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IDENTIDADES E PROCESSOS: o sujeito-professor da rede pública estadual em análise Dóris Maria Luzzardi Fiss Este trabalho decorre de uma pesquisa que foi desenvolvida em dois momentos: janeiro de 1996-maio de 1998 (Mestrado) e agosto de 1999-agosto de 2003 (Doutorado). Das análises do discurso pedagógico realizadas derivaram conclusões referentes aos modos de constituição dos processos de autoria e mal-estar. Identifiquei, então, sentidos instituintes e sentidos instituídos tanto de permanência quanto de ruptura do mal-estar, potencializando, pois, a abertura de espaços de produção de autoria. Do desdobramento do estudo desenvolvido sobre autoria e mal-estar decorreu uma investigação envolvendo o trabalho de evidenciação analítica da constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. Por conseguinte, ficaram amarrados a este tema os objetivos da análise: perceber que efeitos de sentido sobre a condição do ser professor hoje e as diferentes relações estabelecidas nas práticas de que ele participa na escola e fora dela estão presentes nas formulações dos sujeitos; evidenciar deslocamentos do sujeito articulados à produção de efeitos de sentidos de autoria, vinculados às marcas lingüísticas destacadas. O campo discursivo de referência compreendeu o discurso pedagógico. O recorte sobre o qual se centra a análise, apresentada neste artigo, consiste em fala escolhida a partir de critérios que representam objetivos do estudo. Dentre o universo de falas obtidas durante o processo de pesquisa-assessoria

IDENTIDADES E PROCESSOS: o sujeito-professor da rede pública estadual em análise

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Este trabalho decorre de uma pesquisa que foi desenvolvida em dois momentos: janeiro de 1996-maio de 1998 (Mestrado) e agosto de 1999-agosto de 2003 (Doutorado). Das análises do discurso pedagógico realizadas derivaram conclusões referentes aos modos de constituição dos processos de autoria e mal-estar. Identifiquei, então, sentidos instituintes e sentidos instituídos tanto de permanência quanto de ruptura do mal-estar, potencializando, pois, a abertura de espaços de produção de autoria. Do desdobramento do estudo desenvolvido sobre autoria e mal-estar decorreu uma investigação envolvendo o trabalho de evidenciação analítica da constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. Por conseguinte, ficaram amarrados a este tema os objetivos da análise: perceber que efeitos de sentido sobre a condição do ser professor hoje e as diferentes relações estabelecidas nas práticas de que ele participa na escola e fora dela estão presentes nas formulações dos sujeitos; evidenciar deslocamentos do sujeito articulados à produção de efeitos de sentidos de autoria, vinculados às marcas lingüísticas destacadas.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

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IDENTIDADES E PROCESSOS:

o sujeito-professor da rede pblica estadual em anlise

Dris Maria Luzzardi Fiss

Este trabalho decorre de uma pesquisa que foi desenvolvida em dois momentos: janeiro de 1996-maio de 1998 (Mestrado) e agosto de 1999-agosto de 2003 (Doutorado). Das anlises do discurso pedaggico realizadas derivaram concluses referentes aos modos de constituio dos processos de autoria e mal-estar. Identifiquei, ento, sentidos instituintes e sentidos institudos tanto de permanncia quanto de ruptura do mal-estar, potencializando, pois, a abertura de espaos de produo de autoria. Do desdobramento do estudo desenvolvido sobre autoria e mal-estar decorreu uma investigao envolvendo o trabalho de evidenciao analtica da constituio heterognea dos sujeitos e dos sentidos. Por conseguinte, ficaram amarrados a este tema os objetivos da anlise: perceber que efeitos de sentido sobre a condio do ser professor hoje e as diferentes relaes estabelecidas nas prticas de que ele participa na escola e fora dela esto presentes nas formulaes dos sujeitos; evidenciar deslocamentos do sujeito articulados produo de efeitos de sentidos de autoria, vinculados s marcas lingsticas destacadas.

