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1 IDENTIDADE NACIONAL E HISTORICIDADE: O 1º CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO DE 1934. MATEUS SILVA SKOLAUDE Doutorando em História pela PUC-RS (Bolsista CAPES) [email protected] Introdução O 1º Congresso Afro-Brasileiro (1º CAB), organizado em 1934 no Recife constitui-se enquanto um objeto pouco pesquisado pela historiografia brasileira. Neste caso, algumas considerações se fazem importantes para caraterizar essa “suposta negligência” investigativa. O primeiro aspecto a ser a analisado deve-se ao fato de que algumas pesquisas sobre o encontro estão a reboque das superficiais interpretações estabelecidas pelo Movimento Negro, nas décadas de 1940 e 1950, que negaram esta experiência histórica enquanto um espaço importante no campo de debates das relações raciais no Brasil da década de 1930 (NASCIMENTO, 1982, p. 35-36). Essa premissa é radicalizada, quando da fundação em 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU) que terá uma forte importância na luta antirracista no Brasil contemporâneo. Nesse caso, a constante crítica à obra de Gilberto Freyre será o mote norteador dos principais ideólogos do movimento, como Abdias do Nascimento (TRAPP, 2014, p. 21). Diante deste contexto, as principais lideranças intelectuais ligadas aos movimentos sociais de luta antirracista no Brasil imputaram ao 1º CAB os desdobramentos das ideias freyrianas assumidas em Casa Grande & Senzalae consequentemente ao “mito da democracia racial”. Além disso, o que se observa nos debates é que a maior parte das pesquisas menciona o 1º CAB sem um aprofundamento teórico e empírico. Geralmente o congresso é analisado exclusivamente a partir dos dois anais publicados e enquanto um apêndice de questões que envolvem outros eventos e numa perspectiva mais ampla das discussões sobre raça, cultura e identidade nacional, nas primeiras décadas do Século XX.

IDENTIDADE NACIONAL E HISTORICIDADE: O 1º … · discussões sobre raça, cultura e identidade nacional, nas primeiras décadas do Século XX. 2 ... No caso da Alemanha, o colapso

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IDENTIDADE NACIONAL E HISTORICIDADE:

O 1º CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO DE 1934.

MATEUS SILVA SKOLAUDE

Doutorando em História pela PUC-RS

(Bolsista CAPES)

[email protected]

Introdução

O 1º Congresso Afro-Brasileiro (1º CAB), organizado em 1934 no Recife constitui-se

enquanto um objeto pouco pesquisado pela historiografia brasileira. Neste caso, algumas

considerações se fazem importantes para caraterizar essa “suposta negligência” investigativa.

O primeiro aspecto a ser a analisado deve-se ao fato de que algumas pesquisas sobre o

encontro estão a reboque das superficiais interpretações estabelecidas pelo Movimento

Negro, nas décadas de 1940 e 1950, que negaram esta experiência histórica enquanto um

espaço importante no campo de debates das relações raciais no Brasil da década de 1930

(NASCIMENTO, 1982, p. 35-36). Essa premissa é radicalizada, quando da fundação em

1978, do Movimento Negro Unificado (MNU) que terá uma forte importância na luta

antirracista no Brasil contemporâneo. Nesse caso, a constante crítica à obra de Gilberto

Freyre será o mote norteador dos principais ideólogos do movimento, como Abdias do

Nascimento (TRAPP, 2014, p. 21).

Diante deste contexto, as principais lideranças intelectuais ligadas aos movimentos

sociais de luta antirracista no Brasil imputaram ao 1º CAB os desdobramentos das ideias

freyrianas assumidas em “Casa Grande & Senzala” e consequentemente ao “mito da

democracia racial”. Além disso, o que se observa nos debates é que a maior parte das

pesquisas menciona o 1º CAB sem um aprofundamento teórico e empírico. Geralmente o

congresso é analisado exclusivamente a partir dos dois anais publicados e enquanto um

apêndice de questões que envolvem outros eventos e numa perspectiva mais ampla das

discussões sobre raça, cultura e identidade nacional, nas primeiras décadas do Século XX.

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A partir de uma minuciosa revisão bibliográfica brasileira e estrangeira1, assim como,

de uma criteriosa coleta de fontes2 sobre este conclave pioneiro, percebeu-se da necessidade

de uma análise mais apurada deste econtro, uma vez que as parcas produções existentes não

refletem adequadamente o impacto do 1º CAB sobre a formação indentitária nacional na

década de 1930. Frente a este escopo introdutório o objetivo deste ensaio consiste num

primeiro momento, em analisar alguns aspectos extremamente importantes que fizeram parte

dos bastidores deste evento e que foram publicados pela imprensa pernambucana, sobretudo,

no Jornal Diário de Pernambuco (JDP)3, quando da sua realização, em novembro de 1934.

Num segundo momento, pretende-se analisar a historicidade dos significados articulados em

alguns discursos produzidos para este encontro, ou seja, perceber de que forma foram

mobilizadas as “experiências” históricas e quais os “horizontes de expectativa” relacionados

a um processo de afirmação identitária étnico/racial do período (KOSELLECK, 2006, p. 305-

327).

