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Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia Programa de Pós-Graduação em Sociologia Mestrado em Sociologia Identidade e Territorialidade entre os Kalunga do Vão do Moleque Thais Alves Marinho Goiânia, Março de 2008.

Identidade e Territorialidade entre os Kalunga do Vão do ...pos-sociologia.cienciassociais.ufg.br/up/109/o/Thais.pdf · esse momento tão difícil na vida de uma família. Às crianças

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  • Universidade Federal de GoisFaculdade de Cincias Humanas e FilosofiaPrograma de Ps-Graduao em Sociologia

    Mestrado em Sociologia

    Identidade e Territorialidade entre os Kalunga do Vo do Moleque

    Thais Alves Marinho

    Goinia, Maro de 2008.

  • Universidade Federal de GoisFaculdade de Cincias Humanas e FilosofiaPrograma de Ps-Graduao em Sociologia

    Identidade e Territorialidade entre os Kalunga do Vo do Moleque

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Cincias

    Humanas e Filosofia, da Universidade Federal deGois, como parte dos requisitos para a obteno do

    ttulo de Mestre em Sociologia

    Aluna: Thais Alves MarinhoOrientadora: Dr Joana A. Fernandes Silva

    Goinia, Maro de 2008.

    2

  • Ao Ccero, minha mais cativante

    fonte de inspirao.

    3

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................................................... 10

    CAPTULO 1 - 1 TRAJETRIA DOS NEGROS AO LONGO DA FORMAO HISTRICO BRASILEIRA: DE QUILOMBO REMANESCENTES DE QUILOMBO .................................................................................................................... 35 A OCUPAO DO VO DO MOLEQUE: CAPELA, TABOCA, CORRENTE, MAIADINHA E CURRIOLA ............................ 64 ETNOGRAFIA DOS KALUNGA: A VIDA DO MOLEQUEIRO ................................................................................. 108

    1.A COMUNIDADE KALUNGA ........................................................................................................... 110

    NDICE DE GRFICOS

    4

  • THAIS ALVES MARINHO

    IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE ENTRE OS KALUNGA DO VO DO MOLEQUE

    DISSERTAO DEFENDIDA E APROVADA EM 17 DE MARO DE 2008,

    PELA BANCA EXAMINADORA, CONSTITUDA PELOS (AS) PROFESSORES

    (AS):

    ___________________________________________________________Prof Dr. Joana Aparecida Fernandes Silva(Orientadora FCHF/UFG)

    ___________________________________________________________Prof. Dr. Alecsandro Jos Prudncio Ratts (IESA/UFG)

    ___________________________________________________________Prof. Dr. Edson Silva de Farias (ICC/SOL/UNB)

    Prof. Dr. Sebastio Rios Correa Jnior (Suplente FCHF/UFG)

    5

  • Agradecimentos

    Agradeo aos moradores da comunidade Kalunga que no s proporcionaram a

    realizao dessa dissertao, com depoimentos, relatos, contando causos, durante as

    prosa, como me acolheram carinhosamente me tratando como um membro da famlia,

    com uma enternecida prestatividade, sempre me guiaram, auxiliaram, compartilharam e

    aconselharam. Dona Valeriana, Domingas, Ismael, Renivan e Ivan, Amiran e Z, que

    acolheram a mim e meu filho, Ccero, em suas casas. Dividiram conosco alimento, teto,

    respeito, confiana e amor. s amigas Marlene, Otlia, Ducimar, Domingas, Renivan e

    Lina e ao amigo Rogrio, que tornaram a minha estadia mais divertida e rica com seu

    grande senso de humor, perenes risadas e sinceros depoimentos. A todos que entrevistei

    especialmente Alade, Joo, Domingos, Abel, seu Bertolino, Dona Jeroma e Pedro,

    Nivaldo e Maria, Emdio e Ana, Elza, Jandira, Daniel, Guilherme, Florentino e Bencia

    que compartilharam comigo preciosas histrias. Famlia de Joca da Costa Serafim (in

    memorium) que me acolheram e permitiram que eu participasse de seu velrio dividindo

    esse momento to difcil na vida de uma famlia. s crianas pelas brincadeiras e

    carinho com Ccero, especialmente, Luan, Fabiana, Fabriele, Isabela e Anglica.

    Agradeo minha orientadora Joana Aparecida Fernandes pela liberdade,

    orientao, encorajamento e amizade ao longo desse processo acadmico. Agradeo

    minha amiga Marjorie, que alm de sempre proporcionar tantos momentos de alegria,

    diverso e amizade, sempre esteve presente para escutar e solucionar os inmeros

    tropeos dessa empreitada. querida amiga e grande sociloga Ana Jlia Nascimento

    pelas trocas de idias, informaes, livros, favores, alegrias, experincias nicas vividas

    durante viagens, trabalhos e aulas.

    6

  • Agradeo a Maria Antnia Gomes, competente sociloga, me de minha grande

    amiga Bruna, pela caridosa ateno, carinho e prestatividade na reviso do trabalho. s

    amigas Jakelline, Ana, Bruna e Marjorie pela amizade e companheirismo.

    Agradeo a toda minha famlia, minha me Lucimar, pelo apoio, amor, amizade,

    interesse, dilogo e pacincia, durante toda minha existncia, inclusive durante as idas

    ao campo, ao meu pai Wilson e meu irmo Thiago, sempre dispostos a solucionar os

    problemas. Especial agradecimento ao Ccero, por ter dividido to companheiramente

    comigo toda a experincia de viver na comunidade Kalunga e ser fonte de sonhos,

    desejos e tantas felicidades. Ao Gustavo, por ter me lembrado que o amor faz parte do

    sucesso.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de

    Gois, especialmente ao professor Francisco Rabelo, professora Martha Rovery e ao

    secretrio do departamento lder Pereira pela prestatividade, competncia e

    encorajamento.

    Mari Baiocchi, Alex Ratts e Edson Farias que aceitaram dividir seus

    conhecimentos com o intuito de aperfeioar esse trabalho.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - CAPES que

    foi fundamental para concluso deste trabalho, disponibilizando minha bolsa de estudos

    de abril de 2006 a maro de 2008.

    7

  • Resumo

    A presente dissertao tem como proposta discutir a relao da territorialidade com a identidade, na Comunidade Remanescente de quilombo Kalunga localizada no nordeste de Gois, buscando compreender as ressignificaes identitrias ao longo de sua formao e a partir do reconhecimento dessas comunidades pela Constituio Federal Brasileira de 1988. A relao entre identidade e territorialidade ganha uma nfase diferenciada a partir desse perodo, que culmina no processo que chamo de etnicizao, a atual estratgia de reproduo da comunidade. Para tanto, fao um estudo de caso da regio do Vo do Moleque nos povoados de Maiadinha, Curriola, Capela e Taboca no Municpio de Cavalcante. O mtodo de apreenso etnogrfico por meio de observao participativa, atravs da produo e reproduo da memria coletiva e visa compreender os vrios aspectos da cultura Kalunga que contribuem para a compreenso da constituio de sua identidade e territorialidade.

    Palavras-Chave: Comunidade Kalunga, identidade e territorialidade.

    8

  • Abstract

    The present study aims to discuss the relationship of territoriality with identity, in the marron remaining community Kalunga located in the northeast of Goias, seeking to understand the identitarys remeanings over their training and from the recognition of these communities by the Brazilian Federal Constitution of 1988. The relationship between identity and territoriality gained a different emphasis from that period on, culminating in the process of what I call "ethnicisation", the current strategy of reproduction of the community. Therefore, I perform a case study in the area of the Vo do Moleque, in the towns of Maiadinha, Curriola, Capela, and Taboca, located in the city of Cavalcante. The method is ethnographic through participatory observation and the production and reproduction of the collective memory and seeks to understand the various aspects of culture Kalunga that contribute to the understanding about the formation of their identity and territoriality.

    Key-words: Kalunga Community, identity, territoriality.

    9

  • Introduo

    Essa pesquisa tem como objeto estudar as relaes da identidade com a

    territorialidade na comunidade Remanescente de Quilombo Kalunga no norte de Gois.

    Trata-se de um estudo de caso em quatro povoados da regio de um total de 62, Capela,

    Curriola, Maiadinha e Taboca localizados no Vo do Moleque.

    A comunidade Kalunga pode ser dividida em quatro agrupamentos principais:

    Ribeiro dos Bois, Vo1 de Almas, Vo do Moleque e Engenho II, nos municpios de

    Monte Alegre, Teresina de Gois e Cavalcante, respectivamente, sendo os dois ltimos

    em Cavalcante.

    A partir de visitaes em festejos da regio pude ter contato com alguns dos

    problemas e discusses recorrentes comunidade. Aos poucos, observei que durante os

    festejos se fala muito em como antigamente diferente. Os mais velhos clamam que

    no passado se danava mais sussa e curraleira e que agora o povo bebia muito e ouvia

    apenas forr. Os jovens quando no iam embora, no queriam mais trabalhar na roa,

    ficam bebendo. Os mais velhos atribuem todos esses males rua (zona urbana e

    cidades).

    Apesar da hospitalidade e do bom humor sempre presentes entre os Kalunga, e

    da impresso de fartura que os festejos podem sugerir, outros problemas comearam a

    aparecer para mim. As pessoas sempre muito brincalhonas e bem humoradas, escondem

    atrs dos sorrisos marotos uma vida difcil marcada por lutas. Ali, no h abastecimento

    1 O termo Vo indica literalmente um vo entre os morros, serras e rios da regio, ou seja, um pedao de terra mais ou menos plano localizado entre os morros e serras s margens dos rios, constituindo um lugar perfeito para se esconder de colonizadores e manter uma agricultura de subsistncia, alm de ser possvel vrias rotas de fuga, seja pelo rio ou pelos morros. Assim, a regio ficou conhecida como Vos da Serra Geral, e algumas comunidades levam o nome de vo, como o Vo do Moleque no municpio de Cavalcante e o Vo de Almas no municpio de Teresina de Gois.

    10

  • de gua, energia eltrica ou esgoto, as secas se intensificam e se prolongam com a falta

    de chuvas, cada vez menos freqentes, as estradas so precrias e em alguns locais se

    quer existem, faltam pontes em diversos locais.

