12 Baseado na dissertação de mestrado do autor (Oliveira, 2009).13 Processo 300/04.0GBBCL.G2.14 Baseia-se, materialmente, e num conceito amplo, no uso de elementos antropométricos e antropológicos para a iden-tidade civil dos potenciais agentes de ilícitos criminais.15 Embora o ato identificativo, por via de delegação da respetiva autoridade judiciária, seja maioritariamente efetuadopelos órgãos de polícia criminal. A identificação judiciária também se denomina tradicionalmente de identificaçãopolicial.

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porém, que a identificação aqui aspirada a tratar é aquela que se traduz na atividadeprocessual tendente à identificação de agentes indiciados pela prática de ilícito cri-minal e não a vertida na Lei n.º 57/98 (Lei da Identificação Criminal, adiante LICr)16

que se ocupa de «arguidos condenados» para efeitos de registo.Por isso, considera-se a expressão «identificação criminal» um conceito polissémico,pois, em bom rigor, a identificação de arguido – ainda não condenado – em processocrime é também ela criminal.A identificação judiciária, comummente designada por identificação policial, é, igual-mente, a processada pelos OPC de competência genérica17 aquando da recolha deimpressões digitais, bipalmares e fotografias aos arguidos, por via de regra.O ponto de partida para a identificação criminal em Portugal deu-se no séc. XIII como esboço de um registo criminal, «O Livro dos Culpados», no reinado de D. Dinis.Porém, as noções mais aproximadas do registo criminal que hoje se conhece tiveraminício em 1511, aquando da elaboração de uma folha, por banda dos tribunais, porprocesso apresentado, a qual era, posteriormente, remetida ao corregedor.A efetiva positivação da identificação criminal portuguesa começou em 21 de setembrode 1901 com a publicação do decreto criador dos postos antropométricos. E poste-riormente, do respetivo regulamento, por via de decreto, de 18 de janeiro de 1906,que veio a introduzir oficialmente a datiloscopia e a antropometria, expressando quesomente os indivíduos condenados por crimes seriam identificados.A criação do bilhete de identidade teve a sua origem no Decreto n.º 4837, de 20 desetembro de 191818, que, na sua parte preambular, considerava que a identificação doscriminosos é um poderoso meio de repressão da criminalidade, i.e., aliou a produção detal documento identificativo aos desígnios de ordem pública no combate à crimina-lidade, tornando obrigatória a identificação dos delinquentes.Essa identificação processava-se conforme o estatuído no art. 3.º do aludido decreto:O processo de identificação seguido em todo o país será o processo datiloscópico,acompanhado ou não da sinalética antropométrica, e a ele serão sujeitos todos os

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16 Que estabelece os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, publicadano DR, 1.ª Série-A, N.º 63, de 16 de março, com entrada em vigor a 1 de janeiro de 1999, retificada no art. 1.º, n.º 1,pela Declaração de Retificação n.º 16/98, publicada no DR, 1.ª Série, N.º 226, de 20 de setembro, alterada no art. 23.ºpelo art. 2.º do Decreto-Lei n.º 323/2001, publicado no DR, 1.ª Série-A, N.º 290, de 17 de dezembro, com entrada emvigor a 1 de janeiro de 2002, alterada no art. 7.º pelo art. 5.º da Lei n.º 113/2009, publicada no DR, 1.ª Série, N.º 181,de 17 de setembro, com entrada em vigor a 22 de setembro, alterada nos arts. 1.º, 3.º a 5.º, 7.º, 11.º a 17.º, 19.º, 21.º,23.º, 25.º e 26.º pelo art. 1.º da Lei n.º 114/2009, publicada no DR, 1.ª Série, N.º 184, de 22 de setembro, com en-trada em vigor a 21 de dezembro, e, ainda, revogado o art. 16.º, n.º 3, pelo art. 8.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 115/2009,publicada no DR, 1.ª Série, N.º 197, de 12 de outubro, com entrada em vigor a 10 de abril de 2010.17 Art. 3.º, n.º 1, alíneas a) a c), da Lei n.º 49/2008 (Lei de Organização da Investigação Criminal), publicada no DR,1.ª Série, N.º 165, de 27 de agosto, com entrada em vigor a 26 de setembro.18 Publicado no DR, 1.ª Série, N.º 209, de 23 de setembro de 1918.

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condenados e pronunciados, depois de presos ou afiançados, assim como os presos in-dicados pela autoridade judicial ou administrativa.Em 1927, é publicado o Decreto n.º 1471319 para organização do registo policial, des-tinado à centralização e arquivo de cadastro dos indivíduos detidos à ordem de diversaspolícias.Embora tenham vigorado desde essa data vários diplomas legais a disciplinar direta eindiretamente a matéria da identificação civil, ressaltam dois deles: a Lei n.º 33/99 (Leide Identificação Civil, adiante LIC) 20, que revogou a parte da identificação civil naLei n.º 12/91 (Lei da Identificação Civil e Criminal), e a Lei n.º 7/2007 (Regime deEmissão e Utilização do Cartão de Cidadão)21.Uma nota para a eficácia conferida pelo art. 3.º da LIC ao bilhete de identidade queatribuiu força probatória bastante acerca da identificação do respetivo titular, perantequaisquer autoridades e entidades públicas ou privadas, validando-o em todo o territó-rio nacional, sem prejuízo da eficácia reconhecida por normas comunitárias e por trata-dos e acordos internacionais.A Lei n.º 7/2007 teve por objeto a criação, emissão, substituição, utilização e cancela-mento do cartão de cidadão (art. 1.º), podendo afirmar-se que este, tal como o bi-lhete de identidade, é um documento autêntico22, 23 (art. 2.º), cujo valor identifica-tivo é atribuído por lei. Torna-se eficaz perante quaisquer autoridades, públicas ouprivadas, em todo o território nacional, i.e., da sua exibição faz-se prova bastante daidentidade civil do seu titular (art. 4.º) e prova plena dos dados aí atestados24, talcomo o bilhete de identidade ainda em vigor.A recolha de impressões digitais e palmares (dados pessoais biométricos) tem tam-bém cobertura ope legis, para além da do cartão de cidadão, nos casos em que se tratede arguidos condenados nos tribunais portugueses, operando essa recolha como meiocomplementar de identificação, nos termos do art. 1.º, n.º 2, da LICr e do art. 5.º,n.º 6, do respetivo regulamento, Decreto-Lei n.º 381/98.

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19 Publicado no DR, 1.ª Série, N.º 277, de 15 de dezembro de 1927.20 Que regula a identificação civil e a emissão do bilhete de identidade de cidadão nacional, publicada no DR, 1.ª Sé-rie-A, N.º 115, de 18 de maio de 1999, com entrada em vigor a 23 de maio, alterada nos arts. 49.º e 50.º pelo art. 4.ºdo Decreto-Lei n.º 323/2001, publicado no DR, 1.ª Série-A, N.º 290, de 17 de dezembro, com entrada em vigor a1 de janeiro de 2002, e, ainda, com revogação do art. 45.º pelo art. 2.º, n.º 1, alínea i), do Decreto-Lei n.º 194/2003,publicado no DR, 1.ª Série-A, N.º 194, de 23 de agosto de 2003, em vigor desde 24 de setembro.21 Publicada no DR, 1.ª Série, N.º 25, de 5 de fevereiro, com entrada em vigor a 10 de fevereiro de 2007.22 Cf. art. 363.º, n.º 2, do Código Civil.23 A sua força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (arts. 371.º, n.º 1, e 372.º, n.º 1, do CódigoCivil), e nenhuma entidade pública ou privada pode questionar a veracidade dos factos que atesta, sem pôr em causaa falsidade do próprio documento. Em caso de dúvida sobre a autenticidade do cartão de cidadão ou sobre o seu usoindevido, deve, de imediato, ser apresentada participação às autoridades competentes.24 Prova bastante que cede apenas perante contraprova (art. 346.º do Código Civil) e prova plena que somente facea prova em contrário é que cede (art. 347.º do Código Civil).

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O Decreto-Lei n.º 352/9925, ao revogar o Decreto Regulamentar n.º 27/9526, veio dis-ciplinar as bases de dados da PJ, referindo a sua parte preambular a extrema impor-tância para o cumprimento das atribuições da Polícia Judiciária e o tratamento trans-parente dos dados pessoais em conformidade com os direitos, liberdades e garantiasfundamentais dos cidadãos. Numa análise ao art. 2.º, vê-se expressa uma limitação à recolha de dados pessoais paratratamento informatizado, que só acolhe tal procedimento em face do estritamente ne-cessário a prevenir um perigo ou a reprimir ilícitos penais estabelecidos.A latere, e como se sabe, o tratamento de dados pessoais é uma questão essencial paraa identificação, seja ela criminal ou civil. Assim, na ordem jurídica interna, salienta-sea atual Lei n.º 67/98 (Lei da Proteção de Dados Pessoais, adiante LPDP)27, cuja géneseesteve na Proposta de Lei n.º 173/VII28, tardia, que se deveu à mencionada imposi-ção comunitária de transposição da Diretiva 95/46/CE.O princípio da transparência, princípio geral adotado por esta lei, no art. 2.º, diz queo tratamento de dados pessoais dever processar-se de forma transparente e no estrito respeitopela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias.O art. 5.º, nas alíneas a), b) e c), exige que os dados tenham um tratamento lícito, res-peitando os princípios da boa-fé, da finalidade, da pertinência e da adequação, demodo a ter a sua recolha uma finalidade determinada, expressa e legítima, e que se-jam adequados, pertinentes e não excessivos perante o fim e respetivo tratamento.Já no que respeita ao mote a tratar, dá-se particular atenção, no art. 8.º, n.º 3, ao tra-tamento de dados pessoais para fins de investigação policial, devendo estes ter como limitenecessário a prevenção de um perigo concreto ou repressão de uma infracção determinada,ou o exercício de competências previstas no respectivo estatuto orgânico ou noutra disposiçãolegal e ainda nos termos de acordo ou convenção internacional de que Portugal seja parte.É conveniente atentar no Parecer n.º 23/2008, da Comissão Nacional de Proteção deDados (CNPD), de 9 de junho, versando sobre o regime jurídico aplicável ao tratamentode dados do sistema judicial, quando exprime que «só é lícito o tratamento desde queconforme ao princípio jurídico da legalidade na recolha deste tipo de dados. Ou seja, o res-ponsável não pode coligir os dados sem que haja fundamento legal em que assente o tra-tamento».

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25 Regime jurídico dos ficheiros informáticos da PJ, publicado no DR, 1.ª Série-A, N.º 206, de 3 de setembro, comentrada em vigor a 8 de setembro.26 Publicado no DR, 1.ª Série-B, N.º 252, de 31 de outubro.27 Publicada no DR, 1.ª Série-A, N.º 247, de 26 de outubro, com entrada em vigor a 27 de outubro, transpondo paraa ordem jurídica portuguesa a Diretiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995,relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação des-ses dados.28 Publicada no Diário da Assembleia da República, II Série A, N.º 47/VII/3, de 30 de abril de 1998.

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No que tange ao Código de Processo Penal (CPP), diploma legal por excelência emque se respalda a atividade operacional da PJ hoc sensu a lofoscopia, encontram-se dis-persas várias disposições sobre identificação de sujeitos processuais, de forma expressaou tácita.Há, então, que convocar o CPP, onde se plasma o estatuto de arguido, englobandoos seus direitos e deveres, estribado nos arts. 60.º e 61.º, sendo um desses deveres,constante do art. 61.º, n.º 3, alínea b), o de responder com verdade às perguntas feitaspor entidade competente sobre a sua identidade, ficando, deste modo, licitamente res-tringido o direito ao silêncio. Não significa, porém, que seja necessária a recolha deprovas datiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga, com a ressalva dessas re-colhas poderem vir a ser efetuadas excecionalmente em duas situações: como meio deobtenção de prova ou para verificação de identidade do arguido quando não for pos-sível obtê-la por quaisquer outros mecanismos legais.29

Preceitua o art. 99.º, n.º 1, que auto é o instrumento destinado a fazer fé sobre atosprocessuais com especiais requisitos impostos por lei, tanto para o redator como parao assistente de determinada ocorrência, sendo, portanto, um documento autêntico.Um dos elementos do seu conteúdo, conforme o n.º 3, alínea a), do referido artigo,é a identificação das pessoas que intervieram no acto, mandando o n.º 4, porém, apli-car correspondentemente o disposto no art. 169.º30

Assim, no plano fático e jurídico, para o dever de identificação do arguido, conformeo art. 61.º, n.º 3, alínea b), ou para a normal e regular identificação de outros sujeitosprocessuais, conjugando os arts. 99.º e 169.º, bastará a exibição de bilhete de identidadeou do cartão de cidadão ou, ainda, por analogia legis, de quaisquer dos documentosmencionados no art. 250.º, n.os 3 e 4.Na tutela jurisdicional penal, uma primeira problematização surge, partindo do pres-suposto que um arguido foi identificado de modo ilícito, com recolha das impressõesdigitais, palmares e cliché, tendo na sua posse e exibido às autoridades documento deidentificação – o qual faz prova bastante e plena – na formalização e materializaçãodesse procedimento identificativo.Pode afirmar-se haver adrede uma atuação excessiva, desadequada e desproporcio-nada do executor de tal procedimento, responsabilizando-o jurídico-penalmente e,do mesmo modo, responsabilizando quem tenha ordenado tal diligência. A referida

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29 Em sentido diverso, pugnando pelas aludidas recolhas, vide Albuquerque (2008a).30 Este artigo foi já objeto de discussão jurisprudencial quanto à sua relação com o princípio da presunção de inocência,pois a fé pública manifestada pelos autos de notícia elaborados por agentes da autoridade sobre infrações que pre-senciaram é de duvidosa constitucionalidade, isto porque o participante poderá ser, em simultâneo, quem vai reali-zar a investigação.

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responsabilidade criminal poderá assentar na ofensa do direito à integridade pessoal,com garante no art. 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), etutela penal nos arts. 143.º e seguintes do Código Penal (CP). Se o arguido consideraro facto subsumível a um tratamento humilhante, pode invocar o art. 243.º do CP, poiso agente (ente público) e a finalidade (recolha para inserção em base de dados) estãoapurados.Exposta, genericamente, a tutela criminal à disposição do arguido, face ao seu direitoviolado, aprecia-se, de seguida, a responsabilização penal na órbita do funcionário –na aceção do art. 386.º do CP – quando, no exercício de funções ou por causa des-tas, realiza atos materiais desconformes à lei.Esses funcionários que executam as funções de identificação de arguidos, podem in-correr em abuso de poder, crime previsto e punido pelo art. 382.º do CP, pois, na suaação, atingem direitos indisponíveis do arguido maxime direitos de personalidade,sendo que a lei não distingue entre patrimonial ou não patrimonial o prejuízo cau-sado a outrem referido na norma (cf. Dias, 1999).Esta prática demonstra ter aplicabilidade no que escreve Albuquerque (2008b), refe-rindo que o abuso de poder é um ato ou decisão do funcionário que «padece de umdos seguintes vícios: (1) violação da lei substantiva ou processual; (2) desvio de poder; (3)incompetência relativa ou absoluta; (4) usurpação do poder jurisdicional […] ou do po-der administrativo» e, no referente ao elemento subjetivo do tipo, «não é necessário que […]o prejuízo se tenha verificado, bastando que o funcionário o tenha querido».Acresce, ainda, o «Comentário Conimbricense», em texto de Paula Ribeiro de Fariasobre o mesmo artigo, que «o tipo legal poderá também ser preenchido através da violaçãode deveres por parte do funcionário», incluindo-se aqui os deveres funcionais específicose os deveres funcionais genéricos31.Os atos de abuso de autoridade, a par da igualdade de tratamento dos cidadãos pe-rante a lei, têm, também, norma expressa no já referido Código Deontológico do Ser-viço Policial32, mais exatamente no art. 5.º, n.º 2, que adverte para o dever dos mem-bros das forças de segurança se absterem da prática de tais atos por não condizentecom um desempenho responsável e profissional da missão policial.Afigura-se, também, haver lugar a responsabilidade disciplinar de quem executa a re-colha dos elementos complementares de identificação, não se podendo aplicar o cri-tério do homem médio, do bonus pater familias, ao profissional que dá execução aoato de recolha por este estar previsivelmente dotado de especiais conhecimentos –

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31Comentário Conimbricense…, Tomo III, p. 776.32 Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002, publicada no DR, 1.ª Série-B, N.º 50, de 28 de fevereiro

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técnicos e jurídicos – por inerência legal, estatutária ou regulamentar, impostação estaque afasta a concretização da causa de exculpação de obediência indevida desculpante,prevista no art. 37.º do CP.Porém, quando ordenada tal recolha, poderá ser excluída a responsabilidade discipli-nar do executor se este reclamar da ordem ou exigir a transmissão por escrito, ou po-derá cessar o dever de obediência se estiver perante um crime, conforme art. 271.º,n.os 2 e 3, da CRP.A dificuldade estará, certamente, em o funcionário considerar estar perante um crimee o superior hierárquico ter entendimento diverso, o que fomentará a aplicação de san-ção disciplinar por violação do dever de obediência33, sendo o procedimento disci-plinar insindicável no foro gracioso. Não obstante, quando um superior hierárquicoordenar a identificação de um arguido nos moldes supra, não se poderá desonerar deincorrer em crime de abuso de poder, ad minimum com o título comparticipativo deautor mediato, conforme o art. 26.º do CP.Sublinha-se, ainda, que os crimes em causa são geradores de danos, os quais são objetode indemnização nos termos do art. 129.º do CP e do Regime da ResponsabilidadeCivil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. É latente, também, numa outra perspetiva, a discricionariedade de procedimentosidentificativos entre arguidos, não se identificando da mesma forma os sujeitos comessa qualidade processual, i.e., não se recolhem as impressões digitais e palmares nemé feito o cliché.Isto acontece, geralmente, nos indivíduos constituídos arguidos em infrações penaisque se prendem, nomeadamente, com direitos de autor, exploração ilícita de jogo,condução sem habilitação legal, crimes contra a propriedade industrial e intelectual,emissão de cheques sem provisão, branqueamento, criminalidade informática, crimeslaborais, fiscais, ambientais ou desportivos e, ainda, quando os tribunais e serviços doMinistério Público (MP) não se encontrem em Lisboa ou no Porto, convocando-se,também, a tendencial diferenciação na natureza dos crimes: públicos, semipúblicos ouparticulares.Ora, é evidente uma clara violação ao princípio da igualdade expresso no art. 13.º daCRP, que afirma que todos devem ser tratados de forma semelhante, sendo que nosubstantivo masculino «todos» se albergam também aqueles que detêm a qualidadeprocessual de arguidos, devendo, neste caso, os OPC conformar a sua conduta não sócom disposições legais internas – destacando-se, em particular, a obrigação de isençãoe imparcialidade para as forças de segurança PSP e GNR, que decorre, entre outros,do art. 5.º do Código Deontológico do Serviço Policial, e a preservação das garantias

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33 Quanto a estas vicissitudes cf. Amaral (2008).

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gerais de não discriminação do tratamento de dados do art. 7.º, n.º 2, in fine, daLPDP –, mas, por maioria de razão, com normas de direito internacional como, no-meadamente, os arts. 1.º e 7.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem edas Liberdades Fundamentais34, art. 14.º da Convenção para a Proteção dos Direitosdo Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH)35 ou art. 2.º, n.º 1, do Pacto In-ternacional sobre os Direitos Civis e Políticos36.Caso contrário, dir-se-á que estamos perante classes de arguidos, sendo uns «arguidosde primeira» e outros «arguidos de segunda», o que acabaria por se traduzir num in-sustentável limiar político-criminal, sabendo-se que «o sacrifício, ainda que parcial, deum direito fundamental, não pode ser arbitrário, gratuito, desmotivado» (Canotilho &Moreira, 2007).Como mero exercício, e considerando que anualmente entram no registo criminalcerca de 14 500 boletins de registo criminal com impressões digitais apostas, creia-se,por hipótese, que em 2010 terão dado entrada nos serviços de identificação criminal15 000 boletins de registo criminal com impressões digitais.Ora, segundo dados da Direcção-Geral da Política de Justiça, foram condenadas emPortugal 77 694 pessoas singulares nesse ano em processos-crime findos37 nos tribu-nais de primeira instância.Comparados estes dados, ver-se-á que a média de boletins de registo criminal com im-pressões digitais (presumindo os 15 000) se cifra aproximadamente em 19,3% rela-tivamente à totalidade das pessoas singulares condenadas.Posta esta exercitação, e relativamente ao ano de 2010, legitima-se, então, a questão deindagar o porquê do número de boletins do registo criminal com impressões digitais

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34 Adotada por resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas e a vigorar no ordenamento jurí-dico interno desde 14 de março de 1978, por via de Aviso n.º 057IAO/78, do Ministério dos Negócios Estrangei-ros, publicado no DR, 1.ª Série, N.º 57, de 9 de março.35 Denominada vulgarmente por Convenção Europeia dos Direitos do Homem, adotada em Roma a 4 de novembrode 1950 e aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, publicada no DR, 1.ª Série, N.º 236, posteriormente reti-ficada no art. 29.º pela Declaração da Assembleia da República publicada no DR, 1.ª Série, N.º 286, de 14 de de-zembro, com entrada em vigor a 9 de novembro de 1978.36 Adotado pela Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, de 16 de dezembrode 1966, e aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, com publicação no DR, 1.ª Série, N.º 133, de 12 de junho,com entrada em vigor a 15 de setembro, posteriormente retificada no art. 42.º, n.º 7, pela Declaração da Assembleiada República publicada no DR, 1.ª Série, N.º 153, de 6 de julho. Refira-se também a Lei n.º 13/82, publicada noDR, 1.ª Série, N.º 135, de 15 de junho de 1982, em vigor desde 3 de agosto de 1983, que aprovou, para adesão, oProtocolo Facultativo referente ao PIDCP, bem como o Segundo Protocolo adicional ao PIDCP com vista à aboli-ção da pena de morte, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 25/90, publicada noDR, 1.ª Série-A, N.º 224, de 27 de setembro, retificada pela Retificação da Assembleia da República n.º 3/91, pu-blicada no DR, 1.ª Série-A, N.º 31, de 6 de fevereiro, e ratificado por Decreto do Presidente da República n.º 54/90,publicado no DR, 1.ª Série-A, N.º 224, de 27 de setembro, com entrada em vigor a 11 de julho de 1991.37 Para estes fins estatísticos consideraram-se como sendo os processos em que foi proferida a decisão final, na formade acórdão, sentença ou despacho, na respetiva instância, independentemente do trânsito em julgado.

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que deu entrada nos Serviços de Identificação Criminal do IRN, I.P. não ser coinci-dente com o total de pessoas singulares condenadas em processos-crime findos na pri-meira instância.Sendo estas premissas de uma evidência irrefutável, levam a concluir que, ou a praxisnão tem concordância com a lei e há manifesta clivagem no tratamento acerca dos pro-cedimentos identificativos dos arguidos/condenados em processos-crime ou os indi-víduos que foram alvo de recolha de impressões digitais estariam deficientementeidentificados ou teriam exibido documento de identificação alegadamente falso, oque não parece, de todo, plausível.Sucede que, em relação à identificação criminal, inexiste uma adequada concretizaçãolegal, sendo patente uma mescla de diplomas que a regulam exiguamente e não pro-tegem o arguido de forma efetiva nem contribuem para uma sã realização da justiça.Como se depreende, fala-se da LICr, do competente Regulamento (Decreto-Lein.º 381/98), do decreto-lei que disciplina as bases de dados informatizadas da PJ (De-creto-Lei n.º 352/99) e, subsidiariamente, do CPP.Sobre a LICr e respetivo regulamento, a aplicação versa somente acerca de arguidos con-denados, ganhando destaque a incoerência do art. 5.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 381/98,quanto ao advérbio imediatamente que, como se referiu supra, surpreende uma vio-lação ao direito de recurso concedido pelo art. 32.º, n.º 1, da CRP. Também o segmentodireito ao recurso, aditado pela quarta revisão constitucional, confrontado com a locuçãoimediatamente após o encerramento da audiência contida no art. 5.º, n.º fine, do citadoRegulamento, desencadeia uma limitação aos efeitos de potencial sentença absolutó-ria a proferir em recurso, que se entrevê manifestamente inconstitucional e, também,violador do art. 2.º, n.º 1, do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH.Não se olvide, todavia, que a LICr e o seu regulamento servem fins registrais, sem em-bargo de certidões ou certificados desses registos poderem ser requeridos ou requisi-tados para um processo penal, desde que se afigurem previsivelmente necessários.No que concerne às recolhas lofoscópicas e fotográficas a arguidos, não há nenhumaexigência legal expressa, sublinhando sempre que o art. 250.º do CPP tem na sua es-sência o fim de identificação civil imediata para controlo de identidade de suspeitos,independentemente de se considerar a natureza do ato como processual ou cautelar.Emerge, então, a necessidade de representação clara da problemática trazida a terreiro.Atendendo à dicotomia entre o valor da segurança comunitária e os direitos funda-mentais, entre a realização da justiça e as garantias privadas e, outrossim, à concor-dância prática entre bens jurídicos em colisão, parece, pois, de abrigar com a maiorceleridade uma solução para a questão da identificação de arguidos que praticam de-litos, tanto em sede de direito penal primário como em direito penal secundário.