O campo discursivo de referncia compreendeu o discurso pedaggico. O recorte sobre o qual se centra a anlise, apresentada neste artigo, consiste em fala escolhida a partir de critrios que representam objetivos do estudo. Dentre o universo de falas obtidas durante o processo de pesquisa-assessoria desenvolvido na escola, selecionei aquela cuja marca lingstica evidenciada servisse de pista para mostrar o funcionamento do discurso em anlise. A direo dada anlise levou indicao de vrias reas nas quais se manifestam ressonncias de efeitos de sentidos de autoria - o que reivindica a considerao da autoria numa constelao de lugares de sentidos atravessados pelo registro do social, enfocando os modos pelos quais a professora significa, do interior da prtica pedaggica, elementos que so da ordem do cultural, do econmico, do social, de gnero, de gerao, entre outros. Meus eixos de anlise referem pontos de uma constelao que pode ser assim representada:

Nem todos os enfoques sero evidenciados na anlise desenvolvida neste trabalho, permanecendo a possibilidade de novos desdobramentos em anlises futuras. Aqui, indicarei uma fala que apresentada junto com a anlise. Com o intuito de sistematizar os procedimentos de anlise, optei por apresentar o recorte, nele destacando a marca lingstica sobre a qual busco relaes interdiscursivas, efetuando, assim, a anlise.

Para a reflexo em torno da marca lingstica de referncia destacada ao longo desta anlise, realizo trs movimentos inter-relacionados e fundamentais: ela investigada a partir do que diz dela o dicionrio, agregando-se a isto o seu estudo do ponto de vista sinttico, e retomando-a do ponto de vista da anlise de discurso de terceira poca - o que introduz a anlise do sentido-outro, do discurso-outro, dos interditos e no-ditos. Enfim, um tal processo termina por buscar dar visibilidade ao que se objetiva com a anlise - a identificao de marcas de heterogeneidade, a partir das quais talvez sejam estabelecidas relaes como as supostas na figura acima, tendo por finalidade a evidenciao de efeitos de sentidos articulados condio do ser professor e s negociaes que ele assume, de forma mais ou menos consciente.

De certa maneira, este conjunto de fatores, que faz parte da construo de uma abordagem relacionada noo de memria e acontecimento (Michel Pcheux), de hibridismo cultural e entre-lugares (Homi K. Bhabha), de heterogeneidade constitutiva e mostrada (Jaqueline Authier-Revuz), de constelao de poderes sociais (Boaventura de Souza Santos) e de sujeito dividido (Jacques Lacan), conduz tambm a uma forma diferente de compreender autoria e de constituir os dispositivos terico-analticos condizentes a uma anlise de discurso inscrita na 3a poca de Michel Pcheux. Assim sendo, h que se abrir mo das certezas relacionadas ao estabelecimento de sentidos fixos (e certos!). E abrir mo do suposto garantido buscar contemplar, em referncia ao professor, o que Santos (2000) designa como constelao de poderes que constituem esse sujeito: o poder cultural, o poder poltico, o poder econmico, o poder religioso, o poder profissional, o poder local, o poder nacional, o poder transnacional, entre outros.

Alm disso, abrir mo desse suposto garantido transitar no limite e entre limites de sentidos - o que remete problematizao, no interior/exterior do campo de significaes, de uma dialtica constitutiva do sujeito-professor: a dialtica da estabilizao/desestabilizao simblica dos professores nos limites de diferentes paradigmas epistemolgicos e poltico-pedaggicos. A esse respeito Pcheux oferece contribuies interessantes, principalmente, em seus dois ltimos trabalhos - O papel da memria e Discurso - estrutura ou acontecimento, produzidos em 1983. Lembra o autor que, em se tratando de estabilizao/desestabilizao dos sentidos,

a memria tende a absorver o acontecimento (...), mas o acontecimento discursivo, provocando interrupo, pode desmanchar essa regularizao e produzir retrospectivamente uma outra srie sob a primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova srie que no estava constituda enquanto tal e que assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implcitos associados ao sistema de regularizao anterior (PCHEUX, 1999, p. 52).