    Mdicos e hospitais somente nas cidades, que ficam a dias de mula e/ou

    andando, muitos contaram que j haviam transportado ou sido transportados quando

    arruinavam (ficavam doentes) em redes apoiadas nos ombros de parentes, por

    quilmetros. Mesmo nos locais onde tm estradas, a maioria em condies

    inapropriadas, na poca das chuvas os rios transbordam, impossibilitando a passagem de

    carros. Embora em alguns povoados j houvesse escolas, frutos das recentes polticas

    afirmativas, muitas crianas e jovens tm que migrar para as cidades em busca de

    educao e trabalho.

    As roas so prejudicadas por fatores climticos e ainda tm que se apertarem

    entre as terras frteis restantes que no so cobiadas e/ou j haviam sido tomadas por

    fazendeiros, grileiros e posseiros. No entanto, esse problema parece no ter mais as

    mesmas propores que antes. A preocupao agora com a urgncia em sair a

    titulao das terras (e conseqente indenizao para os proprietrios legtimos, inclusive

    Kalunga, para a desintruso), agora garantidas por lei2, e com o fato de tal ttulo ser

    coletivo, o que impediria os Kalunga de decidirem o destino de suas prprias terras3.

    Essa realidade, no entanto, comum a diversas comunidades quilombolas

    espalhadas pelo pas. Embora existam 2.228 comunidades remanescente de quilombos,

    2 A lei Estadual n11.409/91 baseada em estudo feito pela equipe do Projeto Kalunga Povo da Terra foi adotado pelo extinto IDAGO (Instituto de Desenvolvimento Agrrio de Gois), que sancionou o direito aos ttulos da terra pelos Kalunga, e decretou inicialmente 241,3 mil hectares de terra da comunidade Kalunga como Stio Histrico e Patrimnio Cultural Kalunga. O reconhecimento a nvel Federal ocorreu a partir da insero de polticas pblicas voltadas para as comunidades remanescentes de quilombo, a partir de 2002, que teve a comunidade Kalunga como plano piloto para a regulamentao da terra, que agora seriam 253mil hectares. A certido de reconhecimento foi publicada em dirio oficial da Unio no dia 19 de abril de 2005, est em fase de georreferenciamento, mas ainda hoje no se concluiu.3 A discusso sobre Terras de Uso Comum e seus impasses se dar no captulo 1.

    11

  • apenas 42 so reconhecidas e s 19 j foram tituladas4. Esses dados demonstram a dura

    realidade brasileira de desigualdade racial e social, resultado de anos de dficit de

    polticas pblicas que proporcionasse a integrao dos negros sociedade e que

    garantisse seus direitos de acesso cidadania, educao e sade.

    Depois da abolio da escravatura o governo brasileiro no implementou

    nenhuma poltica de integrao dos negros e quilombolas ao processo de

    desenvolvimento do pas e no lhes foi possibilitado nenhum meio de acesso terra e

    propriedade dos fatores de produo de modo a promover sua integrao sociedade

    nacional (MOURA, 1993). Esse fato contribuiu para que tais comunidades

    desenvolvessem ao longo da formao histrica brasileira, a partir da miscigenao com

    ndios e brancos, caractersticas prprias de organizao social, produtiva, religiosa e de

    ocupao da terra, alm de outras formas de manifestaes culturais que passaram a

    funcionar como smbolos caractersticos da etnicidade que passaram a comportar.

    No entanto, a elaborao tardia de polticas que beneficiassem as comunidades

    remanescentes de quilombos criou uma srie de problemas e deficincias em todas as

    esferas, de modo que a realidade dos Kalunga at os dias atuais de: deficincias no

    sistema educacional, resultando em baixo nvel de escolaridade e alto ndice de

    analfabetismo; falta de documentao pessoal, dificuldades em obter aposentadoria,

    condies financeiras abaixo do nvel da pobreza; debilidade da organizao

    comunitria e despreparo das lideranas; pouca capacidade de organizao poltica e

    desconhecimento das formas de acesso aos programas governamentais; xodo dos

    remanescentes de quilombo para as cidades; baixo aproveitamento das matrias-primas

    locais e dos recursos nativos; produtividade limitada das atividades econmicas, restrita

    agricultura de subsistncia, falta de acesso economia de mercado; situao fundiria

    4 Fonte: Centro de Cartografia Aplicada e Informao Geogrfica (CIGA) da Universidade de Braslia, 2005.

    12

  • no regularizada, marcada pela necessidade de titulao e desintruso de fazendeiros e

    grileiros; precrio servio de infra-estrutura social bsica, como energia eltrica,

    transporte, estradas, comunicaes, saneamento bsico; desconhecimento das doenas

    prevalecentes na populao negra, acompanhada pela precariedade dos servios de

    sade, principalmente de sade preventiva, tais como nutrio, sade bucal, etc.

    1. O problema de pesquisa e a Pesquisa de Campo

    O contato com a comunidade Kalunga levou-me a trabalhar com alguns

    problemas de pesquisa5 relacionados com os Kalunga, inclusive o projeto apresentado

    ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFG ao qual resulta essa dissertao.

    O foco da pesquisa estudar a relao da territorialidade com a identidade, na

    Comunidade Remanescente de Quilombo Kalunga, buscando compreender as

    transformaes dos seus meios de vida propiciadas pela expanso capitalista, a partir do

    reconhecimento dessas comunidades pela Constituio Brasileira de 1988, mais

    precisamente a partir da entrada das comunidades remanescentes de Quilombo na

    Agenda do Governo em 2002.

    A hiptese que a relao entre identidade e territorialidade ganha uma nfase

    diferenciada a partir do reconhecimento constitucional, consolidada, de vez, pela

    criao de uma secretaria com funes de ministrio, especfica para a demanda racial,

    que a SEPPIR (Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial). A

    partir do reconhecimento e visibilidade que a comunidade adquiriu, diversas polticas (e

    olhares) foram implementadas nessas comunidades e passaram a interferir na

    5 Que resultou na monografia da Especializao Lato Sensus em Polticas Pblicas na Universidade Federal de Gois, intitulada Avaliao de Polticas Pblicas para a comunidade Kalunga de 2004.

    13

  • organizao social, e consequentemente na dinmica cultural e identitria dessas

    comunidades.

    Para testar esta hiptese, utilizei-me da observao participante, entrevistas

    formais e informais, que seguiam um roteiro de entrevistas, pr-elaborado e pr-testado,

    alm da Histria Oral, buscando compreender os vrios aspectos da cultura Kalunga que

    contribuem para a compreenso da constituio de sua identidade e territorialidade, ou seja,

    os aspectos que encetam seu habitus6. Investiguei as relaes entre parentesco,

    sociabilidade, origem, mitos7, Histria e territrio, a partir da memria coletiva do

    grupo e da dinmica atual, a fim de produzir um material etnogrfico sobre a regio

    pesquisada.

    No demorou muito para perceber que a trajetria Kalunga, bem como o prprio

    campo referente s comunidades remanescentes de quilombo8, que chamarei aqui de

    6 O habitus o resultado de um trabalho de inculcao por meio da prtica em que o agente social interioriza de modo sistemtico e coerente as estruturas das relaes de poder, a partir do lugar e da posio que ocupa nessa estrutura, esse indivduo exterioriza essa estrutura apreendida por meio de prticas, que por sua vez, uma relao dialtica entre a estrutura interiorizada pela histria do grupo ou da classe social e a estrutura social presente. So estruturas (disposies interiorizadas durveis) e so estruturantes (geradores de prticas e representaes). Engendram e so engendradas pela lgica do campo social, de modo que somos os vetores de uma estrutura estruturada que se transforma em estrutura estruturante. O habitus, portanto, o produto da experincia biogrfica individual, da experincia histrica coletiva e da interao entre essas experincias. (BOURDIEU, 1989)7 Os mitos esto profundamente entranhados no modo de sentir e pensar da comunidade Kalunga, como j diria Chau (1995). A memria social porta o sentido de existncia contempornea e que conduz o sentido de continuidade histrica da comunidade Kalunga. Compreendendo memria social como todo conhecimento do passado partilhado por um grupo e por ele validado como conhecimento verdadeiro ou passvel de ser transacionado, remeta-se ele a um passado presumidamente testemunhado (expresso seja por um registro fsico fixado, seja por um relato transmitido) ou a um momento fundacional (da origem das coisas). Essa formulao acolhe tanto a memria mtica quanto a memria histrica, em uma tentativa de superar os conflitos sobre mito e histria, levando em considerao o pressuposto de Sahlins (1990) que defende que as pessoas de determinada cultura tambm representam suas interpretaes do passado no presente em que vivem, sendo que estas interpretaes podem comportar certa compreenso e vivncia de sua histria atravessada ou no por determinados mitos daquela cultura e suas concepes de tempo e espao.8 A categoria "comunidade" precisa ser problematizada nesses estudos. Merece ser relativizada a afirmao de que as "comunidades negras" vivem coletivamente e que seus membros socializam seus espaos cotidianos. Se a comunidade percebida como experincia de igualdade, idia manipulada com objetivos polticos, fatos empricos atestam que essa experincia uma fico. Afinal, a "comunidade" no imune organizao de uma sociedade dividida em classes, marcada por interesses antagnicos e contradies. Em ltima anlise, o movimento produzido por essas contradies homogeneiza todos os expropriados, como os antagoniza com os proprietrios dos meios de produo.

    14

  • sub-campo ou campo tnico-quilombola,9 eram muito mais complexos e desafiantes do

    que minha racionalidade cientfica permitia at ento.

    Os dados colhidos indicaram que a hiptese, de certa forma se confirma, de fato

    h uma nfase diferenciada na relao entre identidade e territorialidade ocasionadas

    pelo reconhecimento e implementao de polticas pblicas a partir da dcada de 1980,

    que interferiram na dinmica identitria e cultural. Ficou claro que o esforo coletivo

    desse povo pelo reconhecimento oficial tem como motivao maior resolver os

    conflitos fundirios em que a comunidade sempre esteve envolvida, mesmo antes do

    reconhecimento pela constituio, e no o desejo de se afirmar como continuidade

    histrica e cultural, como interpretado por alguns o termo remanescente de

    quilombo.

