Identidade Etnico Racial No Brasil

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    IDENTIDADE TNICO/RACIAL NO BRASIL:UMA REFLEXO TERICO-METODOLGICA

    Maria Batista Lima1

    RESUMO

    A problematizao sobre as relaes raciais tem se ampliado de forma progressiva nasociedade brasileira nessa ltima dcada. Essa problematizao envolve tanto asprticas cotidianas dessas relaes, os embates e aes polticas, como as construesconceituais a estas relacionadas. Um desses embates tericos encontra-se napertinncia de uso do conceito de raa ou etnia entre as diferentes descendnciaspopulacionais no pas. Superado no campo cientfico a tese da raa, o embate se dentre os adeptos da sua transmutao em raa social (Guimares, 1999) e os quedefendem o uso do conceito etnia, seja esta articulada s correntes culturalistas ouligada perspectiva histrico-poltico-social, fundamentada na idia de territriocomo elemento agregador de significado poltico. Este ltimo enfoque encontra-sefundamentado na idia de afrodescendncia como conjunto de referenciais scio-histricos e culturais, que remetem s matrizes africanas. Este trabalho apresenta umpanorama terico metodolgico sobre os conceitos de identidade tnico-racial, apartir de um histrico dos conceitos de raa, etnia, afrodescendncias e africanidadesno bojo das relaes tnico raciais brasileiras e do racismo que tem historicamentemediado essas relaes. O trabalho tem como ponto de partida a tese de doutoradoda autora, defendida pela PUC Rio (Lima), sob a orientao da Professora SoniaKramer.

    INTRODUO

    Assumir a relao dialgica como essencial na constituio dosseres humanos no significa imagin-la sempre harmoniosa,consensual e desprovida de conflitos (Geraldi, 2003, p.42).

    A problematizao sobre as relaes raciais tem se ampliado de formaprogressiva na sociedade brasileira nessa ltima dcada. Essa problematizaoenvolve tanto as prticas cotidianas dessas relaes, os embates e aes polticas,

    como as construes conceituais a estas relacionadas.

    Um desses embates tericos encontra-se na pertinncia de uso do conceito deraa ou etnia entre as diferentes descendncias populacionais no pas. Superado nocampo cientfico a tese da raa biolgica (Guimares, 1999), o embate se d entre osadeptos da sua transmutao em raa social (Guimares, 1999) e os que defendem ouso do conceito etnia, seja esta articulada s correntes culturalistas ou ligada perspectiva histrico-poltico-social, fundamentada na idia de territrio como

    1A autora atualmente Prof Adjunta da Universidade Federal de Sergipe (Campus Universitrio Prof. Alberto

    Carvalho Itabaiana SE), Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Identidades e Alteridades:Diferenas e Desigualdades na Educao (GEPIADDE).

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    elemento agregador de significado poltico. Este ltimo enfoque encontra-sefundamentado na idia de afrodescendncia como conjunto de referenciais scio-histricos e culturais, que remetem s matrizes africanas (Gonalves, 2000;

    Gonalves e Silva, 2002; Lima, 2001; Ferreira, 2000).Outro enfoque que aqui nos interessa por se constituir em um dos focos

    temticos deste projeto o das polticas pblicas, que implica em buscar entender olugar das relaes tnico/raciais no contexto da histria scio-poltica do Brasil, maisespecificadamente no que se refere populao negra/afro-brasileira e ao racismo aela direcionada ao longo dos sculos da nossa histria.

    Contemporaneamente, menciona-se a existncia de um racismoinstitucional, referindo-se s operaes annimas de discriminao emorganizaes, profisses, ou inclusive de sociedades inteiras. Esta expresso

    oriunda dos ativistas negros Stockely Carmichael e Charles V. Hamilton2, queafirmam que o racismo onipresente e aberto ou subliminarmente, permeia toda asociedade. De uma forma sucinta, envolve as seguintes questes: (a) destri amotivao, fomentando a formao de jovens ocupacionalmente obsoletos,destinados condio de subclasse; (b) camuflado, pois suas causas especficas noso detectveis, porm so visveis seus efeitos e resultados; (c) a fora deste tipo deracismo est em se manter as formas racistas que afeta as instituies por muitotempo aps as pessoas racistas desaparecerem; (d) no obstante as crticasconceituais, o racismo institucional pe em relevncia o papel das aes afirmativas,

    como forma de erradicar a discriminao racial; (e) este tipo de racismo muito usualpara a anlise de como as instituies trabalham embasadas em fatores racistas,embora no o admitindo e nem mesmo o reconhecendo (Cashmore, 2000).

