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PROJETO TRANSPARÊNCIA E PRESTAÇÃO DE CONTAS DA SOCIEDADE CIVIL NA AMÉRICA LATINA CASO: BRASIL Leilah Landim (Coordenação) Luiz Antonio de Carvalho Assistente de Pesquisa: Hilaine Yaccoub Instituições NUPEF / RITS Núcleo de Pesquisas Estudos e Formação/ Rede de Informação para o Terceiro Setor NASP / UFRJ Núcleo de Pesquisa Associações, Solidariedades e Política / Universidade Federal do Rio de Janeiro Organização coordenadora do projeto ICD – INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 2006/2007 RELATÓRIO FINAL REVISTO PARA O SEMINÁRIO INTERNACIONAL

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PROJETO TRANSPARÊNCIA E PRESTAÇÃO DE CONTAS DA SOCIEDADE CIVIL NA AMÉRICA LATINA

CASO: BRASIL

Leilah Landim (Coordenação) Luiz Antonio de Carvalho

Assistente de Pesquisa: Hilaine Yaccoub

Instituições

NUPEF / RITS Núcleo de Pesquisas Estudos e Formação/ Rede de Informação para o Terceiro Setor

NASP / UFRJ Núcleo de Pesquisa Associações, Solidariedades e Política / Universidade Federal do Rio de

Janeiro

Organização coordenadora do projeto

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2006/2007

RELATÓRIO FINAL REVISTO PARA O SEMINÁRIO INTERNACIONAL

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SUMÁRIO

Prefácio................................................................................................................................3 Agradecimentos...................................................................................................................4

1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................9

1. a) ONGs e transparência, 1996: imagens............................................................9 1. b)Antecedentes: traços históricos.......................................................................10

2. c) O associativismo contemporâneo, as ONGs, o Terceiro Setor etc..............11

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS..........................................................13 3. DADOS E ANÁLISES.............................................................................................15

3. a) O que se entende por prestação de contas........................................................15

3. b)Mecanismos atuais...............................................................................................22

3. c)Imagens e percepções...........................................................................................26

3. d)Marco Legal..........................................................................................................33

4.UM CASO EXEMPLAR. Operação Mogno: transformação e transparência .....44

4.a)Introdução..............................................................................................................44

4.b)O Fundo Dema: um exemplo de transparência..................................................45 4).c) Operação mogno..................................................................................................46

5.PERSPECTIVAS: LIÇÕES APRENDIDAS E ALGUMAS RECOMENDAÇÕES.. 48

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Prefácio

Duas instituições entraram em colaboração para a elaboração desse trabalho. São elas:

O NUPEF/ RITS. Fundada no Brasil em 1997, a Rede de Informações para o Terceiro Setor, Rits, é uma organização sem fins lucrativos voltada ao fortalecimento das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais através de serviços de informação e monitoramento de políticas públicas com uso das novas tecnologias de comunicação (TICs). Com status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social, Ecosoc, da ONU, a Rits criou em 2005 o seu Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação, Nupef, para refletir e produzir conhecimentos que ajudem o fortalecimento da sociedade civil, seja através do uso estratégico das TICs, seja sobre os marcos teóricos e a evolução da sociedade civil organizada no Brasil. Para levar à frente essas tarefas, busca articular parcerias com institutos de pesquisa, centros acadêmicos, pesquisadores/as associados/as e outras entidades afins.

O NASP/ UFRJ. O Núcleo de Pesquisas Associações, Solidariedades e Política está situado na Escola de Serviço Social da UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Visa associar ensino, extensão universitária e pesquisa. Seu objeto temático refere-se às novas configurações da sociedade civil e das organizações associativas – como as ONGs – os movimentos e mobilizações sociais, as redes de proteção social e as suas interfaces com as políticas públicas. As áreas de trabalho principais são: relações entre sociedade e Estado; ONGs; juventude, cultura e violência; responsabilidade social empresarial; participação associativa e políticas públicas.

Acreditamos que as questões tratadas no Proyecto Rendición de Cuentas vêm somar-se às preocupações desenvolvidas nas duas instituições que se uniram para a pesquisa. A parceria entre ONG e Universidade articula diferentes estilos de trabalho, de redes e de especialistas, com consequências certamente profícuas em termos dos resultados e das potencialidades de sua disseminação mais ampla.

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Agradecimentos

Somos gratos a todos e todas que se prestaram a ceder seu tempo - sempre tão ocupado - para receber-nos e prestar depoimentos para esse projeto. Igualmente, aos que durante seminários e encontros disponibilizaram algum intervalo para conversas esclarecedoras sobre os temas que são de interesse da pesquisa. Agradecemos igualmente aos convites para os encontros sobre a temática de prestação de contas e transparência das organizações da sociedade civil, nos quais pudemos recolher informações preciosas para o texto aqui elaborado. O financiamento da Fundação Kellogg foi a condição de possibilidade desse trabalho. Seguem as entidades e pessoas cujos depoimentos e falas – colhidos quer através de entrevistas, quer durante seminários e encontros realizados nesse período e aos quais os pesquisadores compareceram - foram utilizados na elaboração desse texto. Ou seja, organizações com as quais se colheram dados em situações presenciais. A isso somaram-se documentos e consultas à Internet. Em cada caso, estará assinalada a forma de obtenção do dado. As descrições e definições abaixo foram transcritas de documentos de auto-definição das próprias entidades que formam a base de consulta para esse trabalho.

Siglas, instituições e descrições: ABONG (www.abong.org.br). Sede: São Paulo. Âmbito de atuação: nacional. A Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, fundada em 10 de agosto de 1991, é uma sociedade civil sem fins lucrativos, democrática e pluralista, de âmbito nacional de atuação, com sede e foro na capital do Estado de São Paulo. Congrega quase 300 ONGs associadas. Tem por objetivos: promover o intercâmbio entre entidades que buscam a ampliação da cidadania, a constituição e expansão de direitos, a justiça social e a consolidação de uma democracia participativa; consolidar a identidade das ONGs brasileiras e afirmar sua autonomia; defender o interesse comum das suas associadas e estimular diferentes formas de intercâmbio entre elas e com instituições similares de outros países; informar sobre a atuação de agências governamentais, internacionais e multilaterais de cooperação para o desenvolvimento; combater todas as formas de discriminação; ser um instrumento de promoção em âmbitos nacional e internacional das contribuições das ONGs frente aos desafios do desenvolvimento e da superação da pobreza. A constituição da ABONG resultou da trajetória de um segmento pioneiro de organizações não-governamentais que têm seu perfil político caracterizado por: tradição de resistência ao autoritarismo; contribuição à consolidação de novos sujeitos políticos e movimentos sociais; busca de alternativas de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis e socialmente justas; compromisso de luta contra a exclusão, a miséria e as desigualdades sociais; promoção de direitos, construção da cidadania e da defesa da ética na política para a consolidação da democracia. Constam dessa pesquisa depoimentos, colhidos em um seminário e através de entrevista no site, de Tatiana Dahmer, uma de suas diretoras. ACTIONAID (www.actionaid.org.br ). Organização internacional. Sede brasileira : Rio de Janeiro. Âmbito de atuação: Rio de Janeiro. A ActionAid é uma organização não governamental internacional com mais de 30 anos de existência. Com sede no Brasil desde 1999, a ActionAid busca a superação da pobreza através do empoderamento das pessoas pobres e de suas organizações. É entidade financiadora. Sediada no Rio de Janeiro, participa em projetos de desenvolvimento local no Sudeste, Norte e Nordeste através de parcerias com ONGs e movimentos sociais. Paralelamente, participa de campanhas nacionais e internacionais que têm como objetivo a defesa do direito de acesso e controle das pessoas pobres a políticas públicas em temas fundamentais. O direito à segurança alimentar é um dos seus eixos prioritários. Em 2005, as iniciativas desenvolvidas pela ActionAid e seus parceiros alcançaram cerca de 13 milhões de pessoas em quase 50 países, incluindo o Brasil. Actionaid é dirigida por Jorge Romano, cujos depoimentos constam da pesquisa, assim como a fala de Rosana Heringer (colhidos durante um encontro).

AS- PTA (www.aspta.org.br). Sede: Rio de Janeiro. Atuação nacional. A Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa – tem por objetivo a promoção do desenvolvimento da agricultura brasileira com base

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nos princípios da agroecologia e no fortalecimento da agricultura familiar. Criada em 1984 como “projeto anexo” à FASE, a entidade constituiu -se como ONG com personalidade jurídica própria em 1990. Desde 1996 é reconhecida pelo governo federal como instituição de utilidade pública e de caráter filantrópico. A entidade mantém dois programas de desenvolvimento local: um, na região Centro-Sul do Paraná, envolvendo 12 municípios, localiza-se no Agreste da Paraíba, com ação inicial em 3 municípios e atualmente em expansão para outros 13, tendo também incidência indireta em 61 municípios de outras regiões semi-áridas do estado.A AS-PTA integra redes regionais e nacionais de promoção da agroecologia, como a Articulação do Semi-árido Brasileiro, as Jornadas Paranaenses de Agroecologia e a Articulação Nacional de Agroecologia. Nessas dinâmicas constituídas no âmbito da sociedade civil articulam-se organizações e movimentos da agricultura familiar, agro-extrativistas, povos indígenas, ONGs, pesquisadores de instituições públicas, professores universitários e de escolas agrícolas e extensionistas. A entidade estimula processos de intercâmbio de informação e conhecimentos que permitam a mútua fecundação entre as experiências práticas do “campo agroecológico”. O diretor Sílvio Gomes de Almeida foi entrevistado para essa pesquisa. Centro de Cultura Luiz Freire (www.cclf.org.br/). Sede : Recife. Atuação : Região Nordeste. Organização sem fins lucrativos que atua no estado de Pernambuco e visa contribuir para a radicalização da democracia na Sociedade, promovendo a expansão, qualificação e consolidação da participação cidadã e da prática dos Direitos Humanos, vivenciados como um processo educativo e cultural. As áreas de atuação são Educação, Comunicação e Democratização da gestão pública, desenvolvimento local, promovendo a equidade social, étnica, gênero e de geração, segundo quatro eixos amplos e interdependentes: formulação e monitoramento de políticas públicas; articulação e cooperação; produção e disseminação de informações e desenvolvimento institucional. A organização participa da Campanha “Orçamento Público é da Minha Conta”, que promove popularização do debate orçamentário no Estado de Pernambuco. A campanha surgiu da necessidade de colocar em pauta o direto à participação e do controle social nos processos que envolvem os recursos públicos, ampliando a consciência cidadã em relação ao dinheiro público. O CCLF é coordenada por José Fernando da Silva e Aldenice Rodrigues Teixeira, tendo sido os depoimentos dessa última em um encontro de entidades os usados nessa pesquisa.

CESE (www.cese.org.br ). O CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço – tem sede no estado da Bahia há 33 anos e tem atuação nacional, enquanto financiadora se projetos. Visa fortalecer organizações da sociedade civil, especialmente as populares, empenhadas nas lutas por transformações políticas, econômicas e sociais que conduzam a estruturas em que prevaleça democracia com justiça. Durante esse tempo, já foram cadastradas no Serviço de Projetos da CESE mais de dez mil organizações, e de quinze mil projetos e, cerca de três milhões de pessoas foram beneficiadas pelo apoio da CESE aos pequenos projetos. Depoimentos de Lia Silveira foram utilizado nessa pesquisa.

CDI. (www.cdi.org.br). Sede: Rio de Janeiro. Atuação: nacional. O Comitê para Democratização da Informática é organização sem fins lucrativos fundada em 1994, no Rio de Janeiro, sendo que atualmente tem atuação em âmbito nacional. Sua missão é promover a inclusão social de populações menos favorecidas, utilizando as tecnologias da informação e comunicação como um instrumento para a construção e o exercício da cidadania. Visa tornar-se um projeto com efetiva influência no destino dos países onde atua, ampliando o conceito de inclusão digital como uma integração entre educação, tecnologia, cidadania e empreendedorismo - com vistas à transformação social. Define como seus valores: solidariedade, protagonismo, transparência, co-responsabilidade, equidade, inovação, excelência. Seu fundador e diretor é Rodrigo Baggio. Entrevistamos para essa pesquisa Ricardo Falcão, consultor de gestão da entidade. FASE (www.fase.org.br). Sede: Rio de Janeiro. Atuação: nacional. A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional - foi fundada em 1961. É uma organização não governamental, sem fins lucrativos, que atua em seis estados brasileiros e tem sua sede nacional no Rio de Janeiro. Desde suas origens, esteve comprometida com o trabalho de organização e desenvolvimento local, comunitário e associativo. Ao longo da década de 60, a FASE lançou as bases de um trabalho ligado ao associativismo e ao cooperativismo, mas o golpe de 64 fez com que estes rumos tivessem de ser redefinidos. Atualmente a FASE atua nos planos local, nacional e internacional com vistas a integrar redes, fóruns e plataformas, sempre visando derrotar as políticas de caráter neoliberal. No campo da promoção de seus princípios e da produção de conhecimento, a FASE

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realiza convênios com órgãos públicos, monitora projetos e faz parcerias com universidades. Atua em 6 estados brasileiros: Rio de Janeiro, Bahia, Espírito Santo, Pernambuco, Pará e Mato Grosso. A FASE é dirigida por Jorge Eduardo Saavedra Durão, o qual foi entrevistado para essa pesquisa.

FUNDAÇÃO FORD (www.fordfound.org). Organização internacional. Sede no Brasil: Rio de Janeiro. A Fundação Ford é uma organização privada, sem fins lucrativos, criada nos Estados Unidos para ser uma fonte de apoio a pessoas e instituições inovadoras em todo o mundo, comprometidas com a consolidação da democracia, a redução da pobreza e da injustiça social e com o desenvolvimento humano. Criada em 1936, a Fundação Ford já contribuiu com US$ 12 bilhões em doações e empréstimos para auxiliar a produção e divulgação do conhecimento, apoiando a experimentação e promovendo o aprimoramento de indivíduos e organizações. Atualmente, não possui ações da Companhia Ford e sua diversificada carteira de investimentos é administrada para ser uma fonte permanente de recursos para custear seus programas e suas atividades. O Escritório do Brasil, localizado na cidade do Rio de Janeiro, está entre os mais antigos dos doze escritórios que a Fundação Ford mantém no exterior, permitindo parcerias de trabalho mais próximas com indivíduos e instituições em várias regiões do globo. A fundação Ford no Brasil é presidida por Ana Toni, cujos depoimentos são utilizados nessa pesquisa a partir de participação em um encontro e também de entrevista sobre o tema da prestação de contas em um site.

GIFE (www.gife.org.br)2. Sede: São Paulo. Atuação: nacional. O Grupo de Institutos, Empresas e Fundações foi fundado por cerca de 300 organizações, em assembléia de 26 de maio de 1995. O GIFE é fruto do processo de redemocratização do país, do fortalecimento da sociedade civil e, especialmente, da crescente conscientização do empresariado brasileiro de sua responsabilidade na minimização das desigualdades sociais existentes no país. Enquanto organização sem fins lucrativos, o GIFE se consolidou como uma referência no Brasil sobre investimento social privado, tendo como missão aperfeiçoar e difundir conceitos e práticas do uso de recursos privados no Brasil. Como tal, vem contribuindo para a promoção do desenvolvimento sustentável no Brasil por meio do fortalecimento político-institucional de organizações de origem empresarial e do apoio para a criação de outras associações similares na América Latina. Seu presidente é Hugo Barreto e tem como Secretário Geral Fernando Rossetti. Utilizamos basicamente informações contidas na página de internet dessa organização guarda-chuva. IBASE (www.ibase.org.br). Sede: Rio de Janeiro. Atuação: Rio de Janeiro. O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, criado em 1981, é uma instituição de utilidade pública federal, sem fins lucrativos, sem vinculação religiosa e a partido político. Sua missão é a construção da democracia, combatendo desigualdades e estimulando a participação cidadã. Entre os temas e campos de atuação prioritários do IBASE estão Fórum Social Mundial, Alternativas Democráticas à Globalização, Monitoramento de Políticas Públicas, Democratização da Cidade, Segurança Alimentar, Economia Solidária e Responsabilidade Social e Ética nas organizações. O público para o qual suas ações estão direcionadas é composto por movimentos sociais populares; organizações comunitárias; agricultores(as) familiares e trabalhadores(as) sem terra; lideranças, grupos e entidades de cidadania ativa; escolas, estudantes e professores(as) da rede pública de ensino fundamental e médio; rádios comunitárias e experiências em comunicação alternativa; formadores(as) de opinião nos meios de comunicação de massa; parlamentares e assessores(as); gestores(as) de políticas públicas. O depoimento com que trabalhamos na pesquisa são de Ciro Torres, da área de Responsabilidade Social e Balanço Social, assim como de Cândido Grizbowski, em seminário sobre o tema.

IDEC (www.idec.org.br). Sede: São Paulo. Atuação: Nacional. O Idec, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (www.idec.org.br) é uma associação sem fins lucrativos de consumidores fundada em 1987 sem vínculo com empresas, governos ou partidos políticos. Os recursos financeiros para suas atividades têm origem nas anuidades pagas pelos seus associados, na vendas de assinaturas da Revista do Idec e outras publicações, além da realização de cursos. Outra parte dos recursos origina-se do apoio de agências de financiamento internacionais. As contas do Idec são auditadas por auditorias independentes. A coordenadora institucional do

1 Não chegamos a realizar entrevista formal com diretor do GIFE. Nesse caso particular – exceção da listagem apresentada – utilizamos material indireto sobre transparência e prestação de contas, amplamente tratado tanto através de publicações, como do site. 2 Não chegamos a realizar entrevista formal com diretor do GIFE. Nesse caso particular – exceção da listagem apresentada – utilizamos material indireto sobre transparência e prestação de contas, amplamente tratado tanto através de publicações, como do site.

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Idec, Marilena Lazzarini, preside a Consumers International, uma federação que congrega mais de 250 associações de consumidores que operam no mundo todo. O Instituto faz parte do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor e da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong). Os depoimentos utilizados nessa pesquisa foram de Marcos Pó, realizados durante um seminário. IGDS (não possui site na internet). Sede: Município de Boca da Mata, Alagoas. Atuação: Boca da Mata. O Instituto Girassol de Desenvolvimento Social foi criado em 2004 no município de Boca da Mata, cidade do litoral canavieiro do estado de Alagoas, Nordeste do país. Como definem, “O nosso objetivo principal é contribuir para o desenvolvimento local sustentável no município (...) e cidades circunvizinhas, com a participação direta da juventude local.”. Tendo a Educação Popular como base teórico-metodológica, desenvolvem uma proposta de trabalho focada em iniciativas e ações que instrumentalizem e potencializem o jovem frente ao processo de sua formação pessoal, social e cidadã. Entrevistamos para essa pesquisa o jovem José Gilson Neves , diretor da entidade.

IMAFLORA (www.imaflora.org). Sede: Município de Piracicaba, São Paulo. Atuação: São Paulo. O Imaflora – Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola – é uma ONG brasileira, sem fins lucrativos, que busca promover o desenvolvimento sustentável, através do manejo florestal e da agricultura. Fundado em 1995 com o intuito de implantar a certificação florestal no hemisfério sul, o instituto ampliou seu campo de atuação para a área agrícola. Hoje, o Imaflora utiliza, além da Certificação, o Treinamento e a Capacitação, o Estímulo à Comercialização de Produtos Certificados e o Apoio ao Desenvolvimento de Políticas Públicas para conciliar desenvolvimento sócio-econômico e conservação ambiental. Hoje o IMAFLORA atua nacionalmente com uma estrutura baseada em cinco programas: Certificação Florestal, Certificação Agrícola, Treinamento e Capacitação, Políticas Públicas e apoio ao Desenvolvimento de Mercados para Produtos Certificados. Depoimentos de Ana Cristina Nobre da Silva foram utilizados como matéria para a pesquisa.

INESC (www.inesc.org.br). Sede: Brasília. Atuação: Brasília. O Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, é uma organização não governamental, sem fins lucrativos e com finalidade pública. Tem por missão: "Contribuir para o aprimoramento da democracia representativa e participativa visando a garantia dos direitos humanos, mediante a articulação e o fortalecimento da sociedade civil para influenciar os espaços de governança nacional e internacional". Criado em 1979, o Inesc focaliza a ampliação da participação social em espaços de deliberação de políticas públicas. Em todas as suas publicações e intervenções sociais utiliza o instrumental orçamentário como eixo fundante do fortalecimento e da promoção da cidadania. Para ampliar o impacto de suas propostas e ações, o Inesc atua em parceria com outras organizações e coletivos sociais, e se posiciona politicamente entre as organizações no campo democrático da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – Abong. A organização é presidida por Iara Pietricovsky de Oliveira, José Antônio Moroni e Átila Roque, com quem foi colhido depoimento, através de entrevista, para essa pesquisa.