    A nfase diferenciada est na forma de incorporao pelos indivduos Kalunga

    da estrutura produzida pelo novo arcabouo jurdico/sociolgico, que constitui um

    habitus, e na exteriorizao ou objetivao desse habitus pela comunidade, que integra

    o campo tnico-quilombola, inaugurado pelo artigo 68 da Constituio Brasileira de

    1988, que enfatiza elementos como etnia, raa, identidade e territrio. Considerando os

    indivduos Kalunga como agentes, que atuam e so dotados de um senso prtico de

    classificaes de percepes, que so produto de uma estrutura profunda, que

    incorporaram um habitus gerador historicamente localizado, mas que varia no tempo e

    no espao, e que condiciona as aquisies mais novas pelas mais antigas, podemos

    9 Nas concepes de Bourideu (1989) campo um espao onde os objetos sociais compartilhados so disputados por agentes investidos de saber especfico, ttulos, privilgios, esforos, que permitem acesso aos vrios lugares em seu interior, bem como aos diferentes jogos de conflito. Os campos com autonomia tm a capacidade de traduzir em linguagem prpria os problemas relativos s classes sociais, bem como os frutos e lucros obtidos coletivamente so distribudos pelas posies, mesmo que de forma diferenciada. O campo tnico-racial compreende as instncias de poder responsveis pelas demandas tnicas (quilombolas e indgenas), pelas aes afirmativas, pelas polticas de erradicao de pobreza e de desigualdades sociais e raciais, o movimento negro, movimento indgena, movimento agrrio, as comunidades quilombolas e indgenas, e outros grupos da sociedade civil que exercem poder dentro do campo como a mdia e a academia. O campo pode ser subdividido em subcampos: campo tnico-quilombola, campo tnico-ndigena... e interage com outros campos o cultural, o poltico, o econmico, etc.

    15

  • analisar a ao e percepo do indivduo Kalunga pela liberdade propiciada pela lgica

    do campo e da situao que nele ocupam.

    2. Comunidades Remanescentes de Quilombo

    A utilizao do termo remanescente certamente uma tentativa de tornar essas

    comunidades negras nomeveis, adjetivando-as para que se fizessem visveis e

    aceitveis. Tal frmula funciona como soluo classificatria por meio da qual se

    admite a presencialidade do estado de negro/escravo nos atuais quilombolas. O termo

    quilombo sem dvida o elemento mais importante na alquimia semntica formada

    pela adio do termo remanescente (ARRUTI, 2006, p. 70).

    As diversas interpretaes, leituras e metaforizaes desse termo promoveram e

    ainda promovem discusses e presses de variados nveis da sociedade civil sobre a

    comunidade. Turistas, estudiosos, polticos, jornalistas, fotgrafos, entre outros

    passaram a visitar a comunidade e imputar-lhe seus anseios. Inspirados pelo conceito de

    quilombos poca da escravido, muitos esperam encontrar comunidades atualizadas

    dos antigos quilombos, presas a relaes arcaicas de produo e reproduo social,

    misticismos, geralmente relacionados cultura africana, associando tais comunidades a

    um smbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e

    militncia negra.

    Essas presses, em muitos casos, serviram para que uma definio pragmtica

    de identidade fosse adotada, onde a aparente conservao da cultura de origem daria

    um status de legitimidade na consecuo do projeto de sobrevida e os traos culturais

    exaltariam a etnicidade com vistas a adequar o passado ao presente. Isso quer dizer, que

    quanto mais sinais diacrticos os remanescentes possurem relacionados ao passado de

    16

  • quilombo, mais legitimidade para acessar os benefcios garantidos pelo artigo 68 eles

    tero (ARRUTI, 2006). Da, existir um alto grau de performatividade essencialista entre

    essas comunidades, e diversas crticas sobre uma descendncia verdadeira de

    comunidades remanescentes de quilombo, como ocorre no caso da tese de Neto (2006),

    que insiste na idia de que no existe comprovao histrico/biolgica/cultural de que a

    comunidade Kalunga seja de fato descendente de negros que formavam um quilombo

    de mesmo nome.

    A atual legislao por meio do Decreto 488710 que regulamenta tais questes

    considera os remanescentes de quilombo os grupos tnicos raciais, que se identificam

    como tais, com trajetria histrica prpria, dotadas de relaes territoriais especficas,

    com presuno de ancestralidade negra relacionada com a luta e opresso histrica

    sofrida. Adotando a auto-atribuio como critrio primordial de reconhecimento.

    Essa nova conceituao de remanescentes de quilombos, embora insira o vis

    racial, o relaciona com etnia, e perde de vez o vis culturalista de outras

    conceituaes11, e ainda resolve um problema capital que o termo remanescente

    implica, o da comprovao histrica.

    10 O Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003 e tem como intuito de regulamentar o procedimento para identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. O texto completo encontra-se me anexo.11 No anos de 1990 a Fundao Cultural Palmares criou a seguinte conceituao: quilombos so os stios historicamente ocupados por negros que tenham resduos arqueolgicos de sua presena, inclusive as reas ocupadas ainda hoje por seus descendentes, com contedos etnogrficos e culturais (revista Isto, 20/06/90, p. 34). Podemos perceber que a noo historicizante, arqueolgica e voltada para a noo de patrimnio histrico predomina. Logo, o abismo entre a noo tomada em seu aspecto de patrimnio histrico e as demandas apresentadas pelos grupos atuais se tornou insustentvel. Em 1994, a FCP oficializou outra proposta, muito divergente da anterior: comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos [que] vivem da cultura de subsistncia e onde as manifestaes culturais tm forte vnculo com o passado ancestral. Esse vnculo com o passado foi reificado, foi escolhido pelos habitantes como forma de manter a identidade (MOURA, 1994). A conceituao de Moura (op.cit) comporta ao mesmo tempo um teor substancialista e idealizado com um teor pragmtico de identidade, respondendo apenas necessidade de conciliar as demandas dos agrupamentos negros e o iderio poltico do movimento social. Mas mesmo assim, ainda apresentando uma viso mais tradicional no teor de suas concepes, sem abdicar a afinidade eletiva com a cultura, converte de reminiscncia histrica em afirmao tnica.

    17

  • 3. Etnia e Etnicizao: uma nova estratgia de conservao do Campo tnico-

    racial-quilombola.

    A investigao no se configurou em uma tentativa de comprovao da

    legitimidade da comunidade Kalunga enquanto remanescente de quilombo, j que esta

    j reconhecida pelos devidos rgos estatais de acordo com a atual legislao. A

    reconstituio histrica feita a partir de fontes bibliogrficas, Histria Oral e pesquisas

    documentais no Frum, Cartrios e Casa Paroquial de Cavalcante, tm o intuito de

    compreender as trajetrias e o habitus Kalunga, que so disposies duradouras para

    certas percepes e prticas que acabam por se tornar parte do sentido de identidade,

    constitudos por meio da estrutura histrico-brasileira, possibilitando a compreenso do

    processo que culminou na etnicizao da comunidade Kalunga.

    Assim, a nfase diferenciada estaria relacionada com a etnicizao 12 da

    comunidade que deu inicio ao processo de homogeneizao de identificao com o

    cone quilombola e com a denominao Kalunga. Tal processo de etnicizao, no

    entanto, no refere-se criao ou estabelecimento de uma etnia, pois a consolidada

    reflexo sobre etnicidade centrada principalmente em Frederik Barth (1976, 1967

    1973), considera os grupos tnicos como um tipo organizacional que confere

    pertencimento por meio de normas e meios empregados para indicar afiliao ou

    excluso.

    Esse sistema organizacional marcado pelo contato j existia na comunidade

    antes do reconhecimento pela Constituio Brasileira de 1988, dessa forma, a

    comunidade se constitua enquanto uma etnia mesmo antes do advento jurdico.

    Embora o termo Kalunga no fosse empregado pelos indivduos da comunidade

    para se auto-identificarem, ele era empregado pelos outros, pelos que no pertenciam

    12 Essa tese ser apresentada ao longo da dissertao.

    18

  • comunidade, para identific-los. Segundo Silva (2003) e depoimentos colhidos

    durante a pesquisa de campo, o termo Kalungueiro era utilizado de forma jocosa no

    passado para indicar os moradores da atual comunidade Kalunga, que outrora eram

    identificados como moradores do serto, da chapada, dos vos.

    Alm disso, mesmo antes do reconhecimento, os Kalunga sabiam identificar

    quem eram os intrusos (grileiros, posseiros, fazendeiros, garimpeiros, comerciantes,

    biscates) e quem pertencia quelas terras, independente da crena em uma origem

    comum.

    Assim, o que o reconhecimento inaugura uma nova estratgia de conservao

    do subcampo tnico quilombola, j dado. Tal campo caracterizado pelas relaes de

    fora resultantes das lutas internas, pelas estratgias em uso e por presses externas

    (BOURDIEU, 1989). A estrutura do campo dada pelas relaes de fora entre os

    agentes (indivduos e grupos) e as instituies que lutam pela hegemonia no interior do

    campo, isto , o monoplio da autoridade que outorga o poder de ditar as regras, de

    repartir o capital especfico de cada campo, no caso da comunidade Kalunga, o

    Governo Federal com seus respectivos rgos responsveis (SEPPIR, Instituto

    Nacional de Colonizao e Reforma Agrria - INCRA, Ministrio do Desenvolvimento

    Agrrio - MDA, Fundao Cultural Palmares- FCP...).

    O subcampo tnico-quilombola, como outros campos, vive o conflito entre os

    agentes que o dominam e os demais, entre os agentes que monopolizam o capital

    especfico do campo, pela via da violncia simblica (autoridade) contra os agentes

    com pretenso dominao (BOURDIEU, 1989). Assim os agentes e instituies

    dominantes tendem a inculcar a cultura dominante, de modo a reproduzir o habitus, as

    desigualdades sociais nas maneiras de falar, de trabalhar, de julgar, legitimando

    inconscientemente a reproduo. A famlia, a escola, o meio no s reproduzem o

    19

  • habitus, como o legitimam inconscientemente. Assim, a vida social Kalunga

    governada pelos interesses do campo, mas no mago do prprio sistema.

    Tal interesse est ligado prpria existncia do campo (sobrevivncia) e s

    diversas formas de capital, ou seja, aos recursos teis na determinao e na reproduo

    das posies sociais (op. cit), que no caso desse campo, so determinados pelas

    discusses acerca do artigo 68 da CFB, seus impasses e possibilidades sobre o

    reconhecimento e garantia de seus direitos, que envolvem a transio de Terras de Preto

    para comunidades remanescentes de quilombo, a regulamentao do territrio com a

    titulao definitiva das terras e as linhas13 seguidas pelas polticas propostas e

    implementadas na comunidade.