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O problema expressa-se numa prática generalizada, por banda dos OPC, e, mais res-tritamente, dos tribunais, de recolha de impressões digitais, palmares e fotografiascomo elementos complementares de identificação aos arguidos e condenados. Istoantes, sequer, de eventual acusação e/ou pronúncia ou suspensão provisória do pro-cesso, ou, após as fases processuais primitivas, de sentença condenatória em julga-mento, sem prejuízo da discordância mantida quanto à habitualidade da recolha quedeveria ser exceção e não regra.Porém, pode afirmar-se, num primeiro aspeto, que a prática de recolha nos tribunais,para fins de registo criminal, encontra na LICr e respetivo regulamento o elementoliteral para a recolha de elementos complementares de «identificação criminal» – im-pressões digitais e a assinatura – desde que o sujeito passivo adquira o estatuto de con-denado. Defende-se, no entanto, a efetivação dessa recolha apenas em caso de dúvidaacerca da identidade, pois não se alcança a ratio legis para tal, estando o condenadoidentificado através de um documento de identificação com força probatória bastantee plena, concordante inclusive com a definição dada pelo art. 255.º, alínea c), do CP.Reitera-se que nos tribunais não há uma prática generalizada de recolha após decisãocondenatória, conforme dispõe o art. 1.º da LICr e o art. 5.º, n.os 5 e 6, do Decreto --Lei n.º 381/98, não se prevendo qualquer sanção para o arguido condenado quandonão presta assentimento à recolha de impressões digitais e de assinatura para o boletimdo registo criminal, depois de proferida decisão condenatória, apesar dessa recolha serdeterminada oficiosamente pelo tribunal (art. 5.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 381/98),talvez por tal norma assim aplicada estar ferida de inconstitucionalidade.Em apreciação do art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 352/99 destacam-se as limitaçõesno seu texto, restringindo a recolha de dados pessoais ao estritamente necessário à pre-venção de um perigo concreto ou à repressão de infracções penais determinadas.Mesmo tomando partido de que esta norma é de natureza permissiva relativamenteaos dados dos ficheiros informáticos do art. 3.º, embora limitada pelos condiciona-lismos impostos, não se concede a recolha de dados que irão fazer parte de um fi-cheiro que não encontra previsão em quaisquer das alíneas desse art. 3.º.A verificar-se a desconformidade com o ordenamento jurídico, outra questão se poráa título superveniente: qual o valor da prova produzida por um hit38 obtido entre umvestígio lofoscópico recolhido num local de crime e um qualquer datilograma/quiro-grama constante de uma resenha inserida no AFIS e obtida de forma não concordantecom a lei positivada? Afigura-se, perante tal, estar-se a laborar no domínio da proibição

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38 Concordância entre um vestígio recolhido num local de crime e o datilograma/quirograma constante de uma resenhainserida no sistema AFIS, levando à identificação/individualização do titular desse vestígio.

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de prova, face à ausência de admissibilidade legal que reja, em regra, as recolhas lo-foscópicas a arguidos.Esta desconformidade poderá redundar em algo de semelhante à Beweisverbot alemãou à Fruit of the Poisonous Tree Doctrine39 americana, entendendo-se que há depen-dência lógica entre a recolha (prova proibida) e o hit (restante prova). Em tese, abre-se caminho para a antinomia entre proibição de produção de prova, proibição de va-loração de prova e consequências prático-jurídicas da respetiva violação,nomeadamente o «efeito à distância» – Fernwirkung – não precludindo, contudo, orecurso às posições atenuadas de teorias limitativas da Independent Source, InevitableDiscovery ou Purged Taint.Por este motivo, é de todo pertinente legislar, através de decreto-lei autorizado ou lei,acerca das base de dados e maxime dos dados aí admitidos.Ultrapassada esta reflexão sobre bases de dados e recolha de elementos complemen-tares de identificação pelos OPC e tribunais, constata-se que o arguido acaba sempreestigmatizado, desde que lhe sejam recolhidos elementos lofoscópicos e fotográficosab initio, de acordo com a prática vigente, ficando estes dados a constar nos registospoliciais, nomeadamente na base de dados AFIS.Isto, mesmo que veja provada a sua inocência em audiência de julgamento ou emjuízo de revisão absolutório ou, até, por inconsequente que pareça, que não tenhasido tão-pouco deduzida acusação ou proferido despacho de pronúncia ou exista, porhipótese, a via do direito premial com a suspensão provisória do processo que culmineno respetivo arquivamento devido ao cumprimento das injunções ou injunção e/ouregra(s) de conduta estabelecidas, ou arquivamento em caso de dispensa de pena, nãoafastando a recente possibilidade, em casos específicos, de sanação do processo por viada mediação penal. Implica, pois, que quem é constituído arguido se veja tratado como um condenado quatale, pois o ato da recolha das impressões digitais e de fotografia policial é como se umapresunção juris et de jure de culpabilidade sobre si recaísse, conquanto essa qualidadeprocessual se neutralize, em larga medida, pela absolvição e pela não pronúncia.Em bom rigor, deveria o arguido, nestas circunstâncias e por imperativo constitucio-nal de presumível inocente com todas as garantias de defesa, continuar a beneficiar doprincípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado de sentença conde-natória, proibindo-se a recolha desses dados biométricos até aí e como regra.Assim, no quadro legal vigente, por princípio, e numa interpretação teleológica, havendotal recolha e sendo esta inexigível, desproporcional e desadequada, deve proceder-se

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39 Expressão usada pela primeira vez por Felix Frankfurter, juiz do Supremo Tribunal Federal, em 1939, no Caso Nardonevs United States of America.

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à destruição imediata dos elementos complementares de identificação obtidos,aquando de prolação de sentença absolutória, de despacho de não pronúncia ou dearquivamento (ou declarado este na suspensão provisória do processo40) e em caso dedispensa de pena, em homenagem ao princípio da presunção de inocência e à absol-vição declarada em decisão judicial.Caso contrário, estar-se-á perante uma assimetria entre a lei constitucional e a lei or-dinária, o que apoia uma inconstitucionalidade normativa, em que as normas infra-constitucionais em discussão, quando interpretadas no sentido permissivo da recolha dosdados biométricos, violam os direitos constitucionais à integridade pessoal, ao bomnome e reputação, à proteção legal e ofendem, ainda, as garantias contra a obtençãoe utilização abusivas ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas àspessoas, devendo essas normas ser consideradas em sede de fiscalização concreta deconstitucionalidade.Haverá, contudo, que tomar em consideração uma exceção para admitir tal recolha,que, de resto, vem expressa no já referido Ac. do TC n.º 228/2007:Tratando-se de recolha de prova, sem alternativas, dada a falta de testemunhas, em ma-téria de crime de muita elevada gravidade, a exigência de densificação da lei comoexigência de constitucionalidade não consideraria a «necessidade investigatória» ur-gente em confronto com a medida diminuta de sacrifício dos direitos fundamentaisno caso concreto.Afastando a reserva agora referida, e pese embora o muito respeito que merece quemperfilha de opinião contrária, as recolhas de elementos complementares de identifi-cação efetuadas, por via de regra e a título meramente identificativo, a arguidos, têm-secomo contra legem. Neste sentido, alude o Parecer n.º 18/98 da CNPD quando refereque «não faz sentido a recolha de impressões digitais se estas não forem aptas a servir de basecomparativa em exame lofoscópico».Daí que, no art. 99.º, n.º 3, alínea a), onde se obriga a consignar no auto, como re-quisito, a identificação dos intervenientes no ato, sem distinção da qualidade proces-sual, seja bastante para a identificação do arguido a titularidade e consequente exibi-ção de bilhete de identidade ou cartão de cidadão, não relegando, porém, e poranalogia, os restantes meios não coercivos de identificação possibilitados pelo precei-tuado no art. 250.º, n.º 3, alíneas a) e b), n.º 4 e n.º 5, alínea c), embora, como já dito,estes sirvam para um controlo de identidade civil de suspeitos no imediato, tratando-sede uma mera medida cautelar e de polícia.De modo idêntico, o art. 141.º, com epígrafe «Primeiro interrogatório judicial de arguido detido», indica, no n.º 3, as perguntas feitas ao arguido sobre os elementos

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40 Considerando, obviamente, o arquivamento pelo cumprimento das injunções e/ou regras de conduta pelo arguido.

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identificadores a este respeitantes tais como nome, filiação, freguesia e município41 denaturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência e local de trabalho, e,ainda, se esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e porque cri-mes, obrigando-o, se necessário, à exibição de documento oficial bastante de identi-ficação. Isto sem embargo de advertência quanto à cominação de crime por desobe-diência previsto para o caso de recusar resposta (art. 348.º, n.º 1, do CP) ou, prestandofalsas declarações42, no crime de falsidade de declaração (art. 359.º do CP), em aten-tado aos bens jurídicos autonomia intencional do Estado e realização da justiça.Ainda sobre o art. 141.º, extrai-se, igualmente, que fazem fé as respostas do arguido quantoaos seus elementos identificadores. Assim não sendo, funciona em regime subsidiárioa exibição de documento oficial bastante de identificação, não se pressentindo a neces-sidade de quaisquer outros meios complementares de identificação quando se verifi-carem preenchidos os requisitos elencados no art. 141.º, n.º 3.Quanto à recusa de resposta sobre a sua identidade, em audiência de julgamento, oarguido incorre, também, no crime de desobediência previsto e punido pelo art. 348.º,n.º 1, do CP, sendo que a falsidade das declarações acerca dos elementos de identifi-cação comina no crime de falsidade de declaração nos termos do art. 359.º, n.º 2,do CP.Não se entreveem, deste modo, quaisquer normas que indiquem imperativamente arecolha das impressões digitais, bipalmares e fotografias ao arguido não condenado,a não ser, em situações muito específicas:– Estando indocumentado e se não puder comprovar a sua identificação;– Perante suspeita de falsificação ou contrafação de documento oficial bastante deidentificação; ou– Excecionalmente, quando o meio de obtenção de prova seja absolutamente neces-sário, não se podendo alcançar através de outras diligências, e desde que a coberto decompetente despacho judicial.Caso contrário, ter-se-á que derrogar a regra da inadmissibilidade da fiscalização daconstitucionalidade das leis pela Administração e, nas circunstâncias em debate, invocara exceção que admite que essa Administração desaplique leis «que violem rotundamente

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41 A referência feita no artigo é a «concelho», embora esteja desatualizada. Desde 1976 e, em definitivo, com a revi-são constitucional de 1982, os concelhos deixaram de persistir no texto constitucional. A atual divisão administra-tiva tem na sua organização territorial autárquica as freguesias, os municípios e as regiões administrativas (cf. art. 236.ºda CRP), sendo certo que inúmeros formulários públicos e privados – a esmagadora maioria – contêm incorretamentea designação “concelho” em detrimento de “município”.42 Quanto à prestação de falsas declarações, expende o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de novembro de2006, que «só o arguido que é interrogado, achando-se detido, e não também o que é interrogado estando em liberdade,comete o crime de falsidade de declaração se mentir sobre os seus antecedentes criminais», embora esse mesmo tribunal tenhajá proferido acórdão em sentido diverso (Ac. n.º 0740461, de 30 de maio de 2007). Em sentido idêntico, Ac. do TRL,Processo n.º 2236/2007-3, de 18 de abril de 2007.

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direitos fundamentais definidos como “absolutos” ou “intangíveis”, consagrados em normasconstitucionais preceptivas e exequíveis por si próprias» (Morais, 2006).Deixam-se soluções compromissórias que tenham em conta, alternativa ou cumula-tivamente, os seguintes pontos:– Adoção, de modo expresso e como regra, da identificação do arguido através de do-cumento bastante de identificação (o que tem assento nos vários artigos do CPP), emquaisquer áreas do direito penal;– Restrição à recolha de fotografias e de impressões digitais e palmares aos arguidos,ordenando-a apenas através de despacho judicial, no caso de crime de intensa gravi-dade e somente quando não existirem alternativas, representando para a desobediên-cia uma pena de multa elevada convertível em pena de prisão subsidiária, prisão pordias livres e/ou imposição de regras de conduta; – Recolha a condenados com pena igual ou superior a 5 anos de prisão, por crimesdolosos contra a vida, integridade física, liberdade e autodeterminação sexual e pro-priedade, desde que com valor elevado, tendo em conta, porém, uma valoração ca-suística do juiz decisor face à singularidade do caso em concreto;– Por princípio, exigência ao condenado de consentimento livre, prévio, informadoe escrito, e com autorização expressa para obtenção de fotografias e das impressões di-gitais e palmares e respetiva inserção e interconexão em bases de dados automatiza-das de tipo AFIS; e– Prazos de conservação dos dados indexados aos prazos de prescrição das penas, emcaso de condenação.Para concluir e atenta esta dimensão axiológica conflitual, propõe-se a criação de umverdadeiro normativo de identificação criminal – não para efeitos de registo, como atéagora – que passe a prever a recolha, por banda dos OPC e dos tribunais, de elemen-tos identificativos complementares (lofoscópicos e fotográficos) em regime determi-nado. Essas instâncias formais de controlo devem ser munidas de mecanismos legaismais depurados para um bom e regular desempenho de funções, a fim de garantir obem comunitário e desatar o «nó górdio» que hoje em dia se vislumbra entre a praxise a lei na identificação criminal dos arguidos, apelando-se a que não sejam descura-dos os sinais de Estrasburgo, na decisão pioneira do Tribunal Europeu dos Direitosdo Homem43, de 4 de dezembro de 2008, acerca das relações entre tecnologia, direi-tos pessoais e poderes do Estado.

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43 Case of S. and Marper v. the United Kingdom, de 4 de dezembro de 2008. O acórdão, embora não tendo força exe-cutiva, tem força obrigatória de caso julgado formal e o não cumprimento da decisão do TEDH acarreta responsa-bilidade internacional para o estado faltoso.

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BibliografiaALBUQUERQUE, Paulo Pinto de (2008a) – Comentário do Código de Processo Pe-nal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.2.a ed. act. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de (2008b) – Comentário do Código Penal à luz daConstituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Lisboa:Universidade Católica Editora, 2008AMARAL, Diogo Freitas do (2008) – Curso de Direito Administrativo. 3.a ed. Coim-bra: Almedina, 2008. Vol. 1CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital (2007) – Constituição da RepúblicaPortuguesa Anotada. 4.a ed. rev. Coimbra Editora, 2007. Vol. 1DIAS, Jorge de Figueiredo, dir. (1999) – Comentário Conimbricense do Código Penal.Coimbra: Coimbra Editora, 1999MALHADO, Maria do Céu (2001) – Noções de Registo Criminal: de registo de contu-mazes, de registo de medidas tutelares educativas e legislação anotada. Coimbra: Alme-dina, 2001MORAIS, Carlos Blanco de (2006) – Justiça Constitucional: Garantia da Constituiçãoe Controlo da Constitucionalidade. 2.a ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. Tomo IOLIVEIRA, José Carlos (2009) – «A Identificação Criminal do Arguido: Tensão Dia-lética Entre Praxis e Lei». Lisboa: Universidade Autónoma.SIMAS, Alexandre, Calisto, Fernando & Calado, Francisco (2002) – Dactiloscopia eInspecção Lafoscópica. Loures: Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Cri-minais

Lofoscopia e identificação criminal: uma visão histórica, técnico-científica e jurídica

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Hélder FigueiredoEspecialista-Adjunto de Criminalística no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária. Licenciado em Direito. Pós-Graduado em Ciências Jurídicas

Aborda-se a inserção sistemática da balística forense no domínio processual penal. Abalística forense e o seu objecto. A articulação com a investigação criminal, o serviçoque lhe presta e a fundamentação que lhe empresta. As metodologias genéricas. As res-postas que hoje são possíveis.

Pretende-se alcançar neste artigo a definição do contributo prático que a balística fo-rense fornece à investigação criminal, bem como avaliar se, retrocedendo alguns anosa esta parte, existem diferenças assinaláveis face às possibilidades actuais e, na positiva,qual a sua real tradução.Tentaremos alcançar tal desiderato mas, não sem antes tecer algumas consideraçõesquanto ao lugar que a balística forense ocupa no seio da investigação criminal emparticular e numa perspectiva mais lata no contexto processual penal português. A pardisto tentaremos explanar os princípios em que assenta esta disciplina, bem como asmetodologias genéricas que adopta no iter da sua actividade e alguns problemas quese lhe deparam.A referência à investigação criminal, atendendo à origem da presente publicação (a Re-vista de Investigação Criminal [RIC] – criada no seio da Associação Sindical dos Fun-cionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária [ASFIC/PJ]), significaráaquela actividade centrada nas competências investigatórias legalmente definidas paraa Polícia Judiciária1 (PJ) a par com a matriz jus funcional da Balística Forense do La-boratório de Polícia Científica (LPC) desta polícia.Nesta matéria interessará ver que a actividade desenvolvida pela balística forense secentra essencialmente na realização de perícias. Não obstante, e porque esta disciplina“empresta” parte do seu saber/execução à inspecção judiciária, configura também umadas vertentes de trabalho no exame ao local de crime, quando estes crimes sejam pra-ticados com ou em que estejam envolvidas armas de fogo, porquanto aqui já nos do-mínios dos exames.

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1 Lei n.º 49/2008 de 27 de Agosto (Lei de organização da investigação criminal).

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Pegando nestas duas figuras, as perícias e os exames, encontraremos o seu enqua-dramento no Código de Processo Penal (CPP). As primeiras no título II Dos meiosde prova, no capítulo VI Da prova pericial (art.º 151º a 163º). Os segundos, no tí-tulo III Dos meios de obtenção de prova, capítulo I Dos exames (art.º 171º a 173º)2

sem esquecer a interconexão destes com o instituto das medidas cautelares e de po-lícia.Sem se pretender aprofundar estas indicações genéricas, dizer apenas que a separaçãodas finalidades das perícias e dos exames bem como os seus regimes, parece ser claraquer na letra do CPP, quer na jurisprudência ou doutrina3, pese embora alguma con-fusão trazida pontualmente por intervenientes acidentais nestas matérias que, eivadosde motivações dissonantes com a lei e com a razão, insistem em fazer crer que as duasrealidades se confundem4 e 5.O que se pretende daqui apreender é que a confusão racionalmente ininteligível, en-tre perícia e exame, lançada por alguns, pode perigar no sentido em que, do ponto devista do CPP, à perícia lhe é reconhecido um valor probatório de excepção por via dapresunção juris tantum a que alude o art.º 163º, quanto ao juízo técnico-científico queencerra6, presunção esta que não aproveita aos exames, estando estes sujeitos à regrageral da livre apreciação da prova constante do art.º 127.ºEm suma, a não clarificação destes dois institutos, desde logo nas fases prévias do pro-cesso, pode trazer dois efeitos negativos quanto à enumeração dos meios de prova quesustentam a acusação. O primeiro é retirar a valoração devida à perícia, o segundoserá sobrevalorizar o resultado do meio de obtenção de prova – exame – que se en-contra excluído desse valor probatório reforçado.

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2 Cfr. Silva (1999), “na perspectiva lógica os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fontede convencimento, ao contrário do que sucede com os meios de obtenção da prova que apenas possibilitam a obtenção da-queles meios”.3 Num mesmo sentido desta distinção:

a) Dias (2005);b) Braz (2010);c) Ac. do STJ de 23 de Novembro de 2011, Juiz Conselheiro Santos Cabral (Relator).

4 Apelamos aos ensinamentos de Cavaleiro Ferreira (1987) «os exames, conhecidos também por inspecção, são uma técnicaprópria da descoberta e recolha dos vestígios e modo da sua interpretação e permitem uma inspecção cuidadosa ao local, des-tinada à descoberta dos vestígios ou provas reais da infracção, facilitando, desde logo, a orientação dos interrogatórios, pelapossibilidade que dá aos investigadores de controlar a veracidade da prova pessoal.»5 Quanto à perícia ensina Silva (1999) «a perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuadapor pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos; os peritos tiram dos vestígios as ilações queeles consentem e são estas ilações, as conclusões periciais, que são submetidas às autoridades para sua apreciação. As conclu-sões periciais são os meios de prova».6 Ac. do STJ de 23 de Novembro de 2011, Juiz Conselheiro Santos Cabral (Relator), anotação 13.

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O núcleo essencial da balística forense, assenta no processo penal sob a forma de pe-rícia e é nessa qualidade que deve ser feita a sua valoração por parte do julgador. Nãoobstante poder assumir outras formas conforme a fase processual em que se insira, emregra, é carreado para o processo num relatório pericial. Atenta a dignidade da questão pericial, esta só pode ter na sua base um valor cientí-fico, e daqui partimos para o link entre a balística forense e a investigação criminal.Ignorando por ora as admissíveis definições propostas por autores vários, mas que nofundo divergem tão só em questões de semântica, diremos que a balística forense terácomo objecto o estudo das armas de fogo, seus elementos municiais e efeitos dos pro-jécteis por aquelas disparados, num contexto jurídico-penal. Visa integrar o processo penal sob a forma de perícia, como atrás se disse, consti-tuindo-se porquanto como um dos meios de prova admissíveis pelo nosso CPP, e sófaz sentido falar em balística forense enquanto ferramenta da investigação criminalpois fora desta atmosfera ela perde o seu objecto.Dirige o seu saber à produção de prova e dá suporte científico às actividades de in-vestigação criminal, pretendendo no seu campo de aplicação esclarecer o modo comoo crime ocorreu e quem foi o seu autor sem esquecer a conexão de factos em que odenominador comum seja uma mesma arma de fogo.Insere-se na estratégia da investigação criminal, a que o ilustre pensador da PJ, Braz(2010, p. 23), chama de instrumentação, enquanto «processo reactivo de observação,análise e interpretação da realidade factual e ontológica».Como se disse a balística forense realiza perícias nos termos do art 151.º e seguintesdo CPP ordenadas por quem tem competência para o fazer, as autoridades judiciáriasou as autoridades de polícia criminal. Contudo, num estádio prévio, existe uma es-trutura operacional de criminalística da PJ que, actuando ainda a coberto do regimedos exames e medidas cautelares e de polícia, realiza a inspecção judiciária (vulgoexame ao local de crime) a par com as secções de investigação. Cabe àquela estruturaoperacional de criminalística (o Sector de Local de Crime) no decurso da inspecçãojudiciária, de buscas ou outras diligências, recolher, transportar, acondicionar e en-tregar para submissão a perícia, os elementos municiais ou armas de fogo recolhi-dos/apreen didos. É neste sentido que dizemos que cede parte do seu saber a montanteda perícia, estendendo assim a sua intervenção na investigação criminal à fase dosexames. Voltando um pouco à raiz da balística forense, interessa talvez precisar que a balística,em sentido amplo, é aquela parte da física, compreendida no capítulo da mecânica,que estuda o movimento dos projécteis, designando-se por projéctil todo o corpo quese desloca livre no espaço, em virtude de um impulso recebido (Rabello, 1966: p. 21).