Incluir tais elementos discusso no nega, de forma alguma, os efeitos da contradio na produo de efeitos de sentidos pelos sujeitos. Inclu-los parece possibilitar, por outro lado, um movimento menos contido em e por dualismos, permite talvez o trabalho no interior/exterior dessa constelao de poderes (SANTOS, 2000) que circulam socialmente. E tudo isto remete crescente presena de pessoas, coisas, fenmenos e lugares que parecem se situar em entre-lugares ou, como pontua Bhabha (1998, p. 20) - em lugares deslizantes, em momentos e processos que so produzidos na articulao de diferenas culturais. Buscarei situar o entre-lugares atravs da anlise de uma formulao em especfico. Numa de nossas reunies, determinada professora das sries finais do Ensino Fundamental declarou que: Eu acho que ns ainda somos heronas: com tudo isso a, ns entramos em sala de aula, damos a nossa aula, fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Deixamos a coisa fluir.

A fim de efetuar o trabalho analtico-discursivo, destaquei uma marca lingstica de nfase - relativamente. Se buscarmos no dicionrio (FERREIRA, 1986, 1999) elementos para o entendimento deste ndice lexical, seremos surpreendidos pela ausncia de qualquer referncia a ele. possvel, no entanto, verificar o adjetivo de que deriva esta palavra - relativo. Em Ferreira (1999, p. 1736), encontra-se a seguinte definio: Que indica relao; referente, respeitante, concernente. Casual, fortuito, acidental. Julgado por comparao; proporcional.

J, na gramtica, alguns outros caminhos so propostos. Barros (1985), sobre os advrbios em geral, afirma que so palavras adjuntas, modificadoras, porque podem ser determinantes do adjetivo, do advrbio, do pronome, do verbo e mesmo de oraes e substantivos. Acrescenta, igualmente, que s o contexto caracteriza e define o advrbio. S o contexto indica-lhe as circunstncias (ibid., p. 203). No que concerne aos advrbios em -mente, sublinha que eles no apenas comunicam idia de tempo, de modo, mas tambm de qualidade. A anteposio comunica ao advrbio o valor adjetival que atinge o sujeito e a orao inteira (ibid., p. 205). Assim sendo, no enunciado em questo: numa boa, relativamente boa, a anteposio do advrbio faz com que a nfase decorra do sujeito e envolva toda a frase. Vale mencionar que relativamente classificado, segundo os cnones gramaticais, como advrbio que indica uma circunstncia de modo.

Bonfim (1988), ao discutir o mesmo assunto, indica o carter subjetivo da maioria dos advrbios, que no se comportam meramente como a gramtica tradicional os posiciona na frase, ligando-se, isto sim, ao sujeito da enunciao, ao emissor responsvel pelo enunciado. Argumenta-se que a linguagem gramatical logicamente organizada no jamais independente da linguagem afetiva, havendo sempre ao de uma sobre a outra. A autora pretende esclarecer a necessidade de incluir nos estudos do enunciado a relao destes com elementos externos, pragmticos, presentes no ato da comunicao. Sublinha que as palavras podem estar ligadas ao texto, algumas revelando a avaliao que o falante faz sobre o enunciado produzido.