    Esse tipo de articulao utilizado como estratgia de conservao pelos lderes

    da comunidade Kalunga, que emergiram a partir do envolvimento da Antroploga Mari

    Baiocchi na comunidade com o Projeto Kalunga: Povo da Terra, em 1982. Tais lderes

    tiveram participao na consolidao e continuidade da comunidade como

    remanescente de quilombo, acompanhando as tendncias do novo arcabouo jurdico e

    continuam atuando na sua conservao, procurando sempre enfatizar o teor tnico de

    suas representaes sociais para os outros membros do grupo e para os outros.

    4. Pressupostos Terico-metodolgicos

    Nas acepes sobre etnicidade de Frederik Barth (1967, 1976, 1973), ele destaca

    que a anlise sobre etnicidade em um grupo deve ser gerativa no deve se limitar a

    explorar a conservao ou a persistncia dos grupos tnicos, muito menos as narrativas

    13 Via de regra, tais polticas tendem a seguir dois caminhos um de cunho culturalista e outro pragmtico. As polticas de cunho culturalista pregam uma total preservao dos sinais diacrticos da comunidade

    20

  • de origem, mas tem que procurar esclarecer a dinmica incessante de conformao e

    reestruturao do mesmo.

    A dinmica incessante de conformao e reestruturao sob a perspectiva

    interacionista de Barth enfatiza uma autonomia dos indivduos frente s escolhas da

    vida. Tais escolhas seriam avaliadas, calculadas, maximizadas, sempre optando e

    escolhendo, negociando os custos e benefcios de cada um de seus atos, sem se

    preocupar com os condicionamentos sociais ou estruturais. Dessa forma, a sociedade

    estaria na mente dos indivduos de forma concreta, na forma de objetivos, metas,

    valores, necessidades, expectativas, seria a prpria organizao social a causa da

    estrutura social.

    O interacionismo simblico se preocupa com a anlise do processo de

    socializao, entendido como uma negociao constante que no se limita ao vnculo

    social, ou seja, as pessoas agem a partir do sentido que elas atribuem s situaes, s

    outras pessoas e aos objetos, sendo a interao processo de construo formadora de

    ambientes entre as pessoas, onde o ator social agente ativo da elaborao de esquemas

    interpretativos, anlises e categorias que no so definitivos nem apriorsticas, o

    significado dado pelo participante ainda no um dado em si, mas negociado em

    funo do evento, do contexto e da situao. Os contextos sociais pela perspectiva do

    interacionismo simblico, no so estticos, eles contm sua histria, seus valores, seus

    riscos e seus limites.

    A teoria da etnicidade no pode se basear somente a partir da constituio das

    fronteiras tnicas, como prope Barth, devemos levar em considerao que o

    estabelecimento da identidade tnica se d por meio da interpretao das impresses

    dos sinais diacrticos pelos agentes em interao, isso quer dizer que embora Barth

    aponte que a compreenso dos grupos tnicos deve se dar pela constituio de suas

    21

  • fronteiras o que vai tornar a anlise sociolgica possvel a compreenso de que as

    percepes e impresses dos agentes tm um referente social, tendo significao

    enquanto existe como uma representao coletiva, que no somente comum entre

    um determinado conjunto de pessoas, mas tambm partilhado por elas de forma que

    tais percepes possam se tornar a base de um entendimento entre o grupo em suas

    relaes sociais, ou seja, quando os sinais diacrticos tnicos formam as construes de

    senso comum ultrapassando a noo de idiossincrasias para trat-las como parte da

    cultura do povo em questo (MITCHEL, apud: OLIVEIRA, 2003 a).

    No entanto, devemos considerar que a etnicidade um processo ancorado em

    condies histricas concretas, a investigao sobre a identidade tnica (ou etnicidade)

    deve contemplar o processo de institucionalizao dos limites tnicos. J que para

    Cardoso de Oliveira (2003 b) o que define a identidade tnica a situao de contato

    intertnico e a conscientizao dessa situao pelos indivduos inseridos na conjuno

    intertnica que seria o alvo preliminar do cientista social durante a investigao, tal

    conscincia etnocntrica estaria pautada por valores e se assumiria como ideologia.

    Em outras palavras, deve-se compreender a funo latente da instituio, para

    alm de seu contedo cultural, ou ainda, para alm dos nveis epidrmicos da

    realidade, para assim, despir os fatos de sua aparncia para serem revelados em toda a

    sua significao (R. C. OLIVEIRA, 2003 a). Isso porque, tanto a cognio tnica (i.e.,

    do fato tnico) quanto o comportamento intertnico (i.e. o que emerge das relaes

    tnicas) so orientados para valores que frequentemente escapam do horizonte

    perceptivo dos agentes embora tais valores estejam contidos em ideologias (o que

    torna a anlise sociolgica possvel) (op. cit., p. 144) ao contrrio do que prope

    Mitchel e que Barth falha em considerar.

    22

  • Isso quer dizer que os grupos sociais esto imersos em um mesmo ambiente de

    competio que nem sempre so complementares, muitas vezes at se amparam em

    traos culturais emblemticos diversos, e entre eles h desigualdades de poder

    impossveis de serem ignoradas caso se pretenda revelar como se fixam suas respectivas

    identidades, ou seja, a anlise deve contemplar tambm o nvel macro14 da interao.

    Para Pacheco Oliveira (1999, p.35) o contexto inter-societrio no qual se

    constituem os grupos tnicos no um contexto abstrato e genrico, mas sim um

    contexto no qual o quadro poltico definido pelos parmetros do Estado-nao, assim

    o territrio deve ser tomado como a dimenso estratgica para se pensar a incorporao

    de populaes etnicamente diferenciadas nesse contexto.

    Assim, quando falamos de uma identidade tnica quilombola no podemos

    dissociar esses grupos tnicos da idia de territorialidade. O prprio Pacheco de

    Oliveira prope que a justa anlise dos grupos tnicos (quilombolas ou no) deve

    agregar ao conceito de etnicidade, o conceito de territorializao.

    Logo, os grupos tnicos devem ser vistos como uma forma de organizao

    social, cujo aspecto fundamental seria a j clssica caracterstica da atribuio tnica,

    identidade tnica categorizada por si mesmo e pelos outros, um tipo de organizao

    baseado na auto-atribuio dos indivduos categorias tnicas.

    Para os Kalunga a terra tem uma importncia fundamental, no s de

    sobrevivncia, como tambm a respeito da constituio da identidade desse povo. O

    territrio aqui compreendido segundo as acepes de Correia de Andrade (1994), que

    conceitua o territrio a partir da forma de apropriao de um determinado espao, por um

    14 O interacionismo simblico adotado por Barth parece levar em considerao apenas o nvel micro da interao, baseado no enquadre analtico das interaes face a face, formulado por Goffman (1974), nos trabalhos microetnogrficos de Erickson (1971), entre outros, no levando em considerao o nvel macro da interao baseado no enquadre descritivo-analtico de descrio densa apresentado por Geertz (1989) que procura compreender de maneira mais ampla e qualitativa, o universo a ser pesquisado, sem perder de vista a complexidade das relaes de poder.

    23

  • grupo social que o transforma pelo uso que lhe destina, e imprime identidades dessa

    mesma comunidade. o uso do territrio e no o territrio, em si mesmo, que faz dele

    objeto de anlise social, o territrio em questo o territrio usado (SANTOS, 2002).

    No caso dos Kalunga, como em outras comunidades quilombolas, o territrio pode

    ser entendido como uma rea demarcada por uma coletividade onde exerce o seu poder. A

    territorialidade reflete o multidimensionamento do vivido territorial pelos membros de

    uma coletividade, pela sociedade em geral. Os homens vivem ao mesmo tempo, o processo

    territorial e o produto territorial por intermdio de um sistema de relaes existenciais e/ou

    produtivas. O que faz com que o territrio passe a constituir uma identidade, no em si

    mesma, mas na coletividade que nele vive e produz. A exemplo dessa dinmica em

    comunidades quilombolas podemos citar15, o Quilombo Praia Grande em Iporanga - So

    Paulo, que devido a um processo de territorializao construiu uma territorialidade

    profundamente ligada ao lugar que habita, sendo a identidade do grupo e a terra

    entrelaadas de tal forma que ela (a terra) passa a ser num determinado momento uma

    extenso do grupo familiar, como no caso Kalunga; ou o quilombo Brotas em Itatiba SP,

    onde a identidade foi construda tendo como elemento intermedirio a religio que

    possibilitou a elaborao de uma identificao da comunidade com seu territrio.

    Isso quer dizer que o territrio no deve ser visto apenas na dimenso do espao

    fsico, que abriga comunidades, mas deve resgatar fatos, histrias e prticas do cotidiano de

    tais comunidades.

    A terra deixa de ser terra e tende a tornar-se simples solo ou suporte da territorializao e dos contedos sociais, um processo composto de significaes elaboradas pelas prticas humanas. O territrio de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos que o territorializa, um produto de uma territorializao dos meios e dos ritmos. A territorializao o ato do ritmo

    15 Ver: GIACOMINI, Rose Leine Bertaco. Cultura,Territrio eEtnodesenvolvimento: A Poltica Pblica de Desenvolvimento das Comunidades Remanescentes de quilombo no Estado de So Paulo. Anais do III Simpsio Nacional de Geogradia Agrria II Simpsio Internacional de Geografia Agrria. Jornada Ariovaldo Umbelino de Oliveira, 11 a 15 denovembro de 2005, retirado de: http://www2.fct.unesp.br/agraria/Trabalhos/Artigos/Rose%20Leine%20Bertaco%20Giacomini.pdf em 25de julho de 2007 s 16:00.

    24

    http://www2.fct.unesp.br/agraria/Trabalhos/Artigos/Rose Leine Bertaco Giacomini.pdf

  • tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos. [...] O territrio no s assegura e regula a coexistncia dos membros de uma mesma espcie, separando-os, mas torna possvel a coexistncia de um mximo de espcies diferentes num mesmo meio, especializando-os. Ao mesmo tempo em que membros de uma espcie compem personagens rtmicos e que as espcies diversas compem paisagens meldicas, as paisagens vo sendo povoados por personagens e estes vo pertencendo paisagem (DELEUZE & GUATARRI, p. 128, 1997)

    Como prtica social o territrio um campo que se constitui em simultaneidade

    identidade coletiva dos moradores, que se expressam por meio de sua cultura e das

    possibilidades de sua condio socioeconmica. Somando-se esse conjunto de

    elementos temos um conjunto de variveis que sinalizam um habitus comum, que est

    contido no territrio na mesma medida que este o contm. O habitus comum produto da

    territorialidade, estrutura as relaes culturais em um territrio que assenta a identidade

    social do grupo.