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Mas, sem desprezo pela sua raiz e pelos primórdios do desenvolvimento nos séculosXVII e XIX da balística forense, é a balística identificativa7 que hoje a domina. Não obstante se tratar dum saber eminentemente técnico, assente em ensinamentosvários oriundos das ciências tradicionais (ex. a física, a mecânica, a matemática) tem-perados pelos contributos do saber militar (armamento e tiro), possui também umafonte “consuetudinária”, um saber próprio da balística forense que se foi autonomi-zando e desenvolvendo ao longo do anos, assente na experimentação e verificação econsequente transmissão entre executantes que se sucedem. Tudo isto, direccionado aoseu objecto (vide supra) e particularmente a sua adequação à investigação criminal nasua vertente de balística identificativa.A sua base científica permite, independentemente da zona do globo em que nos en-contremos, que as suas conclusões sejam tendencialmente iguais, naturalmente despre-zando o teor mínimo da componente valoração pessoal/individual e do erro humano.Este suporte científico surge hoje cada vez mais reforçado internacionalmente sendoa balística forense da PJ uma das áreas-membro dum grupo de trabalho próprio noEuropean Network of Forensic Science Institute, Firearms &GSR working group (ENFSI).Tratando-se duma entidade a nível dos laboratórios forenses/criminais europeus, que,entre outras tarefas, se dedica a uniformizar procedimentos, a criar regras comuns de exe-cução, a realizar testes de competência, e a uniformizar as escalas de probabilidadesdas comparações microscópicas, realizar manuais de procedimentos, trocar informa-ção e dados, etc., tudo inserido numa política de qualidade e acreditação8.Pegando na destrinça entre aquilo que se constitui como a balística forense em sedede laboratório e, por outro lado, o papel desta no contexto da inspecção judiciária(vulgo exame ao local de crime), diremos que é na primeira que radica a sua essênciae com a qual, mais decisivamente contribui para o sucesso da investigação criminal.Na balística identificativa temos diversos vectores de acção, de acordo com os objec-tos apreendidos e sujeitos a perícia. Assim, conforme se trate de elementos municiaisou armas e seus componentes ou ambos em conjunto, teremos sempre uma adequa-ção de procedimento àquela perícia concreta suportada pelo seu contexto num dadoprocesso-crime.A sua participação nas fases preliminares do processo, em concreto na celeridade dasrespostas às secções de investigação, pode influenciar os caminhos a seguir ou a soli-dificação dos caminhos já trilhados.O uso de armas de fogo, excluindo o seu legítimo emprego, encontra-se ligado frequen-temente à prática de diversos tipos de crime, bem como a casos de suicídio. Dir-se-á

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7 Balística identificativa enquanto estudo comparativo de projécteis e cápsulas tendente à responsabilização de umaarma de fogo no seu disparo/deflagração.8 Normas ISO 17025 e 17020.

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aprioristicamente e sem suporte estatístico de base que, será nos processos de homi-cídio (consumado ou tentado), ofensas à integridade física, roubo, tráfico de armas,terrorismo, rapto e alguns danos específicos que o uso de armas de fogo se revela demaior relevância. O resultado das perícias às armas de fogo e elementos municiais,servem propósitos directos de prova em processos concretos e pré constituídos (en-cerrando em si um meio de prova), bem como de alimentação de bases de dados deinformação criminal conexa com armas de fogo e sua utilização em dado momentohistórico, permitindo ligar acontecimentos através da presença de uma mesma armanesses factos que se constituem como crime ou ainda dizer que determinada arma, cu-jos elementos foram introduzidos nessa base de dados, veio posteriormente a estarenvolvida em factos posteriores a essa passagem. A base de dados com sistemas automatizados de busca, não obstante a sua potencia-lidade de numa triagem inicial efectuar em minutos aquilo que demoraria largas ho-ras ou dias senão mesmo revelando-se humanamente inviável, carece sempre dumacomparação directa dos candidatos que apresenta e os elementos municiais naquelemomento introduzidos que não pode deixar de ser realizada por um operador/peritoe dentro deste grupo diríamos, um experiente em matéria de comparação e com a abne-gação suficiente para esse trabalho fisicamente desgastante.No nosso país, o sistema Integrated Ballistics Identification System9 (IBIS) é aquele quecumpre esta função e fá-lo naturalmente quase a 100% para a criminalidade de lógicanacional. A sua manifesta potencialidade permite ainda a Portugal cumprir, com no-tável esforço e vanguarda, protocolos de cooperação internacional e trabalho em rede.Arriscamos dizer que nesta matéria a Balística Forense do LPC estará já um passo àfrente de alguns laboratórios forenses a nível internacional, tendo-lhe sido já atribuí-dos pela International Criminal Police Organization (INTERPOL) distinções pormatch10 internacionais, i.e, com elementos municiais/armas introduzidos em sistemasIBIS estrangeiros. A título de curiosidade dizer ainda que foi a Balística Forense doLPC a entidade que fez o primeiro macth internacional com Espanha, do sistemaIBIS a nível mundial. Em concreto através do IBIN11.Digamos que cumpre assim a sua parte de combate à internacionalidade das novas for-mas de criminalidade, pois como diria Braz (2009, p. 341) «decisivamente, a cooperação

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9 Integrated Ballistics Identification System. “Foi desenhado com os principais propósitos de: comparar directamente ima-gens, verificar automaticamente cada nova aquisição contra os potenciais candidatos na base de dados, permitir que cadanova aquisição seja comparada com qualquer outra da base de dados, apresentar uma lista hierarquizada de potenciais can-didatos, etc.”10 Match – expressão que aqui designa a identificação de elementos municiais ou arma suspeitos, com elementos cons-tantes da base de dados e adquiridos em data anterior.11 IBIN - Interpol Ballistic Information Network, pelo Perito de Balística Fernando David Amaral Dias.

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internacional, constitui um dos eixos estruturantes da organização interna da investiga-ção criminal na luta contra o crime organizado».A um primeiro nível, e aquilo que representa o tronco principal do trabalho da ba-lística forense, teremos a perícia às armas, munições, cápsulas e projécteis. Este tra-balho versa essencialmente e como base mínima comum, a identificação, indicação dascaracterísticas, estado de funcionamento e condições de utilização, seguindo-se outrosestudos se necessário for e sempre de acordo com os quesitos específicos. Serão exem-plo a comparação dos elementos municiais com a arma de fogo suspeita, a compara-ção sistemática com casos pendentes (base de dados – sistema IBIS), avaliação de de-ficiências específicas ou transformações das armas/munições, ou ainda a determinaçãode distâncias de disparo envolvendo espingardas caçadeiras.A identificação das armas como responsáveis pelo disparo de um projéctil ou pela de-flagração de uma cápsula, faz-se com recurso a microscópios específicos, onde atravésde um jogo de iluminação e diversas possibilidades de ampliação, se colocam em doissuportes os elementos a comparar e assim se vão aferindo as diferenças ou semelhan-ças desses elementos.Tratando-se de projécteis e previamente à comparação microscópica afere-se da suacompatibilidade genérica ou características de classe, avaliando-se nesta sede o calibre,a largura de estrias e campos e a sua orientação. Nas cápsulas deflagradas, seguida daavaliação das características de classe, onde incluímos a posição relativa e forma doconjunto extractor/ejector, temos a comparação microscópica.Quando os resultados/relatórios da balística chegam ao investigador dois aconteci-mentos alternativos tomam lugar: ou vêm acrescentar dados novos e desconhecidosda secção de investigação, ou apenas confirmam com acrescida dignidade processual(com valor de meio de prova, a perícia) os factos já conhecidos ou pelo menos forte-mente indiciados pela secção de investigação destinatária.Há porém um acontecimento comum em ambos os casos, só a perícia balística podeafirmar ou infirmar a responsabilização de determinada arma de fogo pela defla-gração/disparo de elementos municiais e fazê-lo com suporte científico demons-trado e validado e trazê-lo a juízo subtraído à livre apreciação do julgador. É que,não basta, por mais íntima e forte que seja, a convicção do investigador criminal ouainda o teor de testemunhos, em última instância será a perícia que valerá neste ca-pítulo. Quando as secções de investigação recebem os relatórios de balística, arriscaríamosdizer que na sua maioria não trazem novidades para o investigador. Mas este facto énão só natural como expectável. À balística desprovida de outras capacidades, só lherestam os factos e os objectos que as secções lhes fornecem, ora na maioria das vezes

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as perícias tratam de identificar os elementos municiais, as munições e as armas, determinar as suas condições de funcionamento e comparar elementos e armas en-viadas em conjunto. Num mais reduzido número de vezes são remetidos apenas ele-mentos municiais para comparação com casos pendentes e identificação da arma res-ponsável pelo seu disparo/deflagração. Será necessário entender que tais respostas sóserão alcançadas se um trabalho de anos por parte de todas as entidades com autori-dade de apreensão de armas de fogo for realizado, se no contexto das suas atribuições,as remeterem para efectuar disparos de ensaio e obter elementos de comparação paraintrodução na base de dados.Importará aqui fazer um pequeno à parte, é que em número não displicente, algunsÓrgãos de Polícia Criminal (OPC) consideram mais relevante fazer seguir as armasde fogo para apresentação ao JIC em conjunto com o detido, ou ainda retê-las nas suasarrecadações, ou remetê-las para arrecadações centralizadas, ao invés de no imediatoe previamente as fazer passar pela balística para introdução na base de dados e com-paração com casos pendentes.Também ao arrepio do procedimento devido, por vezes os tribunais, aceitam semquestionar autos de exame directo de armas e elementos municiais, realizados por ele-mentos dos diversos OPC. Fazem-no, presume-se, por uma questão de celeridade doprocedimento, esquecendo que num sentido macro prejudicam objectivamente a in-vestigação criminal deste país. Mais, um auto de exame directo não tem nem pode tero mesmo valor que uma perícia, da mesma forma que não pode exigir o mesmo tempode execução. Como em todas as realidades da vida, também aqui o nosso comportamento-regra admite excepções, arriscaríamos um exemplo, uma espingarda caçadeira apreendidanum contexto de violência doméstica, numa povoação fora dos grandes centros, a umindivíduo de avançada idade sem antecedentes criminais e cuja arma sempre esteve re-gistada como sua propriedade: será de admitir que, caso não exista por parte dos OPCuma desconfiança objectiva que penda sobre aquela arma ou aquele indivíduo, sepossa dispensar a sua vinda à balística. Quer-se apenas ilustrar com este exemplo, oraciocínio que deve estar subjacente à excepção da não realização da perícia para com-paração com a base de dados. Por outro lado, também não se compreende que existam armas não legalizadas apreen-didas, que não sejam enviadas à balística, da mesma forma não se encontra raciona-lidade na destruição de armas apreendidas sem antes terem sido recolhidos os seuselementos municiais para comparação/introdução na base de dados.É necessário fazer pedagogia no sentido do combate ao “autoconvencimento”(in)consciente mas generalizado, da presunção ilidível que constitui o “conhecimento”

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sobre armas de fogo e balística que alguns elementos das nossas polícias julgam deter,fundado em alicerces “sólidos” como sejam: o cumprimento do serviço militar obri-gatório (à data), a prática sucessiva e reiterada de actividades lúdicas relacionadas coma caça de animais vivos ou o tiro aos pratos, o gosto particular/paixão pelas armas defogo, o uso diário destas (ainda que em coldre destinado ao efeito) inerente às fun-ções de autoridade, ou ainda as mais recentes mas não menos (ir)relevantes, consul-tas em sites da internet ou realização de pós-graduações e mestrados em matérias co-nexas (misturando-se perigosamente muitas vezes estas duas últimas).É que a perícia em sede de processo-crime, não é campo para “opinações” de índolediversa nem terreno para um orador mais hábil que com dois ou três termos “balísti-cos” desconhecidos da vox populi, convence os intervenientes/sujeitos processuais comquem se cruza. Essa tarefa de rigor científico deve ser deixada àqueles que, possuido-res dos conhecimentos adequados e acreditados, desempenham oficialmente tal pa-pel e esses têm assento na especialidade forense balística do LPC da PJ.Findo este à parte, facilmente se compreende alguns dos problemas que subjazem aonão oferecimento de maior número de “novidades” à investigação criminal, quandoapenas se enviam elementos municiais recolhidos num local de crime ou projéctil ex-traído à vítima/ofendido, e não foi apreendida arma para se comparar.A balística forense é desprovida de iniciativa fora das portas das suas instalações e nãoé da sua natureza ter uma acção proactiva na busca de armas para identificação doscasos pendentes na sua base de dados. Tem sim um papel passivo nessa matéria, poissó os OPC detêm essa capacidade e o dever de levar à balística as armas apreendidasquer em sede de inspecção judiciária quer na instrução processual, pois só assim po-dem esperar o retorno do seu investimento e serem surpreendidos maior número devezes pelas “novidades” da balística nos seus processos.Por outro lado, e por via da assunção das conclusões empíricas e assentes em gnosesgeneralistas, alguns elementos com atribuições de investigação criminal, parecem fa-zer crer que os relatórios da balística podem ser dispensáveis atenta a falta de ele-mentos novos. Restará lembrar que, aos leigos nestas matérias, ou melhor, àquelessem responsabilidade pericial, tudo lhes é permitido dizer sem exigências de certezae cientificidade, já aos peritos assim não acontece. Esses têm o dever de apenas afir-mar o que tecnicamente está correcto e quando o não podem afirmar com grau de cer-teza apenas lhes é permitido usar expressões condicionais ou referência a um grauprobabilístico. Se assim pensarmos, compreendemos a razão de ser das perícias seremsubtraídas à livre apreciação do julgador. Na mesma lógica de raciocínio dir-se-á que a balística forense, exceptuando os casosem que dispõe dos elementos de comparação e da arma para os comparar, e que ainda

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assim seja rica em vestígios individualizadores12, não poderá utilizar expressões de cer-teza mas tão só condicionais ou probabilidades. Daí se extrai que, as conclusões de indicação de uma marca/modelo de arma quepossa ter disparado determinado projéctil ou deflagrado determinada cápsula só coma presença dos elementos municiais sejam tecnicamente muito difíceis, pelo que talsó é avançado num reduzido número de situações e com base nos ficheiros com dadossobre o estriado ou baseado em características específicas que surgem associadas a deter-minadas armas como seja a posição relativa extractor/ejector13 e a sua forma, a formado percutor, a profundidade mais frequente da sua percussão, etc…Tudo isto sem grau de certeza pois uma arma fabricada imediatamente a seguir à ou-tra são exterior e interiormente rigorosamente iguais e detêm as mesmas característi-cas de classe, a sua distinção residirá tão só nos pormenores microscópicos da culatra,do extractor, do ejector, do percutor e da alma do cano (estrias e campos).Estes vestígios individualizadores não são constantes nem uniformes em todas as ar-mas. Haverá armas que os imprimem em abundância e com nitidez, facilitando a ta-refa ao perito e diminuindo o tempo da comparação, outras há que os possuem comacentuada escassez. Neste último caso nunca existirá uma identificação cabal pelo quese recorre a uma escala de probabilidades para classificar o seu grau de semelhança.Se a tudo isto juntarmos ainda as variáveis associadas às diferentes durezas e materiaisdas munições, sem falar nos projécteis de deformação programada, ou no tipo de pól-vora, ou ainda mas não menos relevantes condições de conservação das munições queinfluem desde logo na obtenção de mais fortes ou mais fracas deflagrações14, facil-mente concluímos que o mais frequente será não haver muitas conclusões nestes cam-pos. Ou melhor, a regra é nada se dizer e a excepção será avançar com marca/modelode arma responsável por um dado elemento municial suspeito. E uma certeza haverá,tecnicamente não é possível indicar uma determinada arma (marca/modelo) com graude certeza como a responsável por um dado elemento municial apenas na presençadesse elemento suspeito e sem arma para comparação.À parte da impressão de vestígios individualizadores nas cápsulas e projécteis, que têmorigem na deflagração e automatismos resultantes do aproveitamento das forças dessadeflagração, que por natureza são aquelas que em regra permitem ligar uma arma a

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12 São características particulares e únicas que permitem a individualização de uma dada arma, i.e. são aquelas queressaltam daquele elemento municial em concreto dentro de uma série de elementos similares com as mesmas carac-terísticas gerais: calibre, número e sentido das estrias.13 Extractor é um componente da arma que actua por encaixe na cápsula e procede à sua retirada da câmara. O ejec-tor por sua vez actua em binário de forças com o extractor e expele pela janela de ejecção a cápsula entretanto trazidaaté si pelo extractor.14Deflagrações mais potentes geram em princípio melhores vestígios individualizadoes, pois as “impressões” serãomais profundas e surgirão com maior pormenor e nitidez. Estas serão mais ligeiras com fracas deflagrações.

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esses elementos municiais, teremos ainda que admitir outras impressões de menor va-lor individualizador. Falamos daquelas provocadas por movimentos da arma com baixaenergia envolvida, como seja a introdução e extracção das munições/cartuchos sem dis-paro, a percussão da munição sem que provoque a sua deflagração, ou ainda a simplesintrodução de munições no carregador. Estas, as que resultam das interacções mecânicasdas munições com a arma, só excepcionalmente permitem obter uma individualização. De uma forma mais abrangente falemos agora sumariamente do que a evolução téc-nica e científica trouxe de novo ao desempenho actual da balística forense da PJ. Exis-tem trabalhos publicados por Santos (1962; 1985), onde podemos aferir das poten-cialidades desta área no decurso do período em que foi director do LPC (1973-1998).Os seus princípios enformadores não encontram alterações para os dias de hoje. Sóna tecnologia disponível, no número de peritos, nas políticas de qualidade/certifica-ção e nas relações internacionais parecem haver diferenças, mas estas justifica-as o de-curso do tempo e a evolução da sociedade. Tentando sumariar a tradução prática des-sas diferenças teremos:a) rapidez e potencialidade que a automatização de alguns procedimentos emprestouà realização das perícias de balística, mormente a comparação de casos pendentes atra-vés do sistema IBIS;b) uma alteração de procedimentos na comparação microscópica por via do uso de mi-croscópios mais evoluídos permitindo novos aumentos e novas fonte de luz e sua ma-nobra;c) um aumento de parâmetros-base avaliados nas características das armas de fogo;d) o contributo para o combate à internacionalização do crime, através da troca de in-formação criminal por via deste sistema IBIS, permitindo a realização de match entreocorrências/armas em países diferentes;e) a resposta a quesitos específicos anteriormente inconceptíveis de resposta por inexis-tência dos meios técnicos para o efeito, são exemplo a medição de velocidade e energia dosprojécteis em vários momentos da sua trajectória, quando na presença da arma suspeita;f ) a indicação de marca e/ou modelo provável da arma responsável pelo disparo de de-terminado projéctil ou deflagração duma dada cápsula, através do estudo microscó-pico das características dos vestígios impressos nesses elementos municiais, suportadaem bases de dados e trabalhos científicos sobre constância de características de classe;g) identificação de calibre/fabricante das munições, além do processo tradicional deconsulta bibliográfica, com recurso a bases de dados informatizadas;h) acrescida garantia de fidelidade de resultados obtidos em sede de laboratório, ba-seada nos critérios de acreditação de laboratórios forenses a nível europeu (ENFSI) enesse patamar, a auditoria através de testes de proficiência;

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i) maior celeridade na execução das perícias balísticas (balística identificativa) por viada transferência da valência de execução de exames a locais de crime para determina-ção de trajectórias, incluindo viaturas alvo de disparos, para um sector da PJ especia-lizado em inspecção judiciária.

Conclusão

De tudo o que se disse a propósito dos fundamentos da balística forense, resulta quea sua base técnico-científica não sofreu alterações de monta desde há largos anos aesta parte e arriscaríamos a mesma conclusão se recuássemos até à criação do LPC daPJ em 1960 (oficializado como departamento da PJ com a promulgação do Decreto --Lei 41306 de 2 de Outubro de 1957). Não obstante, encontraremos diferenças no conteúdo concreto dos relatórios peri-ciais, na utilização actual de sistemas automatizados com consulta de bases de dadospara identificação genérica quer de individualização, passando pela melhoria da qua-lidade dos microscópios de comparação, no rigor imposto no procedimento por viada acreditação dos laboratórios forenses, no aumento de parâmetros avaliados nas ar-mas de fogo, a possibilidade de resposta a novos quesitos como seja o exemplo da me-dição de velocidades de projécteis ou a ligação com bases de dados estrangeiras, nãoesquecendo a melhoria dos sistemas de captação de imagens das comparações mi-croscópicas, ou o uso de bases de dados relativas a medições de estriado e calibre/fa-bricante de munições. Tudo isto implica por um lado maior dispêndio de tempo na execução das perícias,mas o retorno – as conclusões periciais – vem dotado de maior grau de certeza, vali-dado por critérios aceites e convencionados internacionalmente que permitem aosinvestigadores obter respostas mais completas nos seus quesitos. Por último referir a mais recente ferramenta da balística identificativa, dotada de pro-videncial relevância na investigação criminal actual: falamos do sistema IBIS que comas suas potencialidades, se constitui hoje como basilar na acção da Balística Forensedo LPC da PJ.

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Marcial Rodriguez y RodriguezInspector-Chefe do Cuerpo Nacional de Policía de Espanha.Licenciado em Direito. Diplomado en Criminologia

Neste ensaio apresentam-se alguns comentários críticos, sobre a “cooperação policialinformal” entre Portugal e Espanha; a colaboração mútua que decorre amparada emvários tratados, convénios, acordos, protocolos e memorandum, através de mecanismosnão-regulados, sem formalismos, e, essencialmente por intermédio de oficiais de li-gação (OL), em particular na investigação da criminalidade organizada.Referem-se os modos de articulação desses mecanismos em Espanha, de quem de-pendem os OL (qual é a sua autoridade de tutela) e que corpos policiais representam,considerando que essa realidade reflecte as consequências da confusa distribuição decompetências policiais em Espanha, matéria que aliás se aborda, neste artigo, de formamais detalhada.Por último expõem-se algumas considerações práticas sobre o papel e funções dos OLespanhóis que operam em Portugal.

Introdução

Pretendo expor alguns comentários críticos e portanto subjectivos, sobre o estado daarte do que denomino “cooperação policial informal” entre os nossos países, ou seja,a plataforma de cooperação que está respaldada em diversos instrumentos interna-cionais (tratados, convénios, acordos, protocolos, memorandum, etc.) se pratica e de-senvolve através de canais não-re gulados, sem formalismos, ágeis e sem prazos, atra-vés, fundamentalmente, daqueles operadores que conhecemos enquanto oficiais deligação (OL) e com especial incidência na investigação sobre o crime organizado. É consabida e reconhecida (e por esse motivo não insistiremos nesse ponto) a neces-sidade de cooperação e colaboração entre as polícias de diferentes países no sentido degarantir uma eficaz luta contra a criminalidade em geral e contra o crime organizado

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*- Tradução do original em língua espanhola intitulado Ensayo sobre la cooperacion policial bilateral Portugal-Espanha.Tradução do texto para português de João Paulo Ventura.

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em particular. A comunidade internacional reagiu a essa necessidade por via da assi-natura de diversos instrumentos legais e com a criação de organismos distintos, comoa Interpol, Europol e Sirene, que funcionando embora razoavelmente, revelam, domeu ponto de vista, o inconveniente de um excessivo formalismo, que alarga os pra-zos de resposta aos pedidos de informação, nas mais das vezes urgentes, que procedemdos operadores de segurança dos países signatários.As nossas nações, Portugal e Espanha, tomam parte das referidas instituições de coope-ração multilateral (Interpol, Europol, Sirene, etc.,) e também participam noutros forosgenéricos (sobre criminalidade em geral) ou sectoriais (sobre terrorismo, criminalidadeorganizada, fronteiras, etc.), fundamentalmente no seio da União Europeia (UE), ondeos responsáveis máximos das nossas organizações policiais se conhecem, partilham in-formação e estabelecem vínculos pessoais que facilitam e possibilitam essa cooperaçãodita informal. Nada há de mais informal, mas também mais rápido e eficaz, do que umcontacto telefónico entre chefes policiais, em que um deles pede ao seu interlocutorpara lhe facilitar uma informação ou pedir-lhe auxílio num qualquer tema pontual.A cooperação informal é aquela que decorre diariamente entre polícias de ambos ospaíses, quando se dirigem a outros colegas em busca de informação e que conhecempor terem participado em investigações conjuntas, em cursos de formação e/ou ou-tros eventos e que lhes permitem manter relações de confiança, amizade ou compa-nheirismo. Mas o mecanismo informal que pretendo abordar neste espaço é o que seconcretiza através dos OL.Para uma correcta utilização deste mecanismo, é conveniente conhecer a sua confi-guração legal, de quem depende, que corpo policial representa e quais são as suascompetências, fundamentalmente no que ao crime organizado se refere. Em Portugal, os denominados OL do Ministério da Administração Interna (MAI)surgiram com a publicação do Decreto-Lei 139/94 de 23 de Maio em que ficou re-gulada a colocação de OL do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), da GuardaNacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública (PSP) em organismos inter-nacionais e países estrangeiros - embaixadas, missões de representação e consulados dePortugal. Também se regula o seu estatuto e conteúdo funcional, resultante das obri-gações contraídas no âmbito do título VI do Tratado da UE, do Acordo Schengen, dasua Convenção e dos acordos bilaterais celebrados entre o Estado Português e outrosEstados, procurando o reforço da segurança interna e a eficácia da cooperação po- licial. Os leitores conhecem certamente melhor que eu a legislação portuguesa mas con vémdestacar o facto de os OL estarem sob tutela do MAI e por conseguinte, a PJ está ex-cluída deste mecanismo de cooperação.