    Enfim, ainda em nvel de definio, existe a questo do racismo invertido oudo racismo negro. Recentemente, certas atitudes como expresses de hostilidade,discriminao ou at mesmo indiferena por parte de minorias tnicas, foram lidascomo racismo invertido. Porm, a grande diferena a de que o racismo branco uma herana do imperialismo, enquanto a verso negra simplesmente uma reao experincia do racismo. Concordo com Cashmore (2000, p. 475) quando conclui que

    A reao negra ao racismo branco assume vrias formas; aceitar ascategorias raciais e articul-las de modo a imitar o racismo branco apenas uma delas. Chamar isso de racismo invertido no pareceservir s aspiraes analticas. O termo sugere erroneamente que oracismo, nos dias atuais, pode ser estudado por meio da avaliaode crenas, sem a cuidadosa considerao das experinciashistricas amplamente diferentes dos grupos envolvidos.

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    Este termo est presente na obra Black Power: The Politics of Libaration in America, destesautores.

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    Uma reflexo terico-metodolgica

    Ou seja, a compreenso do racismo no contexto de concepo e prticaideolgica o coloca como algo cujos mecanismos atingem a todos os grupos epessoas, j que, como ideologia, apregoa a crena na superioridade de um sobre o

    outro e esta crena reproduzida para todos os brancos(as) e negros(as).No emprico, o racismo est presente numa prtica poltica que resulta em

    discriminaes concretas. Todos os racismos so construdos com base nasdiferenas. Os racistas essencialistas ou universalistas afirmavam e entendiam queessas diferenas eram biolgicas. Aqui, havia uma ntima relao entre a Biologia e ainteligncia e qualidades psicolgicas de um povo. No Brasil, a soluo dessestericos racistas era encontrar uma unidade, seja pela assimilao das culturas daschamadas minorias, seja a partir de uma cultura hegemnica dominante, ou atravsda miscigenao. Em outros pases desencadeia-se um racismo diferencialista: os

    outros, os diferentes, deveriam viver segregados, apartados. Esta apartao ia dobero ao tmulo porque as diferenas so ameaadoras. Neste tipo de racismo, nose aceita a assimilao cultural e, menos ainda, a mestiagem.

    Quanto ao racismo no Brasil, interessante a sistematizao feita porTeodoro (1996, p.96), que afirma que, neste tema h sempre autoria, ambigidade,irresponsabilidade e oralidade: (a) autoria, porque envolve sempre raa, mestiagem,grupo tnico, minorias tnicas, classe social e regio/redutos/bolses e tem presenteuma ideologia racial de conotao cientfica, elaborada pelas elites econmicas,intelectuais, polticas, cientficas, artsticas e militares; (b) ambigidade, porque varia

    entre culturas, folclores, grupos culturais, cor da pele, fentipos, status e funosocial: um comportamento caracterstico, resultado de atitudes, idias e discursosparadoxais; comportamento este apoiado pela mdia, e praticado nos espaospblicos e privados, envolvendo um agressor e uma vtima; (c) irresponsabilidade,porque negao dos direitos humanos, est na violncia policial, na agresso fsicacomum, na agresso verbal e na agresso visual, sendo traduzida em polticasinstitucionais e em comportamentos sociais de todos os grupos (inclusive a vtima)contra o grupo objeto da ideologia racista; (d) e, por sua vez, a oralidade pe emdescrdito quem se diz vtima do racismo, garantindo a impunidade do agressor,tornando-se o pilar da reproduo do racismo brasileiro: quanto mais alto e quantomais baixo se est na hierarquia social, com mais facilidade se usa a oralidade,cumprindo assim o objetivo racista de reproduo das desigualdades.