ISER (www.iser.org.br ). Sede: Rio de Janeiro. Atuação: Rio e algumas regiões do Brasil. O Instituto de Estudos da Religião foi fundado há 25 anos. Dedica -se à ação social e pesquisa nas seguintes áreas: organizações da sociedade civil, ambientalismo, violência, redes religiosas e religião e monitoria/avaliação. Tem como especificidade o foco nas questões culturais que permeiam movimentos sociais e relações quotidianas em grupos populares. Secretária executiva: Samira Crespo, entrevistada para essa pesquisa.

Red Puentes (www.redpuentes.org). Em 2002, motivados para a discussão do tema da Responsabilidade Social Empresarial, reuniram-se em 2002, em Porto Alegre, no Forum Social Mundial, representantes de instituições de trabalho e desenvolvimento social do Brasil, Chile, México e Holanda. Em uma subseqüente reunião na Cidade do México, no mesmo ano, esse encontro frutifica no compromisso de assumir a promoção e desenvolvimento de uma cultura e práticas de Responsabilidade Social Empresarial a partir de uma perspectiva de direitos cidadãos e da sociedade civil, originando a Red Puentes. O desafio é construir uma concepção de Responsabilidade Social apropriada às condições dos países latino-americanos. Atualmente, 52 instituições de 8 países compõem a Red Puentes. O contato dessa pesquisa com a Red deu-se através de Tânia Hernandes, em uma reunião no Rio de Janeiro.

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SERTA. (www.serta.org.br) Sede: Município de Gloria do Goitá, Pernambuco. Âmbito de atuação: Pernambuco. O Serviço de Tecnologia Alternativa. Fundado há 16 anos e com sede em Gloria do Goitá, em Pernambuco, o SERTA atua em diversas regiões do interior do estado, como foco em juventude e em desenvolvimento sustentável. Define como seus objetivos : mobilizar a capacidade empreendedora da juventude na busca de melhoria das condições de vida de suas famílias e comunidades ; capacitar produtores e técnicos nos princípios e tecnologias da produção orgânica ; comprometer a participação da escola, da arte e da cultura na produção do conhecimento e de atitudes que o desenvolvimento local e sustentável requer ; contribuir para o avanço da gestão democrática visando a melhoria e a ampliação do acesso aos direitos sociais básicos ; dinamizar mercados de feiras ecológicas e fortalecer cadeias produtivas de agricultura. Uma das diretoras do SERTA, Inalda Neves Baptista , foi entrevistada para essa pesquisa.

Solidariedade França Brasil - SFB (www.sfb.org.br ). Instituição de âmbito internacional, com sede no Rio de Janeiro. A SFB é uma Organização Não Governamental fundada em 1986, de utilidade pública federal, sem fins lucrativos, que presta assessoria a grupos comunitários organizados, que trabalham com crianças, adolescentes e famílias empobrecidas, que vivem nas periferias da cidade do Rio de Janeiro. São financiadores. Atuam, principalmente, nas áreas de educação, saúde, arte, cultura, e mobilização social, apoiados em uma metodologia participativa e cooperativa. A SFB foi fundada em 1986, por franceses e brasileiros sensibilizados pela situação das comunidades empobrecidas da periferia do Rio de Janeiro, com a finalidade de promover ações solidárias em apoio a grupos organizados existentes nessas localidades. A organização é presidida Márcia Cozzi Ribeiro e divulga suas contas no site inst itucional. Os depoimentos para essa pesquisa foram colhidos da fala de Lola Campos, durante encontro.

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1. INTRODUÇÃO 1. a) ONGs e transparência, 1996: imagens.

Durante o ano de 2006, as ONGs frequentaram a mídia nacional mais assiduamente do que é costume – ou, melhor dizendo, a sigla ONG adquiriu especial visibilidade - chegando a ocupar por algumas vezes as principais manchetes de jornais e revistas, como um elemento problemático e questionado nas ações e discussões de ordem política ditadas pela conjuntura. Como alguns observam, tal fato volta sempre a se repetir em anos eleitorais, no palco da concorrência acirrada pelo voto. 3 Em pauta: a questão da corrupção, da não transparência e do uso irregular de recursos. Ou seja, a temática do Projeto Transparência y Rendición de cuentas está na ordem do dia também na agenda pública mais abrangente, hoje, no Brasil.

Nesse ano eleitoral colocaram -se particularmente e de forma ampliada, para a opinião pública, debates

sobre a corrupção, envolvendo sobretudo órgãos governamentais e partidários. Pela primeira vez na história, a população acompanhou através de canais abertos de TV inusitadas “novelas” protagonizadas pelos parlamentares, em longas sessões de CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) nas quais se escancararam relações de financiamento promíscuas e ilegais entre agências estatais, empresas privadas e partidos políticos.

Embora as chamadas ONGs não tenham sido focos centrais ou mesmo de maior destaque nesses processos acusatórios, alguma coisa também sobrou para esse universo de organizações: através de alguns poucos, mas expressivos, casos de projeção nacional, disseminou-se mais fortemente do que o habitual, pelos canais formadores de opinião, a associação da palavra “ONG” a corrupção, a desvio de recursos públicos para fins privados ou a manipulações políticas, como por exemplo seu uso para fazer “caixa dois” de campanhas, burlar leis de licitações etc.

Ou seja, ao lado das notícias usuais e frequentes que pontuam o quotidiano da mídia sobre iniciativas positivas de prestações de serviços, de defesa de causas e direitos diversos, de proposição e controle participativo de políticas públicas, ou de experiências sociais inovadoras envolvendo as ONGs, houve ao mesmo tempo acentuada focalização sobre questões relacionadas à sua legitimidade e, especificamente, aos temas da transparência e da prestação de contas, provocada por alguns “escândalos” de desvios de recursos públicos através de organizações sem fins lucrativos.

Se é verdade que esses momentos provocaram bem-vindos e necessários debates sobre essas questões, por

outro lado parece ter havido mais perdas do que ganhos: as discussões conseqüentes e informadas ainda se dão em um círculo relativamente restrito de especialistas e agentes interessados, reforçando-se nesse período, para a opinião pública, as imagens negativas e desconfianças que existem com relação a algo cada vez mais nebuloso identificado como “ONG” – fluidez que presta-se a todo tipo de manipulação e apropriação simbólica. Um sintoma do que ocorre nesse contexto pode ser constatado por quem abrir o site do Senado Federal, em janeiro de 2007, em notícia de página frontal:

“O senador Heráclito Fortes [do PFL, partido conservador e de oposição ao governo atual] afirmou em entrevista à Agência Senado (...) que apresentará, no início de março, novo requerimento pedindo a criação de comissão parlamentar de inquérito (CPI) destinada a investigar a transferência de recursos do Orçamento da União, entre 2003 e 2006, para organizações não-governamentais (ONGs) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs), o que já havia sido solicitado em 2006 (...) - Essa CPI é a favor do Brasil; vai investigar as ONGs ruins e proteger as boas - disse o senador”.(www.senado.gov.br).

Por um lado, a forma jurídica que assumem as organizações não governamentais permite e favorece suas

amplas utilizações para os mais diversos fins – e a regulamentação existente será alvo de atenção, adiante. Por outro lado, como sabemos, o questionamento da legitimidade das ONGs tem razões que vão bem além dos seus

3 Em 2006 votou-se no Brasil para Presidente da República, governadores dos estados e deputados, após um processo no qual o governo Lula viu-se profundamente enredado em processos de malversações de fundos em função de jogos políticos.

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processos de prestação de contas ou falta de transparência – embora a imprecisão, as falhas e tropeços desses últimos sejam utilizadas como argumentos poderosos nesses questionamentos.

Em um contexto como o brasileiro, marcado por heranças autoritárias, a legitimidade das ONGs

frequentemente é questionada dentro do campo da política, quando há resistências por parte de alguns grupos que vêem seus interesses contrariados por práticas de promoção de direitos, de justiça ambiental, de democracia e justiça social levadas a cabo por um conjunto de organizações da sociedade civil.

Por outro lado, essas organizações também são frequentemente questionadas por segmentos em posição

oposta, ou seja, por grupos mais progressistas e críticos no espectro político brasileiro, que acusam as ONGs de serem atores funcionais ao neoliberalismo e ao enfraquecimento das políticas sociais, como promotoras da substituição de políticas universais que devem caber ao Estado (críticas freqüentes em envolvidos no campo das políticas de assistência social, comum também nas produções do mundo acadêmico). Há também os questionamentos às ONGs por supostamente substituírem os movimento sociais (críticas feitas geralmente por agentes desses próprios movimentos, em um contexto de descenso participativo). E por aí vai.

O acelerado crescimento numérico, o fortalecimento e o reconhecimento crescente das ONGs como

elementos institucionais que fazem parte do cenário nacional (e transnacional), inserem-nas cada vez mais nas dinâmicas de forças e interesses diversos que constituem a sociedade civil, no processo de democratização da sociedade brasileira. Ao lado disso, o termo ONG perde o significado que adquirira nos anos 80 e se dilui: qualquer tipo de organização sem fins lucrativos tem sido designada por esse nome. O termo “terceiro setor”, num certo sentido, consagra essa diluição, já que contribui para uma visão homogênea do que é heterogêneo. A questão da transparência das contas torna -se um elemento cada vez mais relevante para criar distinções éticas e políticas nesse contexto, possibilitando o reconhecimento dos papéis relevantes, sociais, políticos e econômicos, ocupados por um conjunto determinado de organizações associativas (afinal, como vimos, também o senador conservador tem lá sua opinião sobre o que são ONGs “ruins” e “boas”...).

Podemos dizer, a partir de tudo isso, que a questão da transparência e do estabelecimento de formas eficazes

de prestação de contas das organizações da sociedade civil (assim como do Estado) assumiu nos últimos anos importância para o fortalecimento ou, até mesmo, para a própria sobrevivência do prestígio do regime democrático junto à opinião pública nacional.

Algumas notas sobre a gênese e as características do campo associativo brasileiro podem ser úteis, como

base para a exposição posterior dos resultados dessa pesquisa. 1.b)Antecedentes: traços históricos.

O Brasil Colônia foi formatado por um Estado forte e centralizado, em simbiose com a Igreja Católica,

desde os primeiros anos do século XVI, quando os lusitanos chegaram ao continente. Diz-se que a sociedade civil foi “construída” pelo Estado – a coroa portuguesa - através de mandato concedido à Igreja: ser cidadão, nessa sociedade, durante quase quatro séculos, pressupunha ser batizado. Educação, saúde, assistência, lazer, passavam fundamentalmente pelos espaços e organizações ligadas ao catolicismo o qual, até hoje, é uma referência relevante na organização da filantropia, de uma cultura da “doação”, da assistência e também das redes de organizações para o desenvolvimento.

Nesse sentido, fazer a história de organizações civis, do tipo associativo e voluntário, com autonomia do Estado ou da Igreja, durante a maior parte da construção da sociedade brasileira, é como procurar agulha em palheiro. Encontram-se irmandades de autonomia relativa, algumas associações literárias, a maçonaria, grupos abolicionistas... Até finais do século XIX, talvez essas últimas organizações tenham sido as m ais consistentes em termos do modelo de associações autônomas, com atuação no campo da política e em defesa de direitos, restando poucos rastros delas, no entanto, após a abolição dos escravos.

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Independente desde 1822 - com a característica peculiar da pr oclamação dessa independência ter sido feita pelo próprio herdeiro do trono português, que se tornou Imperador - o Brasil ingressa no século XX como República, em que prevalece um regime chamado por alguns pensadores como de laissez-faire repressivo. Os movimentos associativistas, operários e mutualistas que germinam nesse período (como em outros países), quando a liberdade associativa era a regra legal, sobretudo os de inspiração socialista trazida com os imigrantes europeus, são sistematicamente desestimulados e reprimidos. Como aconteceu em outros contextos nacionais, os anos 30 vêem a instauração de um modelo de desenvolvimento econômico e social a partir de um Estado forte e centralizado, orientador da organização da “sociedade civil”, que permanece marcadamente tutelada e com papel formal coadjuvante nos esforços de universalização de direitos e de solidariedade social. A classe trabalhadora seria organizada através de sindicatos criados pelo governo autoritário, populista e corporativista de Getulio Vargas (o “pai dos pobres”), que instaura um regime ditatorial após 1937. Nesse período, a aliança do Estado com a Igreja – através do repasse de fundos às organizações criadas por essa - seria fundamental nas estratégias de prestação de serviços de assistência social e educação às massas da população à margem da proteção social dada pelo Estado. As organizações sem fins lucrativos, nessas áreas, irão florescer. Em direção inversa, as organizações do tipo associativo autônomas, de defesa de direitos e interes ses, serão impedidas de existir. Apenas nos meados dos anos 50, com a redemocratização do país, começarão a surgir vigorosos movimentos sociais nas cidades e nos campos. A história é conhecida também para os outros latino-americanos: mais uma vez, essas mobilizações são violentamente interrompidas, em tempos de guerra fria, através do golpe militar em 1964. 4

1 c) O associativismo contemporâneo, as ONGs, o Terceiro Setor etc. Convenciona-se marcar o pós-64, ou mais precisamente os anos 70, como o início de um “novo

associativismo”. É quando uma conjunção de fatores deu margem à progressiva criação de uma sociedade civil com maior grau de autonomia – aparentemente um paradoxo, já que em contexto autoritário. É que após o golpe militar de 1964 transformam-se substancialmente as relações entre o Estado e a sociedade no Brasil, no que alguns definem como fim do “pacto populista”, outros da era da “política corporativista de massas”, ou o que seja. Dá-se a repressão ou intervenção direta do governo em sindicatos, universidades, partidos, organizações de esquerda já na clandestinidade etc. É momento de prisões, mortes, torturas, exílios, atos institucionais e decretos legislativos que cassam direitos e interrompem carreiras de lideranças e segmentos envolvidos em movimentos sociais diversos, agora todos virtualmente colocados na oposição ao regime, cortadas as relações com o Estado.

Paralelamente, acelera-se nesse período um processo de modernização e urbanização no país, com o aumento da diversificação social, das classes médias e do acesso à universidade e com o desenvolvimento dos meios de comunicação - fatores necessários para a existência de um terreno associativo que se queira consistente. Para o que nos interessa é relevante também considerar a posição assumida, no Brasil, por alas da Igreja Católica – minoritárias na Instituição, mas hegemônicas na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) – que após um primeiro momento de apoio ao golpe vão, nos anos 70, dar respaldo a determinadas forças de oposição que se organizam, principalmente grupos nas bases da sociedade, em áreas rurais ou periféricas urbanas (associações de bairros, movimentos contra a carestia, associações comunitárias, clubes de mães, grupos de jovens etc.) e sindicais, como foi o caso do chamado “novo sindicalismo”. As alas relacionadas à Teologia da Libertação que ganha força, nesse período, particularmente no Brasil, vão permitir que um processo de “politização”, levado também por leigos e agentes da esquerda marxista, penetre em determinadas áreas do terreno capilar de ação social de paróquias e ordens religiosas. São canais de mediação e contato com as camadas populares que só a Igreja Católica, àquelas alturas, possuía intactos e de modo institucionalizado. Trabalhadores e pequenos produtores rurais serão também alcançados por esses processos, onde a questão fundiária está na base de lutas que se vão construindo – como, já nos finais dos anos 70, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). O movimento sindical rural vai-se igualmente reorganizando, em algumas áreas do país, a partir do surgimento de novas forças e lideranças, muitas mantendo elos discretos com o passado pré -64.

4 Somente em 1985 os militares deixarão o poder, através de eleição indireta. Só em 1992 haverá eleições diretas para Presidente da República.

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É esse o contexto do surgimento do que alguns consideram como « inovações institucionais » e que vieram a ser chamadas, em meados dos anos 80, de ONGs, batismo vindo pelos canais internacionalizados que fariam parte de suas origens e funcionamento sem que, no entanto, elas deixassem de se construir a partir de fortes referências e processos sociais locais. São organizações que, nesses anos, nasciam da institucionalização – e politização - progressiva de grupos de « educação popular » e de « assessoria e apoio a movimentos sociais ». Pesquisa entre seus quadros fundadores revelará que foram católicos (e alguns protestantes progressistas) vindos ainda da ação política do pré-64; também cristãos de outra geração que chegavam ao ativismo através das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e da Teologia da Libertação ; e ainda egressos da esquerda marxista, alguns saídos das prisões, outros das universidades, outros voltados do exílio, gente de carreiras interrompidas. Inspirações marxistas e cristãs, com a referência das teorias de Paulo Freire: esses os traços das trajetórias dos agentes das primeiras (futuras) ONGs. Ligavam-se aos movimentos sindicais e de bairros que se formavam pelo país – e ao nascente Partido dos Trabalhadores. Constitutivas de sua existência estavam as agências de cooperação internacional, como sabemos. Nos anos 80 essas organizações afirmam sua identidade adotando o nome “ONG” e diversificam-se internamente através de temáticas de atuação variadas, no advento dos chamados movimentos em redes e/ou dos movimentos “fragmentados”. São as organizações voltadas às lutas por criação de direitos de mulheres, de negros, povos indígenas, homossexuais, ambientalismo, portadores de deficiência, jovens e outros sujeitos e identidades coletivas que se vão construindo. Em 1991 essas organizações fundam a ABONG, a Associação Brasileira de ONGs, que será um ator relevante nos debates atuais sobre transparência de que tratamos aqui. Os anos 90 assistem à entrada no espaço público de uma enorme diversificação de organizações de formato associativo, tanto novas como bem antigas, como as assistenciais e carita tivas, de tradição “privatista” e “assistencialista” (e das quais as ONGs acima sempre procuraram se distinguir). Entre os novos agentes de ação social ressalta, nos anos 90, o surgimento e a rápida consolidação das instituições do “investimento social empresarial”, que reforçam e trazem novas concepções e novos nomes para o campo da ação social: o termo Terceiro Setor ganha visibilidade, trazendo para a “sociedade civil” conotações não mais de conflito e de campo de forças politizadas, mas antes – esquematicamente - de “setor” homogêneo, colaborativo (internamente, e também com o Estado e com o mercado), profissionalizado, capaz de ser eficiente, eficaz e “resolver problemas” diante de um Estado enfraquecido.

O nome ONG, categoria classificatória de um conjunto de entidades, como foi narrado acima, tende a se diluir e alargar seu sentido, passando a ser usado para designar um conjunto enorme e diferenciado de organizações, minando-se o monopólio simbólico do conjunto de agentes e atores que o adotara nos anos 80, como marca distintiva. ONG, portanto, é um hoje um campo de diversidades.

Finalmente, no quadro esboçado sobre as organizações com as quais estamos lidando nessa pesquisa, é

indispensável mencionar o processo de descentralização política instaurado com a Constituição pós-ditadura, de 1988. Essa Carta passou a prever a participação da população no controle e gestão de políticas através de suas organizações associativas. Logo criam-se os Conselhos (de educação, saúde, assistência social, habitação, crianças e adolescentes, idosos, mulheres, ambientais...), que se contam hoje por dezenas de milhares, formados por representantes do governo e de organizações da sociedade civil, de existência prevista em âmbito federal, municipal e estadual e com caráter deliberativo – instituições que materializam, portanto, as disposições constitucionais de co-gestão. Ao lado das experiências de orçamentos participativos, são espaços cujo funcionamento democrático e eficaz dependeria da existência de um campo sólido de organizações associativas. As organizações da sociedade civil adquirem cada vez mais, através desses espaços de criação e controle de políticas públicas, visibilidade e relevância na cena nacional. Cada vez mais, portanto, têm sido sujeitas à legítima pergunta: quem as controla, e como?

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2.PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O universo das organizações da sociedade civil, no Brasil, vem crescendo e se diversificando progressivamente nos últimos anos, conforme o mencionado acima. No ano de 2002, as fundações e associações sem fins lucrativos contavam-se em cerca de 276.000 entidades, segundo pesquisa realizada pelo IBGE e o IPEA (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgãos governamentais. A pesquisa foi realizada em parceria com o GIFE (Grupo de Instituições, Empresas e Fundações) e a ABONG (Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais), duas organizações guarda-chuva extremamente relevantes e porta-vozes, respectivamente, do mundo do investimento s ocial empresarial e do campo das ONGs voltadas para movimentos sociais e populares. Esse enorme conjunto de organizações compreende as mais variadas áreas de atividades, como saúde, educação, assistência social, esporte e lazer, etc. Os dados impressionam : entre 1996 e 2002 o número dessas entidades sem fins lucrativos (97% das quais registram-se como associações) cresce 157%.