Pensar, pois, no funcionamento sinttico de um tal advrbio parece imprescindvel agora. Tomaremos, para uma tal anlise lingstica, a formulao fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Mateus el al (1989) observam que so elementos constituintes de uma frase o sintagma nominal e o sintagma verbal tomados enquanto ncleo da orao. J, o sintagma adverbial no se constitui enquanto argumento do predicador, sendo composto por elementos adverbiais que modificam toda a proposio e no fazem parte do sintagma verbal. Luft (2000) confirma uma tal afirmao quando lembra que esses elementos com valor adverbial no so rigorosamente necessrios compreenso bsica do enunciado, tendo a (sub)funo de determinar, qualificar e modificar outros termos. Segundo Luft, tem-se a seguinte classificao: fazemos verbo transitivo direto que constitui o ncleo do sintagma verbal; tudo o que temos que fazer sintagma nominal que serve de complemento ao sintagma verbal e tem funo de objeto direto; numa boa, relativamente boa sintagma adverbial - sendo que relativamente advrbio (adjunto adverbial) de modo.

Na formulao acima, o sintagma nominal (ou tpico) referente ao sujeito da frase no est explicitamente representado, se constituindo elipticamente (Luft o representaria pela conveno: SS PrPess , na qual SS significa sintagma substantivo e PrPess significa Pronome Pessoal). Considerando a transitividade do verbo fazer, Luft acrescentaria que os elementos que a ele se seguem podem ser considerados complementos verbais na medida em que integram a significao transitiva do verbo - esse o caso de tudo o que temos que fazer. Com relao, especificamente, ao relativamente, ele se apresenta como adjunto adverbial de modo expresso por advrbio de modo que se anexa, no caso, ao adjetivo boa, modificando tanto a este quanto locuo adverbial com um elemento adjetivador que o antecede - o numa boa. Dessa forma, fica evidenciada aqui a funo de modificador e de intensificador do adjunto adverbial que, uma vez considerado o funcionamento sinttico, influencia, no caso da formulao em estudo, tanto os elementos que imediatamente o antecedem quanto quele que imediatamente o sucede.

Pensando em termos de processo discursivo e efeitos de sentidos produzidos, necessria a insero de uma perspectiva interpretativa que permita considerar tais relaes pelo nvel do enunciado. Nesse sentido, chama a ateno o funcionamento opacificante que se deixa ver na fala da professora quando ela diz que: Eu acho que ns ainda somos heronas - com tudo isso a, ns entramos em sala de aula, fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Deixamos a coisa fluir.

Em numa boa, relativamente boa, a partcula relativamente parece se constituir em marca da heterogeneidade mostrada. Impossibilitado de escapar da heterogeneidade constitutiva de todo discurso, o falante, ao explicitar a presena do outro atravs da marca da heterogeneidade mostrada relativamente, expressa no fundo seu desejo de dominncia. Isto , movido pela iluso do centro, do domnio e da origem (os esquecimentos a que faz referncia Pcheux), o falante pontua o seu discurso numa tentativa de circunscrever e delimitar o um. Como lembra Authier-Revuz (1998a, p. 62), preso na impenetrvel estranheza de sua prpria palavra, o locutor, quando marca explicitamente pelas formas de distncia - pontos de heterogeneidade em seu discurso -, delimita e circunscreve o outro e, fazendo isso, afirma que o outro no est em toda a parte.

Dito de outra forma, possvel intuir que as marcas explcitas de heterogeneidade, como o caso de relativamente, respondem ameaa que representa, para o desejo de domnio/centro/origem do sujeito falante, o fato de que no lhe possvel escapar de uma fala fundamentalmente heterognea, portanto, habitada por processos de equivocao. Atravs da marca, possvel perceber que o sujeito realiza um significativo esforo visando ao fortalecimento do um - o que parece se evidenciar quando, atravs do relativamente, a enunciao desdobra-se como um comentrio de si mesma: o sujeito no refere X (ns fazemos tudo numa boa), mas um X relativizado por uma espcie de comentrio ou desdobramento metaenunciativo (ns fazemos tudo numa relativamente boa).