1. Alteridade afro-brasileira: Narrativas raciais do 1º CAB

O cenário que caracteriza a primeira metade dos anos 30 foi marcado por um contexto

de extrema tensão, estabelecido como “entreguerras”, de modo que duas décadas demarcaram

o fim da Primeira e o início da Segunda Guerra Mundial, entre os anos de 1918 e 1939. Este

período foi acompanhado por sérios desdobramentos econômicos, ocasionados pela quebra

da bolsa de valores de New York, em 1929, que desencadeou uma complexa realidade social,

caracterizada por um cenário de miséria, desemprego e violência, para a maior parte da

população mundial. Na Europa, esse novo contexto social, possibilitou a ascensão de regimes

políticos totalitários (ARENDT, 1989). No caso da Alemanha, o colapso social permitiu a

1 No que diz respeito às pesquisas de historiadores brasileiros destacam-se os trabalhos: TUNA, 2005; GIUCCI,

2007; CHACON, 1993; PAZ, 2007. Na produção norte-americana do assunto destacam-se os trabalhos:

LEVINE, 1973; PIERSON, 1971; WILLIAMS, 2004; ROMO, 2007. 2 Em pesquisa realizada na Fundação Joaquim Nabuco, junto ao setor de microfilmagem, constatou-se um

importante acervo documental composto por três periódicos em circulação no Recife em 1934, ou seja, o Jornal

Pequeno, o Jornal do Recife e, sobretudo, o Jornal Diário de Pernambuco, que deram ampla cobertura ao 1º

CAB. Os três periódicos apresentam questões relacionadas aos bastidores do encontro que não podem ser mensuradas apenas pela leitura dos dois anais produzidos. 3 O Jornal Diário de Pernambuco é o periódico mais antigo, ainda em circulação, da América Latina, foi

fundado em 7 de novembro de 1825. (http://www.old.pernambuco.com/diario/historia.shtml, data da pesquisa:

15/02/2014, às 14:30).

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inserção do Partido Nazista ao poder que, aproveitando-se da instabilidade socioeconômica

do país, articulou um discurso conservador e racista, responsabilizando judeus e comunistas

pela crise. Essa perspectiva ideológica, eugênica e racista estabelecida pelos nazistas teve eco

na imprensa brasileira. Este aspecto pode ser analisado a partir de um extenso artigo

publicado na capa do JDP, em 18 de novembro de 1934, de autoria do Filósofo alemão,

Oswald Spengler4 sob o título de: “A Primeira Grande Victoria das Raças de Cor”.

“A Civilização Occidental deste século esta ameaçada, não por uma, mas

por duas revoluções mundiais de enormes dimensões. Uma vem de baixo e a

outra de fora: ‘guerra de classe e guerra de raça’. (...). A humanidade branca

se disseminou por todos os cantos, na sua avidez de distancias infinitas:

pelas Américas, África do Sul, Austrália e numerosos pontos estratégicos

intermediários. A ameaça Amarella – Parda – Negra – Vermelha espreita de

dentro do próprio campo de acção dos brancos. Ella penetra e participa dos

tratos e destratos militares e revolucionários das potencias brancas e ameaças de um dia evocar a si as decisões. Quem então está compreendido

nesse mundo ‘de côr’? Não somente a África, as Índias, como também os

negros e mestiços de toda a América (...). A Guerra Mundial foi a derrota

das raças brancas e a Paz de 1918 constituiu o primeiro grande triumpho das

raças de côr.(...). Não foi a Alemanha que perdeu a Guerra Mundial: perdeu-

a o Ocidente quando as raças de côr deixaram de respeita-lo. (...). As nações

brancas que governavam abdicaram de sua antiga primazia. Negociavam

agora, onde outrora comandavam. (...). Essa generalizada revolução “de

côr” em todo orbe obedece a varias tendências que podem ser nacionais,

econômicas ou sociaes. (...) em toda parte, sempre a mesma causa: ódio a

raça branca e uma incondicional determinação de destruí-la.

A partir desse registro, Spengler partilha, em linhas gerais, da visão de que a

Civilização Ocidental estaria a perigo de ser extinta e subjugada, por conta de dois fatores. O

primeiro, a expansão do comunismo e o segundo, o crescimento e a articulação política das

“raças de cor”. Para o autor, estas duas “experiências” somadas ao fracasso da Primeira

Guerra Mundial, serviram como referência para a derrocada da “raça branca” e

consequentemente, como o primeiro grande triunfo das “raças de cor”. Por conta disso,

propõem o filosofo alemão como “horizonte de expectativa”, que só a união da “raça branca”

poderia salvar o planeta de uma grande catástrofe, ou seja, é notório perceber no corpo

discursivo do artigo, elementos estruturantes acerca das teorias raciais vigentes, de modo que,

alinhando-se com a tese de pureza racial, a reflexão de Spengler caracterizava a perspectiva

hegemônica dos debates científicos a época (POLIAKOV, 1974).

4 Sobre a trajetória intelectual de Oswald Spengler, destaca-se a pesquisa: (SILVA, 2008).

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Ao mesmo tempo, numa contra narrativa científica a essa perspectiva hegemônica e

racializada, no Brasil, mais precisamente, na cidade do Recife, em novembro de 1934, era

organizado 1º CAB, evento que, em certa medida, problematizava o conceito de raça e

consequentemente buscava uma valorização do negro e do mestiço na sociedade brasileira.