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Como se cumpre a articulação em Espanha? De quem depende? Que corpo policialrepresenta? Tentaremos responder a essas questões. Convém fazer, em primeiro lugar, uma aproximação quanto à forma como se distri-buem as competências policiais em Espanha, pois isso nos indicará a que “oficial de li-gação” nos deveremos dirigir para demandar colaboração.Sobre essa matéria existe abundante material escrito e publicado.1

Passo a resumir as minhas próprias considerações sobre esse tema:A Lei Orgânica 2/1986, de 13 de Março, de Forças e Corpos de Segurança,2 con-templa uma pluralidade de Corpos de Polícia:a) Forças e Corpos de Segurança do Estado (FCSE) que exercem funções em todo oterritório nacional e estão integradas por:• - O Cuerpo Nacional de Policía (CNP), que é um instituto armado de natureza civil,dependente do ministro do Interior• - A Guardia Civil que é um instituto armado de natureza militar, dependente do mi-nistro do Interior, no desempenho de funções que a mesma lei lhe atribui e do mi-nistro da Defesa no cumprimento das missões de carácter militar que aquele ou oGoverno lhe encomendem. Em tempo de guerra e durante o estado de sítio, depen-derá exclusivamente do ministro da Defesa.b) Os Corpos de Polícia das Comunidades Autónomas.c) Os Corpos de Polícia das Entidades Locais.As FCSE dependem do Ministério do Interior (MI), que também detém a respon-sabilidade das relações de colaboração e auxílio com as autoridades policiais de ou-tros países, conforme estabelecido em tratados e acordos internacionais. Sob a au-toridade imediata do ministro do Interior, a direcção suprema das FCSE é exercidapelo Secretário de Estado de Segurança, de quem dependem directamente as Direcções-Gerais da Polícia e da Guardia Civil e através das quais coordenará a actuação dos corpos e forças de segurança do Estado. (Art.º 10 da Lei Orgânica2/1986).Com a missão de proteger o livre exercício dos direitos e liberdades e garantir a segu-rança dos cidadãos, as FCSE têm funções generalistas a desenvolver nos respectivosâmbitos de competência territorial – o CNP nas capitais de província e nas sedes mu-nicipais e núcleos urbanos definidos ou determinados pelo Governo e a Guardia Civil

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1 Entre eles uma magnífica tese de doutoramento de Belloso (1989) que estudou na sua primeira parte o sistema es-panhol de segurança pública e no seu interior, a história dos corpos policiais, o subsistema normativo com a distri-buição de competências em matéria de segurança pública e o subsistema orgânico com os diferentes corpos policiaise respectivas funções.2 http://www.boe.es/aeboe/consultas/bases_datos/doc.php?id=BOE-A-1986-6859

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no restante território nacional e no mar territorial (Art.º 11). Mencionarei apenas asvertentes que me interessa destacar:

f.- Prevenir o cometimento de delitos.g.- Investigar os delitos para identificar e deter os presumíveis culpados, asse-gurar os instrumentos e provas do crime, colocando-os à disposição do juiz dotribunal competente e elaborar os relatórios técnicos e periciais pertinentes.h.- Captar, receber e analisar todos os dados com interesse para a ordem e se-gurança públicas e estudar, planificar e executar os métodos e técnicas de pre-venção da delinquência.

É assim possível verificar que há um conjunto de funções comuns a cumprir por cadacorpo policial em razão da sua competência territorial (urbana e rural, respectiva-mente), mas… a própria lei estabelece algumas excepções. Assim:Apesar das disposições legais citadas, os membros do CNP podem exercer funções deinvestigação e de coordenação de dados a que se referem as alíneas g) e h) do artigo 11,em todo o território nacional.A Guardia Civil, no exercício das suas competências próprias, poderá mesmo assimdesenvolver investigações em todo o território nacional, sempre que tal se mostre ne-cessário. Sem prejuízo da distribuição de competências territoriais, ambos os corpos deveriamactuar fora do seu âmbito regular de competências com base em mandado judicial oudo Ministério Público (MP) ou ainda, em situações de excepção, quando e sempre quea eficácia da respectiva actuação o impõe. Para além das chamadas competências comuns, prevalecem também funções de ca-rácter exclusivo que cada corpo exerce em todo o território nacional. É nesses termosassegurada pelo CNP:1. A expedição do Documento Nacional de Identidade e dos passaportes.2. O controlo de entrada e saída de espanhóis e estrangeiros do território nacional.3. As funções previstas em legislação sobre estrangeiros, refúgio e asilo, extradição,expulsão, emigração e imigração.4. A vigilância e inspecção do cumprimento das normativas em matéria de jogos. 5. A investigação e perseguição dos delitos relacionados com drogas.6. Colaborar e prestar auxílio às polícias de outros países, conforme estabelecido nostratados e acordos internacionais sobre as leis, sob a superior direcção do MI.7. O controlo das entidades e serviços privados de segurança, vigilância e investiga-ção, do respectivo pessoal, meios e intervenções.8. Outras tarefas e funções atribuídas nos termos da legislação em vigor.

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São exercidas pela Guardia Civil:9. As funções derivadas da legislação em vigor sobre armas e explosivos.10. O resguardo do Estado em matéria de fiscalidade bem como a actuação destinadaa evitar e perseguir o contrabando.11. A vigilância e fiscalização do tráfego, trânsito e transporte nas vias públicas inte-rurbanas.12. A custódia das vias de comunicação terrestre, costas, fronteiras, portos, aeropor-tos e centros e instalações que o requeiram em função do seu interesse.13. Zelar pelo cumprimento das disposições relacionadas com a conservação da na-tureza e o meio ambiente, dos recursos hídricos, assim como da riqueza cinegética, pis-cícola, florestal e de qualquer outra índole relacionada com a natureza.14. A condução interurbana de presos e detidos.15. Outras tarefas consagradas na legislação em vigor.O assunto afigurava-se claro no que respeita à investigação criminal. A Guardia Civilactuaria no âmbito territorial rural, com excepção dos delitos de contrabando, domí-nio em que detém competência exclusiva e o CNP em todo o território nacional e comcarácter exclusivo sobre os delitos relacionados com droga. Todavia, as próprias excep-ções que esta lei e outras contemplam (a Lei Orgânica do Poder Judicial 6/1985 de 1de Julho no seu título III da Polícia Judicial3; a lei do Ajuizamento Criminal no seu tí-tulo III da Polícia Judicial, artigos 282 a 2994; o Real Decreto 769/1987, de 19 de Ju-nho sobre regulação da Polícia Judicial5 ; etc.), permitem que as autoridades judiciaisou o MP encomendem a investigação ao corpo policial que livremente decidam, semse sujeitarem ao disposto nessa lei, o que redunda e resulta, por esse motivo, no factode todos investigarem tudo em qualquer parte (o que conduz – e os polícias sabem-no- a que exista algo que não se investiga em nenhum lugar). Chega-se mesmo ao pontode as polícias autonómicas desenvolverem investigações no exterior dos seus própriosterritórios desde que uma autoridade judicial assim o decida.Um breve apontamento sobre os Corpos de Polícia das Comunidades Autónomas.Existem três Comunidades - País Basco, Catalunha e Navarra - que têm corpos poli-ciais criados no âmbito dos seus estatutos de autonomia (que aliás são Leis Orgâni-cas do Reino de Espanha) a que foram atribuídas competências de polícia integralnos respectivos territórios. Nesses termos, assumem a investigação criminal na ínte-gra, incluindo aquela que é relativa à criminalidade organizada.Os corpos de polícia locais, detêm, por via de regra geral, a investigação das infra-cções ou delitos de menor vulto.

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3 http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/lo6-1985.html4 http://noticias.juridicas.com/base_datos/Penal/lecr.l7t1.html#df5 http://noticias.juridicas.com/base_datos/Penal/rd769-1987.html

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Se o panorama das competências policiais em Espanha já se revelava confuso, surgiuainda a Direcção Adjunta de Vigilância Aduaneira (DAVA), integrada na Agência Es-tatal de Administração Tributária (AEAT) do Ministério da Fazenda, enquanto órgãode polícia judicial.Apesar de não estar mencionado na Lei Orgânica 2/1986 enquanto parte integrantedas FCSE, porque efectivamente não o é, a sua qualidade de polícia judicial nasce dainterpretação da Disposição Transitória Terceira da Lei Orgânica 7/1982, de 13 de Ju-lho, sobre contrabando, em que se estabelece que “as autoridades, funcionários e for-ças a quem estava cometida a perseguição e detecção do contrabando devem continuar adesempenhar funções relacionadas com a organização, dependência administrativa e fa-culdades e direitos que já tinham reconhecidos até esse momento”.Os funcionários e forças que investigavam o contrabando eram a Guardia Civil e oServiço de Vigilância Aduaneira (SVA). Esta Lei Orgânica permite-lhes manter essacompetência funcional. Como facilmente se poderá constatar, a Lei Orgânica de Contrabando 7/1982 é an-terior à Lei Orgânica de FCSE 2/1986, motivo porque há quem sustente (o que tam-bém subscrevo) que se por acaso se pretendia contemplar o SVA, e posteriormente aDAVA, como corpo policial, nada impedia que tal fosse mencionado e regulado nacitada Lei Orgânica 2/1986. Na realidade actuam enquanto corpo de polícia judicial e fazem-no com uma com-petência alargada, por essa via e que se estende a qualquer tipo de crime. Para tantorecorre-se ao seguinte raciocínio: se são órgãos de polícia judicial para investigar in-fracções criminais de contrabando, também o são para investigar tráfico de estupefa-cientes, que curiosamente não deixa de ser uma modalidade de contrabando e porconseguinte, também os crimes conexos de branqueamento e fraudes fiscais.A partir do momento em que são consideradas entidades de polícia judicial nadaobsta a que a autoridade judicial lhes solicite uma investigação de qualquer crime e éneste quadro que a DAVA surge a investigar crimes de corrupção numa qualquer ca-pital provincial espanhola, para além de capturar navios de mercadoria transportandodrogas em alto mar, muito para além da área marítima de jurisdição a que se refere aLei do Contrabando.Perante o panorama que acabei de descrever, não surpreende que os colegas portu-gueses coloquem «as mãos na cabeça» e concluam o mesmo que eu próprio: um caos!uma confusão!As autoridades espanholas, estando conscientes desta realidade, criaram diversos me-canismos de cooperação operativa. Interessa-me destacar dois: um no âmbito da cri-minalidade organizada e outro em matéria de terrorismo. Assim:

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Dependendo directamente do Secretário de Estado de Segurança, na tutela do MI,funcionam:1. - O Centro de Inteligência contra o Crime Organizado (CICO). A que corres-ponde a produção de inteligência estratégica para a luta contra toda a espécie de de-linquência organizada, assim como, se for o caso, o estabelecimento de critérios decoordenação operativa dos serviços que intervêm em supostos domínios concorren-ciais nas investigações em concreto.• Receber, integrar e analisar toda a informação e produzir análises operativas rela-cionadas com o crime organizado que sejam relevantes e necessárias com vista à elaboração de inteligência estratégica e de apreciação prospectiva sobre esse mesmo fe-nómeno.• Definir ou determinar, nos domínios de intervenção conjunta ou concorrente, os cri-térios de coordenação e actuação das unidades operativas das forças e corpos de se-gurança do Estado e entre esses e outros serviços intervenientes em função das suascompetências próprias ou de apoio à intervenção.• Elaborar o relatório anual de situação sobre o crime organizado em Espanha, bemcomo uma avaliação periódica da ameaça.• Elaborar e difundir as informações de natureza estatística relacionadas com essa ma-téria.2. - Centro Nacional de Coordenação Antiterrorista (CNCA). A sua finalidade bá-sica é actuar enquanto órgão de recepção, procedimento e valoração da informaçãoestratégica disponível sobre todas as formas de terrorismo que constituam fonte deameaça para Espanha, sem assumir missões operacionais que estejam em mãos dasforças e corpos de segurança do Estado. As suas funções são as seguintes:• Captar a informação já existente nas bases de dados de cada um dos corpos de Se-gurança do Estado: CNP e Guardia Civil, e do Centro Nacional de Inteligência.• Sem prejuízo disso, captar a informação das bases de dados internacionais e de gru-pos de trabalho multidisciplinares no âmbito da luta contra o terrorismo.• Análise de informação.• Coordenação operativa: servirá de estrutura superior, para que as diferentes unida-des «não se cruzem nem sobreponham no campo de batalha» como já sucedeu em vá-rias ocasiões na luta contra a ETA, mas não realizam acções operacionais.Tudo o que se acabou de expor, sobre o confuso panorama de repartição e distribui-ção de competências em Espanha, ajudará certamente os colegas portugueses a en-tender a razão que justifica o facto de lhes chegarem solicitações e pedidos de cola-boração policial de qualquer parte de Espanha e ademais provenientes de qualquercorpo policial. De resto e se o assunto já estiver judicializado (no sentido em que já

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existe uma autoridade judicial implicada e não apenas diligências prévias de investi-gação policial) esse será o padrão habitual. Apreciemos então a forma como está regulado em Espanha, esse mecanismo de coo-peração policial informal que denominamos por OL. A resposta é que não existe essa regulação, ou melhor dito, ela é feita de forma excep-cional. Espanha utiliza uma instituição que designa por Consejerías del Interior, quesão órgãos técnicos do MI nas Missões Diplomáticas no estrangeiro.A sua consagração legal está contemplada no Real Decreto 1300/2006, de 10 de No-vembro, sobre organização e funções das Consejerías de Interior nas Missões Diplo-máticas de Espanha, publicado no Boletín Oficial del Estado (BOE) número 280,Quinta-Feira, 23 de Novembro de 2006.6

Esse Real Decreto reza que as competências em matéria de cooperação internacionaldas FCSE, estando sumariamente reguladas na Lei Orgânica 2/1986, de 13 de Março,de Forças e Corpos de Segurança (artigo 12.1), carecem de desenvolvimento expresso. O Real Decreto 400/2012, de 17 de Fevereiro, através do qual se desenvolve a estru-tura orgânica básica do MI, refere-se às funções de direcção e coordenação da coope-ração policial internacional por intermédio da Secretaria de Estado de Segurança (ar-tigo 2), da Direcção da Polícia e da Direcção Geral da Guardia Civil, no que respeitaà coordenação com outros órgãos de informação estrangeiros (artigos 3 e 4) e da Di-recção Geral de Relações Internacionais e Estrangeiros, que definirá as acções e pro-gramas de actuação dos órgãos técnicos do Departamento nas Missões Diplomáticas(artigo 6).Naquele artigo refere-se que, do Secretário de Estado de Segurança depende a Direc-ção Geral de Relações Internacionais e Estrangeiros a quem compete, entre outrasfunções:a) A coordenação em matéria de cooperação policial internacional e a definição das ac-ções e programas de intervenção dos órgãos técnicos do MI existentes nas Missões Di-plomáticas, sua organização interna e dotação orçamental, assim como a sua inspecçãotécnica e controlo, sem prejuízo das faculdades de direcção e coordenação do chefe daMissão Diplomática e da respectiva Representação Permanente.A Direcção Geral de Relações Internacionais e Estrangeiros é integrada pela:a) Subdirecção Geral de Cooperação Policial Internacional, a que corresponde o exer-cício das funções supramencionadas na alínea a).Deste Real Decreto apenas me referirei aos extremos que considero mais relevantespara o objecto deste apontamento. Colocarei em sublinhado o que me interessa des-tacar:

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6 http://www.boe.es/boe/dias/2006/11/23/pdfs/A41001-41004.pdf

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As Consejerías de Interior.

Artigo 1. Definição.

1. As Consejerías de Interior são os órgãos técnicos das Missões Diplomáticas Perma-nentes do Reino de Espanha, sob a direcção e coordenação dos respectivos chefes,com vista ao desenvolvimento das funções que, no quadro das competências do MI,lhes são atribuídas por este Real Decreto.

Artigo 2. Dependência.

1. Sem prejuízo da sua integração orgânica nas Missões Diplomáticas ou nas Repre-sentações Permanentes respectivas, bem como das faculdades de direcção e coorde-nação dos respectivos chefes, as Consejerías de Interior dependem da Subdirecção Ge-ral de Cooperação Policial Internacional, integrada na Direcção Geral de RelaçõesInternacionais e Estrangeiros e mantêm relações de coordenação e informação com aDirecção Geral da Polícia e da Guardia Civil, assim como com os demais órgãos di-rectivos do MI, competentes na matéria em causa.

Artigo 3. Criação e supressão.

2. O ministro dos Assuntos Exteriores e da Cooperação, mediante proposta do mi-nistro do Interior, acreditará os conselheiros e agregados do Interior para o desempe-nho das suas funções noutros Estados.

Artigo 4. Funções.

1. Com carácter geral as Consejerías de Interior apoiarão o exercício das funções cor-respondentes ao Ministério do Interior, no âmbito das suas competências, e em par-ticular, desempenharão as seguintes funções:a) Prestar assessoria e assistência técnica, informar e executar funções de apoio à che-fia e demais órgãos da Missão Diplomática em matéria de Interior e colaborar no fo-mento das relações com o Estado receptor.b) Colaborar e prestar apoio aos membros das Forças e Corpos de Segurança de ou-tros países.c) Relacionar-se com as autoridades de segurança e interior do Estado receptor e promo -ver a cooperação bilateral em matéria de administração geral da segurança dos cidadãos,

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de promoção das condições necessárias ao exercício dos direitos fundamentais, deprotecção civil, de administração geral da polícia de circulação e segurança rodoviá-ria, de administração e regime das instituições penitenciárias e do desenvolvimento deprocessos eleitorais.d) Proporcionar informação aos órgãos superiores e directivos do MI e ao CNCA so-bre as actividades que desenvolvam em matéria de luta contra o terrorismo, o tráficode drogas e demais expressões da criminalidade organizada que afectem a segurançainterna de Espanha.e) Colaborar na representação da posição de Espanha em matéria de segurança e in-terior.f ) Prestar apoio às iniciativas e actividades de todos os órgãos superiores e directivosdo MI junto do Estado receptor.g) Prestar apoio aos funcionários do MI que se desloquem para o país de destino.h) Colaborar com o Chefe da Missão ou Representante Permanente, em todas as ma-térias próprias do MI, para assegurar a representação de Espanha perante outros Es-tados e organizações internacionais, de acordo, em cada caso, com as instruções dosórgãos superiores e directivos de departamento.i) Servir de elo de ligação, segundo a normativa da Organização Internacional de Po-lícia Criminal (OPIC) - Interpol, Europol e demais órgãos de cooperação policial in-ternacional, prestando a assistência que se mostre necessária para o cumprimento decartas rogatórias internacionais, mandados de detenção, procedimentos de extradi-ção e restantes actividades próprias dessas organizações, sem prejuízo das competên-cias reservadas a outros departamentos da Administração, através de convénios e tra-tados internacionais ou quaisquer instrumentos que assim o determinem e emparticular àqueles que são designados enquanto autoridades centrais para esse efeito.2. A realização das funções cometidas às Consejerías de Interior decorrerá sem prejuízodas competências e funções atribuídas a outros órgãos das Missões Diplomáticas se-gundo as suas normas específicas e num quadro de colaboração e complementaridadecom estes.

Artigo 6. O Conselheiro do Interior.

1. A liderar cada Consejería de Interior haverá um Conselheiro que exercerá a chefiada mesma, sem prejuízo das funções de coordenação que correspondem ao Chefe daMissão Diplomática.Quando se trate de um membro das Forças e Corpos de Segurança do Estado, o Con-selheiro deverá pertencer às Escalas Superior de Oficiais ou de Oficiais da Guardia Ci-vil, ou às Escalas Superior ou Executiva do CNP.

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Artigo 7. Os Agregados.

1. Os Agregados do Interior dependerão do Conselheiro do Interior, a quem presta-rão assistência no exercício das funções que lhe forem atribuídas. Quando se trate de um membro das FCSE, o Conselheiro deverá pertencer às Esca-las Superior de Oficiais ou de Oficiais da Guardia Civil, ou às Escalas Superior ou Exe-cutiva do CNP.5. Perante serviços afectos a corpos policiais estrangeiros, organizações e fora inter-nacionais de carácter policial, podem nomear-se Oficiais de Ligação pertencentes àsFCSE, para facilitar a cooperação e o intercâmbio de informação entre essas institui-ções internacionais, corpos policiais estrangeiros ou fora internacionais e os corpos po-liciais espanhóis, sem prejuízo das relações existentes entre esses organismos estran-geiros e outros serviços ou administrações nacionais, na base dos acordos ou tratadosem vigor. Os referidos OL dependerão funcionalmente do corpo a que pertencem no intuito demanter as relações adequadas com os seus correspondentes estrangeiros. Sem prejuízodisso, estarão integrados, como agregados, na Consejería correspondente e sujeitos àssuperiores funções de coordenação que correspondem ao Conselheiro. A criação, emcada caso, desses postos de OL será efectuada por intermédio da correspondente re-lação de postos de trabalho ou do catálogo de postos de trabalho das FCSE.