    O espao da territorialidade como suporte da identidade comporta duas

    dimenses: a acepo de formao social e a produo coletiva do espao. A partir

    dessas dimenses o territrio da comunidade Kalunga se torna produto de prticas

    sociais e polticas e constitudo por um conjunto de regras e cdigos, normas e

    disposies institudas pelo sistema de representao vigente no grupo, que dinamiza e

    fornece um status especfico para a populao que o habita.

    No entanto, a meu ver existe uma terceira dimenso que interfere no suporte da

    identidade pela territorialidade, essa terceira dimenso refere-se a variveis exgenas

    comunidade e diz respeito s articulaes institucionais e discursos elaborados de vrios

    setores, entre eles, o sociolgico, o antropolgico, o jurdico, o administrativo e o poltico.

    Nesse sentido, o governo e seus rgos exercem um papel fundamental no s de rbitro

    como tambm de mediador de polticas, no s para a demarcao de terras, mas tambm

    para o reconhecimento tnico, para a valorizao tnica e cultural, para a conscientizao

    25

  • do valor da terra, da cultura, da identidade Kalunga, e ainda polticas de educao, de sade

    e de integrao, fatores que possibilitam maior coeso do grupo enquanto comunidade.

    Nessa perspectiva, a falta de implementao de polticas pblicas que

    caracterizou a primeira parte da histria dos negros aps a abolio, bem como o

    habitus vivido pelos negros desde sua chegada ao Brasil, tm interferncia direta na

    formao da identidade tnica dos remanescentes de quilombos, entre outros fatores.

    Por essas razes a pesquisa no se configura apenas como uma reflexo sobre

    etnicidade, ou seja, que enfatiza a anlise apenas da organizao social (via fronteiras

    intertnicas), em detrimento da estrutura social16. Pois compreendo que os agentes

    sociais so histricos, determinados socialmente, imersos em um universo social fora

    de nossos controles, no existindo uma unicidade do ser, constante no tempo e espao,

    capaz de garantir uma ordenao dos acontecimentos e de dar um sentido racional e

    consciente s aes individuais. As aes no seguem uma linearidade progressiva e de

    causalidade, que se concentre e d sentido a todas as escolhas de uma pessoa, no h

    um todo coerente, coeso e atado por uma cadeia de inter-relaes, tal construo

    realizada a posteriori (pelo pesquisador ou pelo prprio indivduo) por meio da

    observao das trajetrias individuais onde possvel a objetivao do habitus, que se

    configura como resultado estvel, mas no imutvel do processo de interiorizao

    social e de incorporao de identidade. No entanto, reitero algumas concepes das

    teorias da etnicidade propiciadas pelo dialogo com antroplogos brasileiros sobre o

    tema, tais como: Roberto Cardoso de Oliveira (2003 a, 2003b), Pacheco de Oliveira

    (1999), Manuela Carneiro da Cunha (1985, 1992), a fim de adaptar as teorias da

    etnicidade para uma leitura mais completa sobre a realidade dos remanescentes de

    quilombos.

    16 Entendendo a estrutura social como o sistema de constrangimentos institucionais, simblicos e de conduta que limitam as opes do indivduo, enquanto que a organizao social seria o resultado das escolhas feitas pelos agentes, de acordo com tais limitaes.

    26

  • Nesse sentido, para compor o rol explicativo para os dados colhidos adotei a

    postura de que a noo de identidade pode ser entendida, prvia e genericamente, como

    um tipo de mediao da relao entre indivduo e sociedade. uma construo que

    passa necessariamente pelas malhas da individualidade, elaborada sempre na

    originalidade de trajetrias individuais, mas tem um sentido eminentemente social, ou

    seja, mobilizada pelos indivduos em suas relaes sociais (BOURDIEU, 1989). por

    meio de sua identidade que o indivduo se apresenta ao mundo social, mas tambm no

    processo de construo de sua identidade que a conformao social dos indivduos se

    explicita.

    As trajetrias individuas unidas a todos os outros traos dos grupos sociais,

    definem trajetrias comuns, feixes de percursos muito semelhantes, ou afinal, uma

    trajetria, que seria a objetivao das relaes entre os agentes e as foras presentes na

    estrutura social, no sistema de constrangimentos institucionais, simblicos e de conduta,

    historicamente construdo, que limitam as opes do indivduo (BOURDIEU, 1989).

    Assim, toda trajetria social deve ser compreendida como uma maneira singular de

    percorrer o espao social, onde se exprimem as disposies do habitus e reconstitui a

    srie das posies sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo

    grupo de agentes em espaos sucessivos (BOURDIEU, 1996, p.34).

    A perspectiva da praxiologia defende que o grupo social deixa visvel os

    aspectos de dinamicidade e permanncia de sua ao, incorporando os elementos

    constituintes da realidade social e, a seu modo, exterioriza os contedos simblicos

    interiorizados, compartilhando os traos de uma cultura comum que pode ser

    examinada por meio do conceito de habitus.

    O dilema metodolgico proposto, ou seja, o de realizar uma investigao em um

    grupo tnico a partir tanto da organizao social quanto da estrutura social, explorando

    27

  • os nveis micro e macro do objeto, pode ser feito por meio de uma investigao sobre o

    habitus da comunidade em questo, j que este, ao contrrio do contedo cultural que

    se modifica no tempo e varia de acordo com ajustamentos ecolgicos, como nos diz

    Barth, composto de disposies duradouras para certas percepes e prticas que

    acabam por se tornar parte do sentido de identidade individual, e obedece ao princpio

    de no-conscincia de Bourdieu. A noo de habitus que j fora proposto por Weber

    nos estudos de grupos tnicos e que Bourdieu tambm utiliza para fundamentar sua

    teoria da prtica, permite diferenciar expresses culturais superficiais daquelas

    estruturais e profundas, de forma que, enquanto estruturas profundas do habitus

    fornecem a base para o reconhecimento da identidade, essas estruturas produzem uma

    grande variedade de expresses culturais de superfcie, que variam de acordo com o

    contexto e estratgias escolhidas pelo grupo tnico.

    Assim, a investigao sobre o habitus Kalunga se deu pela investigao e anlise

    de trajetrias dos Kalunga, adotando um mtodo estruturalista, mas que tambm parte

    de certo construtivismo fenomenolgico, presentes nos pressupostos de Bourdieu.

    Busquei compreender o sistema completo de relaes nas quais e pelas quais as aes se

    realizam, na interao entre os agentes e as instituies que podemos encontrar uma

    estrutura histrica que se impe sobre os pensamentos e as aes (BOURDIEU, 1989).

    As dimenses do habitus: ethos, eidos e hexis, de acordo com Bourdieu (1983),

    no podem ser vistas como instncias separadas. O ethos a dimenso tica que

    designa um conjunto sistemtico de princpios prticos, no necessariamente

    conscientes, podendo ser considerado como uma tica prtica. Ope-se tica que

    constituda por um sistema coerente de princpios explicativos. Por conseguinte, o

    habitus desperta, nos agentes, a necessidade de respeitar as normas e valores sociais, o

    que lhes possibilita uma convivncia adequada s exigncias da sociedade. O eidos a

    28

  • dimenso que corresponde a um sistema de esquemas lgicos e cognitivos de

    classificao dos objetos do mundo social, portanto, leva o habitus a traduzir-se em

    estilos de vida, julgamentos morais e estticos.

    A hexis a dimenso que possibilita a internalizao das conseqncias das

    prticas sociais e, tambm, a sua exteriorizao corporal, por meio do modo de falar,

    gesticular, olhar e andar dos agentes sociais. Com tais dimenses, o habitus viabiliza-se

    enquanto produto de uma situao concreta com a qual estabelece uma relao

    dialtica, de onde se originam certas prticas sociais.

    Na interao com os diferentes espaos sociais, o habitus pode ser apreendido

    sob a forma de capitais (lingstico, corporal, material, social e outros). Por exemplo,

    falar de acordo com as normas hegemnicas, ter um corpo adequado aos padres

    estticos mais valorizados, so capitais que materializam os esquemas de determinados

    habitus, assegurando uma insero social diferenciada aos agentes que os detm.

    Nessa perspectiva, ao se estudar a comunidade Kalunga deve-se vislumbrar que

    os diferentes habitus no existem em estado puro, mas enquanto sntese de outros

    habitus presentes nos indivduos, como um resultado de suas pertenas a diversos

    grupos, ocorridas ao longo de suas trajetrias de vida. Assim, o habitus da comunidade

    Kalunga, como demonstrado neste trabalho, construdo enquanto sntese do habitus

    negro, rural, religioso e de campesinato especfico da construo histrico-social

    brasileira.

    O presente trabalho um estudo de caso nas regies da Maiadinha, Taboca,

    Capela e Curriola, todas no Vo do Moleque no municpio de Cavalcante, somando 122

    residncias, 30 delas foram visitadas, onde realizei, alm da observao participante,

    entrevistas formais e informais, que seguiam um roteiro de entrevistas, pr-elaborado e

    pr-testado e Histria Oral. A regio do Vo do Moleque foi escolhida pela

    29

  • convenincia da existncia de estradas, mesmo que precrias, o que facilita o acesso e

    tambm por tratar-se de uma regio populosa, mas distante das cidades vizinhas. O

    acesso ao Vo do Moleque feito por uma estrada de terra em condies ruins e fica

    cerca de 150 km de Cavalcante de carro. Outro fator determinante para a escolha da

    localidade que muitas polticas pblicas j comearam a ser implementadas nessa

    regio como a instalao da rede eltrica, a construo de escolas, construo de casas,

    entre outros.

    As observaes foram registradas no dirio de campo, algumas delas transcritas

    de gravaes feitas durante as entrevistas; essa tcnica, a de gravar, foi logo

    abandonada, uma vez que interferia na participao dos atores, e assim a maioria das

    entrevistas foram reconstitudas com base nos registros da minha memria. Algumas

    vezes fiz anotaes durante as entrevistas que auxiliaram nos registros posteriores, mas

    essa prtica tambm interferia na participao do entrevistado, que logo desconfiava

    das minhas intenes ao anotar o que era dito, essa tcnica tambm foi abandonada

    enquanto mtodo.