Gilberto Freyre, idealizador e organizador do evento, em artigo publicado no JDP, uma

semana antes da publicação do texto do filósofo alemão, expõem os principais objetivos

desse encontro:

“O AFRO-BRASILEIRO”

“(...) O Afro-Brasileiro que hoje se reúne, às 15 horas, com toda a

simplicidade, numa sala do Santa Izabel talvez venha a ser o inicio de um

movimento considerável de cultura e de acção social. A primeira tentativa

seria de clarificação do ambiente brasileiro no sentido de se separar o preto

do escravo (como já queria Nabuco, que neste mesmo Santa Izabel fez a

campanha da abolição) e de se reconhecer no negro, assim rehabilitado, uma

raça capaz e com contribuições já notáveis para o desenvolvimento nacional Ao mesmo tempo que cheia de possibilidades e aptidões magníficas. Por

muito tempo nos dominou, um aryanismo ridículo, ligado a preconceitos de

classe e de exploração econômica. (...) O Afro-Brasileiro representa reação

necessária. O sangue negro no Brasil não deve ser vergonha para ninguém.

Nem o sangue negro nem a influência africana, que alcança a todo brasileiro

sincero o authentico como uma enorme ‘mancha mongólica’ que se tivesse

alastrado por toda alma nacional”5.

O congresso ocorreu no Teatro Santa Isabel6, entre os dias 11 e 16 de novembro de

1934. Na organização do evento, Gilberto Freyre contou com a participação indispensável de

seu primo Ulysses Pernambuco, professor e psiquiatra de grande influência em Recife. Além

disso, o 1º CAB teve a participação de artistas e intelectuais renomados no país, como é o

caso dos pintores Cícero Dias, Noemia e Di Cavalcante, do maestro Ernani Braga, dos

escritores José Lins do Rego, Mario de Andrade e Jorge Amado, do fonclorista Câmara

Cascudo, do antoropólogo Roquette-Pinto, do psiquiatra Arthur Ramos e do etnólogo Edson

5 Jornal Diário de Pernambuco, 11 de novembro de 1934, p. 03. 6 O Teatro de Santa Isabel, monumento tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1949,

representa o primeiro prédio de Arquitetura Neoclássica em Pernambuco. Homenagem a Princesa Isabel, o

teatro foi inaugurado em 18 de maio de 1850. Recebeu autoridades como Dom Pedro II, Castro Alves, Tobias

Barreto, Carlos Gomes, Procópio Ferreira, dentre outros. Foi palco de importantes acontecimentos, como à

Revolução Praieira, à campanha abolicionista e à campanha pelo advento da República. Nesse espaço, Joaquim

Nabuco proferiu a célebre frase que ficaria gravada numa placa no saguão do Teatro: “Aqui nós ganhamos a

causa da Abolição”. Vale destacar, que em 30 de novembro de 1984, a Fundação Joaquim Nabuco, em

homenagem ao cinquentenário do 1º CAB, doou uma placa ao Teatro, colocada abaixo da placa de Joaquim Nabuco, com a seguinte frase: “Aqui, por iniciativa de Gilberto Freyre e Ulysses Pernambuco, foi completada

socialmente a abolição de 1888, com o I Congresso Afro-brasileiro do Recife, em 1934”.

(http://www.teatrosantaisabel.com.br/conheca-o-teatro/nossa-historia.php, data da pesquisa: 17/02/2014, às

09:30).

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Carneiro. A participação internacional ficou por conta do antropologo americano Melville J.

Herskovits que enviou dois textos ao congresso. Ao lado desses homens de letra, o encontro

teve a colaboração de estudantes, de analfabetos, de cozinheiras, de Albertina Fleury, rainha

de maracatú, de babalorixás e ialorixás do Recife, de Miguel Barros, representande da Frente

Negra Pelotense.

Das atividades foram produzidos os anais dos trabalhos apresentados no Congresso,

publicados em dois volumes. O primeiro, “Estudos Afro-Brasileiros”, em 1935 pela Editora

Ariel. O segundo, “Novos Estudos Afro-Brasileiros”, em 1937 pela Editora Civilização

Brasileira. O primeiro volume foi prefaciado pelo antropologo Roquette-Pinto e teve 25

artigos. O segundo volume, por sua vez, foi prefaciado pelo psiquiatra Arthur Ramos e teve

18 artigos. Em 1988, a Fundação Joaquim Nabuco republicou os dois anais do 1º CAB

mantendo as versões em seu caráter original.

A perspectiva informal e não somente acadêmica foi uma das marcas do 1º CAB.

Durante o período de organização, houve a participação de quatro babalorixás: Pai Anselmo;

Pai Oscar; Pai Rozendo e Pai Adão. O último, apesar de se fazer presente nas reuniões

preparatórias, por seu ortodoxismo recusou-se a participar do evento por não considerar os

outros babalorixás seus iguais. Ou seja, por sua formação religiosa ter sido na África, Pai

Adão afirmava que só ele e o baiano Martiniano7, seriam os únicos no Brasil com profundo

conhecimento dos mistérios de Xangô. Diante disso, se colocava numa relação espiritual

superior a de seus pares, a quem considerava “um bando de falsos profetas”. Gilberto Freyre

era intimo amigo de Pai Adão e percebia no pai de santo uma das grandes erudições sobre a

cultura africana, bem como, a maior inspiração para a organização do 1º CAB8.