Em resumo:

• As Consejerías del Interior são órgãos técnicos nas Missões Diplomáticas de Espanhano exterior (bilaterais ou multilaterais);• Com carácter geral apoiarão o exercício das funções correspondentes ao MI; • Dependem da Subdirecção Geral de Cooperação Policial Internacional, integrada naDirecção Geral de Relações Internacionais e Estrangeiros;• E mantêm relações de coordenação e informação com a Direcção Geral da Políciae com a Direcção Geral da Guardia Civil, assim como com os demais órgãos directi-vos do MI, competentes na matéria em apreço, (tais como a protecção civil, institui-ções penitenciárias, política interior, processos eleitorais, segurança e tráfego rodo-viário, etc.);• Estão integradas por conselheiro e agregado, que deverão pertencer às Escalas Supe-rior de Oficiais ou de Oficiais da Guardia Civil, ou às Escalas Superior ou Executivado CNP;• Terão cobertura diplomática; • Têm funções amplas que entroncam nas competências do MI espanhol;

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• Embora se devam destacar as que se mencionam no número 1, b) do art. 4, “Cola-borar e prestar apoio aos membros das Forças e Corpos de Segurança de outros países”, poisesta é a norma que permite, tanto ao agregado como ao conselheiro, desempenhar opapel de OL com os seus corpos policiais homólogos no país de destino. O Real De-creto também contempla a possibilidade de nomear OL. Quanto à relação bilateral Portugal-Espanha, na actualidade, Portugal tem destacadocomo OL do MAI na sua Embaixada em Madrid um Intendente da PSP. Por outrolado, Espanha tem destacados na sua Embaixada em Lisboa:• Como Conselheiro do Interior um coronel do Corpo da Guardia Civil;• Como Agregado do Interior um inspector-chefe do CNP; e• Como OL do CICO junto do MAOC-N (Maritime Analysis and Operations Centre- Narcotics) um inspector-chefe do CNP.Recapitulemos a nossa exposição. Portugal articula este mecanismo de cooperaçãopolicial internacional através dos OL entre as forças e serviços de segurança portu-gueses e os do país beneficiário. Espanha procede a essa articulação por intermédio dasConsejerías de Interior, que representam todos os interesses do MI Espanhol nos de-mais Estados – neste caso também em Portugal – e que excedem aqueles que se refe-rem unicamente à cooperação policial, apesar de também a contemplar. Analisámoso confuso panorama referente às competências das várias organizações policiais em Es-panha mas afigura-se essencial que os colegas portugueses saibam a quem se dirigir emdemanda de cooperação. Mas não tanto porque recebem pedidos inapropriados de Es-panha, visto que essas solicitações já vêm filtradas pelos mecanismos de cooperaçãoregulados (Interpol, Europol, SIS, Sirene) e também pela Consejería del Interior, queapenas tramitam os pedidos que procedam de corpos policiais que dependam do MI.A cooperação policial a que aludimos tem cobertura legal, para além dos tratados in-ternacionais multilaterais, nos distintos acordos bilaterais assinados pelas autoridadespolíticas dos nossos países7. Convém destacar, a esse propósito:• Acordo de cooperação em matéria de luta contra a droga. Assinado em 27.01.1987.Revisto em 28.11.2000.• Acordo sobre cooperação transfronteiriça em matéria policial e aduaneira, sujeito a“ad referéndum” em Évora em 19.11.2005. Publicado no BOE de 18.03.200.• Memorandum de entendimento entre o Secretário-Geral do Sistema de SegurançaInterna de Portugal e a Secretaria de Estado de Segurança de Espanha sobre Coope-ração Policial e Segurança Interna, assinado em Madrid em Fevereiro de 2010.Pretenderia fazer referência a um mecanismo de cooperação que apesar de não se

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7 Uma relação dos CCPA pode ser consultada em http://www.dgai.mai.gov.pt/?area=102&mid=106

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poder considerar informal (porque está regulado) goza das suas características de agi-lidade e acessibilidade permanente (funciona durante as 24 horas do dia) que são osCentros de Cooperação Policial e Aduaneira (CCPA). Quatro deles foram criados noâmbito do acordo de Évora em 2005 e outros dois na XXIV Cimeira Hispano-Por-tuguesa de Zamora em 2009. Estão em pleno funcionamento operativo cinco dessescentros8.Estes CCPA embora não tendo sido concebidos para a investigação da criminalidadeorganizada, podem prestar um grande serviço neste domínio, considerando que sãoautoridades competentes (segundo o artigo 2 do Acordo de Évora) todos os corpos po-liciais de ambos os países, que ali prestam serviço funcionários desses corpos e que têmacesso às bases de dados de todos eles, o que permite um rápido acesso a informaçãopontual, para além do papel relevante que podem desempenhar nas acções de vigi-lância e perseguição transfronteiriças. Tenho por vezes a sensação de que, quiçá por desconhecimento, os CCPA estão a serinfra-utilizados e que deles se está extraindo menor proveito do que efectivamente se-ria possível. Mas regressemos ao papel dos OL. Aquele que representa o CNP de Espanha, desenvolve a sua actividade entre o seu corpo e os corpos e serviços policiais homó-logos em Portugal, isto é, a PJ, a PSP e o SEF. Em matéria de crime organizado, nassuas duas vertentes de motivação política (terrorismo) ou económica (delinquência co-mum), a maior parte do intercâmbio de informação e de cooperação processa-se coma PJ, considerando que esse corpo de polícia é aquele que tem competência reservadana matéria. Não é este o espaço nem o lugar para expor, nem mesmo a título de exemplo, a intensaactividade que se desenvolve, mas valerá a pena mencionar apenas algumas “regras”(não tínhamos referido que a cooperação era informal?...) com vista à correcta utili-zação deste mecanismo de cooperação:O OL é um só, unipessoal. O seu gabinete, na maior parte das vezes é móvel e volá-til (telemóvel, computador, vontade e dedicação) e apesar de estar disponível duranteas 24 horas do dia “só faz o que pode e aquilo que é possível”.Ainda que detendo bom conhecimento do organigrama do seu próprio corpo poli-cial e por outro lado das corporações portuguesas, para poder canalizar adequada-mente os pedidos de informação e colaboração, as respostas não só dependem da suainsistência mas sobretudo da vontade daqueles que têm efectivamente de responder.

Marcial Rodriguez y Rodriguez

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8 a) No Território do Reino de Espanha, em Tui/Valença do Minho.b) No Território da República Portuguesa, em Vilar Formoso/Fuentes de Oñoro; em Castro Marim/Ayamonte e

em Quintanilla/Alcañices.

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Todos nós, polícias, sabemos o que nos custa, por vezes, obter a colaboração e assis-tência de colegas da mesma instituição policial. Não direi que seria conveniente que as solicitações para colaboração se centralizas-sem em unidades de cooperação internacional dos corpos policiais, porque isso equi-valeria a cair no “erro” da cooperação formal, mas, atentas as limitações já constata-das, seria indispensável fazer utilização razoável deste mecanismo. Todos nós,investigadores policiais, pensamos que o nosso “caso” é importante. Se objetivamenteo é e também urgente, eis a ocasião soberana para recorrer aos OL. É bom recordarque o OL está no meio e é ele que canaliza, solicita, pressiona e insiste com ambas aspartes e que na maior parte dos casos, mesmo estando todos obrigados a colaborar, amelhor atenção e resposta dependem da boa vontade do polícia que recebe o pedido(qualquer que seja o país e instituição a que pertença). Há muitas formas e manifestações de criminalidade organizada em cujo combate osOL podem desempenhar papel relevante. Não se trata de produzir aqui uma lista-gem teórica mas apenas constatar e reconhecer uma realidade. Ao nível da criminalidade com finalidades políticas, i.e. terrorismo, Portugal é umpaís privilegiado (congratulo-me por isso e desejo que assim continue) e actualmentenão defronta qualquer problema de terrorismo autóctone e quanto ao terrorismo in-ternacional, até ao presente, não sofreu qualquer atentado. Não é assim em Espanhaonde, para nossa desgraça, “temos de tudo”. Não é conveniente nem adequado discorrer abertamente sobre este assunto mas a co-laboração entre os nossos países é estreita e poderemos aprofundá-la ainda mais. Hánovas manifestações de radicalismo que batem às nossas portas ao ritmo da globali-zação e da crise económica, tais como o próprio terrorismo anarquista (por enquantode baixa intensidade) de extrema-esquerda e extrema-direita a que será certamentenecessário prestar mais atenção. No âmbito da delinquência organizada com finalidades económicas, para além daclássica e associada ao tráfico de estupefacientes, haverá que aduzir a criminalidade vio-lenta protagonizada por grupos organizados que passam de Espanha para Portugalpara cometer roubos em entidades bancárias, caixas multibanco, gasolineiras, joalha-rias etc.; bem como a dos chamados grupos itinerantes que percorrem a Europa co-metendo uma multitude de crimes contra a propriedade com a utilização de meno-res (que são permutados entre esses grupos a troco de dinheiro); da imigração ilegalassociada ao tráfico de seres humanos com motivações de exploração sexual ou labo-ral; da falsificação de documentos para encobrimento de outros crimes (imigraçãoilegal, terrorismo, etc.). Na investigação da corrupção, que é uma das grandes modalidades de delinquência

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organizada de que sofrem os nossos países, é difícil a utilização dos OL, salvo em ca-sos muito pontuais.Os OL também podem colaborar nas operações de controlo de delinquentes perigo-sos (de países do leste europeu e do norte da Europa, paramilitares e mafias) que têmPortugal e Espanha como base ou plataforma de refúgio. Um dos papéis quiçá mais importantes que os OL podem assegurar, consiste em co-locar em contacto os investigadores de ambos os países para que levem a efeito ope-rações conjuntas. Para tanto é necessário gerar cumplicidades e limar arestas e des-confianças, matéria em que os OL podem definitivamente ajudar. Não faço referência à utilização ou ao valor que pode representar num processo judi-cial a informação obtida no quadro desta colaboração informal, porque isso dependeda legislação interna dos nossos países e não constitui objecto deste ensaio.Agradeço a vossa atenção. Peço desculpa se estes comentários não correspondem àalta qualificação técnica que aprecio nos artigos que, sobre diversos aspectos da acti-vidade policial ou de segurança, se publicam nesta revista. Toda esta exposição é da exclusiva responsabilidade do autor, que apenas se repre-senta a si mesmo.

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BibliografiaBELLOSO, Miguel José Izu (1989), “La Policía foral de Navarra”, Universidade deNavarra.

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feminino – o elementoviolência

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José Manuel Pires LealInspetor-Chefe da Polícia Judiciária. Licenciado em Sociologia e Planeamento. Mestre em Criminologia.Doutorado em Criminologia.

As estatísticas anuais sobre o crime evidenciam o sexo masculino como a categoria degénero com maior índice de participação no crime. Todavia se tomarmos em termosde análise a relação proporcional da distribuição de ambos os sexos pelos diversos ti-pos de crime, o género feminino apresenta índices proporcionalmente mais elevadosna criminalidade violenta, em particular através das ofensas à integridade física, queos expressos pelo género masculino, cujo índice mais elevado de envolvimento nocrime se encontra associado aos crimes contra o património. Tais evidências resul-tantes da interpretação transversal das estatísticas oficiais sobre o crime em função dogénero, são em certa medida contraditadas pelos estudos longitudinais, os quais de-monstram que o elemento violência em trajetórias de indivíduos do sexo femininoreincidentes revela-se espúrio, não obstante vincar as trajetórias onde se exprime, cons-tituindo-se num elemento atractor de outros comportamentos violentos nessas traje-tórias. Tal remete-nos para a hipótese de que a violência de reduzida gravidade – ofen-sas à integridade física simples – é manifestamente expressa por indivíduos que nãotendem a desenvolver trajetórias delinquentes prolongadas no tempo. Em suma, em-bora se evidencie o facto de não existir uma relação entre o tipo de participação nocrime e as características de sexo, os fatores condicionantes nos planos sociocultural,económico e simbólico de pertença a determinada categoria de género, construídasocialmente, vincam a expressividade quantitativa e qualitativa de participação nocrime, resultado da repercussão dos papéis, do estatuto e dos lugares que homens emulheres têm ocupado no imbricado tecido social ao longo da história da sociedadeportuguesa.

Introdução

No âmbito dos estudos que procuram estabelecer a relação entre a delinquência e ogénero, a análise da criminalidade feminina tem sido em certa medida subalternizadarelativamente aos estudos que se debruçam sobre as manifestações da criminalidademasculina. Tal evidência deve-se, para além da distribuição da participação criminalem função do género nas estatísticas oficiais sobre a reação ao crime, essencialmente

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pela ainda dominância de certo androcentrismo na cultura das sociedades modernas(Bourdieu, 1999), presente na linguagem e nos signos utilizados para definir os fe-nómenos e os processos do mundo social. Como refere Beleza (1990) o masculino étomado como referência e termo de comparação na maior parte dos domínios da vidacultural e económica, refletindo-se tal processo de dominação no universo do nor-mativo.Procuraremos assim perscrutar as especificidades da delinquência no feminino, ini-ciando o seu estudo crítico com breve análise das estatísticas oficiais sobre o crimeem função do género, na qual traçaremos um breve esboço da superfície delinquencialmasculina e feminina, para de seguida nos centrarmos exclusivamente nas manifes-tações criminais do género feminino, tomando como unidade de análise um con-junto de mulheres constituídas arguidas e constantes no Sistema Integrado de Infor-mação Criminal «(SIIC) da Polícia Judiciária (PJ), seguindo o seu potencial percursocriminal num intervalo de tempo de 20 anos, mergulhando assim em profundidade,através do estudo das trajetórias criminais dessas mulheres, nas formas delinquenciaismais graves e duradouras.

A interpretação das estatísticas oficiais

Efetivamente, se procedermos à análise dos dados constantes nas estatísticas oficiaissobre o processo de reação ao crime, a maioria dos indivíduos identificados pelas au-toridades pertence ao género masculino.Tomando como ponto de partida a análise das estatísticas produzidas em 2003 sobreos indivíduos identificados pelas autoridades segundo o sexo e por crimes, constata-seque com a exceção da participação no crime de aborto, a participação do género mas-culino, por relação ao género feminino, destaca-se em todos os tipos de crimes.

Quadro IDistribuição da participação dos indivíduos identificados pelas autoridades no ano de2003 em função do género

Fonte: Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.

Universos Masculino Feminino

Participação%

241.40585,2%

41.78114,8%

Total 283.186

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Todavia se efetuarmos o estudo da distribuição da participação de cada categoria degénero pelos diversos grupos de crimes, constatamos que em termos proporcionais àdimensão de cada grupo de género, se verificam algumas manifestações delinquenciaisque recuperam o género feminino da sombra aparente dos números.Desse modo, se desenvolvermos a análise da manifestação criminal em função da pro-porção da participação de cada categoria de género, verificamos que o feminino se des-taca do masculino essencialmente no grupo de crimes contra as pessoas, em particularnas formas delinquenciais classificadas como crimes contra a honra (13,8%, por com-paração ao género masculino que apresenta a proporção de 3,2%) e contra a integri-dade física (33,4%, masculino=24,2%).

Quadro IIEstudo da distribuição da participação dos indivíduos identificados pelas autoridadesno ano de 2003 em função do género e dos grupos de crimes

Fonte: Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.

Não obstante, em geral o universo masculino, por relação aos grandes grupos de crimes,manifestar proporcionalmente percentagens superiores às registadas pelo universo fe-minino, importa sublinhar que algumas manifestações delinquenciais pertencentes aogrupo de crimes contra a vida em sociedade [em particular nos crimes contra a família(masculino=0,1%; feminino=0,3%), nos crimes de falsificação (masculino=1,2%; fe-minino=1,7%) e no grupo de crimes emissão de cheque sem provisão (masculino=0,5%;feminino=1,3%)], assumem no universo do género feminino uma maior dimensãoque no universo do género masculino.Tais considerações remetem o nosso exercício analítico para a questão identificadaanteriormente, a qual associa importante percentagem do universo feminino à parti-cipação de crimes contra as pessoas.Efetivamente, se compararmos proporcionalmente o universo masculino com o femi-nino, verificamos que enquanto 36,6% dos indivíduos do universo masculino cometeram

Grupos de Crimes Masculino Feminino

Contra as pessoasContra o patrimónioContra a sociedadeContra o EstadoTráfico de drogaLegislação avulsaUniversos masculino e feminino

36,6%36,8%11,6%2,4%2,1%

10,5%241.405

58,8%26,5%4,3%1,0%1,6%7,8%

41.781Total 283.186

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crimes que se inscrevem no grupo de crimes contra as pessoas, no universo femininotal proporção associada ao grupo de crimes em análise assume a expressão de 58,8%.Tal facto reveste-se de particular importância no sentido de constituir um indicadorconsistente capaz de abalar a leitura e a interpretação que em regra o senso comumproduz sobre o que é e como se manifesta a delinquência no feminino. A ideia de quea criminalidade feminina se encontra associada a características como a passividade,quase desprovida de violência, corresponde tão-só e apenas a uma imagem estereoti-pada, produzida por uma cultura dominante que tende a associar a força física, aameaça e a violência, a critérios definidores de suposta masculinidade. O que os dados referentes à reação ao crime indicam é que não obstante a participa-ção feminina no crime representar cerca de 1/7 da participação total registada pelasautoridades, das mulheres que delinquem, uma significativa percentagem tende a co-meter crimes com recurso a alguma violência, dirigida essencialmente contra a esferada integridade física. Tal evidência reveste-se de importância na medida em que no âm-bito da construção social do sentimento de insegurança face ao fenómeno do crime,embora a sociedade civil tenda a representar como comportamentos criminais maisfrequentes o furto e o roubo, os comportamentos que são representados como pondoem risco a integridade física das pessoas constituem os tipos criminais que socialmentesão representados como os mais receados, incluindo-se nesse âmbito o crime de roubopertencente ao grupo de crimes contra o património, mas também e sobretudo os queintegram o grande grupo contra as pessoas, em particular os que tendem a lesar a in-tegridade física dos indivíduos (Leal, 2007b).

A questão da violência

A distinção referida significa que à partida embora a participação feminina no crimeseja bastante inferior à participação masculina, quando deslocamos e centramos ofoco analítico da participação no crime pelos diversos universos masculino e femi-nino, verificamos que o género feminino tende a concentrar significativa proporçãoda sua participação, no grupo de crimes contra as pessoas. Constituirá tal evidênciaum sólido indicador de que as mulheres que delinquem tendem a ser mais agressivase violentas que os homens tomados proporcionalmente na sua participação pelos di-versos tipos de crimes a que se encontram associados?A dúvida que enunciamos implica que procedamos à análise comparativa, da distri-buição da participação masculina e feminina pelos diversos tipos de crimes que pelasua definição implicam de alguma forma o uso da violência, não nos restringindoapenas aos crimes contra as pessoas, mas alargando o estudo a outros grupos de crimes

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que contêm no seu elenco alguns tipos de crimes que inscrevem na sua definição nor-mativa o uso da ameaça, da intimidação e ou da violência física1.

Quadro IIIEstudo da distribuição da participação dos indivíduos identificados pelas autoridadesno ano de 2003 em função do género e dos grupos de crimes cujo cometimento im-plica o uso de alguma forma de violência

Fonte: Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça.

Dos dados constantes no quadro III podemos afirmar que no cômputo geral, a par-ticipação masculina e feminina associadas a comportamentos violentos representamrespetivamente 51,1% e 52,9% dos respetivos universos.Se tomarmos apenas a participação tanto masculina, como feminina associada a tiposde crimes em que para o seu cometimento esteja implícita a utilização da ameaça e ouda violência física com o objetivo de afetar estritamente a esfera da pessoa, verificamosque 64,1% e 83,4% dessa participação masculina e feminina se encontram ligadas aogrupo de crimes contra as pessoas, enquanto 32,0% e 15,1% da participação em am-bos os géneros se encontra associada ao grupo de crimes contra o património.No âmbito dos crimes contra as pessoas verifica-se no universo feminino, clara partici-pação superior por relação ao peso percentual que tal manifestação adquire no universo

Grupos de Crimes Sub-grupos de Crimes Masculino Feminino

Contra as pessoas

Contra a vidaContra a intregidade físicaContra a liberdade pessoalContra a liberdade e autodeterminação sexualOutros contra as pessoas

1,1%47,4%13,7%

1,4%

0,5%

0,9%63,2%18,2%

0,3%

0,8%

Contra o patrimónioContra a sociedadeContra o Estado

Contra a propriedadeContra a paz públicaContra a autoridade pública

32,0%0,1%3,8%

15,1%0,1%1,4%

Universos masculino e feminino 123.294 22.105

José Manuel Pires Leal

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1 Dessa forma tomámos em consideração os crimes contra a vida (homicídio voluntário e negligente; o aborto; e ou-tros contra a vida), contra a integridade física (ofensas à integridade física voluntárias e negligentes; maus tratos a fa-miliares, menores e incapazes; e outros contra a integridade física), contra a liberdade pessoal (rapto; sequestro; tomadade reféns; ameaça e coação; e outros contra a liberdade pessoal), contra a liberdade e a autodeterminação sexual (viola-ção; abuso sexual de crianças, adolescentes, e dependentes; e outros contra a liberdade e autodeterminação sexual eoutros contra as pessoas), contra o património (roubo; dano e extorsão), contra a paz pública (terrorismo e organiza-ções terroristas; motim; associação criminosa, e outros contra a paz pública), e contra a autoridade pública (resistên-cia e coação sobre funcionário; desobediência; tirada, evasão, motim de presos; e outros contra a autoridade pública).

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masculino. Este último destaca-se, por relação ao universo feminino, na manifestaparticipação no grupo de crimes contra o património, no qual o objetivo final da agres-são visa a apropriação ilegítima de um bem material.

A definição do problema

Face ao exposto, que conclusões se poderão retirar de tal análise? Que no plano da di-mensão proporcional que cada grupo de crimes adquire em cada universo, a crimi-nalidade feminina revela-se, à sua escala, significativa e com alguma gravidade, des-tacando-se por relação ao universo masculino nos crimes contra as pessoas, e o universomasculino nos crimes contra o património? Julgamos que tais conclusões poderão, em certa medida, ser precipitadas. A plenaconfirmação ou infirmação de tais afirmações requer que para além da estatística anualsobre a reação ao crime tenhamos que nos debruçar sobre a manifestação do crime aolongo do percurso de vida dos indivíduos. Só perscrutando ao longo do tempo omodo como as várias formas criminais se inscrevem no ciclo de vida dos indivíduosé que poderemos compreender o significado que as várias formas delinquenciais re-velam por relação ao género.Proporcionará o exercício de interpretação estrita das estatísticas, fornecidas peloprocesso de reação penal num só ano, um conjunto de indicadores fiáveis que nospermita esclarecer o que possamos definir como a especificidade delinquencial fe-minina?

A possibilidade de interpretação através do estudo de trajetórias

Tal interrogação conduziu-nos ao desenvolvimento de um projeto de análise longi-tudinal sobre trajetórias criminais do género feminino, que culminou no ano de 2005.Tendo como fonte o SIIC da PJ, selecionámos uma população-alvo que pelas suascaracterísticas estivesse presente e sujeita em todo o intervalo de tempo em análise àsmesmas condições jurídicas. Optámos assim pelos indivíduos do sexo feminino, nas-cidos durante o ano de 1967, com pelo menos uma constituição de arguido. A dimen-são da população revelou ser composta por 1667 mulheres. Face ao número elevado deindivíduos procedeu-se à determinação de amostra representativa, tendo sido utilizadoum intervalo de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%. Alcançou-se umaamostra com 331 indivíduos.

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A partir da determinação da amostra, procedeu-se, com base na construção de ma-trizes de extração de dados, à recolha de todas as referências existentes no SIIC querevelassem o envolvimento no crime dos elementos constituintes da amostra no pe-ríodo compreendido entre 1983 e 2003, sendo o intervalo de análise de 20 anos.Atendendo ao ano de nascimento dos elementos da amostra e da entrada em vigor docódigo penal (CP) de 1982, todos os indivíduos estariam em 1983 em condições deimputabilidade em razão da idade – todos os indivíduos completaram 16 anos nesseano. Concluída a recolha dos elementos sócio-criminológicos caracterizadores daamostra em estudo, todos os dados, após codificação, foram introduzidos no instru-mento de análise estatística Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) para assimprocedermos ao estudo crítico da criminalidade feminina.Importa sublinhar que a análise apresenta determinados limites, não só relativos aoano de nascimento de todos os elementos constituintes da amostra (1967), escolhidoem função do ano em que entrou em vigor o CP de 1982 (1 Janeiro de 1983), o qualrevoga definitivamente o CP de 1886, ficando desse modo todos os indivíduos sob aalçada da mesma influência jurídico-penal, como também às competências de inves-tigação criminal conferidas à PJ, que em regra se traduzem pela criminalidade maisgrave e complexa, assim como pela arquitetura do próprio SIIC.

Características socioculturais da amostra

A amostra é maioritariamente constituída por indivíduos de nacionalidade portu-guesa, com 11,2% de sujeitos que pertencem a outras nacionalidades; destes últimosa maioria dos estrangeiros são nacionais de Países Africanos de Língua Oficial Portu-guesa (PALOP) e do Brasil (6,3% do total). De forma geral, a larga maioria dos elementos da amostra é pouco escolarizada, e pos-sui profissões ou condições perante o trabalho pouco qualificadas. Presumivelmentea maioria dos indivíduos pertencerá a estratos sociais populares, caracterizados porcondições sociais precárias.

Especificidades criminais da amostra

No que respeita às características criminais da amostra, dos indivíduos em estudo 47,7%apresentavam apenas um registo-crime no seu ciclo de vida, 26,9% revelavam na sua tra-jetória criminal entre dois a três registos-crime, 17,2% entre quatro e oito registos-crime,

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e 8,2% da amostra tinham associado às suas trajetórias delinquentes entre nove e 17 re-gistos-crime. O escalonamento dos indivíduos em função do envolvimento no crime, ou seja do nú-mero de registos-crime associados às suas trajetórias, permitiu-nos proceder com basena classificação desenvolvida por Svensson (2002) à distribuição dos elementos daamostra por quatro tipos de delinquente, distintos em função do número de registos --crime a que se encontravam associados.

Quadro IVDistribuição dos elementos da amostra em função do número de registos-crime associados e respetiva categoria tipo de delinquente

Figura I

Desse modo, construíram-se categorias trajetoriais em função do número de regis-tos -crime que se inscreviam nas trajetórias; definimos como categoria Primário todosos elementos da amostra que apresentassem apenas um registo-crime; como Ocasional,aqueles que integrassem nas suas trajetórias entre dois a três registos-crime; Reincidente,se tivessem entre quatro a oito registos-crime; e finalmente, Crónico se apresentassemfrequências de registos-crime superiores a oito registos.