Embora haja crescimento absoluto em todos os tipos de organizações , o que ressalta nos dados é a maior

tendência relativa, nos últ imos anos, ao adensamento de mobilizações associativas de base territorial local, com a multiplicação da criação de associações comunitárias e de moradores, assim como ao crescimento das organizações voltadas para a defesa de direitos – dos excluídos, de mulheres, negros, grupos indígenas, homossexuais, jovens, ambientalistas etc. - as quais são tradicionalmente chamadas de ONGs. Hipóteses explicativas devem certamente incluir o efeito dos novos arranjos institucionais participativos sobretudo no plano municipal, como os milhares de conselhos de co-gestão de políticas públicas, ou as centenas de experiências de orçamentos participativos, cujas consequências e forças sociais em jogo apenas começam a ser estudadas. Ou seja, a presença do Estado e das políticas públicas parece relevante para o crescimento recente de organizações sobretudo locais – cujo perfil, existência autônoma e dinâmica de nascimentos demanda maiores análises. Acrescente-se a esse quadro a emergência de outros espaços de participação como a s centenas de fóruns, redes associativas temáticas e outras dinâmicas em que se fazem presentes, no espaço público, as organizações referidas ao campo de movimentos de defesa de direitos de grupos específicos, de produção de identidades sociais, de novos s ujeitos políticos ou mobilizações ambientalistas, onde está evidenciada a questão das transformações das formas de representação e de participação.

Como mencionamos acima – e como encontramos nos nossos dados de pesquisa – esse é o pano de fundo

que provoca e justifica as interpelações cada vez mais freqüentes sobre a transparência das OSCs. Diante do tamanho e da diversidade desse universo, que sentido têm as entrevistas e escolhas feitas nesse trabalho, para a discussão do tema?

Escolhemos organizações ligadas aos subconjuntos mencionados que mais crescem relativamente e que têm

peso, em termos de ações sociais e políticas e dos debates públicos e midiáticos. São as ONGs – associações e fundações - voltadas para a defesa de direitos específicos ou difus os, as organizações voltadas para projetos sociais e comunitários e as organizações ligadas ao investimento social empresarial. Pode-se dizer que essas são as entidades que começam a apresentar formulações mais densas na discussão ainda um tanto incipiente sobre as questões de legitimidade, legalidade, transparência e prestação de contas. São interlocutoras entre si – o que não exclui discordâncias e posições diferenciadas no espaço social – e com o Estado, e começam a compor um debate. Portanto, acreditamos que os dados de natureza qualitativa expostos a seguir são representativos quanto ao estado da questão, nessa temática, mesmo que ainda exploratórios e sujeitos a maior aprofundamento futuro. Apontam para pistas e trilhas a serem melhor exploradas.

Optamos antes por “dar voz” aos nossos informantes, do que por enquadrar suas informações em esquemas

analíticos previamente construídos. Ou seja, já que conseguimos criar oportunidades de entrevistas e interlocuções diretas com pessoas cujo acesso não é tão fácil – muito ocupados, de diferentes regiões do país – aproveitamos para ouvir seus depoimentos com a menor interferência possível. Ouvimos o que, para cada um, é relevante ou não. Respeitamos e consideramos suas “omissões” com relação á temática. Isso é que nos levou à percepção de que não há ainda um discurso construído sobre accountability , em termos de questões claras de discussão colocadas para todos. Estamos em um momento de construção.

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Essa relativa “descostura” das falas e também de dispersão de documentos ocasionou um texto também um

tanto fragmentado, pontuado pelos diferentes depoimentos. Esperamos que, na continuidade do projeto e dos debates, possamos afunilar conceitos e arrumar melhor as idéias que, pelo que vimos, estão sendo agora burilada s no campo das organizações da sociedade civil.

Passamos a uma breve descrição do trabalho de campo realizado. (Observe -se que as organizações e

pessoas com as quais se teve contato direto estão descritas acima, em “Agradecimentos”). (a) Realizamos entrevistas com diretores de entidades não governamentais, escolhidas de acordo com os

seguintes critérios: seu peso nacional enquanto formuladoras no campo social e político; sua diversidade regional; sua diferenciação temática; seu porte e âmbito de atuação; doadoras e recebedoras de recursos.

(b) Utilizamos dados obtidos por observação direta e conversas em nossos quotidianos de trabalho no universo das ONGs, durante o período da entrevista.

(c) Obtivemos dados a partir da participação em encontros nacionais relacionados à temática da legitimidade e transparência do “terceiro setor”.

(d) Realizamos um levantamento de notícias sobre as ONGs em meios de comunicação: dois jornais e uma revista, durante quatro meses, conforme será descrito adiante.

(e) Utilizamos em grande medida informações através de sítios na Internet, o que se revelou muito útil e rentável, nesse tipo de pesquisa, com relação a esse universo de organizações.

(f) Realizamos o estudo de dois casos com mais profundidade: o Projeto Dema e o Projeto Girassol, que serão mencionados adiante.

A partir desse corpo de informações é que propomos as análises preliminares que se seguem.

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3.DADOS E ANÁLISES Esse primeiro trabalho exploratório nos levou a observar, em primeiro lugar, que há um enorme interesse sobre o assunto da prestação de contas e transparência das ONGs, tendo várias das pessoas ouvidas manifestado a relevância de se discutir amplamente o tema no Brasil, agora. “Esse debate é fundamental (...). É um movimento interno das organizações em lidar com o tema que já está caindo de maduro”, como disse em uma entrevista á ABONG Ana Toni, da Fundação Ford do Brasil, no mesmo tom de outros depoimentos. Ao lado disso constatamos que – apesar de entrevistarmos e participarmos de reuniões com gente que é liderança no mundo das ONGs – a discussão ainda está incipiente e um tanto desorganizada. Ou seja, não encontramos um discurso denso e já sistematizado, fruto de diálogos acumulados sobre essas questões. Como afirma Tatiana Dahmer, da ABONG: “Precisamos fazer um bom debate, aprofundá–lo. Já existem instrumentos que todas as organizações, de uma forma ou de outra, utilizam como prestação de contas e de cobrança do dinheiro público etc. (...) Ele traz visões diferenciadas e estamos começando a sistematizar e condensar esses acúmulos para que a gente consiga, internamente, aprofundar o debate (...). O problema é que a mídia trabalha como se não existisse nada.” Sem dúvidas, esse projeto cai em boa hora, e logo ao início do trabalho percebemos que não seria difícil encontrar portas abertas para as nossas indagações. Por outro lado, pelo que se disse acima, a fragmentação dos depoimentos originou algumas dificuldades para os pesquisadores. Apresentamos a seguir nossa tentativa de sistematizar essas informações diversas.

3a) O que se entende por prestação de contas.

-Diferenciação do universo e contraposição de concepções; significados políticos e legitimidade. A maioria das respostas a essa pergunta – “o que entende por prestação de contas?” - apontou para questões políticas, éticas, ou relativas a resultados e impactos efetivos, sendo poucos os que apontaram logo de início para mecanismos técnicos ou gerenciais de controle de recursos. A idéia de prestação de contas e transparência apareceu marcadamente ligada à questão da legitimidade das ONGs, em termos mais amplos. Podemos nos perguntar o quanto a primazia na “politização” da resposta se deve a uma debilidade de mecanismos gerenciais formais realmente existentes; o quanto se deve à debilidade de reflexão sobre eles; ou o quanto isso se deve a uma especificidade do conjunto de ONGs que acabamos por privilegiar aqui (seguindo o caminho das pedras quanto aos que efetivamente estão debatendo publicamente essas questões), as quais afirmam sua distinção enquanto organizações movidas pelos valores do ativismo e da transformação político-social, de alguma forma secundarizando os mecanismos técnicos. Ressalta, nesse caso, o conhecido ideário, objeto de debates sempre retomados, que contrapõe “política” a “técnica”. Como era de se esperar, as organizações mais próximas ao campo empresarial, por sua origem e natureza, deram maior ênfase ao fator de gestão e de mecanismos técnicos de prestação de contas (referência fundamental é o GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas ) do que as ONGs ligadas historicamente aos movimentos sociais, cuja matriz discursiva tem na ABONG (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais) seu maior porta-voz. Observe -se que não acreditamos haver uma contraposição irredutível entre concepções, trata-se de marcas distintivas dadas por origens, ligações institucionais, ideários, que em diversos caso e situações podem estar se contaminando. Seguindo, no entanto, os resultados obtidos nos contatos realizados e documentos consultados, a questão da diferenciação interna do universo das OSCs vai ser frequente nos discursos, premissa adotada sobretudo pelas organizações ligadas a movimentos e defesa de direitos que, diante de interpelações sobre a idoneidade das ONGs, começam a conversa marcando diferenças: “Representamos apenas um campo de ONGs históricas, promotoras da cidadania e que não têm como objetivo substituir o papel do Estado. (...) Aproveitamos

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oportunidades da crise [sobre transparência do setor] para esclarecer à sociedade sobre a complexidade de identidades e interesses, que transitam sob a alcunha de ´Não governamental` (...) Fazendo isso nos posicionamos, contribuímos com a construção de uma cultura de transparência e, de quebra, dizemos a que viemos.”5 Na página 18, adiante, o encarte de editorial recentíssimo da ABONG nos dá a medida das diferenciações pretendidas com o mundo das organizações ligadas ao campo empresarial. Nesse sentido, está presente em várias entrevistas e declarações – quando se pergunta sobre o que significa prestação de contas – a advertência de que a prestação de contas formal não seria central para a legitimidade de uma ONG, embora se reconheça sua necessidade e relevância.

Conforme diz um diretor executivo da FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), a prestação de contas das ONGs deve ser vista sob ao menos dois aspectos: (a) no sentido político mais geral (controle social) e (b) enquanto forma de controle derivada do financiamento público ou privado (transparência). Do ponto de vista mais geral, segundo ele, toda ONG deve se submeter a algum tipo de controle social. Nesse sentido, enquanto organizações privadas de interesse público, para evitar sua apropriação corporativa, devem valorizar o controle exercido sobre elas pelas Assembléias Gerais de associados e Conselhos Deliberativos não profissionalizados. Já no que tange à transparência há vários mecanismos, e um dos mais relevantes é a publicação de balanços regularmente na grande imprensa – como a FASE procede.

Seguindo sua linha de raciocínio sobre o que focalizar na definição de “prestação de contas” esse mesmo diretor ressalta que, no seu entendimento, as ONGs são atores políticos e que, nessa condição, seu controle social depende de relações de força na sociedade derivadas de suas ações. Nesse sentido, prestar contas seria, em primeiro lugar, publicizar a ação da ONG - através da Internet, por exemplo. A FASE é um dos casos em que se pode, através desse meio, verificar uma intensa participação em espaços públicos nacionais, como fóruns, conferências, conselhos, campanhas: está sob holofote permanente. O controle social seria assim, e sobretudo, o controle sobre a ação política da FASE.

Nessa perspectiva é que a prestação de contas formal não seria a questão central quando se trata da legitimidade de uma ONG. Como diz o entrevistado, “presta -se contas a quem tem poder. Nem o Estado nem as agências de cooperação teriam o poder de conferir legitimidade. A legitimidade adviria da capacidade de implementação dos próprios compromissos institucionais assumidos pelas ONGs, no caso da FASE, a luta contra a desigualdade”.

Os dados ainda exploratórios aqui recolhidos sobre os doadores internacionais apontam para uma

razoável convergência de concepções com as parceiras nacionais. Isso não é de se estranhar, pois esses discursos e práticas sobre prestações de contas constroem-se a partir de um campo de entidades que mantêm linguagens e horizontes comuns de atuação, sendo inclusive forte a influência Norte-Sul (financiador-fina nciado) nesses processos.

Portanto na mesma direção, de pensar em termos de poder, vão os depoimentos de um dos diretores da

Action Aid, entidade de financiamento com escritório no Brasil. Também insiste na diferenciação de concepções e de projetos dentro do mundo não-governamental: “a transparência é moda nesse campo do desenvolvimento. Mas quando há vários atores tratando do mesmo tema, como a TV Globo, o Banco Mundial, os movimentos sociais, a ABONG, será que se está falando da mesma coisa? Há posições diferentes, há conflitos nesse campo, há uma ́ confluência perversa` de projetos nesse campo”.6 Observa que quando está em jogo a questão de poder envolvendo segmentos populares, o problema certamente “não é de eficácia de gestão”, e que o debate sobre a tr ansparência, ou as exigências de transparência, tem sempre funções políticas.

É mais uma das falas ressaltando que transparência tem a ver com “direitos e deveres da ação no

espaço público”. O diretor da Action Aid ressalta as múltiplas dimensões de poder envolvidas nos processos de

5 “Nossa Opinião – Sobre ONGs: desafios para a construção de uma cultura democrática” – maio de 1996 - www.abong.org.br. 6 Refere-se a uma teoria da cientista política brasileira Evelina Dagnino: na sociedade civil, haveria projetos políticos e interesses diferenciados e mesmo opostos que acabam por se confundir ou confluir, no contexto atual. Esse depoimento foi dado em uma reunião de ONGs e fundações, em janeiro de 2007.

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cobrança de transparência : por exemplo, nas relações de parceria, quem financia tem o poder de demandar transparência; igualmente, se pensarmos no campo de concorrência em que se situam as ONGs, a demonstração de transparência agrega um “plus” às que a fazem; os discursos e as demandas por transparência podem também funcionar como elementos de poder entre as ONGs e os grupos excluídos e populares; a transparência também tem sido usada como marketing, tem valor de prestígio no mercado; a transparência também pode ser mercado para especialistas e consultores no assunto, dentro do “mercado da gestão ”... Portanto, a questão da prestação de contas e da transparência é pensada aqui – também, entre outras coisas - enquanto elemento usado quer para superar, quer para reforçar relações de poder entre organizações e grupos. “Nos processos de transparência estão envolvidas relações em que se abrem e se fecham possibilidades”. No caso da Action Aid, os processos de viabilização da prestação de contas e da transparência são desenvolvidos enquanto elementos de uma estratégia de “democratização de relações e abordagem da questão dos direitos”. Alguns mecanismos coerentes com essas concepções: a instituição estabeleceu que 80% do Board e da Assembléia têm que ser composto por pessoas de grupos populares e excluídos. E estabeleceu uma open information policy, além de um sistema interno para monitoramento que viabiliza a transparência.

A Fundação Ford do Brasil também fugiu das “receitas” de prestação de contas e transparência, colocando alguns princípios gerais, no contexto da reunião em que participamos e onde pudemos recolher um depoimento. Perguntada em uma entrevista feita pelo IBASE sobre a importância do debate sobre a prestação de contas, Ana Toni responde: “Esse debate é fundamental (...). A legitimidade é um instrumento de democracia em geral. Por isso, a nossa prática de transparência tem que ser colocada para as organizações de dentro para fora. Para a Fundação Ford, externamente e internamente, a questão de transparência é uma questão da prática democrática que tem que ser colocada para todos”. E indagada sobre quais os mecanismos de transparência desejáveis tanto para a Ford, como para aquelas que financia, explica: “Não há uma receita quanto a ser ou não ser transparente. O que precisa ser colocado é até que ponto a organização tem instrumento de transparência que faz com que a organização se sinta legítima perante as pessoas com as quais se relaciona. É preciso, no mínimo, ter como responder às suas ações, justificá-las com números e dados. Isso vai mudar de organização para organização. Uma organização como o IBASE, que tem atuação nacional, vai ter uma forma de prestação de contas diferente de uma outra menor que atua localmente”.7 A questão da transparência é reafirmada, também no caso da representante da Agência Internacional, como necessidade de afirmação de um campo e de manter legitimidade enquanto “direito de justificar as ações escolhidas por essa organização”: a percepção dos stakeholders tem a ver com isso. Finalmente, um discurso que se coloca em sentido diverso foi bem representado, na pesquisa, pelo depoimento em entrevista de um consultor de organização mais próxima ao mundo empresarial, o CDI (Comitê da Democratização da Informática): “Temos que fazer prestação de contas, não prestação de contos”. Ressaltou, quanto ao fundamental na prestação de contas, a relevância do estabelecimento de “metas definidas, indicadores precisos, objetivos claros, capacitação para se mo strar a maneira de se fazer”. Isso é premissa para se poder medir os resultados em termos de qualidade e quantidade. Reforçando a racionalidade e tecnicidade necessários a esse processo, contrapôs -se também à “cultura dos anos 70”, em outra conjuntura, em que a confiança era a base das relações. Defende o uso do modelo de balanço social – do qual se falará adiante – para as organizações não governamentais.

7 www.abong.org.br, fevereiro de 2006

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NOSSA OPINIÃO: Transparência é relação de poder

Um dos temas centrais que conclamam, nos últimos tempos, a sociedade ao

debate é a necessidade de transparência como pressuposto para o

enfrentamento da corrupção. A Abong vem contribuir com algumas reflexões

em torno desse tema para o universo das ONGs, considerando que este, por si

só, pouca coisa nos informa.

Ser transparente deve ser, sim, um princípio de ação de todo e qualquer

agente social que atua nas esferas públicas, sejam políticos/as, organizações-

não-governamentais, movimentos sociais e até mesmo empresas, que cada

vez mais disputam o sentido de construção da sociedade.

A transparência não se reduz a instrumentos para o combate à corrupção.

Instrumentos são meios, e o combate à corrupção é apenas uma das

conseqüências, quando há efetivamente transparência como princípio e parte

da estratégia institucional.

Se afirmamos que esta é uma das condições para a construção de relações

éticas na sociedade, sabemos que transparência não é um conceito neutro e,

sim, mais um termo em disputa, assim como solidariedade, participação e

cidadania. Esse tema precisa ser melhor qualificado, uma vez que tampouco

tem sido neutro o contexto que o traz à tona.

O central é: transparência é, antes de tudo, relação de poder. Tanto quem a

exerce como quem clama por ela precisam ter consciência sobre seu papel

como sujeitos políticos, para que ações simplistas e burocráticas não sejam

confundidas com práticas transparentes, ou usadas para mero marketing

institucional, ou, como se afirma no meio do mercado - universo da

responsabilidade social -, uma forma de "agregar valor ao produto".

Quando nos referimos a entidades, empresas e mesmo políticos/as que atuem

no campo da ética, um dos maiores problemas hoje em se praticar ações com

transparência relaciona-se à restrita compreensão do que isso significa por

parte tanto de quem desempenha ações de sentido público quanto,

principalmente, do público que se relaciona com tais agentes e aos quais,

teoricamente, se "deve" essa transparência.

Portanto, algumas questões devem orientar essa reflexão: Por que se quer ser

transparente? Como se quer fazê-lo? Para qual público se dirige qual tipo de

informação? Qual é a linguagem acessível? O que é fundamental informar

para enfrentar a lógica de desconhecimento e alienação em relação ao fazer e

à ação política dos diferentes agentes sociais, de como interferem na

realidade? Como a prática da transparência incide sobre a democracia interna

das organizações?

Muitas vezes, práticas de exposição de excesso de informações, em geral

financeiras, não contribuem para esclarecer conteúdos, expor o sentido real

da ação de quem se propõe transparente. É preciso ter sensibilidade para

lidar com os diferentes públicos, prestar as informações necessárias para que

exista compreensão sobre o que fazem as ONGs, para quem, por meio de

quais recursos, com quais agentes sociais.

Transparência, nesse sentido, precisa ser compreendida como um conjunto de

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práticas, pautadas por princípios éticos da ação política, capazes de incidir de

forma transformadora e educativa, inicialmente, na cultura institucional de

quem a exerce e também na relação com os/as interlocutores/as.

A prática da transparência não deve ser apenas uma prática externa das

organizações - e, em geral, uma resposta reativa e defensiva a posições

autoritárias e moralistas da sociedade ou de governos sobre a ação política de

diferentes agentes sociais numa sociedade democrática.

Insistimos que para haver efetivamente o fortalecimento da ética e a

transformação das relações de poder, o público-alvo das informações deixe de

ser mero receptor e atue como sujeito político, dialogando e questionando

sobre o sentido da ação política das organizações e sobre a transparência,

que deve fazer parte de uma mudança nas relações de poder.

As organizações devem repensar sua cultura política, sua relação com

financiadores/as, com o público-alvo e mesmo com a sociedade de uma forma

geral. Precisamos discutir qual transparência, para quê, para quem e como.