Ocorre, pois, conforme Authier-Revuz (1998a, 1998b), a opacificao ou reflexividade opacificante de um fragmento auto-representado do dizer atravs do qual possvel indiciar a no-coincidncia entre as palavras e as coisas. Isto , a relativizao construda pelo sujeito-professor termina por indicar o acionamento de uma operao de busca da palavra mais certa, mais adequada, quela que talvez pudesse expressar o sentido verdadeiro conforme as expectativas ilusrias da professora, as expectativas de manuteno do um enquanto iluso de univocidade e de que se pode ser autor/origem do que se diz. A autora agrega a esta discusso elementos trazidos por Jacques Lacan e que, de algum modo, se costuram operao de opacificao reflexiva. A este respeito, convm referir Lacan quando discute a castrao simblica.

O sujeito dividido pela prpria ordem da linguagem: Lacan, nesse sentido, parece remeter a uma compreenso segundo a qual a linguagem (da ordem do simblico) entendida como uma estrutura que preexiste a um sujeito que se torna sujeito exatamente por se assujeitar a ela e, tambm, como uma estrutura que, por incluir esse sujeito dividido, no s o constitui sob formas singulares como pode por ele ser singularmente rompida. Talvez seja possvel admitir que ocorreu uma espcie de rompimento da linguagem pelo sujeito quando se deu a operao de insero de um lao metaenunciativo (relativizando X) no dizer - momento em que a palavra parece repetir a palavra na busca de um conceito exato e simples. Mas o sentido se derrama, disseminado, porque a palavra no cessa de se escrever e constituir, por assim dizer, lugares de afloramento, no discurso, da no-coincidncia entre as palavras e as coisas.

Em uma tal situao discursiva, a marca lingstica relativamente termina por provocar uma volta completa (no sentido de que remete a um todo de dizeres e fazeres que impossvel precisar) e incompleta (no sentido de que o prprio sujeito inconcluso) do enunciado sobre si mesmo e do sujeito sobre si mesmo. Mas, de que modos e por quais caminhos se constitui essa hibridizao (para empregar uma palavra tomada por emprstimo de Bhabha)? Relativamente parece evidenciar um trabalho de diluio dos sentidos de mal-estar na prpria constelao de lugares de sentidos, sugerindo sentidos vinculados a uma estabilizao e desestabilizao to simblica quanto imaginria do sujeito-professor nos e entre os limites de diferentes paradigmas epistemolgicos que no se prendem somente imagem do educador e aos conseqentes vnculos poltico-pedaggicos que a ele constitui, mas dizem, de uma forma mais ampla, do poder cultural, poltico, econmico, de classe social, religioso, de gnero, de gerao, de raa e etnia que o atravessam e nos quais se dispersam os sujeitos e os sentidos. Sem dvida, relativamente marca de disperses que funcionam na ambga/ambivalente constituio dos sujeitos enquanto sujeitos divididos j na funo nomeadora da palavra que, ao mesmo tempo, refere um todo significativo coerente e se defronta com a impossibilidade de dizer tudo, ou melhor, de dizer o todo.

Como lembra Lacan (1993, p. 11), digo sempre a verdade: no toda, porque diz-la toda no se consegue. Diz-la toda impossvel, materialmente: faltam as palavras. justamente por esse impossvel que a verdade provm do real, isto , toca no indizvel, no incapturvel. E se configura enquanto um entre-lugar de sujeitos e sentidos dispersos. Entre-lugar de movimentos sociais diferenciados (no caso, movimentos vinculados s polticas de educao que esto atravessados por movimentos de outras naturezas sociais) e sujeitos divididos que mostram formas ambivalentes e divididas de identificao.

Nesse sentido, relativamente parece produzir a diferena do mesmo no discurso do mal-estar justamente por existir na realidade intervalar entre duas polaridades: os sentidos de ruptura e os sentidos de permanncia do mal-estar - o que permite supor a ligao do discurso ao acontecimento e conseqente deriva dos sentidos pela produo de mltiplos gestos de interpretao, como pontua Pcheux (1997b). Enfim, todos os elementos articulados me levam a pensar num sujeito que se constitui nas bordas de uma realidade intervalar, nas margens deslizantes do deslocamento cultural.