    Imbricados nos conceitos de raa, etnia e racismo, encontra-se o preconceitoracial, a discriminao racial e a segregao, que so maneiras de expressar o racismoe correspondem a diferentes graus de violncia. Porm, o preconceito a forma maiscomum e freqente porque envolve um sentimento ou uma idia, onde se fazpresente uma viso congelada, estereotipada de caractersticas individuais ou grupaisque correspondem a valores negativos. A discriminao no necessariamente envolve

    marginalizao. O problema quando, por exemplo, no mercado de trabalho, os

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    processos de seleo, discriminam as pessoas negras de forma preconceituosa, semfazer um discernimento atravs de provas e testes de habilidades e qualidadesprofissionais, ou quando na escola as crianas negras so inferiorizadas por

    profissionais e outras crianas, por aes, pelo silncio e/ou distanciamento comoapontam Gonalves (1985), Trindade (1994) e Cavalleiro (2002).

    A mestiagem outro conceito-realidade que faz parte das relaes tnicas noBrasil. apresentada como embranquecimento e constitui-se e tem sidohistoricamente usada como mais um dos mecanismos que vo contra a construo deuma identidade negra brasileira, ao mesmo tempo em que se constitui em mecanismoestratgico que ajuda, em nvel individual, na ascenso de negros e mestios nasociedade brasileira. Articulada entre o fim do sculo XIX e meados do sculo XX, amestiagem, como pensamento brasileiro, seja na sua forma biolgica (miscigenao),

    seja na sua forma cultural (sincretismo cultural), objetivava a continuao de umasociedade monotnica e monocultural3. Em nvel macro, temos nacontemporaneidade uma discusso acerca do conceito com um outro vis o dehibridismo ou hibridizao. Discute-se at que ponto as identidades e as culturasmantm seus elementos de origem, ou at que ponto esses elementos soidentificados como pertencentes a tais grupos. Hall (2003, p. 342-6) ao discutir asidentidade e mediaes culturais da dispora negra, atenta para o carter decontraposio centrado numa essencializao desses elementos de base, que segundoo autor, descontextualiza, pois

    des-historiciza a diferena, confunde o que histrico e culturalcom o que natural, biolgico e gentico. No momento em que osignificante negro arrancado de seu encaixe histrico, culturale poltico, e alojado em uma categoria racial biologicamenteconstituda, valorizamos, pela inverso, a prpria base do racismoque estamos tentando desconstruir.

    O que o autor traz se aproxima da contribuio de Sodr (1983) sobrerepertrios afro-brasileiros constitudos nas suas singularidades a partir de

    dispositivos culturais e tnicos de origem africana, parte de ampla diversidade.Desse modo, mais do que a essncia de origem o que est em questo so as

    polticas culturais que se encontram no entorno das prticas vividas nesse campo dedebate, as redes que estabelecem as negociaes, os jogos ideolgicos que

    3 Slvio Romero, Gilberto Freyre e Francisco Jos de Oliveira Viana so alguns dos representantes deste

    pensamento, no qual se encontram fundamentos tericos ideologia do branqueamento e ao mito dademocracia racial cronologicamente, coincidindo com as doutrinas do racialismo. Por sua vez, a ideologia dobranqueamento teve sua origem na teoria da superioridade da etnia branca sobre as outras, que teve muitaaceitao no Brasil, no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX. Esta teoria coloca os loirosdo norte europeu como o ideal mximo: foi articulada por Friedrich Ratzel (1844-1904), Gobineau (1816-1922)

    e outros. No Brasil, um expressivo divulgador foi Oliveira Viana (1883-1951), segundo Pereira (2001).

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    Uma reflexo terico-metodolgica

    inferiorizam alguns e supervalorizam outros a partir dos mais diversos dispositivosou marcadores histrico-culturais. No resta dvida de que grande parte dapopulao brasileira congrega em sua formao tnica de diversos marcadores ou

    dispositivos de origem africana; no entanto, o que se poderia problematizar nesseembate terico-prtico cotidiano sobre quais elementos dessa vivncia,politicamente, so utilizados como produtores de desigualdades concretas e comoessas desigualdades se constituem. S assim criam-se as possibilidades dedesconstru-las.