A colaboração de “pessoas comuns” só foi possível devido à confiança adquirida por

Ulysses Pernambuco junto aos líderes dos centros de cultos afro-brasileiros anos antes da

realização do Congresso. O psiquiatra exerceu um papel fundamental na defesa das

liberdades de culto dessas populações, assim como, na intervenção junto a policia estadual

7O babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, nasceu na Bahia, era filho de escravos alforriados, tendo sido enviado

por seu pai para estudar a língua ioruba e as tradições africanas em Lagos, na atual região da Nigéria. Voltando

a Salvador, tornou-se um líder religioso e sempre manteve estreita ligação com destacados intelectuais baianos,

como: Raimundo Nina Rodrigues, Donald Pierson, Edison Carneiro e, especialmente, Ruth Landes. Na comunidade de Candomblé, foi muito admirado pelas conexões africanas e pela prática religiosa centrada nas

ideias de autenticidade africana. Contribuiu na organização do 2º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em

Salvador, em janeiro de 1937 (ROMO, 2010). 8 Jornal Diário de Pernambuco, 28/04/1936, p. 03.

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que, constantemente fiscalizava esses centros de forma hostil (GUILLEN, 2005, p.65). Na

organização do 1º CAB, Gilberto Freyre procurou estabelecer um caráter de independência,

isto é, “não recebeu nenhum favor de governo, não se associou a nenhum movimento

político, a nenhuma doutrina religiosa, a nenhum partido político”. Os recursos vieram

provenientes da colaboração de setores progressistas da sociedade pernambucana, dentre

estes, médicos, advogados, comerciantes, professores, empresários, que participaram e

colaboraram com as despesas administrativas da conferência que totalizaram um valor de 876

mil réis (FREYRE, 1937, p. 349-350).

Se por um lado, Gilberto Freyre manteve uma autonomia política, partidária e

governamental do 1º CAB, por outro, o sociólogo recebeu com satisfação o apoio das

principais liderenças dos Movimentos Negros da década de 30. Em nove de novembro de

1934, dois dias antes do início do 1º CAB, no Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil na página 10,

publicou uma entrevista do Sr. Humberto de Freitas, secretário-geral da Frente Negra

Brasileira, afirmando o apoio da entidade ao Congresso (WILLIAMS, 2004, p.35). Da

mesma forma, o Movimento da Mocidade Negra Paulista, saudou o encontro através de uma

carta enviada pelo Sr. Jayme de Aguiar aos organizadores do congresso9.

A cerimônia de abertura do 1º CAB foi realizada no domingo, dia 11 de novembro, às

15 horas, pelo secretário José Valladares, no salão nobre do Teatro Santa Isabel. No

protocolo, Ulysses Pernambuco foi aclamado Presidente. Em seguida o Dr. Nobrega da

Cunha, Inspetor Geral de Ensino do Ministério da Educação, inaugurou a Sessão de Arte,

onde o público pode conferir exposições artísticas de obras sobre a cultura afro-brasileira de

respeitados artistas. Ao mesmo tempo, foram colocadas gravatas a venda, como forma de

arrecadar fundos para o congresso10

.

A parte acadêmica da conferência consistiu em três dias de debates, à tarde, realizados

nos dias 12, 13 e 14 de novembro, no Teatro Santa Isabel. Os organizadores do Congresso

dividiram as apresentações por disciplina, horários e presidentes, estruturadas em quatro

sessões: 1º Etnografia (Ulysses Pernambuco); 2º Antropologia/Sociologia/Etnologia (Olívio

Montenegro); 3º Folclore/Arte (Rodrigues de Carvalho); 4º Psicologia social (Silvio Rabelo).

Nos turnos da manhã e noite, foram agendadas saídas de campo, respectivamente nos dias 12

9 Jornal Diário de Pernambuco, 17/11/1934, p. 04. 10 Jornal Diário de Pernambuco, 13/11/1934, p. 01.

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e 15 a noite houveram “toques”11

no terreiros do Pai Oscar, de culto gegê e do Pai Rozendo,

de culto Xambá. Da mesma forma, respectivamente nos dias 13, 14 e 15, pela manhã foram

feitas visitas ao Hospital de Assitência aos Psicopatas e a ilha de Joaneiro12

.

No dia 14, à noite, houve um jantar de quitudes afro-brasileiros oferecidos aos

participantes, na Escola Doméstica de Pernambuco. O cardápio foi composto por: acarajé;

inhame com mel; farinha de mandioca; beijo de mandioca e cocada. Os pratos foram

preparados pela cozinheira negra, Izabel Maria dos Santos13

. O encerramento, no dia 16, deu-

se no Teatro de Santa Isabel, com uma apresentação de toadas de Xangô compostas pelo

Maestro Ernani Braga14

. Uma sessão com importantes encaminhamentos foi realizada na

tarde do dia 15 de novembro. Na ocasião, o Presidente Ulysses Pernambuco convidou o Sr.

Miguel Barros, representante da Frente Negra Pelotense, para fazer parte da mesa. No início

dos trabalhos foram lidas três apresentações, na sequência, o representante do movimento

negro sul-rio-grandense fez um discurso, sendo agraceado com uma intensa salva de palmas.

Posteriormente, os congressistas fizeram algumas avaliações e propostas. O artista Di

Cavalcanti formalizou uma denúncia, solicitando o registro nos anais do evento, contra

algumas agremiações comunistas, por terem feito “duros ataques” ao 1º CAB. Essa acusação

gerou um intenso debate entre os paticipantes que, por sua vez, deliberaram que a denuncia

não seria formalizada, por conta “dos termos em que estava redigida”15

.