Não deve haver ingenuidade nesta transparência e deve ser um tema

debatido publicamente com qualidade.

Assim, levantemos instrumentos que as organizações já vêm desenvolvendo.

É importante romper com a falsa idéia, alardeada por alguns meios de

comunicação, de que não há transparência nesse amplo universo das ONGs.

Há entidades que praticam transparência como princípio e há outras que

efetivamente burlam exigências existentes para prestação de contas. Mas há

formas de regulação do acesso a recursos públicos, e isso é que precisa ser

conhecido e debatido pela sociedade.

Por isso, ao prestar contas para a sociedade, não adianta despejar uma série

de informativos financeiros. É preciso dar informação qualificada e

diferenciada para aquele público. É preciso dizer de onde vem o dinheiro, para

aonde vai, qual a natureza do trabalho, como se dão os processos de trabalho

dentro da organização, se há democracia e transparência nas esferas internas

de decisão. É preciso que a transparência incida sobre a cultura política e nos

ensine a construir relações mais igualitárias de poder.

www.abong.org.br fev 2007

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O GIFE, sendo a organização guarda -chuva pioneira do campo do investimento social empresarial, é o melhor exemplo da especificidade de linguagens adotadas por cada “subconjunto” do universo das organizações da sociedade civil. Prefere-se nesse caso utilizar o termo “terceiro setor” e a distinção entre organizações é menos ressaltada. Os termos, nesse caso, quando se trata da transparência e prestação de contas são “responsabilidade social” do doador enquanto ator social, a doação sendo sua “quota -parte” à comunidade. As expectativas são de “resultados do investidor social”, tendo as entidades financiadas que prestar contas a seus “patrocinadores sociais”, em busca, além da ética, de maior “eficiência”: “A ação social contemporânea não é mais calcada na caridade e, portanto, na atuação descompromissada com os destinos dos assistidos. Hoje, as ações sociais de indivíduos e empresas são amparadas no conceito de responsabilidade social, onde o doador, deixando de ser um mero expectador – como o caridoso cidadão –, passa a ser um ator social exercendo sua quota -parte nos destinos de sua comunidade. A partir dessa nova atitude pessoal do doador, surgiram novas expectativas sobre a atuação da entidade receptora. A doação descompromissada da caridade foi substituída pela doação engajada, pautada em práticas éticas e focada em resultados do investidor social. Assim, as entidades do terceiro setor, em curto prazo de tempo, deixaram de ser provedoras de serviços sociais – e, portanto, voltadas apenas para o beneficiário, que sendo hiposuficiente aceitava o que lhe davam – para se tornarem mandatárias dos investidores sociais, administrando valores de terceiros dados à causa de interesse público que advogam e, dessa forma, tendo o dever de prestar contas aos seus patrocinadores, cada vez mais criteriosos e sempre em busca de maior eficiência sócial”.8 A idéia de governança associada à prestação de contas é também trazida de forma enfática pelo conjunto referido ao meio empresarial. O encontro promovido pelo GIFE, em finais de 2005, em parceria com o Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (Ceats) da Fundação Inst ituto de Administração da Universidade de São Paulo (FIA/USP), foi aberto por Rosa Maria Fischer. Enquanto coordenadora desse último, Rosa afirmou que “governança e accountability (prestação de contas) são os grandes desafios de gestão nos próximos anos, em especial para as organizações da sociedade civil”. A idéia desenvolvida no encontro é de que as ONGs cresceram demais e coloca-se, portanto, urgentemente, a questão de discutir seus problemas de governança.9 A questão da sustentabilidade de recursos a ser alcançada pela instituição financiada é também ressaltada, no caso dos associados ao GIFE, o que se liga à questão da gestão e, indiretamente, da eficiência na prestação de contas: “Especialistas em investimento social afirmam que, além da transparência e da prestação de contas, as grantmakers buscam projetos que se tornem sustentáveis”10 As origens, ligações institucionais e portanto posições diversas na sociedade – o que foi entrevisto na introdução acima - estabelecem esse tipo de diferença de discursos e práticas, que pode tornar-se tanto complementar como, frequentemente, divergência e marco de distinção. Restaria para o futuro aprofundar quais as consequências – a efetividade e a eficácia - de sua concretização, em cada caso.

-Relação com parceiros diversificados e apresentação de resultados; as grandes e as pequenas. Outros aportes interessantes sobre o significado da prestação de contas foram os que ressaltaram o

sentido da “parceria”, a ser resgatado desde a execução do projeto até a apresentação de resultados.

Como definiu em entrevista um diretor da organização de âmbito nacional e que trabalha em áreas rurais, a AS-PTA, “a prestação de contas seria um componente de entidades que trabalham em parceria, um momento da parceria ela mesma”. Ao receber dinheiro, junto com ele, estariam assumindo juntos

8 “Utilidade pública e OSCIP: como anda a qualificação?” – Eduardo Szazi – Consultor jurídico e sócio emérito do GIFE – 17/06/04 www.gife.org.br 9 “Crescimento do terceiro setor leva organizações ao debate sobre governança” – Mônica Herculano, Repórter do redeGife, 12/02/05, www.gife.org.br 10 “ Sustentabilidade é essencial para garantir investimentos” – Rodrigo Zavala – 20/11/2006 – www.gife.org.br

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compromissos com resultados. Da quantidade deverá, portanto, resultar qualidade. Não só tendo em vista uma relação direta com o financiador, posto que muitas vezes este seria um repassador. Tratar-se-ia de uma reação em cadeia: financiador do financiador (bancos, governos, p. ex.), financiador-parceiro, ONG-parceira, parceiros locais (sindicatos, associações de agricultores), famílias. Cada um obtém recurso em nome do outro, do trabalho que faz com o outro. Em função dessa cadeia, diz o entrevistado, é necessário prestar contas junto a uma assembléia de sócios responsável diante da sociedade, que confie e respalde política e eticamente o trabalho da entidade. Essa prestação de contas não pode ser apenas, nem sobretudo, contábil. Uma Assembléia representativa quer saber qual a qualidade no uso dos recursos. Os instrumentos contábeis não foram feitos para garantir transparência junto a parceiros. Para esse diretor entrevistado, a contabilidade formal é instrumento de ocultação: para revelar são necessários outros instrumentos. Instrumentos que permitam agregações e desagregações. São necessárias linguagens próprias e claras para cada parceiro-público. Digitalizados, os dados, a prestação de contas pode ser organizada em função do diferentes atores ao qual as ONGs estão vinculadas. A prestação de contas seria uma forma de expressão da parceria, ela deve evidenciar com números a qualidade de seu trabalho.

Observamos que as organizações menores e de âmbito local, situadas em cidades interioranas, em

contato mais quotidiano e direto com a comunidade e seu entorno, apresentam uma sensibilidade particular para considerar as prestações de contas a parceiros próximos com que trabalham.

Vê-se aí mais enfaticamente a introdução da questão da diversidade de atores a quem se presta contas – afinal, estão muito perto - e a necessária tradução das formas de interlocução com cada um. Outra organização que trabalha em áreas rurais no Nordeste brasileiro, o SERTA (Serviço de Tecnologia Alternativa) – com a diferença de que se trata de uma organização de cidades do interior – privilegia também esses aspectos. Interpelada, uma de suas diretoras responde que prestar contas refere-se, em primeiro lugar, principalmente às atividades realizadas, “o que foi feito e seu impacto. É disso que uma organização tem que prestar contas, fundamentalmente. Por exemplo, podemos fazer 100 seminários e não ter impacto algum. Fica apenas o evento, o resultado limita -se à própria ação”. Focaliza de modo particular, em segundo lugar, a questão dos diversos destinatários da prestação de contas: o financiador, o público e os parceiros. No caso, os parceiros considerados não são os financiadores, mas sim os colaboradores na execução dos trabalhos.

Surge uma idéia que também se reitera em outros depoimentos: quando se trata de prestar contas ao

setor público – no caso, a sua organização tem que prestar contas ao Ministério da Justiça e à Prefeitura, com regras bem específicas e precisas – “aí, estamos muitas vezes lidando com o inimigo”. A idéia é de que é necessário, sem dúvidas, o controle público, mas que isso é uma faca de dois gumes: as regras de controle “são as das classes dominantes”, não servem para combater a corrupção e podem ser usadas contra as organizações sociais. Em termos dos parceiros do mundo empresarial e em que poderiam contribuir com a sua expertise na prestação de contas, a entrevistada focou sua resposta no exemplo de uma experiência bastante negativa de administração contábil através de uma empresa, imposta por um financiador também do campo empresarial: teria havido problemas não só com relação à competência, mas também de relacionamento distante e autoritário com as ONGs locais, que têm dificuldades para dominar os mecanismos gerenciais e contábeis empresariais trazidos de fora de seu mundo e de suas transações quotidianas, em lugares onde mesmo as notas fiscais são inexistentes.

Nesse terreno, um dos estudos de caso que realizamos foi exatamente sobre uma organização pequena, o

Instituto Girassol de Desenvolvimento Social , que trabalha com temas relacionados à juventude, existente numa cidade da zona canavieira do Nordeste brasileiro de menos de 20.000 habitantes, onde a “sociedade civil” é de enorme debilidade e é grande a precariedade de condições materiais de existência. Seu coordenador – também jovem – por si mesmo, e sem que houvesse nenhuma imposição, ou mesmo instrução dos financiadores, tomou iniciativas extremamente interessantes e exemplares, criando mecanismos de prestação de contas apropriados ao local e ao seu contexto, como audiências públicas, um boletim informativo e divulgação das contas pela rádio local (não possuem site na interne t). Além de contato direto com a organização, recebemos por escrito as respostas de José Gilson, diretor do Girassol:

Entrevistador: “O que você entende por "prestação de contas" de uma organização da sociedade civil ?”

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Resposta : - “Em nossa realidade, esse processo é de extrema valia pois nossa comunidade vivia arisca, durante muito tempo as pessoas só se importavam em coletar dados, fazer projetos sem a participação comunitária, tudo isso contribuiu para esse fenômeno de desconfiança, em períodos políticos sempre havia promessas mas ao passar a eleição as comunidades continuavam no completo abandono. Esses dados foram identificados em um diagnóstico participativo realizado pelo grupo Girassol em 2004 e tais informações nos serviram de base para que durante a construção de nosso projeto pudéssemos estar em contato direto com os atores envolvidos: a prestação de contas seria peça fundamental para que se tivesse uma participação coletiva realmente acreditando na proposta. Transparência e acima de tudo clareza nas ações são as palavras chave nesse processo”. Entr: “No seu entendimento, quais os objetivos e por que essas entidades têm que prestar contas?” Resp: “Legitimar o processo de plena democracia, pois quando as pessoas se vêem envolvidas elas se apropriam da idéia e a participação é bem mais proveitosa e envolvente . Entr: “Quais os aspectos mais importantes da prestação de contas?” Resp: “Não basta só demonstrar os dados financeiros, mas também as ações realizadas, como foram feitas, com quem foram feitas, quantos envolvidos diretamente e indiretamente. Para quem? Principalmente para os que estão inseridos na proposta como público participante. Ter o máximo de pessoas informadas sobre a prestação de conta,s maior credibilidade se poderá alcançar” (Entrevista com José Gilson Neves, diretor do Girassol).

3.b)Mecanismos atuais. Alguns mecanismos de prestação de contas trazidos pelas instituições analisadas já foram mencionados nos

depoimentos e documentos acima. Apontamos aqui para traços gerais desses mecanismos, sem nos determos em traços formais adotados por cada organização. Seriam muitos os detalhes e optamos por não alongar mais ainda o texto. As ONGs apontaram para mecanismos “internos” e “externos”.

Em entrevista, observa Ana Toni (Fundação Ford), por exemplo: “A legitimidade é um instrumento da

democracia em geral. Por isso, a nossa prática de transparência tem que ser colocada para as organizações de dentro e de fora. Para a Fundação Ford, internamente e externamente, a questão da transparência é uma questão de prática democrática que está posta para todos. Uma questão é saber quais são as práticas da organização em relação à prestação de contas, auditoria, à área financeiro –administrativa; a de governança, se tem um conselho externo etc. A outra é na área de diversidade. Até que ponto aquela organização que fala em nome do interesse público reflete isso internamente também”11. Nessa menção à diversidade, a Fundação Ford está chamando a atenção sobre sua política de inclusão de “minorias” no corpo de funcionários das entidades: também se deverá prestar contas dessa dimensão.

Ainda sobre a questão “interno/externo”, continua a mesma entrevista: Quando a Fundação Ford faz uma

doação de recursos, temos que prestar contas do que estamos fazendo. Há um contrato formal entre o doador e o donatário. Por exemplo, se a organização que recebe recursos utilizou–os para comprar 10 computadores, vai ser verificado se esses computadores foram realmente comprados. Para o público, essa informação não é relevante desta forma, deve–se falar sobre os benefícios dessa compra , para que servem etc. Agora, é importante que essas informações não se contradigam. As informações, embora diferentes, devem ser complementares.

A existência de Conselhos e Assembléias compostos por agentes reconhecidos e representativos de variados segmentos da sociedade, com relação de autonomia com a instituição, como forma de consulta, acompanhamento e controle das ações das organizações da sociedade civil foram mencionados por todos como mecanismo indispensável de transparência e prestação de contas. Algumas (talvez poucas) organizações adotam como princípio colocar nessas instâncias pessoas originárias da população com a qual se trabalha (beneficiários,

11 Entrevista ao IBASE, www.ibase.org.br, 2007

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público-alvo, destinatários, envolvidos, como se queira chamar), como foi mencionado no caso da Action Aid, acima. Outras organizações – nesse mesmo espírito – relatam experiências de diálogo intenso também com os participantes nas “bases” dos projetos, desde a elaboração até os resultados finais. Como esclarece , em entrevista, o diretor do AS-PTA: antes de elaborar o orçamento são discutidas idéias e propostas com parceiros, os atores coletivos da agricultura. “A Assembléia Geral funciona como um microcosmo da sociedade. Nela estariam representados setores da universidade interessados no tema, da Igreja católica, dos agricultores, do governo, das ONGs, dos consumidores etc.). As idéias seriam portanto discutidas em diferentes níveis, mais ou menos agregados: na Assembléia geral e lá no Paraná [onde se realiza um projeto]. O orçamento seria portanto parte do debate: quanto se paga, quem paga. Os parceiros deverão depois poder acompanhar a execução orçamentária, que está digitalizada para permitir esse acompanhamento ”.

Outro mecanismo generalizado e apontado como relevante é a disponibilização de orçamentos , fontes de financiamento e balanços financeiros através da Internet. Algumas instituições – por exemplo, a FASE, entre outras – publica seu balanço também nos jornais.

Em termos internos, um mecanismo mencionado como útil, como se viu, é o controle on-line da utilização

orçamentária . No entanto, nesse caso, existe a limitação dada pelas condições materiais das organizações: a maioria é pequena e sem recursos, tanto orçamentários quanto técnicos, para tal, e o financiamento para apoio institucional é geralmente muito escasso.

Há alguns modelos de prestação de contas que vêm sendo disseminados, no sentido de sua adoção pelas

ONGs. Por exemplo, a Action Aid adota o “sistema ALPS”, que vem sendo utilizado em 44 países, segundo depoimento de Rosana Heringer. A questão de que modelo adotar parece estar sendo progressivamente objeto de preocupação nesse campo. Como afirma Ana Cristina Nobre da Silva, da IMAFLORA (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) , ao trabalhar com a certificação ambiental, estão cobrando publicamente boas práticas de atores externos. “Isso se reflete sobre nós, temos que ter transparência”. Nesse caso, fala da importância de um modelo de prestação de contas, e pergunta que modelo adotar: menciona o GRI (Global Report Initiative), o modelo do Instituto Ethos (www.ethos.org.br) e o Balanço Social do IBASE.

Um dos modelos mais discutidos e cuja utilização vem pouco a pouco sendo aceita no mundo das ONGs

brasileiras é o esse do Balanço Social, que tem no IBASE (Instituto Brasileiro de Ação Social e Econômica ) – e na pessoa de Ciro Torres - um importante defensor e disseminador. Herbert de Souza (Betinho), um dos fundadores do IBASE e que se tornou extremamente conhecido com a promoção da campanha Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida (1993) lançou, em junho de 1997, a campanha pela divulgação voluntária do balanço social anual. Desde então, o IBASE trabalha com o tema e seu modelo de balanço social é referência para empresas brasileiras. “Estimulamos que empresas que atuam no Brasil publiquem seu balanço social no modelo Ibase – demonstrativo divulgado anualmente, reunindo informações sobre projetos, benefícios e ações sociais e ambientais dirigidas a empregados(as), investidores, analistas de mercado, acionistas e à comunidade. Até 2005, contabilizamos 976 balanços de 305 diferentes empresas. Todos esses balanços estão disponíveis para consulta” (www.ibase.org.br) . Atualmente, o Ibase oferece quatro modelos de balanço social: empresas; fundações e organizações sociais; micro e pequenas empresas; cooperativas. O número de adesões ao balanço social por parte das ONGs ainda é reduzido e vem sendo motivo de discussão.

-Questões específicas: as menores e/ou em áreas do interior. Como observa a diretora da SERTA, organização situada em cidade interiorana do Nordeste, em entrevista:

“a prestação de contas é um aprendizado muito difícil. Trabalha-se com dinheiro público, é necessária gestão transparente e digna, lisura, boa utilização dos recursos. E queremos fazer uma história diferente da burguesia, as pessoas não podem querer se locupletar”. Dentre as dificuldades para sua organização, observou à da pressão pelos salários, necessariamente baixos, a partir dos parâmetros colocados pelos financiadores. Chamou a atenção, também, para algo que observamos recorrentemente nas pequenas ONGs do interior nordestino, o emprego de familiares, questão difícil de controlar dada a cultura vigente: “as pessoas dos grupos populares protegem primeiro a família, consideram isso uma coisa natural”.

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Pudemos observar, nesses casos, que as agências financiadoras não governamentais têm representado papéis relevantes junto a entidades pequenas de cidades interioranas, quanto à capacitação para prestação de contas. Contribuem para que se criem práticas de recolhimentos de comprovantes e exigência de notas fiscais e para que se mudem mentalidades no sentido da compreensão do que é público e deve ser tornado transparente para a sociedade.

Quanto a isso, é interessante retomarmos o exemplo do Projeto Girassol acima mencionado. Em uma cidade

muito pequena e de baixos indicadores sociais, o diretor do Girassol, sem site na internet, adotou como prática a realização de audiências públicas periódicas na Câmara de Vereadores da cidade . Os jovens participantes dos projetos são levados para essas audiências, quando se realizam exposições fotográficas e apresentações detalhadas das movimentações financeiras dos últimos meses. No seu relato entusiasmado sobre a última audiência: “dos nove vereadores que compõem a câmara, oito se fizeram presentes, além do promotor de Justiça, representantes de todas as secretarias municipais, parceiros do projeto Girassol, membros da sociedade civil organizada e demais autoridades. Mas o maior destaque ficou a cargo dos jovens que fazem parte do projeto, esses, ah esses lotaram o auditório da casa legislativa, foram mais de cinqüenta representantes de todos os sete grupos, foi de fato uma verdadeira lição de cidadania e participação popular, mais uma vez fiquei muito orgulhoso e contente com tudo o que vem acontecendo em nossa cidade, é de fato muito bom e contagiante para quem esta vivenciando tudo isso ”. Publicam também um folheto chamado “Transparência – um boletim financeiro do Instituto Girassol de Desenvolvimento Social”, que chama a atenção em editorial para a relevância da gestão participativa de recursos financeiros como elemento na constituição e fortalecimento de vínculos de confiança entre as instituições e as pessoas. Interessante é o fato de que apontam para consequências adicionais dessas ações, em termos de aproximarem a câmara de vereadores da população. O que diz em entrevista para essa pesquisa:

Entr: “Como é que você considera que as organizações da sociedade civil têm que prestar contas?” Resp: “Aqui em Boca da Mata descobrimos que as pessoas não costumavam ir muito até a Câmara de

Vereadores, aí resolvemos levar para o Legislativo a proposta de uma Audiência Pública de prestação de contas. A partir dessa iniciativa pioneira no Município pode-se observar um maior interesse das pessoas em conhecer e participar das atividades dos vereadores da cidade. A Rádio Boca da Mata FM transmite ao vivo toda a seção, alem de relatar em seus programas o boletim contendo as informações a respeito da prestação de contas, principalmente no programa apresentado pelos jovens, o“ Espaço Jovem”.