    No Brasil a luta contra essa desigualdade envolveu muitos sujeitos ao longodessa dispora negra, seja de postura mais africanistas ou de posturas maisrelativizadoras. Na pessoa do intelectual e militante Abdias do Nascimento, nadcada de 70, o movimento negro encontra um porta-voz para discordar da idia de

    monoetnicidade e monoculturalismo centrados nas concepes de mestiagem tnicae sincretismo cultural. A postura militante de Nascimento, assim como de boa parteda militncia da poca era propor a construo de uma democracia plurirracial epluritnica, na qual o denominado mulato pudesse se solidarizar com o negro, em

    vez de ver suas conquistas drenadas no grupo branco. Estas vozes discordantesafirmam que, embora tida como ponte tnica entre negro e branco, o que conduziria salvao da raa branca, o mulato no goza de um statussocial diferente do negro(Munanga, 1999, p. 93).

    Com o descrdito da perspectiva cientfica do conceito de raa, o eixo

    desloca-se para a vertente cultural. A centralizao da questo no nvel cultural fazsurgir uma nova forma de racismo, a xenofobia. As reivindicaes pelo respeito dasdiferenas culturais ou tnicas servem de pretexto para uma reelaborao do discursoracista, em especial, nos pases ocidentais Alemanha, Inglaterra, Frana, Blgica. Aentrada de africanos e rabes nesses pases no s aumenta a concorrncia nomercado de trabalho como coloca a diferena que se constitui numa ameaa integridade e identidade europias. Assim, o direito de no se misturar com osimigrantes, em nome do respeito diferena cultural defendida pelos imigrantes,coloca essas novas formas de racismo diferencialista, que se fundamentam no mesmodiscurso anti-racista da diversidade tnica e cultural no mesmo espao geopoltico,defendido pelo multiculturalismo. Assim a tolerncia toma um sentido excludente eseparatista, colocando-se a necessidade de se pensar em sadas que ultrapassem tantoas limitaes da vertente universalista como diferencialista.

    No Brasil tem se fortalecido tambm, no contexto dos estudos tnico-raciaisno pas a perspectiva terica do uso dos conceitos de afrodescendncia, etnia eidentidade negra, sem perder de vista o conceito de raa como categoriahistoricamente implicada com a afrodescendncia da populao brasileira e doracismo como instrumento de desigualdade nos diversos espaos dessa sociedade.

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    Esses conceitos encontram-se fundamentadas em trabalhos anteriores (Lima,2000; 2001 2002), bem como em autores como Cunha Jr. (1987 1998); Banton(2000), Gonalves e Silva (1994, 1999), sendo que os conceitos de afrodescendncia e

    etnia se configuram como enfoque poltico-cultural, construdo na relao histricade uma ascendncia africana diversa; ascendncia essa marcada pela trajetria de lutae explorao no mbito do escravismo e racismo e pelos referenciais processadosnessa trajetria. (Cunha Jr., 1996, 1998; Sodr, 1983, 1999).

    As etnias negras no contexto brasileiro so demarcadas pelas razes histricasscio-culturais e polticas que marcam a formao populacional brasileira nocontexto do escravismo e pelas relaes estabelecidas tanto nas suas ancestralidadesdistantes como nas vivncias contemporneas.

    A grande contribuio dos autores que produzem na rea das relaes

    tnicas, partindo da categoria raa, tais como Guimares (1999) tem sidofundamental na luta contra o racismo no campo do pensamento social brasileiro.Segundo este autor a raa um conceito que denota to-somente uma forma declassificao social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais;portanto, segundo este autor, existe como raa social e no biolgica.

    Entretanto, pertinente entender tambm a perspectiva tnica pelacompreenso de que a problemtica estudada se d no centro da cultura ampla,transcende a questo do combate ao racismo, procura uma insero nas questes dabase material e imaterial produzida pelas populaes. Existe nesse campo de estudo

    uma demanda pela questo da base africana na cultura brasileira que passa pelavertente da histria scio-poltico dessa populao e de sua relao com aancestralidade africana. A referncia de raa social se configura como parte daquesto, pois seu enfoque tem o limite da avaliao do legado africano, ou seja, nobasta o reconhecimento de que uma idia de raa constitua o racismo, mas ter a

    viso de que a histria da populao negra muito mais ampla do que este racismo.Para isso, se coloca a necessidade de se evidenciar as africanidades brasileiras, comoproduo intelectual e cultura brasileira material e imaterial de origem ou baseafricana.