Nesta mesma sessão, Gilberto Freyre leu uma carta com cinco moções. O teor do

documento elenca uma série de encaminhamentos importantes, em síntese, destaca-se:

“1- (...) O 1º CAB manifesta sua solidariedade a essas classes contra toda a

forma de opressão; 2- louva a ação da Assistência a Psycopathas em Pernambuco, reconhecendo nas seitas africanas de organização definida

cultos religiosos e resguardando-as das perseguições policiaes (...); 3- O 1º

CAB protesta contra a attitude da Commisão de Censura Esthetica do Recife

querendo fazer dessa capital uma cidade de cores delicadas (...) 4- o 1º CAB

protesta contra toda especie de descriminação contra negros ou mestiços,

que ainda se verifique no Brasil; 5- o 1º CAB appellando para a

collaboração dos africanistas do paiz, recomenda a fundação no Rio de

Janeiro de um instituto Afro-Brasileiro, nos termos da proposta junto do

11 Toque: nos candomblés, nos xangôs pernambucanos e em alguns terreiros de umbanda, compreende uma

designação genérica das cerimônias públicas (GIUCCI, 2007, p. 617). 12 Jornais Diário de Pernambuco: 14/11/1934, p. 01 e 15/11/1934, p. 03. 13 Jornal do Recife, 17/11/1934, p. 02. 14 Jornal Diário de Pernambuco, 18/11/1934, p. 03. 15 Jornal Diário de Pernambuco, 16/11/1934, p. 03

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congressista Nobrega da Cunha, (...)”16.

Percebe-se no teor documento a “experiência” mobilizada pelos congressistas, isto é,

de solidariedade aos grupos historicamente oprimidos pela ação do estado, sobretudo pelo

uso da força policial nos locais de culto das religiões de matriz africana, assim como, outros

espaços em que haveria uma forte segregação contra negros e mestiços. Diante destas

“experiências”, foi acatada a ideia de Professor Nobrega da Cunha de criar um Instituto Afro-

Brasileiro no Rio de Janeiro. A iniciativa obteve um impacto extremamente positivo dos

congressistas que, por sua vez, lançaram mão do “horizonte de expectativa” aprovando em

assembleia geral a proposta. Por conta disso, articularam um documento, com treze artigos,

estabelecendo as diretrizes da nova entidade. Foram designados para organizarem o Instituto

Afro-Brasileiro, os seguintes membros: Adhemar Vidal, Gilberto Freyre, José Lins do Rego,

Miguel de Barros e José Valladares17.

A perspectiva inovadora e integradora do Congresso, valorizando a presença negra e

mestiça na história do Brasil, articulando aspectos científicos com cultura popular, assim

como, a participação de intelectuais, estudantes com trabalhadores de baixa renda e

moradores dos bairros populares, gerou revolta e indignação por parte de setores mais

tradicionais da imprensa nacional. Esses acusavam Gilberto Freyre e seu grupo de

comunistas. Tais desdobramentos tiveram eco, anos mais tarde, conforme demonstra um

artigo assinado pelo jornalista carioca Alceu Amoroso Lima, também conhecido pelo

pseudônimo de Tristão d'Athayde que tinha forte inclinação católica e lançou a seguinte

acusação no Jornal do Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1936 e que foi reproduzida pelo

JDP cinco dias depois:

“Foi no Recife que a última revolução de novembro [de 1935] explodiu de

modo mais violento, como já sucedera em 30 e 31. Lá é que ANL [Aliança

Nacional Libertadora] instalara um dos seus mais fortes PC. E no ano

passado aquele famoso Congresso Afro-Brasileiro chefiado pela turma

extremo-esquerdista de Gilberto Freyre, Ulysses Pernambuco, Abherdal

Jurema, Olívio Montenegro etc., mostrou a preparação ideológica que se

fazia para o movimento armado prestes a explodir”18.

Para além do rótulo de comunista, o sociólogo também recebeu críticas da imprensa

do centro do país, por tentar defender no 1º CAB, uma identidade nacional que incorporava a

16 Idem 17 Idem 18 Jornal Diário de Pernambuco, 28/02/1936, p. 02.

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população negra. Em nota publicada sem autoria, no Rio de Janeiro, pelo Jornal do Meio Dia

e reproduzida pelo JDP, Gilberto Freyre é ironizado por conta de uma viagem realizada ao sul

do Brasil:

“RIO 3 – O jornal Meio Dia critica o escritor Gilberto Freyre a proposito

das ideias de seu recente trabalho sobre a cultura brasileira dizendo tratar-se

do inspirador de um congresso onde se tentou provar que o verdadeiro

Brasil descende de negros. Diz mais que com essa impressão é que o Sr

Gilberto Freyre deve ter visitado recentemente o Sul do Brasil, o qual,

segundo o mesmo artigo, não é o Brasil de mel de engenho e congressos

afro-brasileiros, sendo seus meios diferentes do Recife, Goyanna e Catolé

do Rocha”19.