Tipo Delinquente Frequência %

Primário (1 registo-crime)Ocasional (2 a 3 registos-crime)Reincidente (4 a 8 registos-crime)Crónico (9 a 17 registos-crime)

158895727

47,726,917,28,2

17,2%

26,9 %

PRIMÁRIO (1 registo-crime)

REINCIDENTE (4 a 8 registos-crime)

OCASIONAL (2 a 3 registos-crime)

CRÓNICO (9 a 17 registos-crime)

8,2%

47,7%

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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Quadro VDistribuição do número de individuos, registos-crime, e médias de registos-crime,pelas respetivas categorias tipo de delinquente

Figura II

Da análise das variáveis constantes no quadro V podemos afirmar que as dimensõesdas diversas categorias tipo de delinquente encontram-se inversamente associadas ao en-volvimento no crime.No que respeita à precocidade no envolvimento no crime, a categoria Crónico tendea apresentar indicadores de maior precocidade no envolvimento no crime (entre os 17e os 23 anos), sendo imediatamente seguida pela categoria Reincidente que apresentadois períodos de tempo distintos e diferenciadores do momento em que as autorida-des detetam pela primeira vez o envolvimento deste tipo de delinquente no crime(entre os 17 e os 20 anos; e entre os 24 e os 28 anos). Na categoria Ocasional o pe-ríodo em que as autoridades tendem a identificar o primeiro delito associado a estetipo de delinquente, situa-se entre os 24 e os 30 anos, e na categoria Primário entre os27 e os 35 anos, sendo esta última, de todas as categorias tipo de delinquente, aquela emque os indivíduos tendem a experimentar o envolvimento no crime mais tardiamente.

Tipo de delinquente Indivíduos % Registos-Crime % Média

PrimárioOcasionalReincidenteCrónico

158895727

47,726,917,28,2

158211292305

16,421,830,231,6

1,02,45,111,3

Totais 331 100,0 966 100,0 2,9

16% 22% 30% 32%

48% 27% 17% 8%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

N.° Registos

N.° Indivíduos

Tip

o de

Del

inqu

ente

Proporção

Primário Ocasional Reincidente Crónico

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No que concerne à duração das trajetórias, os tipos de delinquentes Reincidente e Cró-nico em regra apresentam trajetórias persistentes e duradouras, embora variáveis, sendoque algumas não obstante serem mais curtas no tempo distinguem-se essencialmentepor serem intensas na manifestação delinquencial.2 Os tipos de delinquente Ocasio-nal e Primário, em razão das suas estruturas delinquenciais (número de registos-crimeque as compõem) apresentam duração trajetorial mais curta, classificadas respetiva-mente como intermitente e pontual.3

A maioria dos indivíduos em estudo revelou alguma estabilidade geográfica, mani-festando baixa mobilidade residencial, em regra nos limites do mesmo concelho, coma exceção do tipo de delinquente Crónico, o qual manifestou ora uma mobilidade mé-dia, ao nível de diferentes concelhos mas pertencentes ao mesmo distrito, ora uma mo-bilidade elevada, caracterizada pela passagem por vários distritos.No plano da mobilidade criminal constatou-se uma clivagem caracterizada ora por umamobilidade restrita, confinada aos limites do mesmo concelho, ora por uma mobili-dade alargada, caracterizada pela passagem dos indivíduos por vários concelhos domesmo distrito, ou por vários distritos. Desse modo, de forma geral, a distância en-tre os vários espaços geográficos onde os tipos de delinquentes Crónico e Reincidentecometeram os seus crimes tende a caracterizar a mobilidade criminal destes indivíduoscomo uma mobilidade alargada; por outro lado, a georreferenciação das trajetóriascriminais dos tipos de delinquentes Primário e Ocasional indicia a manifestação demobilidade criminal restrita.No âmbito da experiência de privação da liberdade, concretizada pela figura jurídicada detenção, assim como do processo judicial que conduz à condenação e à corres-pondente experiência da prisão efetiva, enquanto reação penal ao comportamentocriminal, constata-se que a escalada no crime tem subjacente uma maior reação aocomportamento lesivo da ordem social.

Quadro VIDistribuição do número de indivíduos que experimentaram as situações - privação daliberdade e prisão efetiva - pelas respetivas categorias tipo de delinquente

Tipo Delinquente Privação da liberdade Prisão efetiva

PrimárioOcasionalReincidenteCrónico

13,3%33,7%59,7%74,1%

5,7%18,0%24,6%40,7%

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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2 Crónico (entre os quatro e os 15 anos; e entre os seis e os 15 anos); Reincidente (entre os dois e os 10 anos; e entre os seise os 10 anos).3 Ocasional (entre um e seis anos); Primário (só um dia).

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Nesse sentido, constata-se que os indivíduos que pertencem à categoria Crónico sãoaqueles que em maior proporção experimentam situações de privação da liberdade ede prisão efetiva, tendo 3/4 e 2/5 respetivamente experimentado pelo menos uma vez asituação de privação da liberdade e de prisão efetiva.

Especificidades trajetoriais

Mas que tipos de crimes é que estão associados aos sujeitos constituintes da amostra?4

A maioria das frequências associadas aos elementos da amostra encontra-se relacionadacom a manifestação de delitos que se inscrevem nos grupos de crimes contra o patri-mónio sem violência, tráfico-consumo e tráfico de droga, emissão de cheque sem provisão, ede falsificação, correspondendo a um total de 86,5% de todos os registos-crime.

Quadro VIIDistribuição das frequências dos registos-crime da amostra pelos diversos tipos degrupos de crimes de pertença

Grupos de CrimesRegistos-crime

Frequências %

Contra a drogaTráfico-consumo e Tráfico de drogaEmissão de cheque sem provisãoContra o EstadoContra a VidaContra a Intregidade Física e Liberdade PessoalNatureza SexualContra o Património com ViolênciaContra o Património sem ViolênciaDe FalsificaçãoOutros contra as PessoasOutros contra a SociedadeNão Especificados

3327018113677

22281103

31624

3,428,018,71,30,60,60,72,3

29,110,70,31,72,5

Total 966 100,0

José Manuel Pires Leal

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4 Foram considerados para efeitos de análise 13 grupos de crimes, os quais incluem os seguintes tipos de crimes: consumode droga (apenas as situações de consumo de drogas); tráfico-consumo e tráfico de droga (tráfico-consumo e tráfico de droga,sem relação com o consumo); emissão de cheque sem provisão (apenas o crime de emissão de cheque sem provisão); contrao Estado (descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público; evasão/motim de presos; falso depoimento;peculato; corrupção; e branqueamento de capitais); contra a vida (homicídio; infanticídio; e aborto); contra a inte-gridade física e a liberdade pessoal (sequestro; rapto; e ofensas à integridade física); natureza sexual (violação; exploraçãosexual de pessoas; exploração sexual de menores; abuso sexual de menores; e atentado ao pudor); contra o património

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As frequências associadas aos grupos de crimes cuja estrutura delinquencial se definemaioritariamente pela manifestação da ameaça, intimidação ou da violência repre-sentam apenas 4,6% do total dos registos-crime, tendo sido considerados os gruposde crimes contra a vida, contra o património com violência, outros contra as pessoas, con-tra a integridade física e liberdade pessoal, e de natureza sexual.Os dados que apresentamos indiciam uma leitura bem diferente da proporcionada pe-las estatísticas oficiais, anuais, do processo de reação ao crime. Efetivamente, os da-dos colhidos por esta última fonte não estabelecem qualquer relação com o processodesenvolvimental do indivíduo, no decurso do qual o sujeito experimenta vários es-tados, que o poderão conduzir ao eventual desenvolvimento de trajetória criminal. Asestatísticas anuais oficiais constituem assim uma radiografia momentânea das mani-festações criminais na sociedade, sem estabelecer necessária relação de significado como percurso dos indivíduos que produziram a transgressão à norma.Desse modo, atendendo a que o presente estudo se centra na análise crítica de umatipologia de tipos de delinquentes, cujas constituições delinquenciais diferem quan-titativamente, importa perceber de que forma exprimem as trajetórias dos quatro ti-pos de delinquentes os vários grupos de crimes em estudo. Procederemos então à lei-tura de algumas especificidades trajetoriais da amostra, as quais serão complementadaspela análise sequencial de antecedentes desenvolvida num outro estudo (Leal, 2007a),e que se traduz pela identificação dos vários tipos de grupos de crimes que tendem apreceder a ocorrência de certo tipo de crime.A drogaDos indivíduos que pertencem ao tipo de delinquente Primário só cerca de 1,9% éque inscrevem nas suas trajetórias o consumo de droga; por outro lado, cerca de 1/3 dosindivíduos pertencentes a essa categoria têm inscrito nas suas trajetórias o tipo decrime tráfico-consumo e tráfico de droga.

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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com violência (roubo; roubo por esticão; dano; e extorsão); contra o património sem violência (abuso de confiança;furto; furto de dinheiro ou equiparados; furto doméstico; furto em residência; furto no trabalho; furto em veículo;furto de veículo; furto de uso de veículo; apropriação ilegítima em caso de acessão de coisa achada; furto de obras dearte; usurpação de coisa imóvel; abuso de cartão de crédito; burla; burla na obtenção de serviços; burla na obtençãode um bem; recetação; e utilização ilegal de dados); de falsificação (falsificação de documentos; falsificação de documen-tos de identificação; falsificação de cheques e equiparados; falsificação de documento para a obtenção de um bem;contrafação de moeda e equiparados; contrafação de cunhos de ourivesaria; e passagem de moeda falsa); outros con-tra as pessoas (difamação e injúria); outros contra a sociedade (insolvência; posse de arma proibida; incêndio – fogoposto; associação criminosa; terrorismo; crimes fiscais; e fraude na obtenção de subsídio ou subvenção); e crimes nãoespecificados (embora exista registo do cometimento de crime o tipo é desconhecido).

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Quadro VIIIDistribuição da proporção do número de registos-crime dos grupos de crimes consumode droga e tráfico-consumo e tráfico de droga, por relação ao total e respetiva categoria tipode delinquente, assim como a percentagem de trajetórias das várias categorias

Ainda no âmbito do consumo, o tipo de delinquente que apresenta maior envolvi-mento nesse tipo de comportamento é a categoria Crónico, com mais de 2/5 das fre-quências desse grupo de crimes associadas a cerca de 30% das trajetórias desse tipo dedelinquente. Todavia o universo dos indivíduos pertencentes à categoria Crónico quese encontram ligados ao fenómeno da droga aumenta substancialmente, para a ordemdos 44,4%, quando nos reportamos à sua associação ao grupo de crimes tráfico-con-sumo e tráfico de droga. Não obstante o nível de envolvimento da categoria Crónico no fenómeno da droga,importa salientar que é nas categorias Ocasional e Reincidente que se denota maiorproporção de trajetórias tocada pelo fenómeno da droga. Efetivamente, 50,6% e61,4% das trajetórias, respetivamente das categorias referidas encontram-se marca-das pela droga, especificamente na sua dimensão relacionada com o tráfico-consumo etráfico de droga.No que concerne aos tipos de grupos de crimes que tendem a preceder a ocorrênciada droga, verifica-se que nas categorias tipo de delinquente que desenvolvem uma se-quência delitiva (Ocasional; Reincidente; e Crónico), a droga tende a constituir fortepreditor sobre si mesma; ou seja, é frequente, após o cometimento de um crime ligadoà droga, que se venham a cometer mais crimes do mesmo tipo. Todavia existem tra-jetórias em que o cometimento de um crime diretamente ligado à droga tende a serprecedido por crimes cujo objetivo visa a obtenção ilícita de bem patrimonial, nomea-damente os crimes contra o património sem violência e os crimes de falsificação. Todaviaé na categoria Crónico que a droga adquire expressão que indicia alguma especialização

Tipos de delinquentes

Consumo de droga Tráfico-consumo e tráfico de droga

% de trajetóriascom pelo menos

1 registo-crime dogrupo de crime

em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime por relaçãoao total

% de trajetóriascom pelo menos 1registo-crime dogrupo de crime

em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime por relaçãoao total

PrimárioOcasionalReincidenteCrónico

1,9%3,4%14,0%29,6%

9,1%12,1%36,4%42,4%

28,5%50,6%61,4%44,4%

16,7%29,6%35,6%18,1%

100,0% 100,0%

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no domínio do tráfico-consumo e tráfico de droga (com trajetórias constituídas exclu-sivamente pelo envolvimento na droga).Crimes que afetam bens jurídicos com recurso a formas de violênciaA presença da violência em qualquer das quatro categorias tipo de delinquente consti-tui evento pouco frequente.A maior parte dos registos-crime pertencentes ao grupo de crimes contra a vida en-contra-se associada ao tipo de delinquente Primário, todavia no âmbito deste tipo dedelinquente as trajetórias que manifestaram este tipo de grupo de crimes representamapenas 3,4%. Os crimes contra a vida na maioria das vezes não são precedidos porqualquer tipo de delito.

Quadro IXDistribuição da proporção do número de registos-crime dos grupos de crimes contraa vida e outros contra as pessoas, por relação ao total e respetiva categoria tipo de delinquente, assim como a percentagem de trajetórias das várias categorias tipo dedelinquente

A totalidade das frequências pertencentes ao grupo de crimes outros contra as pessoas,no qual se inscrevem tipos de crimes que se definem pela provocação e por alguma ma-ledicência, encontra-se associada às categorias Reincidente e Crónico, no entanto apenasse exprimem em respetivamente, 3,5% e 3,7% das trajetórias das referidas categorias.Este grupo de crimes quando ocorre nas trajetórias em causa tende a ser precedido porregistos-crime relacionados com a droga e com a afetação de bens patrimoniais.

Tipos de delinquentes

Contra a vida Outros contra as pessoas

% de trajetóriascom pelo menos

1 registo-crime dogrupo de crime

em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime por relaçãoao total

% de trajetóriascom pelo menos 1registo-crime dogrupo de crime

em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime por relaçãoao total

PrimárioOcasionalReincidenteCrónico

3,2%

3,7%

83,3%

16,7%3,5%3,7%

66,7%33,3%

100,0% 100,0%

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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Quadro XDistribuição da proporção do número de registos-crime dos grupos de crimes contra opatrimónio com violência, contra a integridade fisica e liberdade pessoal e natureza sexual,por relação ao total e respetiva categoria-tipo de delinquente, assim como a percen-tagem de trajetórias nas várias categorias-tipo de delinquente que contém pelo menosum registo-crime nos referidos grupos de crimes

O grosso das frequências associadas ao grupo de crimes contra o património com vio-lência, encontra-se estreitamente associado aos tipos de delinquentes Reincidente eCrónico, sendo nessas categorias que, embora minoritária, significativa percentagemde trajetórias manifesta comportamentos violentos que visam a apropriação ilícita debens patrimoniais. Registam-se assim, respetivamente, 10,5% e 18,5%. Nas categorias Primário e Ocasional só uma percentagem residual de indivíduos é queapresentam nas suas trajetórias o grupo de crimes em análise. Em algumas trajetóriasda categoria Ocasional, quando este tipo de grupo de crimes ocorre tende a ser pre-cedido por grupos de crimes caracterizados pela ameaça da integridade física e liber-dade pessoal. Quando ocorrem nas categorias tipo de delinquente com trajetórias de-linquenciais mais longas (Reincidente e Crónico), a ocorrência deste grupo de crimestende a ser precedida por manifestações diferentes. Nos Reincidentes domina princi-palmente a droga, e o próprio grupo de crimes em análise, sendo que uns tendem adesenvolver as suas trajetórias com a manifestação de outros comportamentos vio-lentos que afetam ora o património, ora a esfera íntima das vítimas (de natureza se-xual), e outros, tendem a desenvolver as suas trajetórias concentrando a marcha deli-tiva na afetação de bens patrimoniais sem recurso à violência. A inscrição de registos-crime contra o património com violência nas trajetórias do tipo de de-linquente Crónico é precedida essencialmente por registos que afetam o património, sem-pre sem recurso à violência, havendo situações em que se vislumbra a presença da droga.

Tipos de delinquentes

Contra o patrimóniocom violência

Contra a integridade física e liberdade pessoal Natureza sexual

% de trajetóriascom pelo menos1 registo-crime

do grupo decrime em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime porrelação ao

total

% de trajetóriascom pelo menos1 registo-crime

do grupo decrime em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime porrelação ao

total

% de trajetóriascom pelo menos1 registo-crime

do grupo decrime em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime porrelação ao

total

PrimárioOcasionalReincidenteCrónico

0,6%3,4%10,5%18,5%

4,5%18,2%40,9%36,4%

3,4%

3,7%

42,9%

57,1%

2,2%1,8%3,7%

28,6%14,3%57,1%

100,0% 100,0% 100,0%

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No que respeita ao grupo de crimes contra a integridade física e liberdade pessoal, a tota-lidade das frequências concentra-se nas categorias Ocasional e Crónico, todavia a sua ex-pressão no número de indivíduos que compõem essas categorias tipo de delinquente é di-minuta, exprimindo-se respetivamente em 3,4% e 3,7% das trajetórias. Em ambas ascategorias a ocorrência do grupo de crimes em análise é em regra precedida ora porcomportamentos caracterizados por alguma agressividade, ora pela apropriação violentade património, ou pela transgressão de valores que afetam a esfera sexual da vítima.Relativamente ao grupo de crimes de natureza sexual, cerca de 3/5 das frequências encon-tram-se associadas ao tipo de delinquente Crónico, todavia apenas com expressão em 3,7%das trajetórias dessa categoria-tipo de delinquente. Quando este grupo de crimes ocorretende a ser precedido por registos pertencentes ao seu grupo de crimes, assim como porgrupos de crimes que tendem a afetar a integridade física e a liberdade pessoal, conota-dos com a manifestação de alguma agressividade e violência. As restantes frequências dis-tribuem-se pelas categorias-tipo de delinquente Ocasional e Reincidente, por apenas, res-petivamente 2,2% e 1,8% das trajetórias desses tipos de delinquentes, sendo que quandose inscrevem nessas trajetórias tendem a ser precedidos por crimes relacionados direta-mente com a droga e com a afetação de bens patrimoniais com recurso à violência.Crimes que afetam bens patrimoniais sem violênciaConforme já foi referido, os crimes que afetam bens patrimoniais sem recurso à violênciaconstituem, assim como a droga, os tipos de crimes de maior expressividade da amostra.

Quadro XIDistribuição da proporção do número de registos-crime dos grupos de crimes emissãode cheque sem provisão, contra o património sem violência e de falsificação, por relação aototal e respetiva categoria tipo de delinquente, assim como a percentagem de trajetóriasnas várias categorias-tipo de delinquente que contém pelo menos um registo-crime nosreferidos grupos de crimes

Tipos de delinquentes

Emissão de chequesem provisão

Contra o patrimóniosem violência De falsificação

% de trajetóriascom pelo menos1 registo-crime

do grupo decrime em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime porrelação ao

total

% de trajetóriascom pelo menos1 registo-crime

do grupo decrime em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime porrelação ao

total

% de trajetóriascom pelo menos1 registo-crime

do grupo decrime em estudo

Proporção don.º de registos -

-crime porrelação ao

total

PrimárioOcasionalReincidenteCrónico

23,4%29,2%24,6%40,7%

20,3%27,0%24,2%28,5%

24,1%38,2%59,6%77,8%

13,5%16,4%26,7%43,4%

13,9%14,6%38,6%44,4%

21,3%15,5%28,2%35,0%

100,0% 100,0% 100,0%

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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Tanto no grupo de crimes contra o património sem violência, como no grupo de cri-mes de falsificação, a percentagem correspondente à dimensão em que se fazem sen-tir nas trajetórias de cada tipo de delinquente evolui de forma condizente com a es-trutura delinquencial de cada categoria tipo de delinquente. Nesse sentido, é nacategoria Crónico que todos os grupos de crimes que afetam bens patrimoniais sem re-curso a violência assumem maior representatividade. Tanto o grupo de crimes emis-são de cheque sem provisão, como o grupo de crimes contra o património sem violênciatendem a ser maioritariamente precedidos por registos pertencentes aos seus gruposde crimes. O grupo de crimes de falsificação tende a ser fortemente precedido pelogrupo de crimes contra o património sem violência, e só depois pelo seu próprio grupode crimes. De um modo geral, estes grupos de crimes inserem-se de forma diferenciada no desen-volvimento de dois tipos de trajetórias, as quais se manifestam por referência ao peso de-linquencial que esses grupos de crimes adquirem em cada categoria tipo de delinquente.Umas entrelaçam o seu desenvolvimento com a toxicomania e com as lógicas do trá-fico de droga, outras caracterizam-se pela estrita predação patrimonial, dispensandoa presença da droga nos seus percursos.

Síntese conclusiva

Os dados das estatísticas oficiais anuais sobre a reação ao crime não espelham em abso-luto a diversidade da criminalidade feminina. Efetivamente a interpretação da crimi-nalidade decorrente das estatísticas oficiais não corresponde à complexidade criminaldemonstrada pela análise de tipologias trajetoriais.O estudo das estatísticas oficiais permite construir uma interpretação sobre a cri-minalidade feminina sem qualquer relação com a diferenciada sequência delitivaque alguns indivíduos tendem a desenvolver. Corresponde assim a uma fonte dedados que maioritariamente nos informa mais sobre a manifestação criminal de in-divíduos cujas trajetórias tendem a ser pontuais, do que acerca da manifestação cri-minal de indivíduos que desenvolvem sequências delitivas persistentes ao longo deboa parte dos seus ciclos de vida. Para compreendermos o significado das formas de-litivas mais nefastas, intensas, e duradouras teremos que entrar em profundidade nomodo como os delinquentes mais persistentes vão rasgando os seus trajetos, recor-rendo para o efeito aos estudos longitudinais sobre trajetórias criminais. Foi o queefetuámos, tendo centrado a nossa análise nas trajetórias delinquenciais de 331 mu-lheres.

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Desse modo, tendo procedido à análise dos elementos relativos à caracterização socialda amostra, os dados apontam para que a maioria das mulheres em estudo tendem aocupar posicionamento na pirâmide da estrutura social ao nível dos estratos sociaismais próximos da base, com poucas qualificações, às quais estão associados provavel-mente recursos escassos e condições de existência precárias. Atendendo aos limitesimpostos pelas condições sociais de existência e de desenvolvimento enquanto indi-víduos, estas mulheres tendem a manifestar um tipo de delinquência em consonân-cia com as competências e os recursos que possuem, ou que conseguem mobilizar ecom as oportunidades geradas nos contextos sociais em que vivem. Todavia, não obs-tante a similitude dos contextos em que desenvolvem as suas existências, o processodesenvolvimental que intervém nos seus ciclos de vida suscita respostas bem diferen-ciadas aos constrangimentos a que são sujeitas. Efetivamente, as estruturas delin-quenciais de cada categoria tipo de delinquente demonstraram envolvimentos no crimebem distintos que importaria aprofundar noutros estudos. Tanto a droga, essencialmente com recurso ao tráfico, como a afetação de bens patri-moniais, com recurso à emissão de cheques sem provisão, ou à falsificação de documen-tos para obtenção de um bem, à astúcia e ao engano, ou simplesmente recorrendo àsubtração, estabelecem o grosso da criminalidade feminina mais persistente, todavianão constituem matéria suficiente para a caracterizar em absoluto. A violência e a ameaça são comportamentos que na sequência desenvolvimental dastrajetórias criminais analisadas surgem de forma espúria. Embora constituam umaevidente minoria, quando se inscrevem nas trajetórias das categorias que se caracteri-zam por um maior envolvimento no crime, tendem a vincar o seu pendor na sequên-cia transgressiva, facilitando a inscrição no processo delitivo de outros comporta-mentos do mesmo tipo. Conforme referimos noutro lugar, «a ameaça e a violência, embora de expressão residual,são elementos transversais a qualquer das categorias tipo de delinquente. O atentado àvida manifesta-se de forma expressiva na categoria Primário» constituindo provavel-mente um claro grito de desespero face às condições de existência a que algumas mu-lheres estão sujeitas. «A afetação da integridade física e da liberdade pessoal, assim comoa autodeterminação e a liberdade sexual, frequentemente associados» em razão do en-volvimento de algumas mulheres nas lógicas das redes de exploração sexual, «tendema manifestar-se significativamente nas categorias Ocasional e Crónico.» Por outro lado,a «manifestação criminal diretamente associada à subtração violenta de bens patrimo-niais, apresenta expressividade significativa nos tipos de delinquentes Reincidente e Cró-nico.» (Leal, 2007a, p. 193).