    Alm disso, uma vez que a cincia demonstrou que a raa biolgica foi umamanipulao ideolgica, eurocntrica, com finalidade de dominao, ento raabiolgica tambm foi socialmente construda, e a transio da categoria raa biolgicapara raa social no estabelece, por si s, suficiente autonomia dos conceitos, sendopreciso considerar tambm seus significados no contexto da produo cientfica e doimaginrio social. H necessidade de se pensar tambm outros enfoques, quedistancie o risco de ser o conceito tomado como reclassificao bem mais elaboradadas concepes eugenistas de raa, ou seja, do ponto de vista dos conceitos, tantoraa biolgica como raa social foram social e culturalmente construdas, apenas

    sob diferentes argumentos, sendo tambm necessrio considerar que no cotidiano

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    Uma reflexo terico-metodolgica

    das relaes sociais e da luta pelas polticas de promoo de igualdade, pensemos sobmltiplas perspectivas, da raa social negra e do enfoque tnico para se ampliar asinvestidas em termos de polticas pblicas para alm do combate aos racismos,

    pensando na compreenso do campo das relaes tnicas a partir da presena, daproduo, dos sentidos positivos e no somente pelas ausncias e negaesproduzidas por este racismo.

    Assim, a articulao etnia/raa social torna-se scio-historicamente maissituado e abrangente e condizente com a multiplicidade identitria que compe apopulao afro-brasileira deste pas.. Atende melhor aos propsitos devido ao maiordistanciamento dos biologismos do passado, que ainda mantm seus resqucios noimaginrio popular tambm se apresenta mais abrangente em acolher a diversidadede expresses das identidades negras e dos dispositivos de base africana que

    dinamicamente se expandiram no Brasil. Atende colocao de Munanga (2001) demultiplicidade das etnias oriundas da frica e sua complexa diversidade na existnciaatual brasileira, o que leva a postura terica de tratarmos de etnias e identidadesnegras, considerando como eixo destas os dispositivos de base africana, presentes emsuas constituies.

    A partir dessa concepo de etnia e de afrodescendncia, busca-se oentendimento de uma perspectiva pertinente para pensar a questo das identidadesnegras no Brasil, tomando como aporte terico para o tema das identidades negrasHall (2003), Sodr (1983, 1999) e Munanga (1999), alm de Banton (1998, 2000),

    Cashmore (2000), Guimares (1999) e Ferreira (2000).Para Sodr (1983,1999) as identidades negras so concebidas como

    construes mltiplas, complexas, social e historicamente (re)construdas com basenos dispositivos de matrizes africanas; tais dispositivos so processados nas relaesscio-culturais, polticas e histricas que se deram a partir do seqestro dos nossosancestrais africanos para o Brasil.

    Assim, as identidades so imbricadas na semelhana a si prprio, e naidentificao e diferenciao com o outro e se constituem em foco central nasrelaes sociais, sendo continuamente construdas a partir de repertrios culturais e

    histricos de matrizes africanas, e das relaes que se configuram na vivncia emsociedade, sendo que sua existncia tem as marcas das relaes processadas ao longodos sculos de explorao do escravismo. Portanto, as identidades tm um carterhistrico e cultural, carter este que demarca os conceitos de afrodescendncia eetnia, imbricados na trajetria histrica dessa populao em relao com outrosgrupos.

    As formulaes de Sodr (1999, p.34), explcitas na citao abaixo,completam a percepo de identidade tomada neste trabalho:

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    Dizer identidade designar um complexo relacional que liga osujeito a um quadro contnuo de referncias, constitudo pelainterseco de sua histria individual com a do grupo onde vive.Cada sujeito singular parte de uma continuidade histrico-social,afetado pela integrao num contexto global de carncias naturais,psicossociais e de relaes com outros indivduos, vivos e mortos.A identidade de algum, de um si mesmo, sempre dada peloreconhecimento do outro, ou seja, a representao que oclassifica socialmente.

    Sodr estabelece um contexto relacional simblico que vai alm dos preceitosdo etnocentrismo de um modelo branco-europeu. Ao tempo que centra sua dinmicade constituio identitria nas referncias ancestrais ao referir-se ao destes nasrelaes concretas, enfatiza a relevncia do reconhecimento social na construo da

    identidade dos sujeitos.Nesse sentido, considero a importncia, no s da positivao do eu na

    constituio da auto-estima que motiva o desenvolvimento, mas da explicitao dons a partir dos referenciais ancestrais afrodescendentes positivos nos diversosmbitos onde essa participao tem sido ocultada.