O tom das respostas caracteriza a oposição ao 1º CAB e ilustra como alguns grupos

percebiam a figura de Gilberto Freyre, isto é, como um agitador social. Neste período, o

Brasil ainda era uma jovem República sem tradição universitária. A maior parte dos

estudiosos possuia formação em Direito ou Medicina e realizavam suas pesquisas fora da

academia, geralmente nos institutos históricos e geográficos ou em museus estatais. Diante

disso, o 1º CAB representou um espaço importante para o intercâmbio de ideias e para a

consolidação de um campo de estudos em seu nascimento, num momento de transição

sociológica sobre a identidade nacional e consequentemente nos debates acerca dos conceitos

de raça e cultura.

Sobre alguns pontos de vista os autores que produziram textos para o 1º CAB

partilhavam das concepções teóricas defendidas por Gilberto Freyre, contudo, nem todos

participantes foram adeptos passivos de suas ideias, isto é, muitos estudiosos ainda

desconheciam ou descordavam dos pressupostos de Freyre. Outros permaneceram arraigados

à metodologia da antropologia física e tentaram avaliar os resultados da mestiçagem em

termos científicos rigorosos, utilizando medidas antropométricas extensas. Alguns mesclaram

métodos tradicionais de caracter biológico tentando adaptar perspectivas mais próximas ao

culturalismo. Além desses, alguns estudos apresentados tiveram uma metodologia diletante,

sem nenhum critério cientifíco específico. O materialimo histórico marxista também serviu

como arcabouço teórico e interpretativo em alguns artigos. Os trabalhos exploraram temas

como a escravidão, o impacto da mistura racial, a influência africana na música, arte e na

19 Jornal Diário de Pernambuco, 04/07/1940, p. 03.

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língua, literatura, religião, gatronomia. Neste sentido, o conjunto dos trabalhos configura um

amalgama heterogêneo e complexo do que efetivamente foi 1º CAB.

A natureza ideológica dos prefácios produzidos por Roquette-Pinto para o primeiro

volume de 1935 e de Arthur Ramos para o segundo volume de 1937, indica o teor discursivo

dos textos e a disputa de espaços no campo intelectual brasileiro em torno da primazia dos

estudos relacionados ao negro e a cultura africana no Brasil. Ou seja, de um lado o grupo do

Recife liderado por Gilberto Freyre com apoio do antropólogo Roquette-Pinto e de outro, a

escola da Bahia liderada por Arthur Ramos que reivindicava a “experiência” do médico Nina

Rodrigues como precursora no país.

Por outro lado, uma quantidade significativa de trabalhos discutiram a questão do

negro e do mestiço no 1º CAB, a partir de números, tabelas, índices e com critérios

relacionados às categorias de pureza, origem, raça, sangue, educação, longevidade,

nascimento, criminalidade e uma série de outros componentes. Em sua maioria, estes

pesquisadores eram médicos-psiquiátricas e estavam alocados nas Faculdades de Medicina e

nos Institutos de Saúde Pública e Mental do Estado, sobretudo na Capital Federal – Rio de

Janeiro. Neste caso, destacam-se as pesquisas apresentadas por Ulysses Pernambuco, Juliano

Moreira, J. Robalino Cavalcanti, Álvaro de Faria, Ruy Coutinho, José Bastos de Ávila,

Antônio Austregésilo que tiveram um caráter paradoxal ao se utilizarem de dados

matemáticos e métodos científicos tradicionais para refutarem a degeneração de negros e

mestiços no Brasil. Contudo, tiveram trabalhos que se utilizando de mecanismos científicos

aparentemente “novos”, formataram teorias que legitimavam as perspectivas tradicionais de

degeneração do negro e do mestiço brasileiro.

Este é o caso do estudo reconhecido internacionalmente pelo impacto científico que

obteve na época, isto é, o trabalho intitulado: “Estudo Biotypologico de Negros e Mulatos

Delinquentes”, assinado pelos médicos - Leonídio Ribeiro, Waldemar Berardinelli e Isaac

Brown, os três com vínculo na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em concurso

internacional que premiava as melhores pesquisas de 1933, Leonídio Ribeiro foi a Turim, em

1934 e recebeu das mãos de Gina Lombroso, o prêmio destinado àqueles trabalhos que se

destacaram na divulgação das ideias de seu pai, Cesare Lombroso. O rico acervo documental

do trabalho reconhecido internacionalmente foi constituído pelos 33 negros e mestiços, além

desses, somaram-se mais 195 indivíduos com traços degenerativos, sendo que uma parcela

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significativa de dados foi extraída de sangue coletado de índios guaranis (CUNHA, 1999, p.

277).

Para além desses, dois artigos analisaram a questão do negro e do mestiço a partir de

uma perspectiva voltada para o materialismo histórico, ou seja, os aportes teóricos

instrumentalizados por Jovelino M de Camargo Jr. e Edson Carneiro mobilizaram a história

do Brasil pelo viés da luta de classes e da população negra enquanto oprimida no sistema

escravocrata, bem como, mão de obra barata e explorada no sistema capitalista. Jovelino M.

Camargo Jr. no texto: “Abolição e as suas causas”, definiu que a história seria a mais atraente

das ciências, por conta do seu dinamismo e intensidade. Para tanto, considerava que a história

só poderia ser definida enquanto ciência depois das formulações do filósofo Karl Marx.

Diante disso, ao assumir uma posição materialista-histórica, Jovelino estabeleceu um olhar

crítico sobre as relações sociais no Brasil, definindo o país enquanto uma nação “sem

independência econômica, atrelada ao carro dos imperialismos, semi-colonial, conservando

em suas relações de produção métodos, disciplinas feudais e escravagistas” (CAMARGO,

1935, p.153).