O diretor da entidade revela que o processo de transparência envolve também a fixação de planilhas em

locais públicos, além de entrevistas avaliativas feitas com a comunidade, sendo que isso faz com que os entrevistados fiquem cientes e com maior vontade de participar e apoiar o projeto. Esse é um caso exemplar que aponta para modelos e concepções possíveis de prestação de contas.

- Alguns problemas e dificuldades. Vários entrevistados apontaram para dificuldades de lidar com o tema da transparência por conta da enorme precariedade, falta de recursos, na maioria das ONGs, o que prejudica as práticas relacionadas à prestação de contas, monitoramento, avaliação. Por um lado,observa-se que a legislação engessa. Por outro, como lembrou Ana Toni da Fundação Ford, há a questão da origem das ONGs, que nascem na clandestinidade . Algumas têm um ranço político, como se esse tema fosse menos importante que os outros. Isso está mudando, mas existe. Há ainda um “8 ou 80”: ou temos que fazer tudo transparente , ou nada transparente, diz ela (depoimento colhido em Encontro). A questão das origens das ONGs no Brasil, em tempos de ditadura militar, é por outros também evocada como estando na raiz de dificuldades e lentidão para aprender a lidar com a prestação de contas e o controle por parte do Estado. Como declarou a representante da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço), organização situada no estado da Bahia, dedicada ao financiamento de pequenos projetos, “o CESE existe há 34

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anos, é do tempo em que transparência significava risco de vida. Ao longo dos anos 80, o CESE começou a ter que ter cara. A síndrome da militância clandestina ainda existia”. Aos poucos, segundo o depoimento, foi-se criando a necessidade de planejamentos mais longos do trabalho; de pensar sua identidade, pensar qual o volume de recursos poderiam ou queriam operar. Daí, foram-se criando novos arranjos administrativos e ferramentas de gestão apropriadas. Mas tudo veio com o tempo, tendo-se que superar uma forma que foi construída em tempos não (ou anti) democráticos, conforme a representante da CESE. Houve ainda uma afirmação original, por parte de um dos entrevistados, especialista em gestão e administração do terceiro setor: “o que atrapalha a prestação de contas é a sociedade”. Refere-se ao fato de que, em sua opinião, somos um país filantrópico, onde todo mundo doa. Um menino que pede dinheiro na esquina tem chegado a ganhar R$ 600,00 por mês. “Essa prática de esmola contribui para o atraso”. Também os que doam dinheiro para ONGs e não cobram resultados contribuem para a má administração dos recursos . A ONG vai continuar “vendendo miséria ”. Na sua concepção, as organizações estrangeiras e as empresariais exigem um retorno, e, portanto, contribuem positivamente para a questão da transparência. O representante da FASE concorda com relação ao papel das instituições internacionais de cooperação, mas relativiza o das empresas. Na sua avaliação, as agências de cooperação teriam contribuído bastante para o desenvolvimento de uma cultura de prestação de contas da ONGs brasileiras, para a evolução de ONGs criadas em um quadro de extrema informalidade, sem institucionalidade e voltadas/orientadas apenas pelo contexto nacional. A cooperação teria forçado diferenciações na sociedade civil brasileira com o avanço da democratização. Cobradas em seus países quanto aos resultados e formas de aplicação de recursos, se tornaram mais exigentes aqui. O fim da ditadura brasileira coincidiu com esses que stionamentos crescentes das agê ncias internacionais. Conforme ainda o entrevistado, as agências pressionaram por formalização de procedimentos e no sentido da implantação de métodos de Planejamento, Monitoramento e Avaliação, PMA, aos quais muitas ONGs resistiram por considerarem esses métodos intrinsecamente empresariais, mas que hoje são percebidos como importantes para o próprio desenvolvimento institucional. Por outro lado, ele não considera a responsabilidade social uma inspiração nessa questão: “Só se eu reduzir a transparência a formalismo: a capacidade técnica não corresponde a um compromisso mais profundo com relação a se submeter ao controle da sociedade. Na chamada responsabilidade social empresarial, parece-me que o conceito de eficiência sobrepõe-se às outras dimensõ es”. (Entrevista a essa pesquisa).

Fica pontuado o debate em curso.

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3.c)Imagens e percepções Apesar das notícias negativas virarem destaque na mídia – através da focalização sobre os casos de corrupção – pesquisas de opinião pública têm revelado que a imagem das ONGs para a população está longe de ser desmoralizada. Mencionamos aqui duas pesquisas nesse sentido. - Pesquisa de opinião pública da ABONG – 2001 Em 2001 a ABONG divulgou uma pesquisa, encomendada ao IBOPE, sobre as ONGs brasileiras. Uma razoável parte da população brasileira declarou conhecer as ONGs, havendo, como era de se esperar, uma correlação positiva entre escola ridade e esse conhecimento: responderam que sim 81% dos que já frequentaram a universidade, 45% dos que frequentaram o colégio, 26% dos que frequentaram o ginásio e apenas 11% dos que terminaram seus estudos no primário. Mais da metade dos brasileiros acreditavam naquele momento que as ONGs ajudam a sociedade: 58%. Foram apenas 13% os que declararam que as ONGs atrapalham. Quase um terço dos brasileiros declararam que gostariam de pertencer a uma ONG (27%). Essa idéia era mais acentuada ainda na juventude: 36% dos jovens entre 16 e 24 anos manifestaram-se nesse sentido. Como mencionava Silvio Caccia Bava, seus principais argumentos eram: “possuem um papel fundamental no Brasil de hoje, atendem as necessidades que não são atendidas pelo Estado, organizam a sociedade civil para lutar por seus direitos, existem para defender os interesses dos mais necessitados e existem para fiscalizar a ação do Estado (...). As ONGs, grupos de cidadãos que se organizam na defesa de direitos, contam com o apoio de grande parte da sociedade.”12 - Pesquisa em jornais elaborada pela Secretaria Especial de Comunicação Social do Senado Federal – 2006.

No momento atual, apesar dos freqüentes ataques políticos e busca de quebra da legitimidade das ditas ONGs – como dissemos, está sendo pedida no Congresso Nacional a instalação de uma segunda Comissã o Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs, para apurar desvios de recursos – há um estudo recentíssimo elaborado pela Secretaria Especial de Comunicação Social do próprio Senado Federal que aponta na direção oposta. Em novembro de 2006, esse estudo sintetizou assim a imagem das ONGs, obtida a partir de uma amostra de 1207 notícias recolhidas nos cinco maiores jornais do país (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Correio Brasiliense), das quais foram selecionadas 307 matérias jornalísticas, aleatoriamente e segundo critérios estatísticos para análise individual e alimentação de questionário: “ uma marca forte, com alta credibilidade, boa visibilidade, nítido perfil urbano e concentrada em trabalhos de cunho social”. Consideradas as deformações de cobertura desses jornais, que podem explicar, por exemplo, uma eventual subestimação da presença das ONGs no meio rural, (como mostra a pesquisa IBGE/IPEA/GIFEABONG citada) essa pesquisa da imagem das ONGs na Mídia traz algumas revelações:

• Clara relação entre densidade populacional, concentração urbana, carências sociais e visibilidade das entidades na imprensa;

• Organizações rurais, como o Movimento dos Sem Terra, MST, também recebem cobertura jornalística em situações pontuais, com presença menos freqüente nas páginas dos jornais;

• Quanto ao gênero da notícia, a imprensa produz pouca “opinião” quando a cobertura envolve ONGs. 95,1% do noticiário analisado foi classificado como informativo e as notícias opinativas foram 4,9% desse universo;

• As questões sociais dominaram do ponto de vista dos temas: Assuntos sociais, 63,7%; Assuntos econômicos, 12,7%; Assuntos de meio ambiente, 11,8%; Assuntos políticos, 7,8%, outros, 4%.

12 “As ONGs e a opinião pública”, artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, 27 de fevereiro de 2001, p. A-3.

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A ressaltar aqui a seguinte conclusão do estudo: “ os temas políticos vinculados ao noticiário sobre ONGs são habitualmente polêmicos, em geral ligados a desvios de recurso s, críticas sobre controle falho ou a falta dele”, como que a ilustrar a preocupação revelada por muitos nessa pesquisa com as brechas no marco regulatório e no regime de prestação de contas das ONGs e do setor público que facilitam a exploração de vulnerabilidades para fins de disputa política.

Segundo a pesquisa na mídia, o noticiário envolvendo ONGs revelaria forte protagonismo destas e desfrute em boa medida do atributo da credibilidade. Quanto à valoração, 49,9% do noticiário apresentou as ONGs a partir de uma perspectiva favorável, ressaltando atributos positivos de sua atuação, contra 25,1% que trouxeram uma perspectiva desfavorável.

Em 33% do noticiário, a ONG é vista como entidade que apóia o desenvolvimento social e realiza projetos de interesse da sociedade. Em mais da metade das notícias analisadas, 54%, a ONG é inserida na notícia como entidade especialista no tema abordado. Conclui a pesquisa que “considerando que o espaço de fala na mídia é muito escasso e, tradicionalmente reservado a especialistas e intelectuais, as ONGs ao segmentarem sua atuação em áreas específicas credenciaram-se para participar ativamente da esfera pública”.

Assim, a presença mais recorrente das ONGs na mídia dar-se-ia na condição de “especialista, realizando uma análise de cenário a respeito do tema da notícia ” (38%). A seguir, para 33%, é tipo de “entidade que apóia o desenvolvimento social e realiza projetos de interesse da sociedade”.

Mas, segundo a pesquisa, a democratização do país teria inserido as ONGs também no campo da fiscalização de recursos públicos, ao mesmo tempo em que ampliou a exposição dessas entidades à auditoria das instituições responsáveis pelo controle da correta aplicação do dinheiro recolhido da sociedade e distribuido via orçamentos públicos, nas três esfera de poder. Na pesquisa do Data -Senado, 15% do noticiário situou as ONGs como “especialista realizando análise específica da atuação do governo em relação a um tema”. Dentro desse universo, 29% enfocam o trabalho das organizações que fazem o acompanhamento de gastos públicos, 39% mostram entidades denunciando a falta de eficiência do governo e em 21%, as ONGs analisam a aplicação da legislação pelos governos federais, estaduais e municipais.

Quanto as “notícias que apresentam o envolvimento das ONGs com recursos públicos” (7%), 83% do material tratava de suspeitas de irregularidades na transferência de recursos públicos para organizações não governamentais. Outras 13%, tratavam da comprovação de irregularidades nessa transferência e 4% explicitavam a correta aplicação de recursos pelas ONGs.

- Pesquisa em jornais e revista realizada para esse Projeto. Escolhemos dois entre os três jornais mais importantes do país para pesquisar as notícias sobre ONGs em

determinado período: a Folha de São Paulo (publicada em São Paulo) e O Globo (publicado no Rio de Janeiro). Com o mesmo critério de abrangência nacional e volume de leitores, escolhemos a Revista Veja (Ed. Abril, publicada em São Paulo).

Apesar de que os escândalos envolvendo as ONGs, já mencionados, tenham acabado por dar um tom

negativo a essas organizações, por seu destaque na mídia, as constatações de nossa pesquisa vão na mesma direção das mostradas acima: essas notícias negativas são minoria na cobertura da imprensa. Ou seja, o “desvio de recursos” ocupa as primeiras páginas e grandes manchetes, quando existe. Já as notícias positivas, apesar de grande maioria, não recebem tanto destaque.

Dessa forma, a pesquisa no Jornal O Globo, feita de 1/08/2006 a 31/12/2006, com o filtro “ONG”,

encontrou 63 páginas e cerca de 630 notícias no total, durante esses 5 meses. Destas notícias, apenas 45 tinham temas relacionados a corrupção , CPI, ou algo do gênero.

Na Folha de São Paulo deu-se o mesmo fenômeno: no período de 1 de agosto de 2006 a 10 de dezembro de

2006 encontramos 326 notícias, mas apenas 22 referiam-se ao tema de transparência/corrupção.

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Os resultados obtidos com a revista semanal VEJA foram irrisórios: apenas 5 ocorrências, para o mesmo

período. Optamos por analisar apenas os resultados obtidos com a Folha de São Paulo, já que as matérias entre esse

jornal e a Folha coincidiam no tom e nos assuntos. Abraixo, a planilha obtida no formato recomendado pela pesquisa.

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Proyecto Rendición de cuentas y transparencia

Revisión de medios de comunicación

País: Brasil

Organización:

Fecha Tipo de medio Nombre Tipo de noticia Lugar o página Resumen Temas 25/ago jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) ONG beneficiada por verba do programa Primeiro Emprego é dirigida por um

petista companheiro do presidente Lula. As entidades escolhidas não passaram por licitação. Houve caso de contrato rompido por determinação do TCU com a ONG Agora, também dirigida por um amigo do presidente, devido a irregularidades encontradas.

"Governo pagou a ONG de amigo de Lula R$7,4 milhões"

25/ago jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Amigo do presidente Lula negou favorecimento a ONG Oxigênio e afirma só agora recebe verba do governo porque s[o agora existiria o programa Primeiro Emprego. Segundo o Ministério do Trabalho, a entidade foi escolhida com base em critérios já estabelecidos.

"Petista nega favorecimento de entidade"

17/set jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Empregada doméstica diz nunca ter participado da capacitação de jovens do Programa Primeiro Emprego, mas diz ter recebido R$4.000 por aulas de webdesigner e telemarketing pelo consórcio Geração Cidadã. A empresária envolvida afirma que esta foi a forma encontrada pela direção da ONG de burlar a lei de licitação

"Emprega doméstica diz ter recebido R$ 4.000 por aulas como webdesigner"

17/set jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Governo federal faz repasses de R$56,6 milhões a 13 entidades que têm dirigentes ligados ao PT. Governo nega favorecimento na escolha. As outras 16 entidades, em que petistas não aparecem como dirigentes, o repasse teria sido de R$39,6 milhões.

"Primeiro emprego beneficia ONGs de petistas"

21/set jornal - Internet Folha de São Paulo Eleições 2006/ Crise do dossiê

(não diz) Pefelista quer investigar se verba do governo federal, repassada a ONG ligada a petista, custearia denúncia contra candidatos do PSDB. O senador Heráclito Fortes (PFL- PI) começou a recolher assinaturas para a criação da CPI para investidar a origem do dinheiro para a compra de dossiê contra peessedebistas.

"Senador quer criar CPI sobre dossiê"

22/set jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) O Ministério Público determinou a realização de uma auditoria para fiscalizar a Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho (Unitrabalho), entidade que já teve como dirigente Jorge Lorenzetti, petista acusado de intermediar negociações sobre o dossiê contra José Serra. Durante o governo Lula, a instituição recebeu R$18,5 milhões contra R$840,5mil na festão de FHC

"Promotor pede auditoria em ONG ligada a petista"

24/set jornal - Internet Folha de São Paulo Cotidiano (não diz) Nota em Coluna sobre o caso Lorenzetti, que comandara uma ONG que recebeu polpudas somas de dinheiro do governo. Fala sobre a importância das ONGs em algumas ações que trabalham com desenvolvimento local, jovens, adolescentes...

"Honestidade virou sinônimo de tolice?"

25/set jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Lula, Mercadante e Lorenzetti são sócios de um ONG fundada em 1989 chamada RCT (Rede de Comunicação dos Trabalhadores), a matéria afirma que a organização se encontra ativa, e outros envolvidos no caso do dossiê trabalham lá, como o presidente do PT Ricardo Berzoini, e o ex-secretário do trabalho Oswaldo Bargas. A RCT também atuava no mercado com o nome de TVT, e participou irregularmente na prefeitura de São José dos Campos,

"Lula, Mercadante e Lorenzetti são sócios em ONG de São Paulo"

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então do PT.

12/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) ONGs sem condições ou sem capacidade para executar convênios com a União receberam mais da metade (54%) das verbas federais destinadas a atividades para as quais faltam braços ao Estado.Total de convênios seria mistério.

"ONG "inaptas" recebem 54% dos repasses ao setor, diz TCU"

14/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Líderes da oposição no Senado defenderam auditoria do TCU para fundamentar o pedido de CPI para investigar ONGs

"Para senadores, auditoria fundamenta CPI"

14/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Relatorio do TCU apontou que das 40 entidades conveniadas pela Funasa, metade não teria condições de prestar serviços

ONG citada pelo TCU recebe verba da Funasa

21/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Senador faz segunda tentativa de colher assinaturas para solicitação de CPI das ONGs, após escandalo da ONG Unitrabalho de Jorge Lorenzetti.

"Pefelista deve solicitar hoje a CPI das ONGs"

23/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Opinião (não diz) O presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli critica ojornalismo da Folha de São Paulo e O Globo pela forma como apresentaram as matérias relacionadas aos convênios sem licitação entre a Petrobras e algumas ONGs

"Dane-se o público"

24/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Cotidiano (não diz) Polícia do Paraná prende 16 dirigentes e f uncionários de duas ONGs de apoio a portadores de câncer por suspeita de desvio de dinheiro.

"Grupo é acusado de desviar R$ 30 mil de doações a ONGs"

24/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) Conselho Superior do Ministério Público determinou que o orgão investigue um contrato milionário sem licitação feito com uma ONG do deputado (PMDB-SP) Paulo Lima, aliado da governadora Rosinha;

" Promotoria volta a investigar contrato do governo do Rio"

25/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) O MP da Paraíba estima que grande parte das cerca 4 mil ONGs locais seja fantasma. Após receber denúncias, constatou-se que existem indícios de fraudes.

"Na Paraíba, de cada 10 ONGs, 5 não existem"

26/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) A CGU (Controladoria Geral da União) estima que as parcerias do gov erno federal com ONGs tenham consumido 33 bilhões desde 1999, Consultados durante a semana pelo jornal (Folha), os ministérios tiveram dificuldade para responder quanto pagavam a parceiros não-governamentais, não há estimativa de quantas entidades desse tipo prestam serviço à União.

"ONGs já usaram R$33 bilhões do governo, dia CGU

26/nov jornal - Internet Folha de São Paulo Política (não diz) A CGU teria constatado que a entidade Fundação Aproniano Sá, presidida pela ex-mulher do deputado Múcio Sá, não presta nenhum tipo de atendimento. O ex-deputado ganhou notoriedade durante a investigação de corrupção no governo (caso das sanguessugas)

"ONG inativa de deputado recebe R$ 800 mil"

06/dez jornal - Internet Folha de São Paulo cotidiano (não diz) Ex-secretário da Administração Penitenciária de São Paulo negou ter havido na sua administração uma "máfia" de ONGs para desviar dinheiro público. O ex-secretário diz que pode ter havido irregularidades pontuais nas 22 organizações que atuaram na sua gestão, mas não se trata de esquema articulado.

"Ex-secretár io nega existênciia de "máfia"

07/dez jornal - Internet Folha de São Paulo Cotidiano (não diz) Presidente da Associação de Proteçao e Assistencia Carcerária de São Paulo nega as acusações feitas contra o ex-secretário, uma vez que desde 12 de setembro, não havia mais contratos da ONG com o governo.

"Dirigente nega fraude e critica secretário"

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07/dez jornal - Internet Folha de São Paulo Cotidiano (não diz) MP começa a rastrear contas para verificar se dinheiro destinado a presos que trabalham chegou a facção. Principal suspeita refere-se à contratação de uma secretária pela Ass ociação de Proteção e Assistencia Carcerária, presa 3 meses após ser admitida pela entidade, acusada de manter em casa uma central telefônica da facção criminosa. Há investigações em contas bancárias para saber se houve depósito.

"Repasse de ONG para PCC é investigado"

10/dez jornal - Internet Folha de São Paulo política não diz Tribunal identificou o pagamento indevido de R$ 2,9 milhões em comissões às agências de publicidade contratadas pela estatal Petrobras. Orelatório aprovado pelo plenário do tribunal afirma que o pagamento dessas comissões fere os princípios da moralidade, uma vez que houve contratação sem licitação e sem justificativa de preços

"TCU diz que agências lesaram Petrobras"

10/dez jornal - Internet Folha de São Paulo política não diz Petrobras informou ontem que recorrerá das decisões da auditoria do TCU e negou que tenha feito pagamentos ás agencias de publicidade sem a contratação de serviços. A ONG não foi contratada para a instalação de um estande, mas para apresentar o projeto de Arena de Responsabilidade Social da feira Rio Oil & Gas, que era propridade intelectual da propria ONG.