Ademais, se buscarmos em Pcheux (1999) a problematizao sobre o papel da memria, ser possvel supor que existem situaes em que a diversidade de memrias discursivas o que predomina no discurso. A heterogeneidade funcionaria, pois, na relao entre essas memrias, a se constituindo o sujeito - nos entre-lugares culturais, nas entre-memrias discursivas. Em tais espaos torna-se difcil definir uma dominncia na direo do discurso, isto , na memria discursiva. Como declara o prprio autor,

uma memria no poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais histricos e cujo contedo seria um sentido homogneo, acumulado ao modo de um reservatrio: necessariamente um espao mvel de divises, de disjunes, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularizao... Um espao de desdobramentos, rplicas, polmicas e contra-discursos (PCHEUX, 1999, p. 56).

Idia a que ele retorna, em outro texto, quando adverte que

No se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerlito miraculoso, independente das redes de memria e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, s por sua existncia, todo o discurso marca a possibilidade de uma desestruturao-reestruturao dessas redes e trajetos: todo discurso o ndice potencial de uma agitao nas filiaes scio-histricas de identificao, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiaes e um trabalho (...) de deslocamentos no seu espao: no h identificao plenamente bem-sucedida, isto , ligao scio-histrica que no seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma infelicidade no sentido performtico do termo (PCHEUX, 1997b, p. 56).

Em outras palavras, se o sujeito insiste para manter(-se) (em) um espao de regularidade dos sentidos, da mesma forma esse controle se rompe, tornando possvel que esses espaos se movimentem sobre e entre si mesmos, na relao com os outros. Por conseguinte, a partir dos encontros e desencontros entre memrias discursivas que os sentidos se trabalham, se movem, deslocam-se atravs dos seus conflitos de regularizao. Processo que Pcheux termina justificando quando situa a sua origem - o outro. Relativamente, dessa forma, no nos interessa pelos sentidos que parece evidenciar, mas sobretudo porque o trabalho de evidenciao de tais sentidos remete aos deslocamentos dos sujeitos por entre-lugares, para alm do aqui e agora do sentido, qui costurando o efeito da ideologia e o efeito do inconsciente na constituio mesma do sujeito em falta-a-ser representada em um discurso de algum modo fora de controle. Assim, a imagem do sujeito-professor que se faz representar num relativamente que refere descontinuidades e desigualdades desse mesmo sujeito pelo estabelecimento de relaes intra e interdiscursivas com outros elementos do dizer. Em outras palavras, remete a memrias discursivas diversas, como a da poltica, a do gnero, a de classe, a da religio, entre outras.

Assim sendo, se pensarmos sobre a professora e seus relativamente desdobrados por uma memria mltipla, indcios de que sentidos encontraremos? Que deslizamentos evidenciaremos no trnsito do sujeito-professor por esse conjunto de poderes e de lugares de sentidos que compem a constelao? Ou melhor, que tipo de constelao se constituir se forem considerados os efeitos de sentidos produzidos pela professora? Quais so os sentidos que concernem a cada poder?

Bem no incio de seu pronunciamento, a professora (doravante, referida como P) declara que fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. J discorri sobre a operao de opacificao reflexiva identificada a. Cabem, no entanto, ainda alguns outros comentrios. possvel ouvir, nas palavras de P, ressonncias de um sentido de bem-estar diante da organizao das propostas de ao pedaggicas caracterizadas por ela como procedimentos que envolveriam o entrar em sala de aula, o dar a aula e o deixar a coisa fluir. Uma vez tendo percorrido estas etapas todas, o professor poderia declarar tranqilamente que faz tudo o que tem que fazer numa boa, ainda que no saibamos exatamente a que se refere este tudo ou a que remete o numa boa. Quer dizer, relativamente numa boa em relao a qu? Ao aluno? Aos pais? Aos colegas? s instituies sociais de modo geral? auto-imagem de P?