Nesta mesma direção, insere-se a posição materialista-histórica de Edison Carneiro ao

apresentar o texto – “Situação do negro no Brasil”. Carneiro diferentemente de Camargo, não

considerava a miscigenação enquanto categoria social, ou seja, as análises estabelecidas pelo

jornalista baiano deram-se pela polarização entre brancos e negros, opressores e oprimidos,

burguesia e proletariado. Do ponto de vista da “experiência” do sistema escravocrata,

Carneiro considerava que o capitalismo marginalizou ainda mais o afro-brasileiro, uma vez

que condicionou o negro a falta de educação, ao alcoolismo, a malandragem e a

criminalidade, sendo humilhado, inclusive, pelos proletários brancos. Diante disso, Carneiro

lançou mão de seu “horizonte de expectativa” que seria a filiação em massa de negros ao

Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma vez que, através do protagonismo emancipatório e

do papel político que esta entidade de classe representava, seria a única forma de

reconhecimento e emancipação social para o proletariado de cunho racial. Nesse caso, chegou

a reconhecer a possibilidade de criação de um estado independente para os afro-brasileiros

(CARNEIRO, 1935, p. 240-241).

Jovelino Camargo e Édison Carneiro ao tomarem o materialismo histórico como

categoria analítica de seus trabalhos, representaram um segmento importante no 1º CAB,

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trazendo a luz dos estudos raciais, uma produção que buscou incorporar o marxismo

enquanto um importante campo científico. Para tanto, dimensões folclóricas da cultura afro-

brasileira também foram debatidas, neste caso, destacam-se dois textos que valorizaram a

influência da música africana na cultura brasileira. O primeiro, no JDP, pelo intelectual

Manuel Diegues Junior com o título: “Música Afro-Brasileira”20

e o segundo: “Musicalidade

do escravo negro no Brasil”, da escritora Nair de Andrade, publicado no segundo volume dos

anais de 1937.

Se na perspectiva musical destacaram-se os dois textos anteriores, do ponto de vista

relacionado à pintura, um artigo jornalístico expõe de forma detalhada as exposições do 1º

CAB e os principais artistas: Cicero Dias; Di Cavalcanti; Noêmia; Manoel Bandeira; Santa

Rosa e Lasar Segall. O texto: “A exposição de pintura no 1º Congresso Afro-Brasileiro” 21 de

Luís Jardim merece destaque pelo posicionamento assumido em relação à influência africana

na cultura brasileira. Na introdução do ensaio, o artista pernambucano desenvolveu as suas

principais reflexões acerca da cultura afro-brasileira e dentro de uma ideia essencialista, o

artista pernambucano acreditava que o encontro realizava-se tarde, dada a “experiência”

brasileira caracterizada pelo intenso branqueamento da população negra, o que

impossibilitava a percepção de uma pureza africana ainda presente no Brasil. Frente a esta

mobilização histórica, Luís Jardim lançou mão de um “horizonte de expectativa”, pensando a

alteridade brasileira em ralação aos Estados Unidos, isto é, se por um lado, no Brasil em um

século já não teríamos mais negros em função da constante miscigenação, por outro, nos

Estados Unidos, a forte segregação resultaria no aumento considerável da população negra.

Diante disso, o autor parabenizou os promotores do 1º CAB, que estavam legando as futuras

gerações o estudo de uma raça em extinção no país.

O texto de Luís Jardim corresponde a uma das parcas produções escritas sobre a

pintura no 1º CAB, porém, no campo literário, religioso e folclórico, cinco importantes

nomes produziram seus ensaios para o conclave, ou seja, Mário de Andrade, Jorge Amado,

Câmara Cascudo, Arthur Ramos e Edson Carneiro. Em que pese o 1º CAB ter na figura de

Gilberto Freyre o seu principal expoente e interlocutor, dentro das diferentes temáticas

desenvolvidas, o autor publicou dois textos apenas, ambos no segundo volume de 1937, ou

20 DIEGUES JR. Manuel. Música Afro-Brasileira. Jornal Diário de Pernambuco, 16 de novembro de 1934, p.

03. 21 Jornal Diário de Pernambuco, 10/11/1934, p. 04.

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seja, uma espécie de prefácio contextualizando: “O que foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro?”

Além desse, outro artigo intitulado: "As deformações corporais em Negros fugidos”. Neste

ensaio, o autor desenvolveu um estudo atento dos anúncios de escravos fugidos em jornais

brasileiros do século XIX. Nele, Freyre argumentou que as descrições físicas dos corpos dos

escravos lançava luz sobre as condições da escravidão brasileira, uma vez que, a partir de tal

documentação, era perceptível o posicionamento dos proprietários de escravos, ansiosos para

garantirem o retorno de sua propriedade humana e, diante disso, acabavam por detalhar

cuidadosamente as lesões, as deformidades e os sinais distintivos para ajudarem as

autoridades a identificarem estes sujeitos. Neste ensaio, Freyre ao tentar se distanciar de um

pressuposto patológico e racial de inferiorização do escravo, articulou uma justificativa

baseada no pressuposto neolamarckiano para valorizar a genética dos afro-brasileiros

(ARAÚJO, 1994, p. 44).