"Estatal diz que irá recorrer contra decisões"

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Passamos a um resumo do que es tá colocado no quadro acima, para que se tenha uma idéia geral do teor

das reportagens sobre desvios de recursos, nesse período de particular politização partidária. Como foi dito, são minoria as notícias – elencadas aqui - que fazem alguma menção às questões relacionadas ao tema de cor rupção, desvio de verbas, etc. As outras notícias – não relacionadas acima, por não terem a ver com prestação de contas - referem-se a ações de cunho social, como por exemplo promoções de eventos, arrecadação de donativos, assim como chamadas para mobilização da sociedade civil em campanhas ou mutirões. Além disso, pode-se verificar um grande número de reportagens trazendo histórias que deram certo, promovendo então a divulgação de atuações que geraram resultados positivos para o desenvolvimento de determinada região ou comunidade.

Sobre a imagem que as ONGs têm na mídia brasileira pode-se perceber, então, que existem alguns casos isolados onde são divulgadas as dúvidas geradas sobre repasses de verba, ou clareza na prestaçã o de contas ou na formação de parceiras: a investigação passa a ser acompanhada de perto pelos veículos de comunicação, o que é demonstrado pelas reportagens publicadas em série.

Uma notícia que gerou polêmica foi sobre a parceria que a ONG Oxigênio fez com O Ministério do Trabalho, a fim de atuar no Programa de Primeiro Emprego, criado pelo governo federal, onde a organização ficaria responsável em treinar e capacitar jovens. A acusação central é que a orga nização seria dirigida por um amigo do presidente Lula, sendo a terceira colocada no ranking feito onde se mensurou o valor de recursos repassados pelo governo para as ONGs. Além disso, a Oxigênio teria sido escolhida sem licitação (observe-se que a legislação específica para a contratação de ONGs não é discutida). Sobre o Programa de Primeiro Emprego há outras not ícias fazendo referência a convênios firmados com entidades que atuariam na implementação dos cursos para desenvolvimento profissional de jovens. O contexto das reportagens acusatórias aponta sempre para dúvidas sobre o destino das verbas governamentais, bem como sobre a transparência de suas atuações.

Um exemplo disso é a matéria que divulga o número de entidades que teriam relações diretas com o partido do presidente Lula da Silva, o PT. No total são 13 entidades que teriam recebido um total de R$56,6 milhões, enquanto as outras 16 entidades cadastradas no programa e que não têm qualquer ligação com o partido do PT receberam R$39,6 milhões. A diferença de verba denotaria, assim, uma espécie de benefício às organizações petistas.

Mais um tema abordado nas reportagens do período analisado fazem menção à necessidade de se estruturarem normas para escolher organizações aptas a se tornarem parceiras do governo, e assim receber verbas destinadas aos projetos sociais. Uma das matérias argumentam que ONGs ineptas recebem 54% dos repasses públicos federais. Além disso, relatam não haver qualquer controle sobre o total de convênios firmados, e dizem que por ano R$ e bilhões são repassados às entidades.

Após essa reportagem, o tema das CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) entra em pauta. Senadores e líderes da oposição defendem que seja feita uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre repasses a ONGs, para investigar a atividades dessas organizações.

As outras reportagens mostram fatos isolados sobre investigações que estão sendo realizadas, algumas desconfianças do Ministério Público quanto à origem, a atividades implementadas e desenvolvidas, gastos e prestação de contas. Por exemplo, um deputado dirigente de uma ONG inativa que teria recebido verba federal. Ou então a desconfiança com relação a uma organização não-governamental que teria repassado verba para uma organização criminosa organizada.

Como foi dito anteriormente, no período observado, a maioria das reportagens de cunho investigativo e que denunciam situações duvidosas na realidade são pontuais. Não há caso onde apareça um escândalo nacional, ou em que haja alguma comoção de peso por parte da mídia ou da sociedade .

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3.d)Marco Legal Nos últimos seis ou sete anos, ganham especial vigor os debates sobre a legislação para as organizações

da sociedade civil no país e renova-se de fato a sua regulamentação. No governo de Fernando Henrique Cardoso mobilizaram-se o GIFE, a ABONG e outros atores da sociedade civil, com o protagonismo central do Conselho da Comunidade Solidária presidido pela primeira dama Ruth Cardoso, e criaram-se novos mecanismos de regulação das relações do Terceiro Setor com o Estado, incluindo-se aí uma revisão classificatória do universo das organizações não governamentais.

Desde então, os debates continuam, seguindo os processos de regulamentação da lei, com proposições e

votações de novos decretos, incluindo atores diversificados. A questão da legislação é matéria para especialistas e além disso não é possível aqui seguir os detalhes das diversas medidas e proposições no quotidiano do legislativo. Traçamos então a seguir um perfil geral da legislação para o terceiro setor, privilegiando as novidades configuradas na Lei das OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, 1999), fruto das mobilizações mencionadas.

Esboçamos a partir daí propostas e idéias colocadas na agenda por alguns segmentos das OSCs, que

revelam insatisfação com o que consideram ainda limitações, confusões e falhas que permitiram o mau uso dos novos mecanismos legais, mormente as Lei das OSCIPs, que dá direito ao recebimento de fundos públicos através de mecanismos facilitados, com o Termo de Parceria. Embora a construção da lei tenha sido participativa e tenha representado um avanço, tem sido utilizada para a criação de ONGs “laranjas”, no sentido de obter recursos sem a licitação pública exigida no caso das empresas. Ainda nesse caso, a ABONG e o GIFE têm sido os principais atores de vocalização das questões referidas à legislação para as organizações da sociedade civil (pode -se encontrar farto material a respeito, respectivamente, nos sites www.abong.org.br e www.gife.org.br ). Passamos a um relato dos processos e sentidos envolvidos na nova legislação. Transformações recentes e significativas no marco legal para o terceiro setor .

Em 23 de março de 1999 foi sancionada pelo Presidente da República a Lei no. 9.970, que "dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências".

A promulgação da conhecida, no meio, como “lei das OSCIP”, foi a mais recente tentativa de reforma

de algumas das vetustas disposições que regulam as relações entre as organizações de tipo associativo e o Estado, as quais datam dos tempos de Getúlio Vargas (anos30-40). Diz respeito fundamentalmente ao problema crucial e eterno do repasse de fundos públicos ao que se denomina – novidade na nomenclatura jurídica - “organizações da sociedade civil”. Estão aí em jogo não só o aperfeiçoamento dos mecanismos através dos quais se estabelecem as relações de colaboração com o Estado na transferência de recursos, como também o estabelecimento e aperfeiçoamento de distinção no interior das organizações privadas de cunho não lucrativo que reconheça quais exercem efetivamente atividades definidas como “de interesse público”, as qualificadas para obter aqueles benefícios. O espírito que inspirou a elaboração dessa Lei foi definido em termos de “iniciativa para fortalecer a sociedade civil” (conforme palavras de sua Presidente Ruth Cardoso) e facilitar suas parcerias com o Estado. 13 13 Em publicação de cunho oficial (Ferrarezi, Elizabeth e Rezende, Valeria. 2000. OSCIP, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, a Lei 9.790/99 como alternativa para o Terceiro Setor. Brasília, Comunidade Solidária, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça), introduzida por Ruth Cardoso, o prefácio redigido pelo então Conselheiro Augusto de Franco explicita o espírito da medida: “A Lei 9790/99 - mais conhecida como "a nova lei do Terceiro Setor" - representa apenas um passo, um primeiro e pequeno passo, na direção da reforma do marco legal que regula as relações entre Estado e Sociedade Civil no Brasil. O sentido estratégico maior dessa reforma é o empoderamento das populações, para

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Observe -se que a nova lei promulgada não modifica, mas apenas amplia os dispositivos legais então

existentes. A estratégia de manutenção de dois estatutos jurídicos paralelos, com estímulos para a migração para o novo estatuto, é copiada da experiência norte-americana. As organizações que optarem pelo novo estatuto de colaboração com o Estado (o Termo de Parceria), poderão manter as formas anteriores de enquadramento legal em que se encontram por um período de dois anos (tempo já ampliado para 5 através de regulamentação posterior). Após esse prazo, terão que optar por uma ou outra forma de regulação (a antiga ou a nova), nas suas relações de colaboração com órgãos governamentais e sua modalidade de acesso a fundos públicos.

Vale pontuar, como pano de fundo, que a afirmação do novo Marco Legal para as entidades sem fins

lucrativos se desenvolve ao mesmo tempo em que o processo de reforma do Estado e o ajuste estrutural têm impacto sobre as políticas sociais. A regulação jurídico-política das organizações da sociedade civil voltadas para o interesse público ganha relevância no debate sobre a agenda social do país, por suas conseqüências para o tratamento de questões que vão desde os sistemas de assistência e proteção social até as políticas de combate à pobreza. Nesse sentido, as organizações da sociedade civil no Brasil estão sofrendo uma redefinição de sua institucionalidade como parte de metamorfose mais profunda da esfera pública. É sobretudo a temática das políticas sociais que coloca desafios para uma reconstrução de identidades e remete para uma melhor formalização institucional. Nesse contexto, são variados os elementos que constituem a trama sobre a qual os atores tradicionais e os novos atores constroem suas lógicas de discurso e ação: a idéia de uma nova contratualidade baseada na noção de parceria, a emergência de novas esferas públicas de negociação, os problemas de financiamento, a questão da focalização das ações dirigidas aos pobr es, o colapso das políticas públicas sociais e a crise de legitimidade das formas "assistencialistas", baseadas na ação pontual e caritativa.

Tomar a elaboração do chamado “Marco Legal do Terceiro Setor” de 1999 como foco nessa esquemática exposição é estratégia conveniente no sentido de, ao mesmo tempo, ter -se uma noção de questões que se colocam na agenda dos últimos anos e uma idéia por alto de características básicas da legislação sempre existente no Brasil com relação às associações. Como subproduto, expõe-se algo do processo em que foi elaborada a nova Lei - o qual por sua vez nos fala mais uma vez das possibilidades de influência de “novos atores” vindos da sociedade civil em processos de implementação de leis e políticas em tempos brasileiros recentes.

Traços gerais da legislação

Passemos à breve exposição dos dispositivos básicos da legislação com relação às organizações

associativas. A Constituição Federal garante ampla liberdade de associação. Seu Artigo 5 (XVII a XXI) estabelece a

“plena liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”. Estabelece que a criação de associações independe de autorização, sendo vedada expressamente a interferência estatal em seu funcionamento (em havendo, pode provocar uma dupla responsabilidade do poder público, de ordem político-administrativa ou de ordem penal). 14 Segundo especialistas, há nisso originalidade em termos regionais, distinguindo-se « positivamente o país, entre seus vizinhos sul-americanos, por não imputar modelos que

aumentar a sua possibilidade e a sua capacidade de influir nas decisões públicas e de aduzir e alavancar novos rec ursos ao processo de desenvolvimento do país. A Lei 9790/99 visa, no geral, a estimular o crescimento do Terceiro Setor. Estimular o crescimento do Terceiro Setor significa fortalecer a Sociedade Civil. Fortalecer a Sociedade Civil significa investir no chamado Capital Social. Para tanto, faz-se necessário construir um novo arcabouço legal, que (a) reconheça o caráter público de um conjunto, imenso e ainda informal, de organizações da Sociedade Civil; e, ao mesmo tempo (b) facilite a colaboração entre essas organizações e o Estado. Trata-se de construir um novo marco institucional que possibilite a progressiva mudança do desenho das políticas públicas governamentais, de sorte a transformá-las em políticas públicas de parceria entre Estado e Sociedade Civil em todos os níveis , com a incorporação das organizações de cidadãos na sua elaboração, na sua execução, no seu monitoramento, na sua avaliação e na sua fiscalização ». 14 A Constituição Federal e a Lei de Registros Públicos vedam o registro de atos constitutivos de pessoas jurídicas quando contrariar a licitude, a moralidade e a ordem pública ou social, a entidade podendo, em caso de funcionamento, ser dissolvida por iniciativa de qualquer pessoa ou órgão do Ministério Público. Pode, ainda, ser suspensa temporariamente pelo Presidente da República quando exercendo atividade ilícita ou contrária à ordem pública.

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limitem fins ou estabeleçam formas de gestão obrigatória para essas entidades” (Anna Cynthia Oliveira, Terceiro Setor, uma agenda para Reforma do Marco Legal, Brasília : Comunidade Solidária, 1997)

As entidades que nos interessam são formalmente reconhecidas no Código Civil Brasileiro enquanto

pessoas jurídicas de direito privado, tendo havido a esse respeito modificações mínimas e secundárias no novo Código. São elas – portanto, desde 1936 - as “associações”, que “constituem-se pela união de pessoas para fins não econômicos” e as “fundações”, criadas por um instituidor, o qual “fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la” (artigos 55 e 56 do Código Civil Brasileiro). Introduziu-se apenas, recentemente, a figura de “entidades confessionais”, como diferenciação dentro desse universo. A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (Parágrafo único do Art. 56) e sua fiscalização cabe ao Ministério Público.

Sem entrar em detalhes, importa que o quadro de ordenamento legal existente no país facilita a criação

dessas organizações, tanto associações como fundações. No entanto, essa facilida de de registro garante reduzido acesso aos mecanismos de isenção fiscal e menos ainda a fontes de financiamento público, processos que implicam, no geral, em trâmites regulados por leis antigas, que se superpõem e pressupõem procedimentos extremamente burocratizados e de baixa transparência e controle, como será mencionado abaixo.

As entidades sem fins lucrativos são sujeito de imunidade (ou isenção) fiscal, regulamentada pela

Constituição Federal e pelo o Código Tributário. O artigo 150 da Constituição Fe deral estabelece as limitações do poder de tributar, declarando, no que se refere a essas entidades : “Sem prejuízo de outras garantias, asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (...) VI – instituir impostos sobre (...) patrimônio, renda ou serviço de partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendendo os requisitos da lei”. Estabelece-se adiante que essas imunidades compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

Já o regulamento do Imposto de Renda identifica como isentas do imposto de renda (termos do Decreto-

Lei ainda vigente de 1943) "as sociedades e fundações de caráter beneficente, filantrópico, caritativo, religioso, cultural, instrutivo, científico, artístico, literário, recreativo, esportivo, e as associações e sindicatos que tenham por objetivo cuidar dos interesses dos seus associados", desde que não remunerem suas diretorias nem distribuam "lucros sob qualquer forma", aplicando "integralmente os seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos objetivos sociais".

No entanto e como se disse são necessários registros adicionais para que o gozo da imunidade seja

garantido e também para que se possam receber fundos públicos. Grosso modo, os principais – criados nos anos 40/50 – são, em primeiro lugar, o reconhecimento da organização como sendo de Utilidade Pública (Federal, Estadual e Municipal). Em segundo lugar, o cobiçado e antigo Registro como Entidade de Assistência Social no CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social), o qual dá direito ao pleito de obtenção do Certificado de Entida de Beneficente. Nesse último caso, além da qualificação da organização para o estabelecimento de convênios e acesso a subvenções do Estado, dá-se a isenção da contribuiç ão patronal à seguridade social. O mesmo se pode dizer com relação às Subvenções, recur sos públicos passíveis de serem repassados, a fundo perdido, a entidades que possuam o « Certificado », através dos parlamentares.

O acesso a esses registros é extremamente burocratizado e complicado, o que dá margem,

evidentemente, a distorções, falta de transparência e jogos de favores na obtenção dos benefícios. No conjunto, essas leis de diversos registros (federais, estaduais, municipais, constitucionais, fiscais) e suas regulamentações através de muitos e muitos anos compõem um cipoal de obscura penetração, dando margem aos conhecidos e frequentes usos para fins privados do dinheiro público, direta ou indiretamente, estando em questão entidades cuja definição e qualidade de atuar em benefício público tampouco é clara e controlada.

Finalmente, mencione-se que essas parcerias com órgãos governamentais são feitas através das figuras

jurídicas de Convênios e Contratos que não serão detalhadas aqui, importando assinalar que, no caso dos

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primeiros, o problema básico é não haver normas consolidadas que orientem ações das diversas secretarias e programas, dentro da estrutura de diferentes ministérios. « Que critérios de qualificação e competição devem ser atendidos ? (I. é, selecionam-se as entidades antes ou depois da elaboração das propostas ?). Embora não se trate de pura liberalidade ou subvenção, embora existam documentação, compromisso e monitoramento, também aqui requisitos de transparência não têm sido a regra »(Oliveira, id. ibid). Também no caso dos contratos não há disciplina quanto às dispensas de licitação com relação a entidades sem finalidade lucrativa, estando essas práticas longe da transparência.

Essas considerações extremamente gerais vêm no sentido de compreender o espírito dos movimentos

recentes para as transformações dos dispositivos legais quando está em jogo a idéia de que é legítima e eficaz a atuação do poder público através de entidades privadas em vários campos de políticas públicas. Isso não é evidente para segmentos do governo – no caso dessa legislação para o Terceiro Setor , por exemplo, houve forte oposição por parte da Secretaria da Receita Federal, contrária a qualquer privilégio fiscal para as sem fins lucrativos - assim como para a opinião pública, marcada pelos escandalosos casos de corrupção nesse terreno, amplamente divulgados, e que não tem acesso ao debate sobre as possibilidades e sentidos da « ação privada em benefício público ». Joga -se fora o bebê com a água do banho, dadas as condições viciadas em que esses processos se dão no Brasil. Diga-se de passagem, segmentos da esquerda também se colocaram contrários a essas reformas legislativas recentes, no sentido de que se dariam em contexto de retração do Estado com relação a políticas sociais e viriam para facilitar a transferência de responsabilidades de políticas públicas para a sociedade civil. Esse é um debate que merece publicidade e aprofundamento, dadas inclusive a quantidade de recursos públicos envolvidos nas isenções fiscais em questão.

Mobilizações em função do novo marco legal do Terceiro Setor. Como pode ser observado nas breves citações da legislação acima, as organizações mencionadas em

casos de imunidade ou isenções são de definição imprecisa e igualmente não se contempla nas leis o novo terreno do associativismo cívico, ligado à promoção de direitos . Essas entidades ficam num limbo, com relação ao reconhecimento legal de seu estatuto possível de utilidade pública e interesse público, tendo que se enquadrar, para tanto, nas classificações bem antigas mencionadas no texto da lei.

Certamente por isso a ABONG, juntamente com o GIFE - além das entidades de assistência social que

saíam do movimento de elaboração da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social) – mobilizaram-se no sentido de melhor definir o « Marco Legal doTerceiro Setor », em que pese suas divergências e disputas no campo da ação social e política, juntando-se às iniciativas do Conselho da Comunidade Solidária no governo Fernando Henrique Cardoso.

Como antecedentes imediatos dessa história, vale lembrar que movimentações no sentido de

transformações nas antigas e inadequadas leis que regulam as relações entre o Estado e as organizações da sociedade civil vinham sendo feitas por alguns segmentos dessas entidades desde o início dos anos 90, com destaque para as já mencionadas organizações de ass istência social e as ONGs ligadas à ABONG, estando em questão as definições formais oficiais dessas entidades (as chamadas ONGs, no geral, têm o enquadramento legal de entidade de assistência social, falta de outra). Em 1995-96 inaugura-se uma dinâmica mais formalizada e com maior pluralidade de atores em torno da elaboração de um "Marco Legal para o Terceiro Setor" - em contexto, portanto, no qual essa nova expressão ganhava reconhecimento e já era objeto de disputas de significado.

A partir de 1997, ace lera-se o processo, com a convocação feita pela Comunidade Solidária. Conforme

consta em documento elaborado por esse organismo, "o processo de negociação iniciado pelo Conselho da Comunidade Solidária sobre o Marco Legal do Terceiro Setor, que teve início em julho de 1997, foi realizado a partir da consulta e intenso diálogo com mais de 100 representantes do Governo Federal, das organizações do Terceiro Setor e do Poder Legislativo. Desse modo, foram identificadas as principais dificuldades legais e as sugestões de como mudar e inovar a atual legislação relativa às organizações da sociedade civil que são de interesse público" (Comunidade Solidária – 1999. O que é o Projeto de Lei No. 9790 - A qualificação de

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pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lu crativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – Brasília).

Foram dois a três anos de debates entre um conjunto de organizações representantes de segmentos da sociedade, até a elaboração do Projeto de Lei. Segundo a versão do mesmo documento, "A Lei simplifica o mecanismo de reconhecimento institucional das entidades sem fins lucrativos a fim de potencializar as relações entre o Estado e a sociedade civil". Grupos de Trabalho foram constituídos para implementar o processo, o qual passou até por uma pesquisa, realizada através de um instituto não governamental, o IDESP, ouvindo cerca de 300 entidades da sociedade civil através de questionários e entrevistas (os resultados encontram-se em Debert, Guita e Sadek, Teresa - Terceiro Setor: uma avaliação da legislação , São Paulo: IDESP, 1998 - mimeo).