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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Desse modo, e para terminar, as manifestações delinquenciais do género feminino ten-dem a expressar os lugares e os papéis sociais que a sociedade portuguesa tem reservadopara o género feminino, em particular para as mais desfavorecidas, constituindo porisso um reflexo de parte da condição feminina nas sociedades modernas dominadaspelo que Bourdieu (1999) referiu como um dos resultados do pensamento andro-cêntrico.

José Manuel Pires Leal

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BibliografiaBELEZA, Maria Teresa (1990). Mulheres, Direito, Crime ou A Perplexidade de Cas-sandra, Lisboa, AAFDL.BOURDIEU, Pierre (1999). A Dominação Masculina, Oeiras, Celta Editora.LEAL, José (2007a). Crime no Feminino – trajetórias delinquenciais de mulheres, Coim-bra, Almedina.LEAL, José (2007b). O sentimento de insegurança na discursividade sobre o crime,in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, N..º 17, p. 475-503.SVENSSON, Robert (2002). Strategic offences in the criminal career context, inBritish Journal of Criminology, Vol. 42, N..º 2, p. 395-411.

Manifestações delinquenciais do género feminino – o elemento violência

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188 O papel do médico dentistana deteção de maus tratos

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Maria Inês GuimarãesMédica Dentista. Licenciada em Medicina Dentária. Pós-graduada em Ciências Médico-legais.Mestre em Medicina Legal. Docente de Medicina Dentária Forense.

Os maus tratos acontecem predominantemente em ambiente familiar e os ferimen-tos oro faciais mais conhecidos são as queimaduras, o trauma e as lacerações dos te-cidos duros e moles, as marcas de mordida e os hematomas em diferentes fases de ci-catrização. Podem também ser um sinal de alerta, para o médico dentista, lesões queembora não sejam específicas da cavidade oral, se encontram na zona visual de atua-ção, nomeadamente o hematoma periorbital e a contusão nasal. O presente artigotem como objetivo identificar os principais aspetos oro faciais da violência familiar,contribuindo com a identificação destas vítimas no ambiente do consultório de me-dicina dentária. Clínicos e investigadores devem assegurar que estão adequadamentetreinados para reconhecer os sinais e sintomas mais frequentemente associados a com-portamentos violentos contra pessoas.

Introdução

Os maus tratos entre pessoas ligadas por vínculos de sangue e/ou afetivos presentes oupassados representam chamada de atenção de uma situação que deve ser cuidadosa-mente estudada, com o intuito de estabelecer as circunstâncias e as características darelação na qual se gera a violência. Constitui, sem dúvida, grave problema médico-le-gal e social em que todos os profissionais de saúde devem atuar em conjunto no sen-tido da prevenção eficaz e real para o futuro. Segundo a Associação Portuguesa deApoio à Vítima (APAV), as relações de conjugalidade sobressaem face às restantes,perfazendo um total de 54% (relações atuais e anteriores). Seguem-se os filhos(10.9%) e os pais (7.6%) (APAV, 2011).Na conduta humana a violência aparece na sequência da agressividade e a hostilidade.A agressividade é disposição intrínseca, normal e positiva no comportamento humanopresente nas pessoas, que as prepara para a luta contra os elementos circundantes; noentanto, quando a agressividade se transforma em hostilidade, verifica-se uma energianegativa contra as outras pessoas, resultando em agressão que pode ser verbal ou fí-sica, e aí estamos perante conduta anómala que deverá ser corrigida (Massoni, Ferreira,Aragão, Menezes & Colares, 2010).

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Segundo a APAV, em 2011 registaram-se 11784 processos de apoio, 8693 (74,8%)constituíram problemática de crime, sendo que estas vítimas de crime eram predo-minantemente do sexo feminino. No que diz respeito às faixas etárias das vítimas re-velaram-se bastante diversas, destacando-se, no entanto, as faixas dos 65 ou mais anos(8,6%) e entre os 35 e os 40 anos (7,7%).Como se tem constatado nos últimos anos, a análise estatística revela-nos que o graude ensino das vítimas de crimes que contactaram os serviços da APAV varia entre oensino superior (5,7%) e o ensino básico de 3º ciclo (4,8%). No entanto, o númerode vítimas que não têm qualquer grau de ensino tem vindo a crescer, como se podeevidenciar pelos 12% assinalados. Quanto à principal atividade económica, cerca de39% encontram-se empregadas, seguindo-se o universo das pessoas domésticas (22%)e só depois as desempregadas (15%).A APAV (2011) distingue o crime de violência doméstica em sentido estrito, onde seincluem os atos criminais enquadráveis no art. 152º: maus tratos físicos; maus tratospsíquicos; ameaça; coação; injúrias; difamação e ofensas sexuais; e em sentido lato, queinclui outros crimes em contacto doméstico, tais como violação de domicílio ou per-turbação da vida privada; devassa da vida privada (imagens; conversas telefónicas;emails; revelação de segredos e factos privados, entre outras; violação de correspon-dência ou de telecomunicações; violência sexual; subtração de menor; violação daobrigação de alimentos; homicídio: tentado/consumado; dano; furto e roubo).A violência no seio familiar já não é um fenómeno novo. Conforme se verifica aolongo da História, sempre houve sofrimento, humilhação e agressões psíquicas e físi-cas de umas pessoas sobre outras, embora tal fosse melhor aceite socialmente quandose tratava de contexto de desigualdade hierárquica baseada na prepotência económica,intelectual ou social, ou quando adaptado ao seio familiar, suporia o predomínio daautoridade do homem sobre a mulher e os filhos; e o facto de as relações familiares sedesenvolverem na intimidade favoreceu que as agressões entre os membros de uma fa-mília ficassem escondidas (Massoni et al., 2010).Recordo que na Grécia (Esparta) o conselho de anciãos reunia e decidia se os recém --nascidos iriam ter futuro promissor ou não; eliminava os que fossem portadores dedeficiência física ou mental ou os que não fossem suficientemente robustos. As crian-ças eram espancadas pelos pais para se tornarem mais fortes, e se não fossem morre-riam. Já na Civilização Romana o pai é que decidia se queria que o filho vivesse ounão. Também foi muito famoso o caso de Mary Ellen (1874), em que foi utilizadauma lei de proteção de animais para retirar a menina dos pais adotivos que a mal tra-tavam, tendo sido constituída, posteriormente, a sociedade de prevenção da cruel-dade em crianças de Nova Iorque (Bowers, 2011).

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A violência no seio familiar recai quase sempre em três tipos de vítimas devido à suamaior vulnerabilidade, embora cada caso seja um caso (Massoni et al., 2010). São estas:1. Mulheres: o progressivo reconhecimento e proteção dos direitos individuais e so-ciais favoreceram um clima de igualdade entre as pessoas, que fez modificar a men-talidade de muitas mulheres, que durante anos suportaram a submissão, sofrimentoe maus-tratos, fazendo com que estas reclamem o seu direito a expressarem as suas ne-cessidades e opiniões, e também a que sejam atendidas.2. Crianças: as circunstâncias que rodeiam este tipo de maus-tratos estão mais rela-cionadas com as modificações experimentadas pela estrutura familiar. Por outro ladoas necessidades infantis aumentaram e as crianças reclamam cada vez mais atenção, aoque se junta, em muitos casos, um ritmo de vida mais intenso devido a requisitos la-borais e sociais. Quando a estas circunstâncias se agrupam transtornos mentais, al-coolismo, consumo de substâncias, entre outras, obtêm-se todos os ingredientes paraque uma pessoa pouco estável se comporte de maneira violenta, perante as crianças,sempre frágeis e vulneráveis (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, 1999).3. Idosos: os maus-tratos nestes casos incluem mais casos de esquecimento e o aban-dono afetivo, do que maus-tratos físicos reais, embora cada caso seja um caso. Estu-dos demonstraram que os tipos e percentagem de abuso em idosos, nos Estados Uni-dos da América em 1996, foram: negligência (50%), abuso sexual (0,3%), abusoemocional/mental (35,4%), abuso físico (25%) e exploração financeira (30%).

Discussão

I. Abuso físicoDefine-se abuso físico como qualquer ação não acidental isolada ou repetida, porparte dos progenitores ou encarregados, que provoque ou possa provocar dano físico(lesão física, doença, intoxicação, sufocação, simulação de doença, entre outras) (Becker,Needleman & Kotelchuck, 1978). As manifestações orais mais frequentes incluem al-terações (Jessee, 1995; Naidoo, 2000; Needleman, 1986):• Ósseas - maxila ou mandíbula: sinais da fratura anterior ou atual, côndilos, bemcomo má oclusão, incomuns e resultando de trauma anterior;• Dentárias: dentes fraturados, deslocados, com mobilidade ou avulsionados, raízes re-siduais múltiplas, sem história plausível para esclarecer os ferimentos, escurecimentodo dente, devido a necrose pulpar;• Tecidos moles: lacerações no freio labial ou lingual causado por beijo, sexo oral ou ali-mentação forçados, os quais são sinais característicos de casos severos de abuso infantil.

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Pode também apresentar hematomas em vários estágios de cicatrização, lacerações,cicatrizes devido à persistência do trauma, equimose, cicatrizes nas comissuras, indi-cativos de que foi amordaçado; queimaduras na mucosa oral, língua, palato ou soa-lho da boca, causadas por alimentos ou utensílios quentes, cáusticos ou cigarros sãooutras manifestações associadas.Estão também incluídos neste item o hematoma periorbital e da retina, contusão e fra-tura nasal, danos na membrana timpânica, com hematomas na orelha. É pois im-portante que o médico dentista esteja alerta para ferimentos que envolvam outras par-tes do corpo próximas à cavidade oral.

II. Abuso psicológicoDefine-se como abuso psicológico o abuso intencional com ausência ou inadequaçãodo suporte afetivo e do reconhecimento das necessidades emocionais, grave ou per-sistente, ativa ou passiva (insultos, humilhação, hostilização, indiferença, discrimina-ção, abandono temporário, culpabilização, envolvimento em violência doméstica, en-tre outros). Este tipo de maus tratos está presente em todas as situações de maus tratos,pelo que só deve ser considerado isoladamente quando constituir a única forma deabuso. Alguns autores referem que a cavidade oral pode ser o foco central para o abusopsicológico, devido à sua importância na fala e na alimentação (Naidoo, 2000).

III. Abuso sexualDefine-se abuso sexual como envolvimento deliberado, ocasional ou repetido em prá-ticas que visam a gratificação e a satisfação sexual, frequentemente dentro da própriafamília (obrigação de presenciar, realização de práticas sexuais, exploração pornográ-fica em fotografias, filmes e outras) (Kvaal, 1993; Kittle, Richardson & Parker, 1981).A grande maioria das vítimas não apresenta qualquer sinal físico evidente. No entanto,são várias as patologias que se podem adquirir durante a prática de abuso sexual, entreelas (American Academy of Pediatric Dentistry, 2004):• Gonorreia: doença sexualmente transmissível (DST), causada pela bactéria Neisseriagonorrea. Leva ao aparecimento de eritemas, ulcerações e lesões vesículo-pustular apseudomembranosa ao nível da faringe, lábios, língua, palato e face. Um exame mi-crobiológico positivo indica geralmente um abuso.• Condiloma acuminado: DST que se caracteriza pelo aparecimento de verrugas acha-tadas e esbranquiçadas de forma única, embora a mais frequente seja múltipla com as-peto de couve-flor, indolores e impercetíveis aos olhos dos seus portadores, causada

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pelo vírus do papiloma humano (HPV). Podem aparecer nas papilas, língua, freiolingual, bochecha, palato e amígdalas.• Sífilis: é uma DST causada pela Treponema pallidum, que raramente se encontra emcrianças. Podem surgir pápulas nos lábios, língua, palato, faringe ou pele da região peri --oral. Um exame positivo sugere fortemente abuso sexual. Petéquias e eritemas na junção do palato duro e mole ou soalho da boca, incluindoúlceras, vesículas com secreção purulenta ou pseudomembranosa e lesões condilo-matosas nos lábios, língua, palato, face ou na faringe são muito fortes indícios de abusosexual. No entanto, a maior parte das vítimas esconde estas lesões não as mostrandoa ninguém, muito menos ao seu médico dentista.

IV. Negligência dentáriaDefine-se como negligência dentária a não procura e não obtenção consciente pelospais ou prestadores de cuidados de tratamento adequado de cáries, infeções ou outrascondições dentárias, ou dos tecidos de suporte, condição essa que dificulta ou im-possibilita a alimentação, causa dor crónica e torna impossível a criança efetuar assuas atividades diárias (American Academy of Pediatric Dentistry, 2003). É impor-tante ter a perceção se a falha na obtenção de tratamentos ocorre por se tratar de fa-mília isolada, com dificuldades financeiras, pelo desconhecimento, por parte dos pais,e pela falta de perceção sobre o valor da saúde oral.O médico dentista deverá realizar a descrição do ferimento, incluindo aspetos sobrea posição, aparência, severidade e distribuição dos ferimentos, devendo realizar foto-grafias e radiografias das estruturas envolvidas sempre que possível. É também im-portante anexar um registo da circunstância e mecanismo da agressão, relatado peloresponsável, assim como pelo doente (Kellogg, 2005; Jessee, 1995).Alguns autores sugerem que, aquando da abordagem de vítimas de agressão, as ques-tões devem ser incluídas com naturalidade no decorrer das questões da anamnese,para reduzir o desconforto da situação para o profissional e para o seu doente.Salienta-se que um dos principais obstáculos do médico dentista é a realização dodiagnóstico diferencial entre a negligência dentária e a falta de condições económicas,por parte dos pais ou do próprio para realizar os tratamentos dentários identificados.É sabido que grande parte da população portuguesa não visita o seu médico dentista,deixando estes profissionais aquém da possibilidade de identificar este tipo de abuso(Welbury & Murphy, 1998).Sugere-se a utilização por parte dos médicos dentistas do seguinte quadro adaptadodo estudo de Cairns, Mok & Welbury (2005).

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Quadro IQuestionário para registo de informações relacionadas com as manifestações oro fa-ciais dos maus tratos e negligência dentária [Fonte: adaptado de Cairns et al (2005)].

Data de nascimento

Sexo Masculino ( ) Feminino ( )

Sinais de agressão oro facial?

Lesão no olhoHematomaAbrasõesLaceraçõesQueimadurasMarcas de mordidaFraturasLaceração no freio labialLaceração no freio lingualTrauma no palatoTrauma dentário

S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )S( ) N ( )

Cabeça ( ), Face ( ),Pescoço ( )Cabeça ( ), Face ( ),Pescoço ( )Cabeça ( ), Face ( ),Pescoço ( )Cabeça ( ), Face ( ),Pescoço ( )Cabeça ( ), Face ( ),Pescoço ( )Cabeça ( ), Face ( ),Pescoço ( )

Momento da agressão(se relatou e a quem relatou)

Local da agressão(se relatou e a quem relatou)

Mecanismo da agressão(se relatou e a quem relatou)

Alguma manifestação oral suspeita de abuso sexual Qual?

Impressões quanto à negligência dentária

Registo/impressão da históriarelatada pelo responsável

Registo/Impressão da históriarelatada pela vítima

Detalhes e outras observações

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Conclusão

O médico dentista é peça fundamental para a realização do diagnóstico diferencial delesões intencionais ou acidentes. É pois necessário avaliar a história do ferimento, asua consistência com as características das lesões, assim como o desenvolvimento daprópria criança. Lesões múltiplas em diferentes fases de cicatrização, com discrepân-cia da história e as lesões são altamente suspeitas de abuso.Clínicos e investigadores devem assegurar que estão adequadamente treinados para re-conhecer os sinais e sintomas mais frequentemente associados a comportamentos vio-lentos contra pessoas (intencionais). Estes deverão ser capazes de assegurar que a evi-dência que recolherem poderá ser útil num processo judicial ou civil, assim comodeverão ser capazes de testemunhar que a evidência que foi recolhida é verdadeira, e quereproduz fielmente a lesão que foi detetada.

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BibliografiaAMERICAN ACADEMY OF PEDIATRIC DENTISTRY. (2003) Definition ofdental neglect. Pediatric dentistry. 25(suppl):7.AMERICAN ACADEMY OF PEDIATRIC DENTISTRY. (2004) Clinical guide-line on oral and dental aspects of child abuse and neglect. Pediatric dentistry. 26(7Suppl):63-66.APAV - Associação de apoio à vítima. http://www.apav.pt/portal/pdf/Sumula_Esta-tisticas_APAV_2011.pdf (consultado em 2012).BECKER DB, Needleman HL & Kotelchuck M. (1978) Child abuse and dentistry:orofacial trauma and its recognition by dentists. The Journal of the American DentalAssociation. Jul;97(1):24-28.BOWERS CM. (2011) Forensic dental Evidence: An investigator´s Handbook. 2nd

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198 Pensar a Deontologia

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Ana Sofia SilvaLicenciada em Direito. Mestre em Direito. Advogada e docente do Instituto Politécnico de Castelo Branco.

Pretende-se com este texto um contributo para a reflexão sobre a questão da ética eda deontologia profissional, cujo alcance vai além de um conjunto de normas impe-rativas. É a esfera da interioridade e da consciência moral. Com efeito, poderemossempre ignorar todos os deveres, desconhecer normas e princípios e ser imorais poisexiste um direito prévio a toda a normatividade e essencial à condição humana: a li-berdade.Mas considerando que o homem é um ser livre e que a ética é a estética individuale interior, só poderá querer o melhor, pelo que deve procurar com maior acuidade erigor, uma conduta deontológica e eticamente correta e desse modo desempenharexemplarmente a sua missão no exercício da profissão, pois o importante não é somente o que fazemos mas o modo como o fazemos, sempre no cumprimento dodever.

A ética relaciona-se indiscutivelmente com a justiça, a política, a economia e a reli-gião, na medida em que tem como objeto aquele conjunto de valores, normas e prin-cípios que afetam o ser humano, tendo como monopólio que a sua especificidade éprofundamente individual e que não se deve alterar em função do sistema judicial aque se pertence, da comunidade política em que se insere, da religião a que está vin-culado, e do sistema económico no qual está enquadrado. A deontologia está longede ser apenas um conjunto de normas imperativas, ela vai além, há que ter princípiosmorais enraizados na esfera da interioridade e estes devem ser inabaláveis.Mas considerando que somos seres livres e esclarecidos e que a ética é a estética indi-vidual e interior, só podemos querer “o melhor”, devemos procurar com maior acui-dade e rigor conduta deontológica e eticamente correcta, e assim desempenhar a “mis-são” no exercício da profissão.É inegável e reconhecida a importância da Polícia Judiciária (PJ) no combate às maisdistintas formas de criminalidade, revelando consistência organizativa e eficácia opera-cional. Ela é igualmente detentora de um acervo de deveres gerais e especiais de atua-ção, de que se destacam o dever de zelo, de isenção, de obediência, de lealdade, de sigilo,

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de correção, de assiduidade, de pontualidade, e outros, peloque importa reflectir na forma como se exerce esta pro-fissão, cuja “voz” nos procedimentos conducentes à des-coberta da verdade deve ser audível no seu fim último: arealização da justiça. Mas será que tantos deveres impostos,não limitam, condicionam ou controlam a sua atuação?Vejamos:Polícia é um vocábulo de origem grega, politéia, e pas-sou para o latim, polítia, com o mesmo significado: “go-verno de uma cidade”, “administração”, “forma de go-verno”. Assim na noção greco-latina, polícia significa

governo civil, organização política, “administração e o governo da polis, cidade ouEstado”.Com o desenvolvimento da civilização, o Estado passou a administrar a justiça, man-ter a ordem, a segurança e a preservar os bens sociais. E a polícia tornou-se um ramodo poder público.Os primeiros povos da Antiguidade a incluírem nas suas legislações medidas policiais,foram os Egípcios e os Hebreus. Na Idade Média, os reis e senhores feudais organi-zavam e mantinham a sua própria guarda.Nos séculos XVIII e XIX o termo polícia era usado para designar a administração ci-vil interna do Estado, mas o vocábulo adquiriu um sentido particular passando a re-presentar a ação do governo, enquanto exerce a sua missão de tutela da ordem jurí-dica, assegurando a tranquilidade pública e a proteção da sociedade, contra as violaçõese malefícios.Surgiu de facto a necessidade de criar uma polícia especializada, que promovesse erealizasse acções destinadas à prevenção geral, tendo em vista a redução imediata donúmero de vítimas na prática de crimes, à recolha de elementos probatórios, bem

como desenvolver cabalmente outras diligências preven-tivas com vista a afastar a prática de atos criminosos.Podemos remeter o início da história da PJ para o ano de1867, sendo que um decreto de D. Luís, de 2 de Julho,(Polícia Cívica) a integrou na dependência da Justiça doReino tendo como missão a de descobrir os crimes oudelitos ou contravenções, coligir provas e entregar os cri-minosos aos tribunais. Em 1927, o Decreto 14 657, de5 de Dezembro, procedeu à transferência para o minis-tro da Justiça e dos Cultos, dos serviços de polícia de

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investigação que, posteriormente e através do Decreto n.º 35 042, de 20 de Outubrode 1945, foi requalificada como PJ. Até aos dias de hoje, a PJ assume a posição decoadjuvar as autoridades judiciárias e por isso foi mantida, como inalterável, a respe-tiva dependência orgânica do Ministério da Justiça (MJ).“A Polícia Judiciária não é um instrumento de segurança interna, mas sim um instru-mento de justiça. Trata-se de um corpo de polícia altamente profissionalizado, com regrasde ingresso e de acesso bem definidas e com programas de formação significativamente exi-gentes tendo em conta as suas específicas competências e as regras de cooperação e de cola-boração com as suas congéneres internacionais” (Cardona, 2011).Atendendo à sua Lei Orgânica e à Lei Orgânica de Investigação Criminal, a PJ é umente superior de polícia criminal, é um instrumento fundamental de justiça que se en-contra organizado hierarquicamente, que tem por missão coadjuvar as autoridadesjudiciárias na investigação, bem como desenvolver e promover ações de prevenção, de-teção e investigação em crimes da sua competência ou que lhe sejam cometidas pelasautoridades judiciárias competentes. Considerando o combate à criminalidade, é frequente a necessária colaboração comas suas congéneres internacionais, pelo que também se prepararam estes profissionaispara eventual cooperação ou colaboração, sendo indiscutível que deste ente superiorde polícia se exige mais. Com a organização política das sociedades e com o aperfei-çoamento das instituições jurídicas, cabe ao Estado tutelar o Direito, administrar a jus-tiça, manter a ordem, a segurança e a preservação dos bens sociais.Com efeito, o Código Deontológico do Serviço Policial1 teve em vista a promoção daqualidade do serviço policial, o reforço, prestígio e dignidade das forças de segurança,bem como contribuir para a criação das condições objetivas e subjetivas que, no âm-bito da ação policial, garantam eficazmente os direitos, liberdades e garantias dos ci-dadãos, promovendo os valores da justiça, do humanismo, da dignidade, da honra,da isenção e imparcialidade, da probidade e solidariedade, com o inevitável respeitopela Constituição da República Portuguesa, pela Declaração Universal dos Direitos doHomem, pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por toda a legislação co-munitária e convenções internacionais e pela Lei.Mas devem também poder contar com o apoio ativo da comunidade que servem efundamentalmente com o reconhecimento por parte do Estado, o que em rigor, nemsempre acontece, por um lado, porque a comunidade, contrariamente à cooperaçãoe colaboração desejável, afasta-se passivamente daquele propósito e por outro lado,

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1. Resolução do Conselho de Ministros n.º37/2002, de 7 de Fevereiro de 2002 registou a adoção deste código pelosprofissionais da PSP e da GNR

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o Estado nem sempre apoia, nem sempre investe, nem sempre coopera, o que deve-ria sempre e incondicionalmente acontecer, atendendo à própria organização hierár-quica da PJ, na dependência do MJ.Cumpre referir que a consagração de padrões ético-profissionais de conduta, comunsa todos os membros das Forças de Segurança é condição essencial para o exercícioplenamente credível e eficiente do serviço policial, enquanto parte integrante do Es-tado de Direito Democrático. Face ao cumprimento da função, o agente policial, nãotem como recusar um relativo arbítrio, na escolha da melhor atitude, que estará semdúvida sedimentada na sua formação ética. A escolha de uma ação em relação à ou-tra estará nos ditames da razão, da justiça e da equidade.Com efeito, atendendo ao próprio trabalho investigatório, à recolha de informaçõese outros meios de prova é fundamental a intervenção sigilosa e reservada, de umaatuação tranquila e livre de pressões, constituirá aliás uma garantia na obtenção de re-sultados, realizando-se assim o sublime objetivo que é investigar.Considerando porém a natureza do trabalho que caracteriza a investigação criminal,os agentes da PJ, contrariamente aos membros do serviço policial em geral, não atuamuniformizados, primando pela atuação discreta e pouco intimidante.Essa finalidade indica, por si, a complexidade da função policial como pilar essencialna descoberta da verdade e na realização da justiça, sendo, por isso, cada vez mais pe-nosa a sua missão, numa sociedade que é impregnada de comportamentos desvir-tuosos e que usa de todos os meios para afastar o cumprimento das leis, com vista ausufruir do bem próprio.É função essencial do Estado manter a ordem pública, proteger o indivíduo e o seupatrimónio, garantindo-lhe o progresso material e espiritual, mas é também funçãodo Estado dotar este “corpo de polícia” de todos os meios, instrumentos e condiçõespara que possam cumprir a sua missão de forma isenta e imparcial.Paralelamente aos avanços da sociedade portuguesa no Séc. XXI, que efetivamentese inseriu na globalização, no acolhimento dos Direitos Humanos, observamos queem todas as profissões há uma acentuada tendência a uma atuação com desrespeitopelos princípios éticos, emergindo a necessidade de maior fiscalização que penitencieos transgressores das normas deontológicas de cada categoria que compõe a institui-ção, de forma a viabilizar que os que trabalham de forma exemplar o possam conti-nuar a fazer.A deontologia surge do grego “deon”, que significa dever e que se traduz por discursoou tratado. Assim, trata-se do conjunto de deveres, princípios e normas adotadas porum determinado grupo profissional. É uma disciplina de ética especial, adaptada aoexercício de uma profissão.