    As entrevistas informais se mostraram mais eficazes em relao quantidade e

    qualidade das informaes cedidas, uma vez que as anotaes e gravaes inspiravam

    desconfiana e medo nos entrevistados, enquanto que uma conversa informal permitia

    que os agentes ficassem mais vontade, em outras palavras, o curso livre dos

    depoimentos apreendidos por meio das entrevistas informais demonstrou-se muito mais

    rico como fonte de dados empricos essenciais do que a entrevista formal.

    A escolha das residncias no seguiu nenhum critrio de amostragem, e meu

    pouco conhecimento das inmeras trilhas da regio e da distribuio das residncias

    dificultaram o acesso, assim escolhi como critrio de escolha das mesmas o mtodo

    bola de neve, assim que encontrava uma residncia pedia referncia sobre a mais

    30

  • prxima, que no estivesse com mais de dois km de distncia, uma vez que o trajeto

    feito a p, e eu carregava meu filho de dois anos, mantimentos, roupas e gua e ainda

    teria que retornar ao ponto de partida.

    O contato com as famlias das outras residncias, bem com moradores

    pertencentes outros povoados do stio, ocorreu na cidade de Cavalcante, onde alguns

    tambm possuem residncia, ou no Festejo de Nossa Senhora do Livramento e na

    ocasio do Velrio de Joca da Costa Serafim e/ou quando estes estavam de passagem

    pelas residncias visitadas. Esses eventos ocorreram durante a pesquisa de Campo que

    contou com cinco viagens ao Vo do Moleque, de durao varivel, a mais longa durou

    32 dias consecutivos, somando 90 dias de convivncia ao todo com a comunidade,

    outras inmeras viagens foram empreendidas Cavalcante para a pesquisa documental.

    Em momentos anteriores, pude conhecer diversos outros povoados pertencentes ao

    Stio, mas o contato se deu sob outras bases que no a de pesquisadora, incluindo os

    povoados de Areia, Boa Sorte, Prata, Corrente, Engenho II, Vo de Almas, Sucuri,

    Fazenda Ema e Mochila, entre outros.

    Como o objetivo do trabalho um estudo qualitativo, o mtodo utilizado de

    escolha das residncias no interfere nos resultados da pesquisa, j que no se pretende

    quantificar nenhum dado colhido.

    A reconstituio histrica exigiu uma pesquisa das fontes documentais no

    Frum de Cavalcante e uma pesquisa bibliogrfica minuciosa que inclui documentos

    histricos do sculo XVIII, que esto no Instituo Histrico e Geogrfico Brasileiro no

    Rio de Janeiro e no Acervo Histrico de Gois. Essa parte da pesquisa exigiu bastante

    sensibilidade na conexo entre dados esparsos, aparentemente desconectados, que

    quando transposta para a pesquisa de campo confere ao pesquisador maior segurana na

    utilizao de histria oral e melhor aproveitamento dos dados obtidos.

    31

  • A leitura da maioria desses documentos, no entanto, revela um silncio em

    relao populao negra e indgena, demonstrando a situao perifrica que se

    encontrava essa populao. O vazio de informaes rompido somente por ligeiras e

    curtas referncias a escravos e quilombos, para ressaltar ou ilustrar fatos de interesse

    dos brancos.

    Metodologicamente, tanto a coleta de dados quanto a anlise se encaminharam

    sob dois planos complementares: como se d a constituio dessa comunidade e como

    ela se mantm, em termos de opes de processos organizativos e culturais, e como se

    d a elaborao da identidade tnica desse grupo sob o impacto da expanso capitalista

    e sob o alvoroo causado pela inaugurao do artigo 68 da Constituio Brasileira de

    1988.

    Para compreender a formao da comunidade Kalunga recorro s fontes

    primrias e a trabalhos de historiadores brasileiros que se ocupam do negro na

    sociedade escravocrata brasileira e de Gois17, tomando os dados disponveis e

    ordenando-os numa leitura tnica em termos de identidade dos negros, em diferentes

    situaes de alteridade historicamente configurada. Para analisar as representaes

    coletivas da comunidade investiguei o sistema scio-econmico a partir da famlia, dos

    sistemas de produo, distribuio e consumo, das relaes de parentesco, das relaes

    de produo, do ciclo comunitrio de festas. Para entender as reaes da comunidade

    17 Ver: ALENCASTRE, J.M.P. - "Annaes da Provncia de Goyaz". R. Inst. Hist. Geogr. Bras., 1864CARNEIRO, E.: O Quilombo dos Palmares. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957.CUNHA, M.C. Negros, Estrangeiros.Os escravos libertos e sua volta frica. Editora Brasiliense. So Paulo.MOURA, G. Ilhas negras num mar mestio. Carta: fala, reflexes, memrias, publicao do gabinete do senador Darcy Ribeiro, Braslia 4, n.13, 1994.MATTOSO, K de Q. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.PALACIN, L; MORAES, M. A. S. Histria de Gois, Editora UFG - 1989. Ministrio das relaes exterioresSILVA, Martiniano Jos. Quilombos do Brasil Central: Violncia e Resistncia Escrava. Goinia. Kelps, 2003.REIS, J. J.; SILVA, E. Negociao e conflito. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.RAMOS, A. O Negro na Civilizao Brasiliera, Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro, 1953.

    32

  • invaso do capitalismo, investiguei as relaes de dominao por meio das relaes

    intertnicas e os impactos das polticas de reconhecimento das comunidades tnicas

    sobre a comunidade Kalunga.

    Os nomes dos depoentes foram omitidos com o intuito de preservao da

    integridade dos mesmos, no entanto, quando sua condio indica um dado ele

    demonstrado. Todas as fotografias, bem como os grficos so de minha autoria, por

    isso a fonte no aparece junto s fotos.

    5. A Dissertao

    O desenvolvimento da identidade Kalunga teve diversos marcos estruturais e

    histricos, que sero divididos em trs grupos de abordagem para a anlise, so eles:

    Da origem ao reconhecimento: o sistema escravocrata, a colonizao do centro-

    oeste brasileiro, a decadncia do Ouro em Gois, diversos processos de ocupao de

    Terras de Preto decorrentes da decadncia do sistema, inclusive a formao de

    Quilombos no Brasil, A Lei de Terras de 1850, a abolio da escravido em 1888, o

    dficit de polticas pblicas que proporcionasse a integrao dos negros sociedade

    aps a abolio, o que contribuiu para uma profunda desigualdade scio-racial,

    resultando tanto na excluso da populao negra e indgena ao acesso de bens e

    servios, quanto num frgil exerccio da cidadania.

    O reconhecimento em si, o artigo 6818 da Constituio Brasileira de 1988,

    impasses e possibilidades.

    A partir do reconhecimento: o envolvimento da antroploga Mari Baiocchi com

    o Projeto Kalunga: Povo da Terra na dcada de 1980, O projeto de uma usina de

    18 Art. 68: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos.

    33

  • Hidroeltrica de FURNAS no Stio, grilagem, a influncia do movimento negro e

    polticos locais, a entrada do Governo Lula em 2002 e o Decreto 4.887 de 2003.

    O primeiro Captulo, portanto, trata de compreender a estrutura e a organizao

    social do negro em Gois desde o perodo da escravido, ou seja, a relao do sistema

    colonialista com o negro, captando a organizao social composta pelos mesmos a partir

    dessa estrutura, que originou, entre outros, no habitus Kalunga. Buscando compreender

    os diversos processos que resultaram nas 2.228 comunidades remanescentes de

    quilombo do Brasil na atualidade, especificamente a comunidade Kalunga, e como esse

    novo objeto compreendido em diversas esferas. Ainda, investigo a origem da

    comunidade a partir de documentos histricos da regio no perodo escravista.

    No segundo Captulo, analiso a origem da comunidade Kalunga a partir da

    constituio familiar do Vo do Moleque e sua forma de ocupao da terra, analisando

    a dinmica de (re)configurao cultural, a partir do reconhecimento, que resultou em

    trs mitos de origem da comunidade Kalunga e da passagem de Terras de Preto para

    Remanescentes de Quilombos.

    No ltimo Captulo procuro apresentar a organizao social Kalunga resultante

    desse habitus historicamente construdo na atualidade, a partir da observao

    participante e sistematizao dos dados (em uma leitura tnica).

    34

  • Captulo 1 - 1Trajetria dos Negros ao longo da formao Histrico Brasileira: De Quilombo Remanescentes de Quilombo

    Tanto a memria social Kalunga quanto a formao Histrico Brasileira so

    aqui utilizadas como dados para composio do habitus Kalunga e conseqente

    compreenso da identidade e territorialidade Kalunga.

    No entanto, preciso considerar que quando h fronteiras simblicas

    objetivizadas pela cultura, no se deve considerar os grupos em si como as unidades

    referenciais desta busca, j que grupo ou comunidade, sociedade no tem

    extenso emprica e varia de acordo com tempo e espao, s vezes to somente uma

    comodidade jurdico/terica para lidarmos com certas realidades sociais. Este um

    problema que se pe no desenvolvimento da etnografia, do trabalho de campo de um

    socilogo junto a um grupo tnico, pois quase sempre as unidades significativas para as

    relaes travadas dentro de um coletivo so as famlias, as linhagens, as casas, como no

    caso da comunidade Kalunga. Salvo, talvez, em condies em que h instituies

    polticas bem formalizadas e supra familiares.

    Esse captulo, portanto, trata de compreender a estrutura e a organizao social

    do negro em Gois desde o perodo da escravido, relacionando tal anlise com a

    origem da comunidade Kalunga.

    1. O Negro na Histria do Brasil e de Gois

    A histria brasileira marcada pelo deslocamento espacial e progressivo em

    direo ao interior do pas, a conquista e a ocupao de terras oferecem uma longa

    genealogia retomada na construo da identidade brasileira. O surgimento do quilombo

    35

  • Kalunga est ligado histria de colonizao do Estado de Gois e, de forma geral, de

    todo centro-oeste. A provncia de Goyazes foi explorada por bandeirantes que deram

    inicio colonizao do Estado a partir da explorao das minas de ouro que tiveram o

    negro como principal suporte. Os negros serviram de sustentculo para a manuteno

    da estrutura colonizadora desde as primeiras lavouras de cana-de-acar at o marcante

    ciclo do ouro (MOURA, 1993).