Elaborou-se nesse processo um Documento-Consulta, enviado a um razoável conjunto de interlocutores.

Foram considerados como tal os ministros de Estado conselheiros da Comunidade Solidária e os c onselheiros pertencentes à sociedade civil. Além desses, foram consultadas formalmente cerca de 20 organizações da sociedade civil de origem variada (clubes de serviço como Lyons e Rotary; entidades assistenciais de origem religiosa, como o Lar Fabiano de Cristo, da área espírita, ou a Pastoral da Criança, católica, ou ainda a Vinde, evangélica; ONGs, como a FASE, IBASE, ISER, POLIS; fundações, como a Vitae; etc.), e por fim várias organizações guarda -chuva como o GIFE, a ABONG, a Rede de Formadores de ONGs, a Federação das APAE (Associações de Amigos e Pais dos Excepcionais), a Associação de Gerontologia, o Forum Nacional da Ação da Cidadania, o Forum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e outros (Landim, Leilah e Durão, Jorge. 2003. « La creación de un nuevo Marco legal para el Tercer Sector en Brasil », em Organizaciones de la Sociedad Civil y Incidencias en Políticas Públicas, Bombal y Villar (org.), Buenos Aires : Libros del Zorzal).

Uma das justificativas e objetivos da nova legislação, e como foi dito, seria exatamente contemplar um melhor reconhecimento oficial, com as consequências que isso acarreta sobretudo quanto às possibilidades de obtenção de fundos públicos, para todas essas formas organizativas de origem recente . Conforme consta do documento da Comunidade Solidária já mencionado, "a nova Lei, ao contrário da legislação vigente, abriga adequadamente várias das novas ações sociais das organizações da sociedade que surgiram na última década(...)(Comunidade Solidária , op. cit). De fato, pela Lei, podem-se qualificar como OSCIPs as organizações que realizam: promoção da assistência social; promoção da cultura; defesa e promoção do patrimônio histórico e artístico; promoção gratuita da educação; promoção gratuita da saúde; promoção da segurança alimentar e nutricional; defesa, preservação e conservação do meio-ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; promoção do voluntariado; promoção do desenvolvimento econômico e social e combate a pobreza; experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de caráter suplementar; promoção da ética, da paz, da cidadania, direitos humanos da democracia e de outros valores universais; estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos científicos.

Quanto ao novo instrumento jurídico criado, o Termo de Parceria, estabelece um novo mecanismo de acesso a fundos públicos em que são negociadas metas e produtos, que deverão ser submetidos a avaliações constantes. A introdução, na Lei, de um papel para os conselhos de políticas das áreas em questão (Conselho da Criança e Adolescente, da Saúde, da Assistência Social etc.), que serão consultados sobre os Termos de Parceria e fiscalizarão os resultados, foi considerada um ganho – ao menos, formal - no sentido do controle e democratização.

Atualmente, diz o mesmo documento acima, o sistema de qualificação é inadequado, já que a legislação vigente preocupa-se excessivamente com o fornecimento de documentos e registros contábeis em detrimento do controle de resultados. "É pouco precisa na definição de requisitos para o reconhecimento dos títulos, permitindo uma apreciação discricionária da autoridade no ato de qualificação, além de não diferenciar a finalidade social das entidades, tratando de forma idêntica entidades de fins mútuos – destinados a um círculo restrito de sócios – daquelas dirigidas à comunidade de um modo geral."

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Por outro lado, conforme ainda o texto da Comunidade Solidária, a atual legislação que rege o Terceiro Setor não prevê dispositivos de fiscalização suficientes para exercer o controle da utilização dos recursos públicos pelas entidades, sendo as que realizam convênios um subconjunto delimitado por legislação que não acompanha as transformações recentes nesse campo. Além disso, quando ocorre a celebração de convênios, as entidades ficam sujeitas às mesmas regras gerenciais do setor estatal, perdendo a flexibilidade na administração e no uso de recursos. No caso do Termo de Parceria – segundo os propósitos explicitados - à maior autonomia gerencial das organizações por ele viabilizada corresponde o compromisso do Estado para flexibilizar os controles burocráticos das atividades-meio. Desse modo, em lugar do controle burocrático apriorístico e de uma cultura impeditiva para o uso de recursos, realiza-se a avaliação de desempenho global do projeto em relação aos benefícios direcionados para a população-alvo, por meio de mecanismos de fiscalização e responsabilização previstos na Lei. Além disso e como foi mencionado, fortalecem-se os atuais mecanismos de participação e controle social por meio dos Conselhos de Políticas Públicas. "Por fim, vale ressaltar que a Lei aprovada, ao romper velhas amarras regulatórias, estimula o investimento em capital social do país, sem o qual nenhuma nação conseguirá atingir prosperidade econômica e boa governança. Ademais, ela traz uma novidade importante: pela primeira vez o Estado reconhece que existe uma esfera pública em emersão, que é pública não pela sua origem mas pela sua finalidade. Que é publica embora não-estatal." (Comunidade Solidária, op. cit.).

Em que pesem essas intenções positivas, incertezas e indagações permanecem e vêm sendo pontuadas por participantes e observadores de todo esse processo aqui descrito. A insegurança decorrente dessas mudanças se reflete na atitude de expectativa da grande maioria das entidades do chamado terceiro setor, que hesitam em aderir ao novo marco legal (poucas vêm optando por ele). Por outro lado e como foi dito, está havendo um processo de criação de novas entidades que se auto-qualificam como OSCIPs, para levar vantagens indevidas e obter facilidades de financiamento público sem as exigências de licitação colocadas para empresas lucrativas. Conte-se aí a pretensão de alguns gestores governamentais de instituições públicas de criarem OSCIP’s ad hoc para se livrarem da camisa de força das normas da administração pública.

Completando o quadro de dificuldades, as equipes econômicas dos governos têm resistido a possibilidades de renúncia fiscal para a viabilização de políticas sociais e um efetivo fortalecimento do Terceiro Setor, não lhe fornecendo alternativas adequadas de financiamento. Ou seja, no mesmo período em que se processam essas mudanças na legislação das organizações da sociedade civil de interesse público, o ajuste fiscal tornou ainda mais precários a capacidade e o papel do Estado como agente financiador das políticas sociais. Como veremos, a legislação de incentivos fiscais para empresas investirem no social é também insuficiente e precária.

Como mapa auxiliar, esquematizamos a seguir a legislação hoje em vigor. Resumo esquemático da legislação para o Terceiro Setor exposta acima. Inscritas como de livre direito de criação na Constituição Federal, as associações e/ou fundações

privadas devem hoje no Brasil: • Registrar-se no Cartório de Registro civil das Pessoas jurídicas; • Inscrever-se no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da Receita Federal; • Inscrever-se na Prefeitura de seu município sede; • No caso das fundações, submeter-se à fiscalização do Ministério Público; • No caso de filiação estrangeira, ver aprovados pelo presidente da república seus atos

constitutivos.

Além disso, prestam as seguintes informações a órgão públicos: • Declaração de Informações de Pessoas Jurídicas, DIPJ; • Relação Anual de Informações Sociais, Rais; • Alterações estatutárias e qualificação de dirigentes, ao Cartório de Registro Civil de Pessoas

Jurídicas.

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A legislação em vigor no país prevê as seguintes formas legais de destinação de recursos públicos a entidades da sociedade civil:

• Convênios; • Contratos de Gestão; • Termos de Parceria.

Podem, por outro lado, receberem as seguintes titulações:

• Utilidade Pública Federal. Segundo o artigo 1º da Lei de nº 91 de 1935, esse título é concedido

pelo Ministério da Justiça às sociedades, associações e fundações “constituídas no país com o fim exclusivo de servir desinteressadamente à coletividade.”;

• Certificado de Entidade Beneficente . Concedido pelo Conselho Nacional de Assistência Social às “instituições privadas prestadoras de serviços e assessoramento de assistência social que prestem serviços relacionados com seus objetivos institucionais” (art. 18, III e IV, da Lei nº 8.742, de 1993 – Lei Orgânica da Assistência Social – , com redação dada pela Medida Provisória nº 2.187, de 2001). Somente podem obter o certificado as entidades inscritas no Conselho Municipal de Assistência Social (art. 9º, § 3º). O Conselho Nacional deve manter um “cadastro de entidades e organizações de assistência social” (art. 19, XI).

O Título de Utilidade Pública Federal e o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social habilitam a entidade a pleitear a isenção da cota patronal da contribuição para a seguridade social (art. 195, § 7º, da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 55, I e II da Lei nº 8.212, de 1991, que instituiu o plano de custeio da seguridade social).

• Organização Social (OS). Pode ser atribuída a “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”, (art. 1º da Lei nº 9.637, de 1998). As entidades qualificadas como OS estão habilitadas a receber recursos públicos por meio de contratos de gestão;

• Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Título atribuído pelo Ministério da Justiça às “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos” que se dediquem a uma das seguintes áreas: assistência social; cultura; patrimônio histórico e artístico; educação; saúde; segurança alime ntar e nutricional; meio ambiente e desenvolvimento sustentável; voluntariado; desenvolvimento econômico e social; combate à pobreza; novos modelos sócio-produtivos e sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; promoção de direitos esta belecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita; promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos (art. 3º da Lei nº 9.790, de 1999). As OSCIP podem receber recursos públicos por meio do Termo de Parceria.

Admitiu -se a manutenção simultânea da qualificação de OSCIP com qualquer outra, mas exigiu -se que, após dois anos (posteriormente estendidos para cinco pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001), a entidade optasse pela qualificação de OSCIP ou pelas demais. O Decreto nº 3.100, de 1999, que regulamenta a Lei nº 9.790, instituiu o conceito de concurso de projetos como instrumento de seleção de propostas de termo de parceria feitas por OSCIP. Trata-se de modalidade de licitação, que poderá dar transparência a essas relações. A realização do concurso de projetos pelo órgão público é facultativa. (Ver Victor Carvalho Pinto, consultor legislativo do Senado Federal, in Repasse de Recursos Públicos para Organizações Não -Governamentais: a Questão da Impessoalidade).

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Debates atuais O meandros das discussões sobre a legislação continuam a não ser acompanhados pela grande maioria das ONGs. Por outro lado, há reclamações da maioria dos nossos entrevistados a respeito dos limites e imperfeições legais.

Aponta-se para o fato de que “o marco legal está tumultuado , há um mosaico, uma sobreposição de camadas geológicas de leis”: continua a haver uma c oexistência de leis, de modo a tornar difícil e confusa a regulamentação das organizações do terceiro setor, o que abre as portas para desvios de recursos e falta de controle público. Como disse o entrevistado da FASE quanto a essa legislação repleta de regulamentações e decretos variados no tempo, “o diabo mora nos detalhes”.

A utilização das novas leis – no caso das OSCIPs, como foi dito – para desvios de recursos públicos

através de licitações ilegítimas também é ponto destacado. Faltariam mecanismos de controle. Afirmou-se que, para um funcionamento eficiente e eficaz, a lei careceria de uma institucionalidade mais sólida. Transcrevemos a seguir trechos de um dos últimos documentos da ABONG a respeito das discussões sobre o Marco Legal: Quais os princípios defendidos pela Abong com relação a construção de um Marco Legal das ONGs? Nós defendemos uma legislação:

• Que regule de forma abrangente todas as entidades sem fins lucrativos que atuam no campo social, incluindo as entidades filantrópicas de saúde, educação e assistência social;

• Que reconheça a importância das ONGs para o processo democrático e que fortaleça o tecido organizativo da sociedade civil;

• Que reconheça as diferenças entre os diversos tipos de organizações sem fins lucrativos existentes (entidades de assistência social, clubes recreativos, associações de produtores rurais, ONGs, institutos e fundações empresariais, universidades e hospitais privados);

• Que reconheça um conceito amplamente democrático de fim público, valorizando a existência de organizações autônomas - não subordinadas em sua atuação aos limites da exigência de complementaridade em relação a políticas governamentais (autonomia esta que não impede as eventuais parcerias de organizações da sociedade civil com o Estado ) – que trabalham pelo reconhecimento de novos direitos, por vezes ainda não reconhecidos pelo Estado;

• Ancorada no conceito de interesse (fim) público e, portanto, devendo regular claramente as relações entre o Estado e a Sociedade Civil, no tocante à realização de políticas e/ou ações de interesse público, regulamentando o acesso aos recursos públicos de forma transparente e democrática, garantindo seu controle social; • Que impeça que as entidades sejam util izadas por governantes com a finalidade de contornar dispositivos legais e como forma de terceirizar políticas públicas. •

Qual legislação para as ONGs que a Abong defende? Uma legislação que fortaleça a organização autônoma das cidadãs e dos cidadãos

O Marco Legal das organizações da sociedade civil de interesse público deve barrar toda e qualquer tentativa de retrocesso legislativo em relação às conquistas democráticas da Constituição de 1988. Projetos de lei que estabeleçam exigências não previstas na Constituição – até mesmo de autorização prévia para o funcionamento de entidades – são tentativas de promover um retrocesso que esperamos que já estejam definitivamente

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condenados aos arquivos dos tempos da ditadura. Repudiamos qualquer tentativa de restringir a liberdade de associação. Uma legislação que não permita a utilização das entidades da sociedade civil como “quebra-galho” dos problemas do Estado As ONGs e outras organizações da sociedade civil são alvo de dois tipos de acusações oriundas de problemas relativos à organização do Estado brasileiro:

1. “As ONGs são instrumento da política neoliberal de terceirização das funções do Estado” : em relação a esta acusação, já deixamos clara a posição da Abong. A Abong recusa a confusão entre o papel do Estado e o papel das organizações da sociedade civil na promoção do interesse público. Criticamos sobremodo a utilização de organizações da sociedade civil no rebaixamento dos padrões de qualidade da prestação de certos serviços públicos.

2. “As ONGs são beneficiárias de desvios de recursos públicos”: algumas denúncias vinculadas na imprensa sobre as ONGs, nada têm a ver com o trabalho das organizações. A questão diz respeito exclusivamente à regulação do funcionamento do Estado. Queremos uma legislação que contribua para o fortalecimento da organização da sociedade civil. Este Marco Legal deve impedir que associações civis ou fundações sejam utilizadas por governantes para contornarem restrições legais de qualquer natureza. O fato de gestores públicos instrumentaliza rem entidades da sociedade civil para contornarem a Lei de Responsabilidade Fiscal, contornarem proibições legais de contratar funcionários ou, de qualquer outro modo, contornarem o real ou suposto “engessamento do Estado” não é um problema de responsabilidade da sociedade civil.

Uma legislação na qual se garantam a transparência e o controle social do uso dos recursos públicos sem nenhum tipo de discriminação contra as ONGs A Abong tem se destacado, desde o processo de tramitação da Lei das OSCIPs, pela defesa de mecanismos de publicidade para o acesso de organizações da sociedade civil a recursos públicos e de controle social sobre a utilização dos mesmos. Nesse processo conquistamos pequenas vitórias, mas não conseguimos barrar um certo laxismo na redação da Lei. No entanto, não podemos deixar de repudiar as iniciativas que propõe qualquer tratamento discriminatório às ONGs. Não tem o menor fundamento a desinformação insistentemente inculcada junto à opinião pública segundo a qual entidades que atuam na área social teriam algum tipo de acesso a fundos públicos não sujeito a mecanismos legais de controle. É claro que consideramos inteiramente pertinente a discussão sobre os mecanismos específicos – convênios, contratos, termos de parceria (e as vantagens e desvantagens de cada um deles do ponto de vista da transparência). Não podemos concordar, porém, que se preconize maior rigor no tratamento das ONGs do que o que for dispensado às demais organizações da sociedade civil e às organizações privadas em geral.

(www.abong.org.br) O GIFE, por sua vez, criou o Projeto Marco Legal e Políticas Públicas – desenvolvido com o apoio da Fundação Ford – para o biênio 2005-2007. A Associação ressalta a inclusão de um novo eixo de atuação: o de mobilização política, o que implica em proximidade e acompanhamento junto ao Congresso e Executivo Federal: “ Assim, ao lado das atividades de produção de informações e conhecimento (primeiro eixo) e de articulação da rede GIFE e outros atores sociais (segundo eixo), o projeto passou também a atuar diretamente junto ao Congresso Nacional e ao Executivo federal, afim de acompanhar e influenciar a formulação e aprovação de projetos-de-lei e políticas públicas que contribuam para o aprimoramento do terceiro setor no Brasil.

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Para tanto, o GIFE estabeleceu uma parceria com a Ágere – Cooperação em Advocacy, uma organização não -governamental sediada na própria capital federal e especializada na negociação em favor de políticas públicas eqüitativas e democráticas”. (www.gife.org.br ). Um dos produtos dessa parceria é um boletim para compartilhar informações e identificar oportunidades de relevância para o terceiro setor no âmbito do Congresso Nacional e do Executivo federal, contemplando não apenas ações diretamente voltadas ao setor, mas também a algumas de suas principais áreas de atuação (cultura, educação e meio ambiente). O GIFE lançou também, em 2006, o projeto Marco Legal do Terceiro Setor. Realizou-se na ocasião uma audiência sobre o tema na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Conforme Hugo Barreto, presidente do GIFE e integrante da Fundação Roberto Marinho, “O Brasil carece de legislação abrangente e coerente para o terceiro setor, uma legislação que facilite a participação daqueles que juntam esforços por um mundo melhor, um marco legal estável, que respeite a liberdade e atuação e organização e dê segurança jurídica para a atuação destas entidades” (apud Jonas Valente, Carta Maior, 14/05/2006, em www.abong.org.br ). A idéia central é harmonizar a legislação compreendendo as diferenças entre as entidades, com ênfase na imunidade tributária e nos mecanismos fiscais. Além disso, prega -se também aqui a simplificação da legislação: “As leis atuais causam dúvidas e confusão no judiciário. Quanto mais sofisticada é a norma, mais ela dá margem a interpretações e, por “conseqüência, à corrupção”, conforme Eduardo Szazi, advogado do GIFE e autor do livro “Terceiro Setor: regulamentação no Brasil” (apud Carta Maior, idem).

Conforme a mesma reportagem citada: “A ‘harmonização’ passaria por um controle eficiente e mais constante da gestão de recursos públicos e pela ampliação dos incentivos fiscais e financeiros a outros grupos dentro do terceiro setor, sobretudo as fundações e institutos de empresas, para além das entidades filantrópicas e com o Certificado de Entidade de Assistência Social (únicas duas figuras que possuem isenção de tributos e incentivos fiscais). “Se o dinheiro é para o interesse público, por que pagar impostos?”, defendeu Szazi. Os representantes e fundações buscaram justificar seu pleito demonstrando seu ‘peso’ no ‘PIB das ações sociais’. Hoje as 85 organizações associadas ao GIFE injetam no conceito criado pelo grupo de ‘investimento social privado’ cerca de R$ 1 bilhão de reais, tendo como principais áreas a educação, cultura e esporte e assistência social”. Vale nos alongarmos aqui para transcrever a matéria da revista mencionada, já que expressa elementos de um debate bem atual em que estão em interlocução os poderes públicos, o campo das ONGs mais relacionadas e movimentos sociais e direitos e as organizações mais ligadas ao campo empresarial – o qual vem sendo frequentemente encontrado no decorrer desse trabalho:

“MARKETING SOCIAL Entre as matérias existentes no Congresso sobre a discussão feita na audiência está a PEC 281/2004, que concede imunidade tributária às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e o PL 1220/03 que permite deduzir do imposto de renda doações a entidades filantrópicas que atuam na área da infância e adolescência. A idéia é facilitar, para além da tributação das organizações do chamado terceiro setor, a doação de empresas através de isenções e deduções do imposto de renda. Para as fundações originárias de grupos econômicos e que recebem grande parte dos recursos de suas empresas-mãe (como a fundação O Boticário, Roberto Marinho, Itaú e Bradesco), a aprovação de deduções para as fontes financiadoras é um ótimo negócio para as empresas. Elas podem praticar o chamado marketing social abatendo do imposto de renda estes investimentos. Assim, suas próprias fundações teriam mais recurso s em curto período de tempo. No entanto, para Eduardo Elias Romão, do Ministério da Justiça, antes de fazer qualquer alteração nas normas referentes ao terceiro setor é preciso conhecer que campo é este, quantas e de quais perfis são as organizações e sua relação com os recursos públicos. Ele criticou a criação do título de OSCIP como uma credencial de entidades de ‘interesse público’ e que, portanto, teriam mais legitimidade para uso dos recursos públicos. As OSCIPS, segundo Romão, não são necessariamente entidades com história. O título é concedido a quem quer desenvolver atividades de interesse público. “Hoje, 960 das 3 mil OSCIPs registradas no Ministério da Justiça sequer atualizam endereços desde 1999 [quando a Lei que cria este tipo de organização foi promulgada]. Não se sabe o que estas entidades fazem, o título é apenas uma roupagem”, disse.