    A sociedade brasileira tem sido constituda numa cultura poltica dadesigualdade, na qual a dominao e a violncia tm atingido, principalmente, apopulao negra como mostra Paixo (2003) a partir de dados do IBGE, comdiferencial racial quanto saneamento bsico, mortalidade infantil, educao, renda,

    perspectiva de vida, etc. Essa violncia pode ser pensada a partir das evidncias denegao, do no reconhecimento das singularidades das identidades dessa populao,bem como do no reconhecimento da igualdade de direito dignidade, ao respeito eexpresso histrica e aos bens essenciais ao exerccio dessa dignidade (Chagas, 1997,Lima, 2002).

    Apesar disso, como aponta Munanga (1999), nessa relao histrica apopulao negra apresenta existncia plural, complexa, que no permite a viso deuma cultura ou identidade unitria, monoltica. Isso ratifica a pertinncia da opopelo enfoque de afrodescendncia articulada concepo de etnia.

    As perspectivas ps-abolio das elites brasileiras pensavam a construo deuma unidade nacional, na qual o negro no cabia e os imigrantes se enquadrariam nos

    valores nacionais (Munanga, 1999). Aes so empreendidas para garantir esseprojeto, a instituio da ideologia do branqueamento, as estratgias de cerceamentodas prticas culturais desses grupos tnicos, tais como a perseguio ao candombl, capoeira, os mecanismos de invisibilizao e de imobilizao da populao negrabrasileira. Assim:

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    Uma reflexo terico-metodolgica

    ...os movimentos tnicos, inclusive dos negros, devem sucumbir.A construo da identidade nacional apaga as especificidades dasraas. (...) O mito da democracia racial servia para encobrir osconflitos intertnicos e fazia com que todos se sentissem nacionais(Amado, 1995, p.38, apud Mendes Pereira, 1999, p.17).

    Temos cada vez mais um pas miscigenado, de expressivo contingentepopulacional negro. No entanto, no se tem uma democracia social nem racial, vistoque a mestiagem no produziu igualdade de oportunidades entre as etniasconstitutivas do ser brasileiro, sendo esse mito de democracia uma construoideolgica dentro dos interesses das elites hegemnicas, em detrimento da maiorianegra, um dos entraves na superao das desigualdades.

    Estando as identidades relacionadas, no s ao conhecimento, mas tambm

    ao reconhecimento social, caracterizam-se estas identidades como elementospolticos e histricos, constitudas a partir do passado de escravizados e nos diasatuais com os repertrios de base africana dessa populao. Identidades cujas

    vivncias foram e so mediados pelas condies sociais concretas que inseriu emantm a maioria dessa populao entre os pobres, miserveis, subempregados,desempregados, analfabetos e despossudos em geral; quadro que indicia que nocampo das relaes tnicas no Brasil h uma poltica de no-representatividade dapopulao negra, o que implica em identidades no-manifestas, em benefciosnegados e em dignidade aviltada. Como argumenta Cunha Jr. (1998, p. 52):

    As restries sociais e de representao de que somos alvo doum contorno de identidade ao grupo social (...) O racismobrasileiro utiliza o critrio tnico para definir as possibilidades derepresentao dos afrodescendentes na sociedade. Cria asideologias capazes de produzir as excluses, as participaesminoritrias. Produz o material de sua justificativa, legitimao emanuteno. Combina as formas ideolgicas com as outrasviolncias num processo de dominao, em que classe, etnia egnero definem as possibilidades dos grupos sociaisafrodescendentes nas estruturas de classes sociais.

    Ainda na compreenso das identidades negras, faz-se necessrio considerar,no somente a problemtica da existncia ou inexistncia de uma ou vriasidentidades particulares, mas do significado poltico delas, como nos aponta Apiah(1997) ao falar sobre a historicidade, as afinidades culturais e a multiplicidadeidentitria cuja expresso brota da relao com o outro, no contexto dasafricanidades. Tratando-se de se discutir identidade nas suas mltiplas dimenses econfiguraes, apontando no campo discursivo algumas das posies que delimitamo alcance terico em relao ao tema.