    As posies dos indivduos ou grupos no interior da estrutura social no Brasil do

    sculo XIX no tinham como referncia apenas a figura do senhor branco e do escravo

    negro (e marginalmente tambm a do ndio), eram pautadas em relaes

    multidimensionais que levavam em considerao uma srie de construes simblicas

    em torno de uma grande pluralidade de figuras e tipos sociais: homens, mulheres,

    velhos, moos, negros, brancos, mulatos, escravos, escravos de ganho, livres, libertos,

    ingnuos, europeus, ndios, africanos, crioulos, brasileiros, imigrantes, portugueses,

    fazendeiros, agregados, assalariados.

    A estrutura social constitui-se como um sistema complexo de relaes cujo

    modelo de estratificao, embora seja certamente influenciado pelas relaes de

    trabalho e produo, no se resume a tais relaes, que se definem a partir de um

    espao multidimensional de posies, ou um campo de foras, no qual os agentes

    esto inseridos e so definidos em funo de sua posio relativa (BOURDIEU, 1989).

    Os jogos de relaes que determinam a posio dos indivduos e grupos na sociedade e

    que, assim, fundamentam as construes identitrias, so mltiplos, como procuro

    demonstrar ao analisar o papel do negro na Histria do Brasil e de Gois.

    A histria de Gois tem como ponto de partida o final do sculo XVII, com a

    descoberta das suas primeiras minas de ouro, e incio do sculo XVIII. Esta poca,

    iniciada com a chegada dos bandeirantes, vindos de So Paulo em 1722, foi marcada

    36

  • pela colonizao de algumas regies. A primeira parte da histria de Gois representou

    uma etapa de investigao das possibilidades econmicas das regies goianas, durante a

    qual o seu territrio tornou-se conhecido. J no sculo XVIII, em funo da expanso

    da marcha do ouro, o territrio goiano foi ento, ocupado, de fato, por meio da

    minerao, logo, seu povoamento s ocorreu em virtude do descobrimento das minas

    de ouro (sculo XIII), tendo sido feito de forma irregular e instvel, como todo

    povoamento aurfero19. As descobertas iniciais ocorreram nas pores sulinas de Gois,

    sucedida por outras, ocorrendo penetraes rumo ao Tocantins, depositrio das mais

    ricas minas de Gois.

    Os bandeirantes so acusados de serem assassinos cruis, instrumentos

    selvagens da classe dominante, mas tambm so aclamados por terem sido os

    verdadeiros construtores da nacionalidade pela bravura e integridade de sua conduta

    (LIPPI, 1998). No entanto, essa viso marginaliza outros protagonistas da histria

    brasileira, como os negros, os ndios, os jesutas, entre outros.

    A primeira informao sobre a populao de Gois so os dados da capitao20

    de 1736 . Dez anos depois do incio da minerao, havia em Gois mais de 10.000

    escravos adultos. O total da populao era menor de 20.000, pois os escravos deviam

    constituir mais da metade da populao. Os dez primeiros anos de minerao instalaram

    em Gois quase 20.000 pessoas que, abriram caminhos, cidades, colocando em

    atividade grande parte do territrio.

    19 A descoberta de Ouro em diversas regies do pas estimulava a instalao de inmeros mineradores, que vinham geralmente sem famlia, nessas localidades, logo esse tipo de atividade econmica atraa um tipo especfico de pblico, mineradores, cujo, nico interesse na regio era a explorao de ouro, assim que a mina se esgotasse eles procuravam nova localidade ou retornavam para sua famlia. Poucas eram as famlias que se constituam nessas localidades, fazendo com que o povoamento a partir da explorao aurfera se tornasse instvel e irregular.20 Capitao o nome dado aos impostos que so pagos per capita. No Brasil colonial, foi cobrada a partir de 1734 com o intuito de acabar com a "ociosidade dos pretos livres", que inclua toda a populao pobre negra ou mestia. Cada branco ou "Preto Forro" (negro alforriado ou mulato livre) tinha de pagar semestralmente o imposto de 4 oitavas e 3 quartos de ouro por cabea de escravo, e cada "Preto Forro" tinha de pagar por si mesmo capitao semestral de 2 oitavas, 1 quarto e 4 vintns de ouro.Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/Capita%C3%A7%C3%A3o"

    37

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Capita??ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Escravohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ourohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Impostohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mulatohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_de_alforriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Branco_(caucasiano)http://pt.wikipedia.org/wiki/Mesti?ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Negrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Pobrehttp://pt.wikipedia.org/wiki/1734http://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil_colonial

  • Na dcada de 1740 a poro mais povoada de Gois era o sul, mas a expanso

    rumo ao setentrio prosseguia com a implantao dos arraiais do Carmo, Conceio,

    So Domingos, So Jos do Duro, Amaro Leite, Pilar de Gois, Cavalcante e Palma

    (Paran), essas ltimas abrigam a comunidade Kalunga.

    A descoberta do Ouro promoveu, de vez, o estabelecimento do homem ao

    territrio goiano e inaugurou as bases de colonizao portuguesa no Centro-Oeste,

    integrado, a partir de ento, no contexto mercantil da colnia. A regio passou a

    funcionar como rea fornecedora de metais preciosos metrpole, e a minerao em

    Gois teve papel de suma relevncia, determinante de aspectos peculiares fundamentais

    do conjunto da capitania.

    Em 1750, ao tornar-se Gois uma capitania, os habitantes deviam ser pouco

    menos de 40.000 pessoas. A populao continuou aumentando, embora j em menor

    ritmo e em 1783 havia em Gois quase 60.000 habitantes; um aumento de mais de

    50%21.

    As descobertas aurferas numa fase inicial propiciaram elevado afluxo

    populacional. Mas a regio, se visualizada no seu conjunto, no chegou a ser

    efetivamente ocupada. Os ncleos de povoamento representados pelos arraiais foram

    concentraes isoladas, cercadas por vastas pores desrticas sob o aspecto humano

    branco.

    semelhana do povoamento, a administrao, os transportes e as

    comunicaes foram envolvidos no processo de mercantilismo portugus, para o qual,

    durante trs quartos de sculo Gois funcionou como uma vasta feitoria, cuja

    populao, dividida em turmas de operrios mineiros, sob a direo do guarda-mr

    21 V. PALACIN, Luiz - "Gois, Estrutura e Conjuntura numa Capitania de Minas", Goinia, 1972, pg.18).(ALENCASTRE, J.M.P. - "Annaes da Provncia de Goyaz". R. Inst. Hist. Geogr. Bras., 27:20-21, 1864).(ABREU, Joo Capistrano de - "Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil". Rio de Janeiro, 1960, pg. 84). (CASAL, Aires do - "Corografia Brasilica", Apud BRUNO, Ernani Silva - As selvas e o Pantanal Gois e Mato Grosso. Cultrix, 1959 p.66.

    38

  • territorial, se movia em todas as direes, parava onde havia trabalho, no tendo amor

    ao lar domstico nem afeio ao solo (ALENCASTRE, 1864, p.20-21 e 27).

    A quase totalidade da mo-de-obra foi empregada na minerao, enquanto a

    agricultura e a pecuria at o final do sculo XVIII, foram como atividades subsidirias.

    O comrcio, com exceo dos metais, foi de cunho interno, fundamentado na

    importao dos gneros de primeira necessidade e dos manufaturados, e as ligaes

    diretas com o exterior da provncia foram proibidas. O fechamento do intercmbio

    direto com o exterior pelo Par e Maranho, via Tocantins, decorreu, sobretudo, da

    necessidade de conter o contrabando do ouro. Portugal adotou esta poltica isolacionista

    em todas as regies aurferas.

    A partir da segunda metade do sculo XVIII, Portugal comeou a entrar em fase

    de decadncia progressiva, que coincidiu com o decrscimo da produtividade e do

    volume mdio da produo das minas do Brasil. A partir de 1778, a produo bruta das

    minas de Gois comeou a declinar progressivamente, em conseqncia da escassez

    dos metais das minas conhecidas, da ausncia de novas descobertas e do decrscimo

    progressivo do rendimento por escravo. Em 1749, o rendimento por escravo

    apresentava-se baixo, no mais que uma oitava por semana (PALACIN, 1989 , pg.

    139.)

    Entre 1750 e 1781,o crescimento populacional teria sido da ordem de 70%.

    Entre 1783 e 1804, no entanto, possvel perceber que a decadncia da minerao se

    traduziu numa diminuio da populao em 20%, a populao nesse ltimo ano o

    mais baixo da curva censitria (50.365 habitantes). No se importavam mais escravos

    para suprir as mortes, muitos brancos e livres emigravam para outros territrios. Houve,

    consequentemente, diminuio da produtividade do trabalho escravo, que quase no

    pagava os prprios custos e aumento das alforrias, nesse sentido, o trabalho assalariado

    39

  • ou semi-assalariado passou a constituir a forma mais barata e segura de labor, como

    descritos abaixo.

    Um novo tipo de povoamento se estabeleceu a partir do final do sculo XVIII,

    sobretudo no Sul da capitania, onde os campos de pastagens naturais se transformaram

    em centros de criatrio de gado. A necessidade de tomar dos mineradores reas sob seu

    domnio, que serviam de empecilho marcha do povoamento rumo s pores

    setentrionais, propiciou tambm a expanso da ocupao neste fim de sculo.

    Somente nesse perodo que se pode observar o surgimento de Campo Alegre,

    originada de um pouso de tropeiros, primitivamente, chamou-se Arraial do Calaa; e de

    Santo Antnio do Morro do Chapu (Monte Alegre de Gois), na zona Centro-

    Oriental, na rota do serto baiano, cidades que atualmente tambm abrigam a

    comunidade Kalunga.

    Ao se evidenciar a decadncia do ouro, vrias medidas administrativas foram

    tomadas por parte de governo, sem alcanar, no entanto, resultado satisfatrio. A

    economia do ouro, sinnimo de lucro fcil, no encontrou de imediato, um produto que

    a substitusse em nvel de vantagem econmica. A decadncia do ouro afetou a

    sociedade goiana, sobretudo na forma de ruralizao e retorno a uma economia de

    subsistncia.(PALACIN E MORAES, 1989).

    Gois viveu um longo perodo de transio. Desaparecera uma economia

    mineradora de alto teor comercial. Nascia uma economia agrria, fechada, de

    subsistncia, produzindo apenas algum excedente para aquisio de gneros essenciais,

    como: sal, ferramentas, querosene, etc.