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Para Romão, é preciso construir um sistema eficiente de informações, que faça os diversos cadastros do governo dialogar, no sentido de obter um panorama minimamente fiel do setor. A partir dos contatos de todas estas organizações, deveria ser feito um diálogo para identificar as necessidades de cada um dos diversos grupos que compõem este campo. A seguir, ele defende a revogação de leis como a que cria o título de ‘finalidade pública’ (promulgada em 1935 como instrumento de reconhecimento a entidades que desenvolviam ações de Estado, sobretudo as Santas Casas, que desempenhavam funções na área da saúde e assistência social). Só aí seria possível discutir os mecanismos de financiamento e gestão de recursos públicos aplicado s por meio destas organizações. Para Alexandre Ciconello, da Associação Brasileira de ONGs (Abong), é preciso, sim, harmonizar a legislação das organizações da sociedade civil, mas a prioridade não passa por conceder isenções fiscais à fundações, mas por garantir a liberdade associativa das entidades deste campo, promover a abertura do Estado para o controle social por parte da sociedade civil e aprimorar os mecanismos de controle da gestão de recursos públicos. Desenvolver este conjunto de ações, diz, passa por entender que há uma diversidade tão grande de formas associativas fora do Estado e do mercado que é quase impossível falar em um terceiro setor. “Esta fala homogeneíza atores e finalidades diferentes, suprime conflitos colocando uma aura de ‘todos unidos pela solidariedade’”. Um exemplo são os próprios braços sociais de algumas empresas, que muitas vezes existem não para uma finalidade transformadora, mas sim para agregar valor à imagem da companhias. Ele cita como exemplo a Nike, que após a divulgação de informações sobre o uso por parte do grupo de trabalho escravo em países da Ásia teve queda no valor de suas ações de cerca de 20%. “A imagem vale dinheiro para as empresas, e isso não pode ser igualado à atuação de diversas organizações que há mais de 20 anos lutam por um país diferente com garantia real de direitos para as pessoas”. Para Ciconello, o discurso do marco legal do terceiro setor traz outro risco, se combinado ao frenesi de denúncias de fraudes relacionadas a ONGs – cujos últimos exemplos são os casos do repasse irregular de recursos para a pré-campanha de Anthony Garotinho: o de normas que, sob o argumento do aplicação de recursos públicos neste campo, podem avançar para o controle político das organizações. Como exemplo, ele cita Projeto de Lei do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), que dá ao Executivo o poder de cassar o registro de uma associação civil se ela não obedecer ‘os bons costumes’ e o ‘bom cumprimento da ordem’. Ao final da audiência, o deputado Nelson Pelegrino concordou com a necessidade de um novo marco regulatório, mas cobrou dos integrantes do GIFE propostas mais concretas para resolver os problemas apresentados e “harmonizar a legislação”. Nas poucas cadeiras ocupadas por espectadores (uma vez que o quórum de deputados foi quase zero), ficou a certeza da importância do tema, mas predominou o estranhamento de uma audiência pública sobre tema tão espinhoso ter sido composta apenas por um segmento.” ( Jonas Valente, revista Carta Maior, 14/05/2006, em www.abong.org.br).

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4.UM CASO EXEMPLAR . Operação Mogno: transformação e transparência

A verdade é a história da fraude A Crônica do Valente Parintins

Ewelson Soares Pinto O caso aqui apresentado diz respeito ao seguinte acontecimento: um grande lote clandestino de mogno, madeira de árvore em extinção e cuja derrubada é proibida no Brasil, foi apreendido pela Polícia Federal na Amazônia. As instâncias responsáveis decidiram por bem doar esse lote a uma ONG para que, através de sua venda, administrasse os recursos para repasses a entidades ou projetos não governamentais, sem fins lucrativos e em benefício público. A FASE aceitou o encargo dessa empreitada. Após algum tempo, essa organização viu -se às voltas com acusações e denúncias, amplamente divulgadas na imprensa, de que estaria utilizando ilicitamente os recursos que lhe foram cedidos enquanto repassadora para projetos sociais. Narra-se a seguir o desenrolar desses acontecimentos, e o papel da transparência e de uma prestação de contas adequada no seu encaminhamento satisfatório.

Em abril de 2004, o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, quotidiano que nesta época ainda podia ser considerado um dos mais influentes do país, abre uma série de reportagens e notas a partir de denúncias de um “grupo de técnicos”, não identificados, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Ibama. Segundo o jornal, a nova direção do Ibama, nomeada em 2002 pelo novo governo eleito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao decidir doar um lote de mogno, apreendido por extração ilegal na Amazônia, a uma ONG, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, FASE, para uso por programas assistenciais na região, teria beneficiado uma madeireira, a Cikel Brasil Verde, e perdido dinheiro, se comparados os preços da venda com o que poderia ser obtido através de leilão publico da madeira apreendida.

Na segunda quinzena de abril, e ao longo do mês de maio, o jornal insistiu com uma série de reportagens e notas que desqualificavam a madeireira (então uma das únicas sete empresas brasileiras a ostentar o selo verde internacional da Forest Stewarship Council), assim como a FASE, junto com a nova direção do Ibama e o Ministério Público Federal, pela doação. Isso foi divulgado e acompanhado por grandes jornais regionais do Pará, como O Liberal e Regional, estado brasileiro onde a apreensão e doação haviam sido realizadas. Pouco espaço foi dado à resposta oficial da FASE.

Estavam dadas as condições para o “desmonte” da Operação Mogno, uma experiência inédita no país,

em que o produto de crimes ambientais por extração ilegal de madeira ao invés de retornar às mãos dos desmatadores da Amazônia através de leilões, ou se perder nas águas dos rios onde eram “guardados” por anos, foi destinado a projetos em defesa da própria Amazônia e seu uso sustentável. O segredo para resistir aos ataques à Operação Mogno estava na legitimidade dos atores envolvidos e num modelo exemplar de prestação de contas e transparência que se construíra.

4.a)Introdução

Em abril de 2003, através de Termo de Doação com Encargo assinados por representante do Poder Judiciário brasileiro, pelo presidente do Ibama e da donatária, a ONG FASE, foram transferidos à donatária “ aproximadamente 6.000 (seis mil) toras de mogno (Swietenia macrophylla King), apreendidas pelo IBAMA - anexo I - na região de Altamira, no Estado do Pará, avaliadas em cerca de R$ 7.500.000,00 (sete milhões e quinhentos mil reais), na forma do anexo II, que constam das ações criminais que tramitam na Subseção Judiciária de Santarém, Pará, em conformidade com as justificativas de interesse público apresentadas pela área técnica...”.

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O ato inédito, que visava quebrar um círculo vicioso típico do crime ambiental de desmatamento amazônico (corte ilegal de árvores de madeira considerada nobre – transporte até o rio para aguardar resgate clandestino ou compra em leilões públicos da madeira a preendida), tinha elementos para suscitar ações públicas futuras de contestação e litígio: de um lado, o conflito de interesses entre empresas madeireiras que trabalham com extração ilegal versus as que trabalham com madeira certificada. Além desse, o conflito entre trabalhadores em processos de extração ilegal de madeira versus população local e remota interessada no manejo sustentável da floresta.

A decisão judicial favorecia um lado da chamada opinião pública (ambientalistas) contra os que poderíamos nomear nacional-desenvolvimentistas, ambos com influência nos aparelhos de Estado locais, regionais e/ou nacionais (Poder Judiciário, Governos locais, estaduais e nacionais). Mesmo no campo dos beneficiados pela decisão, sócio-ambientalistas, podiam ser previstos dissensos: projetos sócio-ambientais que seriam apoiados pelos recursos aportados e projetos excluídos ou mesmo em função de diferentes concepções quanto às formas de preservação da floresta (ambientalistas puros, sócio ambientalistas; indígenas x extrativistas).

Passados quase quatro anos da decisão judicial de doação do mogno a uma ONG, não se tem notícia de litígios significativos quanto aos procedimentos adotados ou seus resultados. Diminuíram os índices de desmatamento ilegal na região envolvida, e isto não deve se explicar exclusivamente por essa decisão, mas sim por um conjunto de ações empreendidas pelo governo nacional eleito em 2002 e suas políticas ambientais, que revelou ter forte apoio junto à população local, quando das eleições naciona is e estadual de 2006 (reeleito com grande apoio na região e tendo eleito sua candidata nas eleições estaduais), mas, sobretudo, não se noticia contestações aos procedimentos adotados pela ONG envolvida, a FASE. Os procedimentos de prestação de contas adotados pela entidade donatária parecem explicar em boa medida essa ausência de litígio, apesar da permanência dos conflitos de interesse e da disputa política. Um caso de sucesso de uma causa/ação dependente do rigor e do amplo envolvimento de atores envolvidos no processo de prestação de contas. Quais os procedimentos adotados?

4.b)O Fundo Dema: um exemplo de transparência

Ao decidir doar o mogno apreendido para a FASE, organização não governamental brasileira fundada em 1961 e detentora dos títulos de Utilidade Pública Federal e Estadual, ao invés das entidades sócio -ambientalistas locais, o poder judiciário parecia preocupado em sanar contestações derivadas de um eventual beneficiamento de entidades locais, partes no conflito de interesses instalado e sem legitimidade nacional/tradição de prestação de contas aos poderes nacionais/estaduais constituídos. O título de Utilidade Pública, federal ou estadual, ao menos do ponto de vista formal, indica no Brasil entidades assistenciais de reconhecido interesse público, atestado formalmente por Procuradorias estaduais, conselhos de assistência social e com histórico de prestação de contas junto a diversos órgãos da república brasileira, para pleno gozo das isenções previstas em lei.

Mas a entidade considerou que essa legitimidade formal não seria suficiente. Ao ser eleita pelo judiciário como donatária por não estar diretamente envolvida, previu que contestações poderiam advir justamente do fato de sua não implantação local, que poderia gerar conflitos com a população local, em função da aplicação dos recursos a serem obtidos com a venda do mogno ilegal em causas outras da entidade, prioridades ou outras regiões de atuação. Assim, condicionou a aceitação à criação de um Fundo específico, ao qual seria destinada a totalidade dos recursos obtidos com a venda do mogno, a ser administrado, por um Conselho formado pelos principais atores locais envolvidos nas ações sócio-ambientalistas em favor do desenvolvimento democrático e sustentável da região: Fundação Viver, Produzir, Preservar, do Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu; Prelazia do Xingu, entre outros. Em homenagem a Ademir Alfeu Federicci, líder dos movimentos sociais da região, assassinado em 2001, a FASE criou o Fundo Dema.

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4.c)Operação Mogno

A aliança entre Governo federal, Ministério Público, ONGs e movimentos regionais para enfrentar o processo de desmatamento amazônico desencadeou a implantação de um complexo sistema de prestação de contas voltado para vários públicos e atores. Resumidos no Manual de Operações do Fundo Dema ( in http://www2.fase.org.br/regionais.asp?categoria=fundo_dema&conteudo_id=2060).

Aprovado pelo Comitê Gestor em 29/06/2004 e pelo Ministério Público Federal em 03/08/2004, o Manual, acessível pela Internet, detalha os objetivos do Fundo Dema; sua estrutura administrativa; quem pode acessar o fundo; os responsáveis pelas propostas; quais os critérios para apresentação, análise e possibilidade de seleção relativos à/ao proponente e relativos ao projeto; como apresentar propostas ao Fundo Dema; itens financiáveis; itens não financiáveis; contrapartida; trâmite das propostas; triagem; avaliação; procedimentos de implementação e de liberação de recursos; prestação de contas; avaliação e monitoramento; orçamento, além de um anexo com roteiro para apresentação de proposta, tudo em linguagem clara de cartilha ilustrada.

Assim, além dos resultados das auditorias externas e acompanhamentos da operação de venda do mogno e atuação do Fundo Dema previstas pelo Poder Judiciário e Ministério do Meio Ambiente, procedimentos internos do Fundo garantem ampla participação dos beneficiários em sua gestão e ampla divulgação (Internet e publicação de cartilhas, relatórios e editais).

Na página do Fundo Dema (in www.fase.org.br ) constam:

• RELATÓRIOS ANUAIS - Relatórios completos com dados do processo de implementação e funcionamento do Fundo contendo anexos dos acompanhamentos financeiro e dos projetos beneficiados. OUTROS DOCUMENTOS, ARTIGOS E RELATÓRIOS - - artigos, documentos e relatório de auditoria RELATÓRIOS DO COMITÊ GESTOR - Relatórios e documentos produzidos pelo Comitê gestor do Fundo Dema MANUAL DE OPERAÇÕES DO FUNDO DEMA - Edital de seleção de propostas dos movimentos sociais da Amazônia para solicitação de recursos do Fundo Dema (primeira etapa de solicitações), Manual de operações e ofício de aprovação pelo Ministério Público. BALANCETES FINANCEIROS DO FUNDO DEMA - Balancetes mensais, demonstrativos financeiros e outros DOCUMENTOS DA OPERAÇÃO MOGNO - Termo de doação e contratos de parceria, documentos oficiais, etc RELATÓRIO DE EMBARQUE DE MOGNO - Boletim comercial. RELATÓRIO DE PRODUÇÃO CIKEL ALTAMIRA - Boletim da Serraria São José, em Altamira.

A transparência e os rigorosos processos de prestação de contas do Fundo são hoje claramente responsáveis

pelo sucesso da Operação Mogno. Até 2006, o Fundo já havia aplicado cerca de US$ 500 mil em dezenas de projetos na região. Ainda em 2005, o rendimento líquido da comercialização no mercado externo (fevereiro 2004) do mogno doado formara o capital inicial do Fundo Dema em R$ 4.830.174.12 (quatro milhões, oitocentos e trinta mil, cento e setenta e quatro reais e doze centavos). Em Outubro de 2005, a Fundação Ford, como reconhecimento da validade da ação dos movimentos sociais da região que deu origem ao Fundo DEMA, formalizou uma doação de R$ 2.227.000.00 (dois milhões duzentos e vinte sete mil reais). Desta forma o Fundo Dema terminou o ano de 2005, tendo incorporado a correção monetária, com um capital de investimento na

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ordem de R$ 7.607.845,82 (sete milhões, seiscentos e sete mil, oitocentos e quarenta cinco reais e oitenta e dois centavos), de cujos rendimentos sairão os recursos para as doações anuais do fundo. Um exemplo dos benefícios que um rigoroso processo de prestação de contas pode trazer a causas das organizações da sociedade civil organizada.

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5. PERSPECTIVAS– Lições aprendidas e algumas recomendações Quanto ao marco regulatório legal. Ao longo das entrevistas realizadas, estudos de caso, pesquisas na mídia e da observação qualificada em debates e reuniões que trataram da questão da transparência, controle social e regime de prestação de contas das entidade da sociedade civil brasileiras, verificou-se que, em que pesem diferentes percepções quanto ao modelo ideal de financiamento e prestação de contas das organizações brasileiras sem fins lucrativos, legisladores e dirigentes de entidades parecem convergir quanto à urgência de alterações que simplifiquem e aperfeiçoem o atual marco legal do setor. Nessa direção, convivem propostas auto-regulatórias, como a da generalização e assunção pelo conjunto das ONGs brasileiras de um modelo padrão de balanço social , tal qual ou a partir do modelo de formulário proposto pelo Ibase, ou, no âmbito legislativo, onde, em seminário realizado ao final de 2006 (2º Fórum Senado Brasil –Terceiro Setor, Cenários e Perspe ctivas) propôs -se a “ criação de uma comissão temporária ou especial interna, com base nos artigos 74, parágrafo 105 do Regimento Interno, para estudar, discutir e propor medidas de aperfeiçoamento da legislação aplicável à transferência de recursos públicos a ONGs (associações e fundações)”, ou, ainda no mesmo seminário, “ aprimorar a seção de “Vedações e Transferências para o Setor privado” da Lei de Diretrizes Orçamentárias, elaborada a cada ano, para definir com precisão, critérios objetivos de habilitação e seleção das entidades beneficiárias e de alocação de recursos , com cláusula de reversão no caso de desvio de finalidade (ver Art. 35 da Lei 11178/05 –LDO 2006). Respeitado o direito constitucional de livre associação e/ou organização, as divergências políticas quanto ao modelo de relacionamento Estado-sociedade, e seus papéis e responsabilidades na execução de políticas públicas, menos que impedir, suscitam a necessidade de estabelecimento de um marco comum em que convivam a autonomia e o controle social, nos diferentes âmbitos de atuação de cada ONG. Transparência e prestação de contas, seja do ponto de vista dos fluxos financeiros, seja do ponto de vista dos impactos na qualidade de vida da comunidade local, regional ou nacional, parecem à maioria decisivos para a legitimidade e sustentação de importantes atores da democracia brasileira que são suas ONGs. Parece inexistente no momento um consenso ou mesmo uma visão hegemônica no país quanto ao modelo geral que deve orientar as mudanças no cipoal jurídico em que se movimentam hoje governantes, legisladores e ONGs. Pouco provável nesse ambiente uma opção por um modelo predominante de relações Estado-Sociedade Civil, do tipo renano (predominantemente sectário, onde o financiamento obedece a critérios de representatividade de partidos ou igrejas); anglo-saxão (onde o Estado acompanha e apóia a orientação dos indivíduos donantes) ou o modelo temático escandinavo (em que o estado banca as políticas definidas, de baixo para cima, das organizações atuante s por temas, como crianças em situação de risco, idosos etc.). Nada indica, porém, que estes modelos não possam conviver no interior de um mesmo marco legal nacional e que, de forma descentralizada, nos municípios ou estados da federação, não possam se construir modelos, com tal ou qual predominância ou mesmo hegemonia, que permitam avanços práticos no aprofundamento de nossa democracia representativa. De todo modo, tais aperfeiçoamentos supõem, para funcionar, um diálogo para o qual este estudo pretende-se apenas uma modesta contribuição. Neste, através do exame de casos exemplares, procuramos também demonstrar que, para além dos discursos e da teoria, a sociedade brasileira abriga também experiências concretas (p. ex. Projeto Girassol e Fundo Dema) que podem revelar -se matriciais para a construção de qualquer modelo nacional de transparência e prestação de contas. Outras questões abordadas: - Existe atualmente, na sociedade brasileira, um espaço extremamente favorável à discussão sobre transparência e prestação de contas das organizações da sociedade civil.

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Em primeiro lugar, esse debate tem-se dado em um terreno politizado e partidarizado, o que atesta a instalação recente de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre as ONGs, a partir de iniciativa de políticos de oposição ao atual governo. Esse é, portanto, um momento privilegiado – mesmo que problemático – para as ONGs dizerem a que vêm e exporem suas formas de funcionamento e seus projetos éticos, políticos, de controle e prestação de contas. - Os debates sobre transparência e prestação de contas têm avançado recentemente, mas ainda estão pouco sistematizados e se dão entre um número pequeno de organizações e fundações. Existe a necessidade de torná-lo mais organizado e visível – a mídia, por exemplo, parece ignorá-lo, detendo-se antes nas notícias “escandalosas”. Mencionou-se o fato de que a experiência de atuar na contra-corrente de um regime ditatorial , durante muitos anos, vivida pelas ONGs, retardou os seus esforços no sentido de tornar-se transparente, já que um segmento delas teria experimentado durante muito tempo uma “síndrome de clandestinidade”. - Apontou-se, nos depoimentos, para a questão de que se está diante de um universo muito plural de organizações, e que sua diferenciação e qualificação deve ser feita, na compreensão das questões atuais relacionadas à transparência, às alianças e á utilização de recursos, sobretudo os públicos. Há pluralidade de situações e de concepções. - Várias foram as concepções apontadas sobr e o que significa a prestação de contas, as quais podem ser complementares: prestação de contas enquanto forma de controle social e/ou de controle de financiamento público; enquanto publicização dos projetos e ações; prestação de contas e a relevância de mecanismos de gestão e controle administrativo e contábil; como prática relacionada ao estabelecimento de parcerias múltiplas e portanto voltada para públicos, destinatários e financiadores distintos; prestação de contas como demonstração de resultados e impactos efetivos obtidos; questões de poder implícitas na prestação de contas (quem tem legitimidade para cobrar e estabelecer critérios de cobrança); prestação de contas e sua relação com a legitimidade das OSCs enquanto processo ético e político, no contexto da sociedade em que se dá. A discussão sobre esses, e outros pontos, merece ser aprofundada.