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É um termo introduzido em 1834, por Jeremy Bentham, para referir-se ao ramo daética, cujo objeto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais.O que é então a ética? Deriva do grego “ethiké” ou do latim” ethica” e é a ciência re-lativa aos costumes, o domínio da filosofia que tem por objetivo o juízo de aprecia-ção que distingue o comportamento correto e o incorreto.Um dos objetivos da ética é a procura das explicações para as regras propostas pela Mo-ral e pelo Direito. A Ética é diferente da Moral e do Direito porque não estabelece re-gras. É a reflexão sobre a ação humana que a caracteriza.E é precisamente pela falta de imperatividade que o seu incumprimento se torna im-pune, inconsequente e banalizado, pelo que só as fronteiras da consciência humana e emconcreto a moral de cada um, poderão impor limites e ditar as balizas intransponíveis.Assistimos nos dias de hoje a uma generalizada falta de moralidade, de responsabili-dade em que se age inconsequentemente. Por vezes, recorrendo ao princípio consti-tucionalmente consagrado da liberdade de expressão, tudo nos é permitido, pelo queofender e atropelar os outros também o será.Em rigor, não é bem assim. Existe o Direito para impôr regras e permeabilizar a açãohumana, e onde não intervém a Moral e a Ética intervém o Direito.Apraz-me recordar frequentemente um dos maiores filósofos da Idade Moderna-Im-manuel Kant (1724-1804).

Dizia ele que o discernimento, a temperança, acoragem e outros talentos do espírito são em co-mum qualidades boas e desejáveis, contudo, emmuitos outros casos podem ser prejudiciais, seaquele que as possui não tiver uma boa vontade,isto é um carácter que oriente e determine o usodestes dons naturais. Sendo que o valor de uma boa vontade se situanum plano superior ao plano contigente da sa-

tisfação de um qualquer fim particular e, por isso, não poderá ser avaliada pelo crité-rio da utilidade e do proveito que possamos atingir através das inclinações naturais.Assim, apenas uma boa vontade pode ser, em si mesma, considerada sem nenhumalimitação, pois uma vontade boa não deve ser contemplada pela sua aptidão em pro-mover o sucesso das ações humanas e muito menos pela capacidade de realizar de-terminados objetivos, norteados pela inclinação do desejo, pelo que ela será determi-nada tão somente pelo “querer”.O que significa que a razão é a faculdade que tem por dever dominar e orientar anossa vontade e a ideia do valor inestimável de uma vontade em si mesma boa,

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encontra-se já no próprio bom senso humano. E corresponde ao conceito de dever,que para além de todas as inclinações naturais e de todo o interesse egoísta, permitedesenvolver o conceito de uma pura boa vontade, pondo em evidência o seu valor in-condicionado. A consciência individual é assim o único fundamento para desobede-cer a qualquer regra que o indivíduo julgue atentar contra os seus princípios, o quesignifica que lhe será legítimo impedir que qualquer maioria se eleve acima daquiloque a sua consciência lhe dita. Com efeito, a desobediência ética pode favorecer mo-vimentos como os da desobediência civil, na medida em que o baluarte inultrapassá-vel para a ética é a consciência individual.O conceito de dever remete-nos para um conjunto de exigências que dão forma à nossapraxis quotidiana. À semelhança de outras formas de obrigação, o dever moral limitao campo possível de escolha e de atuação, tratando-se assim de uma obrigação livre.Sendo que tal atuação se reflecte na nossa capacidade de formular juízos morais.Uma das funções básicas da filosofia moral ou ética é justificar essa singular forma deobrigação e assim apurar os fundamentos da atuação moral. Pelo que a distinção en-tre ser e dever ser não é imposta pela reflexão ética. Porém, é a reflexão ética que tentaresponder a esta divergência inerente à praxis social.Pelo percurso histórico da ética, identificam-se duas respostas globais para o tema dodever em sentido genérico:1ª.-todas aquelas posições que veem no dever um meio para alcançar o fim própriodo homem, são as chamadas éticas teleológicas, para as quais a moral tem que vercom os resultados da ação, conforme se aproxime ou se afaste desse fim;2ª.-as posições que encontram no próprio dever o elemento oral da ação, são as cha-madas éticas deontológicas, que se encarregam de definir o devido e o correto para todos.O conceito de dever foi-se transformando ao longo dos tempos, sendo que a dimen-são deontológica pode abranger as fundamentais características da atuação moral(auto-obrigação e universalidade) porém, este conceito tem de saber reunir as referên-cias à ação, afastando-se das características do dogmatismo e rigorismo a que geralmentese associa. Considerando que o conceito de dever, como conceito isolado e referenteessencial da conduta moral não aparece até aos estóicos, surge em Platão uma ex-pressão clara do problema ao mostrar a questão da obrigação de obedecer à lei, quese aceita livremente. Com efeito, é a lei natural, a razão, que se transforma em regrae é relativamente a ela que as ações atingem um determinado valor. Cada homempelo facto de ser humano é detentor desta lei natural, dentro de si e cada um é res-ponsável por este auto-reconhecimento. Para Kant, o que importa no âmbito da mo-ralidade é a disposição, a própria intenção do ato. A ação em si considerada não émoral porque conduz à felicidade, porém a felicidade só se poderá alcançar no respeito

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pelo dever que deriva da lei natural. A possível utilidade da ação foi também consi-derada pelos estóicos, que escreveram os Catálogos de deveres, destinados a definir oconjunto de preceitos e regras que dão forma a uma conduta racional, isto é, moral eproveniente da lei natural.Referenciando a incondicionalidade, como medida de delimitação, não se separamduas categorias de deveres (objetiva e subjetiva) mas pretende-se definir as margensde um sistema gradual onde os atos humanos são mais ou menos conformes à razão,mas nunca coincidirão em pleno com ela como no caso do “sábio”. Kant consideraráuma ideia reguladora: um quadro normativo de referência que nos serve de orienta-ção e crítica para a ação. Com esta distinção, que se poderá designar por critérios dedefinição e critérios de realização, os estóicos estabeleceram relação mediada entreteoria e praxis, que constitui em si a base a partir da qual se devem desmontar as crí-ticas que foram feitas às éticas deontológicas de serem rigoristas.

A reflexão moral do mundo antigo, mantém um pontocomum: são teorias éticas que se ocupam do bom para oindivíduo, da sua felicidade, do que se pode denominaruma vida boa. A função primordial do deontologismode Kant foi oferecer uma orientação racional, que per-mite a cada individuo separar-se do querer fáctico, doimediatismo, do desejado, viabilizando assim a distinçãoentre a verdadeira e a falsa felicidade. Com efeito, foramvários os fatores que contribuíram para que não fossepossível manter uma imagem unitária do mundo, taiscomo o aparecimento da ciência moderna, a descoberta

de novos mundos, ou as divisões da Igreja, não existindo uma medida normativa,que, por todos, possa ser aceite. Pelo que a relação entre o homem-tal-como-deve-sere o homem-tal-como-é, base de toda a obrigação moral, já não constitui um todocoerente.O formalismo de Kant consiste assim em não dirigir a atenção para os objetos da von-tade, mas para a própria vontade, isto é, aprofundou um caminho que se havia ini-ciado com os estóicos e assim: a razão pela qual uma ação é moral ou imoral não estána ação, mas na intenção, no motivo pelo qual se age.E nas próprias palavras de Kant:“O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de tal forma que as máximasda nossa escolha estejam simultaneamente incluídas nesse acto de querer como leis uni-versais”(Kant, 2011).Kant procurou demonstrar que a razão é uma faculdade prática com influência na

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vontade. Pelo que a reflexão ética reside em analisar a possível relação entre razão evontade. Surgem assim diversos tipos de “deveres”:-os imperativos condicionais ou hipotéticos- implicam um propósito, para a realiza-ção de um determinado fim;-os assertóricos-práticos- visam alcançar a felicidade e por esse motivo não corres-pondem a um momento de incondicionalidade, são imperativos pragmáticos, isto é,conselhos de prudência;-os categóricos- só estes justificam o caráter do dever moral, o que significa que só aatuação que visa cumprir o dever, poderá ser considerada moral; assim a autolegisla-ção é o critério supremo da moralidade.

O formalismo assume peculiar importância, sendoque a origem da obrigatoriedade não está no con-teúdo da ação, mas antes na vontade racional comque é determinada. É essa exigência de universali-dade que se exprime na formulação do imperativocategórico: “Age apenas de acordo com a máxima quepossas querer que se transforme, ao mesmo tempo, emlei universal. (Kant, 2011)Assim, uma ação apenas possui valor moral quandofoi realizada por dever, isto é, quando o motivo daação foi apenas o respeito ao dever moral expressopelo imperativo categórico. O pilar do deontolo-gismo de Kant não reside na submissão à lei, mas na

submissão à lei auto-imposta, sendo que só a autodeterminação constitui uma razão“moral” para a submissão ao dever, assim o homem livre não pode deixar de agir deacordo com a lei moral, que se impõe sob a forma de dever. Com efeito, uma das crí-ticas apontadas ao deontologismo de Kant, foi ser muito formal e rigoroso, não pre-ver as consequências, ser desresponsabilizado e esvaziado de conteúdo.Contrariamente aos deveres jurídicos, os deveres éticos são de obrigação ampla, de modoque quanto mais amplo é o dever, mais imperfeita é a obrigação do homem de agir.Não há, nem pode haver, relação direta da lei moral à prática comum e os únicos finspassíveis de serem considerados morais são a própria perfeição e bem-estar dos outros.É este o grande valor que o conceito do dever de Kant contém: ter explicitado e justi-ficado a incondicionalidade com que se apresenta a exigência de universalidade. A re-flexão sobre o dever moral teve sempre que ver com essa capacidade humana de con-duzir a própria vida, a que chamamos autonomia.

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Cumpre desde já questionar: atuaremos hoje de acordo com o dever? Exerceremos asnossas funções acatando esse conceito, formal e esvaziado de conteúdo, ou, contra-riamente, medimos, ainda que inconscientemente, as consequências do seu incum-primento?! Seremos absolutamente livres neste auto-reconhecimento?De facto, o valor moral de uma ação define-se não pelo fim que visa atingir, mas peloprincípio que a determina, uma vontade é boa a priori, retirando das ações que pra-tica todas as motivações que se estabelecem a posteriori, segundo os objetivos de na-tureza material.Resulta que o dever é a necessidade de consumar uma ação por respeito para com alei mas que lei? A lei racional em si mesma, assim, aquilo que é verdadeiramente dignode respeito é o que domina a multiplicidade das inclinações naturais e a contingên-cia dos interesses materiais.A realização de uma boa vontade deve ser possível por um princípio universal quedetermine a totalidade do agir humano e por isso deveremos sempre querer que as nos-sas máximas se tornem leis universais.

Para aquele filósofo, como já se referiu, havia uma distin-ção entre os imperativos hipotéticos, quando representama necessidade prática de uma ação possível consideradacomo um meio para atingir qualquer outra coisa que sequer e categóricos, seriam aqueles que representassem umaação como necessária em si mesma, sem qualquer relaçãocom outra finalidade, interesse ou objectivo. E por isso ape-nas os imperativos categóricos são imperativos de morali-dade.Pelo que se reveste de uma peculiar importância uma das

fórmulas do imperativo categórico, apresentadas por Kant:“Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio”(Kant, 2011).Assim, o princípio supremo da moralidade reside na autonomia da vontade, face a to-dos os interesses venais, pelo que se depreende que a dignidade da ação advém dofacto do ser humano ser o legislador da lei a que se submete – a lei moral. Este é umdos princípios deontológicos fundamentais.Apenas quando a vontade transforma pelo dever a sua máxima em lei é que se deter-mina conforme a moralidade e pode constituir-se em boa vontade. Ao expressar oseu princípio por um imperativo categórico, a vontade realiza-se como autónoma etransforma-se em lei universal.

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Importa, pois, destacar o conceito de liberdade (surge como uma propriedade da von-tade), pelo que o homem só é livre quando age de acordo com a lei moral, determi-nada pelo imperativo categórico sob a forma de dever.Contudo, olhando agora para a generalidade das profissões jurídicas, poderemos teralguma dificuldade na aplicação de tais conceitos à realidade. E é recorrente assistir-mos a alguns intervenientes afastarem as regras deontologógicas, a ignorarem concei-tos tais como razão e dever, insistindo em obstaculizar a correta aplicação e realizaçãodo direito, da justiça e da prova; e que o fazem de plena consciência e intencionalvontade, impedindo a correta aplicação da lei e consequentemente ou “a priori” re-negando à tal lei moral.É facto que à semelhança de outros intervenientes judiciários, também nesta profis-são é necessário agir de forma correcta, pois trata-se de tutelar a confiança da comu-nidade no exercício íntegro da profissão.Todos os intervenientes devem assim agir em conformidade, com um dever sublimede correção e como exemplo à restante comunidade, tanto que resulta do Regula-mento Disciplinar da PJ, que se uma determinada infração for cometida em públicoserá considerada circunstância agravante, para efeitos de pena disciplinar. No que se refere ao Regulamento Disciplinar da PJ2 que é também aplicável a quemexerce funções de investigação criminal3 consagra no art.º 5.º os deveres gerais pelosquais se deve determinar a atuação e que são: os de isenção, imparcialidade, zelo, assiduidade, pontualidade, obediência, lealdade e sigilo. Referindo o art.º 6.º domesmo diploma os deveres especiais, com remissão para a Lei Orgânica da PJ4. Assim,consideram-se autores imediatos de infração disciplinar os que induziram à sua prá-tica, que de alguma forma a encobriram, bem como os superiores hierárquicos que po-dendo não a evitaram.Cumpre ressalvar que dentro dos deveres especiais, o art.º14.º da Lei n.º 37/2008, de 6de Agosto (Lei Orgânica da PJ), faz alusão na alínea e) “actuar com a decisão e prontidãonecessárias, quando da sua actuação dependa impedir a prática de um dano grave, imediatoe irreparável, observando os princípios da adequação, da oportunidade e da proporcionalidadena utilização dos meios disponíveis” e na alínea f ) “agir com a determinação necessária,mas sem recorrer à força mais do que o estritamente razoável para cumprir uma determi-nada tarefa legalmente exigida ou autorizada”.Decorre do exposto, que pela peculariedade da intervenção podem os agentes no âm-bito do exercício do dever, incorrer em infração disciplinar, o que se justifica pela

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2. Dec.-Lei n.º 196/94, de 21 de Julho de 19943. Lei 49/2008 de 27 de Agosto4. Lei 37/2008 de 6 de Agosto

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emergente prontidão com que devem atuar, mas resultará tal atuação do dever a queestão sujeitos com a inerente justificação.Devido à sua própria natureza e como corpo superior de polícia criminal, competeainda à PJ assegurar o funcionamento dos gabinetes da Interpol e Europol, para par-tilha de informação e cooperação policial internacional, no quadro definido pela Lei,como resulta dos arts. 5.º e 7.º da Lei Orgânica da PJ.Ressalve-se que a lide judiciária é carregada de tensão, envolvendo vários interve-nientes repletos de más intenções, pelo que emerge um especial dever de “bom senso”,que não pode per se evitar o cumprimento do próprio dever.Um aspeto que merece especial destaque, nas profissões jurídicas, é o do sigilo pro-fissional, ele surge-nos como uma garantia do estabelecimento de um vínculo de con-fiança e garante da descoberta da verdade.Pese embora, em algumas situações poder existir levantamento do segredo, nomea-damente estando em causa o combate à criminalidade económica-financeira ou atésob um ponto de vista deontológico, quando afete a própria dignidade, interesses le-gítimos ou direitos dos envolvidos.Porém, antes do sigilo profissional, existem outros segredos que são descurados, des-vendados e violados, e que comprometem o profissional, ainda assim poderemos afir-mar que o segredo profissional é condição sine qua non da boa administração da jus-tiça e da proteção de um Estado de Direito Democrático.Com as alterações legislativas e com o acréscimo de funções que lhes foram cometidase que outrora pertenciam a outros intervenientes judiciários, é recorrente ouvirmosque a ação judicial (na generalidade) está um caos e, se por um lado, alguns procedi-mentos foram desburocratizados, em nome dos princípios da celeridade,da simplici-dade, da economia processual, por outro lado, assistimos a uma “paralisia processual”mercê ora de manobras dilatórias, ora do desconhecimento de atos e procedimentosprocessuais, por partes de outros agentes e de uma crescente desresponsabilização, peloque só uma profunda consciencialização pode alterar o rumo da Justiça.Considerando o “baluarte” da missão da PJ, a investigação criminal, importa atender aoque resulta da própria Lei de Organização de Investigação Criminal (LOIC)5, cumprealudir aos conceitos de competência genérica, específica e reservada. Designa -se assimpor órgãos de polícia criminal (OPC) de competência genérica a PJ, a Polícia de Se-gurança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR), referindo-se comoOPC de competência específica todos os restantes. Da lei resulta que são OPC comcompetência reservada aqueles aos quais a lei confere competência exclusiva para a

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5. Lei n.º49/2008 de 27 de Agosto

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investigação de determinados crimes, onde se inclui a PJ.A PJ está incumbida, com exclusividade, de investigar osilícitos criminais mais graves e complexos. Porém, aLOIC viabiliza que certos crimes da competência reser-vada da PJ sejam investigados por outros OPC, ressal-vando-se porém que certos crimes são da competênciaexclusiva da PJ, apresentando-se como uma medida deelevada razoabilidade, com vista a que no exercício dassuas funções, possam cumprir o dever, incondicional-mente e de forma livre, e atendendo aos princípios deisenção e objetividade, sem receber qualquer espécie de

influência, nem mesmo dos seus “pares”.Com efeito, resulta da lei que, a distribuição de competências entre os vários OPC visareconhecer a PJ como OPC por excelência, demarcando-a de outros agentes de se-gurança, como a PSP e a GNR, surgindo estes como OPC indispensáveis para a in-vestigação de um vasto número de crimes, de “outra gravidade”. Considerando a vasta experiência acumulada e a sua natureza vocacional para inves-tigar crimes internacionais, continua a assegurar-se o dever de cooperação entre osvários OPC, balizado pela partilha de informações e permeabilizado pelo segredo dejustiça.Na prossecução de outros princípios de atuação da PJ, nomeadamente, os da legali-dade, da autonomia do Ministério Público e da independência, e imparcialidade dostribunais, resulta que até mesmo aos órgãos de coordenação fica vedado o poder deemitir orientações ou meras ordens sobre determinados processos. Apenas se viabilizaa plena cooperação entre os OPC, o que se traduz em dizer que estes devem ser livrese isentos na difícil missão que é a investigação, estando ao serviço de um Estado, que éde direito e que é democrático, pelo que consequentemente assim tem de ser. O Estadodeve por isso assegurar em plenitude o seu fim último: a descoberta da verdade e a rea-lização da justiça, pelo que não pode à mercê de outros “imperativos hipotéticos econdicionados” desvirtuar o seu próprio fim.Mas lembremo-nos, como afirmou Rabindranat Tagore: “Todos os homens são feitos domesmo barro, mas não do mesmo molde”.A liberdade, a moralidade, a vontade, a consciência individual, a ética e o direito sãoconceitos fundamentais para o exercício pleno, íntegro e digno da profissão. Pelo que, a ética se relaciona indiscutivelmente com a justiça, política, a economia ea religião, na medida em que, tem como objeto aquele conjunto de valores, normase princípios que afetam o ser humano, tendo como monopólio que a sua especificidade

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é profundamente individual e que não se deve alterar emfunção do sistema judicial a que pertence, da comuni-dade política em que se insere, da religião a que está vin-culado e do sistema económico no qual está enquadrado.É a voz da consciência individual. Não nos devemosaconchegar ao facilitismo dos fins fáceis, em busca per-manente de fins que desvirtuam a nossa ação, porque es-ses rapidamente denunciarão interesses que dificilmente

estarão de acordo com o cumprimento do dever. A deontologia está longe de ser ape-nas um conjunto de normas imperativas, ela vai além, há que ter princípios morais en-raizados na esfera da interioridade e estes devem ser inabaláveis. Devemos, à seme-lhança de Sócrates (filósofo da Antiguidade Clássica), espicaçar as consciênciasadormecidas no sono fácil das ideias feitas. Devemos, como defendeu Kant, agir demodo a que a lei moral se torne lei universal. Devemos considerar as Teorias do Cris-tianismo não fazer ao próximo o que não gostaríamos que nos fizessem a nós. Deve-mos, à semelhança de Hegel, tratar tudo como um todo e respeitar a contradição.Com efeito, podemos sempre ignorar todos os deveres, desconhecer normas e princí-pios e ser imorais, pois dispomos de um direito prévio a toda a normatividade, e essen-cial à condição humana: a liberdade. Mas, considerando que somos seres livres e es-clarecidos e que a ética é a estética individual e interior, só podemos querer o melhor.Devemos assim procurar, com maior acuidade e rigor, uma conduta deontológica eeticamente correta e, desse modo, poder desempenhar exemplarmente a nossa “mis-são” no exercício da profissão, pois o importante não é somente o que fazemos, maso modo como o fazemos, e, a ser assim, não é só importante trabalhar, mas as condi-ções, os meios, os instrumentos com que o fazemos, pois só assim poderão naturalmenteseguir e fazer cumprir, não apenas no plano da normatividade, mas da prática: os va-lores da legalidade, da oportunidade, da justiça, da imparcialidade, da proporciona-lidade e da integridade e ouvir plenamente “a voz do dever”!

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Legislação- Decreto-Lei n.º 196/94, de 21 de Julho de 1994 - Regulamento Disciplinar da Po-lícia Judiciária.- Lei n.º 37/2008, de 06 de Agosto - Orgânica da Polícia Judiciária, com as alteraçõesda Lei 26/2010, de 30 de Agosto.- Resolução Conselho de Ministros n.º 37/2002, de 7 de Fevereiro de 2002, CódigoDeontológico do Serviço Policial.

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INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Revista Semestral de Investigação Criminal, Ciências Criminais e Forenses

Publicação da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária

2012

4 . Ensaios e Estudos