    No Sul e no Norte de Gois, no incio do sculo XIX, a minerao era de

    pequena monta. O respaldo econmico do novo surto de povoamento foi representado

    pela pecuria, estabelecida por meio de duas grandes vias de penetrao: A do

    40

  • Nordeste, representada por criadores e rebanhos nordestinos, que pelo So Francisco se

    espalharam pelo Oeste da Bahia, penetrando nas zonas adjacentes de Gois. O Arraial

    dos Couros (Formosa) foi o grande centro dessa via. A de So Paulo e Minas Gerais,

    que por meio dos antigos caminhos da minerao, penetrou no territrio goiano,

    estabilizando-se no Sudoeste da capitania. Assim, extensas reas do territrio goiano

    foram ocupadas em funo da pecuria, dela derivando a expanso do povoamento e o

    surgimento de cidades como Itabera, inicialmente uma fazenda de criao, e Anpolis,

    local de passagem de muitos fazendeiros de gado que seguiam em demanda regio

    das minas e que, impressionados com seus campos, ali se instalaram.

    Este povoamento oriundo da pecuria, entretanto, apresentou numerosos

    problemas. No foi, por exemplo, um povoamento uniforme: caracterizou-se pela m

    distribuio e pela heterogeneidade do seu crescimento. Enquanto algumas reas

    permaneceram estacionrias, outras decaram (os antigos centros mineradores), e outras

    ainda, localizadas principalmente na regio Centro-Sul, surgiram e se desenvolveram,

    em decorrncia, sobretudo do surto migratrio de paulistas, mineiros e nordestinos.

    Com o advento do Imprio, em 1822, o quadro geral da ocupao de Gois no se

    modificou sensivelmente.

    Outro problema crucial do povoamento residiu na dificuldade de comunicao

    com as outras regies brasileiras. Comunicaes carentes e difceis com as diversas

    regies do Imprio, mesmo para os recursos disponveis do perodo, derivavam

    principalmente da pobreza da Provncia, incapaz de obter meios eficientes para vencer

    as enormes distncias que separavam Gois dos portos do litoral, refletiram

    negativamente sobre o comrcio de exportao e importao, freiando qualquer

    possibilidade de desenvolvimento provincial.

    41

  • As caractersticas da pecuria extensiva, no propiciavam a criao de ncleos

    urbanos expressivos, pro perodo22. A economia tendeu a uma ruralizao cada vez

    mais marcante e o tipo de atividade econmica gerou grande disperso e nomadismo da

    populao. Os antigos centros mineradores decadentes no foram substitudos por

    povoaes dinmicas. No incio do sculo XIX, os ncleos urbanos eram pobres e em

    nmero reduzido, destacando-se apenas as povoaes de Meia Ponte e Vila Boa de

    Gois, esta funcionando como sede do governo.

    Apesar de constiturem a base de sustentao da economia aurfera os negros

    escravizados, provindos da frica e seus descendentes eram considerados em diversas

    regies do pas, inclusive em Gois, inferiores, ficando abaixo, inclusive dos ndios,

    que consideravam ofensa serem chamados de negros (DOMINGUES, 1996). As

    condies de trabalho dos escravos negros eram pssimas, trabalhavam de sol a sol

    dentro dos rios ou tneis, contraindo malria e doenas pulmonares. Alm das pssimas

    condies de vida e trabalho, os negros viviam longe de suas famlias e de sua cultura,

    entre negros de etnias diferenciadas provindos de diferentes regies da frica, cada um

    com costumes e lngua diferentes.

    Todos esses fatores contribuam para as freqentes rebelies de escravos, que

    pelo cansao e a falta de perspectiva, praticavam abortos, suicidavam-se, faziam

    motins, roubavam ou fugiam. Todas essas aes expressavam a resistncia contra o

    roubo de sua identidade, contra a escravido e contra a opresso (MOURA, 1993).

    Os Quilombos eram constitudos, inicialmente, pelos escravos, que conseguiam

    fugir e se refugiar nas matas, e posteriormente, por ex-escravos que procuravam terras

    22 Quando se encerrou o Sculo XVIII, a populao total brasileira atingia cerca de trs milhes de habitantes. Salvador, a cidade mais populosa do Brasil, tinha 50 mil moradores, alm dos 15 mil que habitavam em seus subrbios; a capital, o Rio de Janeiro, tinha atingido 40 mil habitantes; Ouro Preto alcanara 30 mil em meados do sculo, porm com a decadncia do ouro, possua apenas 20 mil habitantes, seguida de Cuiab, Belm e So Luiz com 10 mil moradores. Fonte: www.brasil.gov.br, retirado em 04 de Agosto de 2007

    42

    http://www.brasil.gov.br/

  • para se abrigar aps a decadncia do ciclo do ouro e da Abolio da Escravatura. No

    entanto, as formas de apropriao da terra por negros que passaram a constituir os

    quilombos contemporneos ao qual se baseia a atual legislao, envolvem diversos

    meios, entre eles, doaes, heranas, ocupaes de terras devolutas, compra de terras,

    como veremos a seguir.

    1.1.1.Formao de Terras de Preto

    Mesmo na condio de escravos o sistema propiciava acordos e ocupaes aos

    negros que possibilitariam a arrecadao de peclio suficiente para a compra de

    alforria, bem como para a compra de terras, comrcio, entre outros. Existiam diversas

    formas de relao entre o senhor, o escravo e a terra que vo desde fugas de fazendas

    escravistas, confronto armado, compra de terras, doaes ou ocupaes, herana,

    recebimento de terras como pagamento de servios prestados ao Estado, simples

    permanncia nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes

    propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigncia do sistema

    escravocrata quanto aps sua extino.

    Havia, entre outros, a possibilidade de grupos negros permanecerem nas

    grandes propriedades devido miscigenao com os proprietrios, ou seja, laos

    consangneos com o senhor de escravos que orientavam a permanncia nas terras,

    mesmo que no fosse legitimada pelo senhor. Esses filhos de senhores e escravas,

    muitas vezes eram alforriados durante os batizados, outras vezes ficavam escravos o

    resto da vida.

    Durante a colonizao de Gois ocorreram srios momentos de recesso

    econmica, inaugurados pela decadncia do ouro em Gois. Como o mercado no

    absorvia escravos ou estes se tornavam um peso, os senhores passavam a considerar

    novas alternativas que possibilitavam ao negro a conquista de sua alforria e a

    possibilidade de ocupao de terras.

    Havia um direito costumeiro de o escravo se alforriar mediante apresentao de

    seu valor, a esperana na manumisso23 central ao sistema, e complementar aos

    castigos e violncia fsica usados contra os escravos, mas essa esperana era de tal

    23 Sinnimo de alforria.

    43

  • modo construda que passava pela dependncia pessoal do senhor. A venda da alforria

    ao negro repercutia em entrada de renda para o senhor falido, uma oportunidade para

    ele de reaver seu capital. Mas ainda havia outra forma, eles tambm podiam conseguir

    sua alforria mediante um acordo condicional, onde se trocava anos de servio pela

    liberdade, ou at a morte do senhor.

    Os escravos exerciam atividades econmicas paralelas servido. Segundo

    Cunha (1985), no Brasil, coexistindo com a escravido, havia trs outras formas de

    trabalho dependente, que pode ser identificado tambm no Estado de Gois: os

    agregados ou moradores, que recebiam um lote de terra e proteo em troca de pequena

    parcela da colheita, geralmente de sua cultura de subsistncia, e de proverem servios

    pessoais que incluam a defesa do senhor, havia a variao do chamado morador de

    condio que trabalhava alguns dias por semana para o senhor; o segundo tipo era

    constitudo pelos assalariados e diaristas, sendo os mais numerosos os no qualificados

    e sazonais, com paga diria; o terceiro tipo, era constitudo pelos parceiros ou

    arrendatrios, que recebiam um lote de terra e s vezes as mudas para a primeira safra

    em troca de plantarem, cultivarem, colherem e transportarem os produtos, e pagarem

    metade da prpria safra ao proprietrio das terras. Essa ltima, era a mais prspera e

    empregava certo nmero de escravos. Essa dependncia era mais comum nas culturas

    de cana do que de algodo ou fumo, nas regies do caf os libertos parecem ter-se

    estabelecido nas vilas ou em terras de cultivo mais difcil, perifricas s grandes

    fazendas.

    Segundo Cunha (op. cit.), o padro era que desenvolvessem uma agricultura de

    subsistncia ou de mantimentos para o abastecimento das cidades, enquanto que as

    fazendas e engenhos estavam voltados para a produo de bens de exportao. Assim,

    no Brasil todo abastecimento das cidades dependia desses pequenos agricultores, na

    maioria libertos.

    Quanto agricultura, s tenho a dizer em termos diretos que os estoques principais de farinha, de feijo e de milho com que se aprovisionam as cidades, so cultivados por pessoas livres de cor, estabelecidas por todo o pas,onde o acaso ou a inclinao de melhor ou pior aparncia, segundo a diligncia ou a capacidade de seus donos, e a cada um desses lugares ligado um pedao de terra para o trabalho de um ou dois homens. As terras pertencem sobretudo aos grandes agricultores e so alugadas s classes inferiores de pessoas a baixo preo. As grandes lavouras dedicam-se ao acar e ao algodo e raramente cultivam mais mandioca (o po desta terra) ou feijo do que necessrio para o consumo dos escravos (KOSTER, apud: Cunha, 1985, p.65).

    44

  • A venda desses produtos proporcionava ao negro a obteno de capital para

    compra de sua alforria. Em Cavalcante, esse tipo de categoria de trabalho era muito

    exercida, visto que as principais atividades em diferentes perodos estavam voltadas

    exportao, seja de ouro, monocultura ou gado, as atividades paralelas, como a

    produo de bens de consumo no eram significativas ou pelo menos suficientes para

    abastecer a rea urbana, o que proporcionava aos pequenos agricultores negros

    obteno de renda.

    At os dias atuais, o abastecimento de itens da roa24 em Cavalcante ocorre pela

    importao desses produtos de regies vizinhas. Existe relatos de que os gros e

    produtos Kalunga no passado eram comercializados e bem aceitos, especialmente a

    farinha e gros25, no entanto, nos dias atuais h a competio com produtos

    industrializados, alm de ter ocorrido uma queda drstica na produo devido ao

    aumento dos perodos de seca, empobrecimento do solo, invaso das melhores terras

    por fazendeiros, entre outros.

    Alm dessas categorias, existiam os escravos de ganho, que realizavam tarefas

    remuneradas, entregando ao senhor uma quota diria do pagamento recebido. As

    principais atividades a que se dedicavam eram as de carregadores, doceiras e pequenos

    consertos, alguns senhores induziam