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    Castells (2001, p.22), ao falar que no seu entendimento identidade oprocesso de construo de significado com base em um atributo cultural, ou aindaum conjunto de atributos culturais inter-relacionados no qual prevalece sobre outras

    fontes de significados aponta uma abordagem que congrega a maioria dos estudossobre o assunto no plano acadmico nacional e internacional. Para o autor, asidentidades so ao mesmo tempo individuais e coletivas, sendo que o mesmo sujeitopode ter mltiplas identidades, alm de t-las constitudas de forma processual econtnua.

    Ao discutir sobre as identidades negras parece pertinente o entendimentodestas nas concepes trazidas por Castells, que vm reiterar a concepo quanto categoria em questo j fundamentada por Hall (1999, 2003), Sodr (1983, 1999),Munanga (1996, 1999) e Ferreira (2000), j que no Brasil as relaes tnicas transitam

    na dinmica processual da ideologia do branqueamento, do mito da democracia raciale da ambigidade identitria. Nesse sentido, de identidades que se formam e seconformam em meio a relaes de poder, Castells (2001) aponta trs tipos deidentidades, que so: as identidades legitimadoras, impostas pelas instituieshegemnicas na sociedade com o intuito de legitimar sua dominao; as identidadesde resistncia, gestadas no enfrentamento da dominao pelos atores sociaissubmetidos aos processos de dominao; e as identidades de projetos, que seconstituem na luta coletiva no interior da cultura poltica.

    Tomando o campo de pesquisa numa perspectiva do individual articulado ao

    social, e compreendendo o espao social como contexto no qual as relaes entre ossujeitos se do nas tenses e sob o horizonte do olhar no-indiferente (Amorim,2003), percebe-se a pertinncia de situar a perspectiva da categoria tratada entre asegunda e a terceira vertente colocada pelo autor, ou seja, a perspectiva da identidadenegra est situada entre a identidade de resistncia e identidade de projeto.

    Essa uma perspectiva que se articula postura de Hall.4(1999, 2003). Esseautor traz tona a perspectiva da complexidade de se pensar sobre as identidades noatual contexto mundial, apontando que cada vez mais essas identidades esto empermanente construo, sendo continuamente modificadas pelas transformaes

    estruturais que tm ocorrido nas sociedades modernas no final do sc. XX e incio dosculo XXI. O autor considera problemtico pensar na categoria identidade em umcarter fechado, delineado em uma s dimenso isolada.

    Apontando para o carter scio-histrico-cultural e poltico das identidades,Hall (2003) afirma que a sua construo est inscrita em relaes de poder, deinteraes materiais e simblicas e como tal no pode ser pensada fora do campo detenso contnua e processual. Nesse sentido, sua postura parece se coadunar com as

    4-Segundo o autor a primeira concepo, do sujeito do Iluminismo centra-se na individualidade da pessoa

    humana, numa relao do eu consigo prprio, enquanto a concepo sociolgica baseia-se na interao dosujeito com a sociedade, numa relao mediada pela cultura do mundo vivido.

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    Uma reflexo terico-metodolgica

    concepes de dialogismo e polifonia, trazidas por Bakhtin, pois pensar as prticascomo espao para compreenso de construo e expresso das identidades tnicas,requer pensar o lugar do(a) pesquisador(a) no campo de pesquisa, pois como no diz

    Amorim sobre o pensamento Bakhtiniano:

    O pluralismo do pensamento Bakhtiniano, traduzido nosconceitos de dialogismo ou de polifonia, lugar de conflito etenso, e os lugares sociais de onde se produzem discursos esentidos no necessariamente simtricos (Amorim, 2003, p.13).

    Compreender a polifonia do campo, em relao s identidades expressas esilenciadas, ou explicitamente enunciadas ou no, significa considerar os diferenteslugares, historicamente constitudos para os diferentes sujeitos desse espao, bemcomo nas possibilidades que estes constroem nas prticas e sentidos que compemos espaos do cotidiano.

    Na sociedade brasileira, parece que a desmistificao do discurso dademocracia racial e da ideologia do branqueamento trouxe avanos polticosrelevantes, que leva melhor explicitao das identidades. Assim, asproblematizaes sobre identidade se articulam com a luta por polticas especficas dereduo das desigualdades para a populao negra, tais como os debates eintervenes no campo das polticas de ao afirmativa, a incluso de temticasrelacionadas histria e cultura de base africana nos currculos escolares, entre outrasiniciativas.

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