O último texto publicado no primeiro volume de 1935 foi o discurso proferido por

Miguel Barros porta-voz da Frente Negra Pelotense (FNP) que teve inserção destacada na

programação do 1º CAB. Barros destacou a necessidade de apoio à população negra

marginalizada e a necessidade de possibilitar novas formas de acesso à educação, emprego e

renda. Por conta disso, estabeleceu uma forte crítica à herança escravista ainda presente no

posicionamento racista de alguns segmentos sociais e indicou o preconceito ainda muito forte

contra a população negra, excluída de boa parte dos empregos públicos. Um dos aspectos

importantes do discurso de Miguel Barros foi quando o militante mobilizou a história do Rio

Grande do Sul através da memória da Revolução Farroupilha e de uma das lideranças deste

movimento, o General David Canabarro. Barros via nos ideais farroupilhas um movimento

precursor do ideário abolicionista, antes mesmo que no restante do Brasil. Do ponto de vista

ideológico, também fez uma referência heroica ao líder farrapo David Canabarro,

reconhecido na narrativa enquanto protagonista no lançamento de uma “semente” no Estado

do Rio Grande do Sul que se espalharia na emancipação escrava em todo o país. Tratadas

dessa maneira, é importante perceber como esta “experiência” histórica, teve uma conotação

edificante quando mobilizada no contexto da década de 1930, ao passo que a FNP almejando

um “horizonte” assimilacionista do afro-brasileiro na sociedade nacional, articulou um

discurso histórico otimista em relação ao episódio da Revolução Farroupilha e da figura do

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General Canabarro como paladino emancipatório da causa escravista22

.

Considerações Finais

A pesquisa realizada com fontes primárias, nos periódicos pernambucanos, revelou

um evento que não pode ser descrito apenas pela leitura dos dois anais, ou seja, muitas das

superficiais críticas feitas ao 1º CAB mostraram-se inconsistentes frente a um olhar mais

criterioso e menos dogmático dos documentos. A amostragem das pesquisas apresentadas no

conclave demonstram uma rede complexa de interpretações sobre o negro e o mestiço

brasileiro. Na maior parte dos trabalhos apresentados, percebeu-se o conceito de raça

extremamente presente nos diferentes campos de saber e áreas de interesse. Na realidade,

alguns intelectuais acabaram por fixar um posicionamento ambíguo, com diversas

contradições, alguns inclusive legitimando uma política de branqueamento. Outros ao fazê-lo

buscaram no conceito de cultura uma estratégia de substituição da categoria raça enquanto

fundamento biológico. Contudo, esta substituição de abordagem não eliminou a ideia de que

alguns grupos eram superiores aos outros, quer seja do ponto de vista racial ou cultural.

Algumas denúncias de abusos contra a população negra e mestiça indicavam a

fragilidade pela qual se constituiu a formação republicana brasileira, ao passo que baseada

nos princípios de igualdade, a cor da pele constituiu-se historicamente enquanto um elemento

velado, mas com forte penetração social nas regras que regulavam o mercado, assim como no

acesso aos bens públicos e privados. Nesse caso, é preciso considerar no discurso da FNP as

implicações negativas do sistema escravocrata para a consolidação de um efetivo estado de

direito, uma vez que a população negra, mestiça e pobre não teve as mesmas oportunidades

de acesso à educação, emprego e renda. Os trabalhos apresentados no 1º CAB forneceram

22 O debate historiográfico que toma como ponto de partida A Revolução Farroupilha, depositária de um

conjunto de signos, faz-se presente nas reivindicações dos Movimentos Negros do Estado do RS em diferentes

contextos ao longo dos Séculos XX e início do XXI. Se por um lado, na década de 1930, a FNP por conta de um

horizonte de expectativa assimilacionista, mobilizou uma história positiva em relação a este episódio e legitimou

a figura do General David Canabarro, como grande líder abolicionista. Por outro, num movimento contrário,

com base numa política diferencialista, o Movimento Negro Contemporâneo, a partir do final década de 1970,

mobilizou uma experiência negativa acerca da Revolução Farroupilha a partir do Massacre de Porongos, de

modo que a figura de Canabarro é representada como um covarde e traidor da população negra. Essa operação de natureza metodológica permite perceber o uso da história enquanto uma perspectiva hermenêutica, uma vez

que as identidades estabelecem um novo contorno investigativo quando mobilizadas em outro contexto

temporal.

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informações indispensáveis sobre a natureza dos estudos raciais e da formatação identitária

nacional na década de 1930. Em que pese o caracter heterogênio das pesquisas, em certa

medida, estes estudos representaram uma contranarrativa as tradicionais abordagens racistas

nacionais e ao mesmo tempo globais, tendo em vista o avanço das políticas eugênicas do

governo nazista na Alemanha e que tinham um forte apelo no Brasil. Portanto, é importante

compreender o quanto que a “experiência” das discussões raciais, foi e está articulada, de

forma particular, com interesses e necessidades concretas, postas por diferentes “horizontes

de expectativa”. Em tempos marcados por inúmeras pesquisas nas ciências humanas, sobre

temas como: racismo; políticas afirmativas; comunidades quilombolas; cultura negra e a Lei

10.639/2003, torna-se mais do que imprescindível refletir sobre a pluralidade dos debates

indentitários no Brasil, assim como, em diferentes contextos históricos, perceber as múltiplas

mobilizações do passado na complexa alteridade afro-brasileira.

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