No entanto, apesar de parecer satisfeita e afirmar sua competncia, ela parece ter se arrependido do que disse. O ndice relativamente termina por se constituir em ndice desse provvel arrependimento. O que se destaca, no entanto, so os efeitos provocados por uma tal relativizao: quando ela busca corrigir suas palavras, alm de atenuar o bem-estar evidenciado anteriormente, ela provoca uma mexida nas filiaes anteriores que resumiam o ato pedaggico a trs procedimentos mecnicos: entrar em sala de aula, dar a aula, deixar a coisa fluir. Ela termina por questionar a validade dessas atitudes, talvez, a validade de suas prprias escolhas epistemolgicas, didtico-pedaggicas etc. Portanto, P revela um sutil deslocamento sem se definir por uma direo do discurso em especfico, mas evidenciando marcas de uma histria que se inscreve em suas falas, em seus gestos, enfim, em suas prticas discursivas.

Fazer uma exposio como tal quer significar os caminhos para os quais os dizeres de P parecem apontar. Marcadas em seu corpo, cingidas em sua fronte e atravessadas em suas prticas sociais esto resqucios, vestgios de uma histria que no envolve apenas P, mas fala de todo um grupo social - os professores da rede pblica estadual. Igualmente, tais vestgios, que podem se articular tambm condio heterognea do sujeito e da linguagem, deixam escapar por suas frestas sentidos que no esto ligados apenas ao ato pedaggico relativizado por P. Pode-se supor, pois, que, se pensarmos sobre a professora e seus relativamente desdobrados por uma memria mltipla, seremos obrigados a considerar a condio do ser professor hoje e a constituio de suas identidades a partir de um conjunto de poderes e de lugares de sentidos nos quais constitui sua subjetividade. Por ser mulher, o poder de gnero - o que parece estar evidenciado pelos sentidos de doao, de busca de incluso e de expropriao de condies mnimas para o exerccio da cidadania. Na verdade, ao fazer corresponder ao trabalho docente os dispositivos por ela elencados - entrar na sala de aula, dar aula, fazer tudo o que tem que fazer e deixar a coisa fluir, escoam pelos dizeres manifestados pela professora P sentidos que remetem s presses sobre o magistrio as quais tm assumido a forma de aumento do controle e fragmentao do trabalho. Presses de que derivam a perda de autonomia, a degradao salarial, a rejeio e a falta de perspectiva para o futuro. Alm disso, os dispositivos ou aes a que P faz referncia parecem se constituir numa espcie de ncleo duro do discurso pedaggico, ou melhor, num espao de memria, em indcios do repetvel e em elementos interdiscursivos que tm circulado, ao longo dos tempos, pelo discurso sobre o magistrio e, tambm, sobre a formao docente.

Ao longo do trabalho analtico construdo aqui, foi possvel perceber que o sujeito-professor, representado por P, transita por diferentes pontos nas constelaes de sentidos e de poderes. Este trabalho analtico-discursivo fez com que se passasse a falar em memria social, memria profissional, memria de gnero em decorrncia da articulao entre pontos de sentidos (a condio de mulher me-esposa-professora-proletria, a condio de funcionria pblica, o ato pedaggico enquanto trabalho intelectual e caminho investigativo, o sujeito-aluno, as aes do sindicato, o plano de carreira, as polticas pblicas de educao) e pontos de poderes (poder de gnero, profissional, poltico, social, econmico). Alm disso, ele conduziu ao reconhecimento de um modo de funcionamento que permite cogitar sobre o quanto tais pontos de sentidos e de poder habitam o sujeito-professor e so por ele habitados, conduzindo a deslocamentos que fazem supor uma espcie de sujeito processual (SIGNORINI, 2001), isto , sujeito que se constitui nos e pelos processos que protagoniza ou, como diria Bhabha (1998), um sujeito que se forma nas bordas intervalares da realidade, nos entre-lugares.

Falar em entre-lugares, aqui, quer remeter a processos que se constituem a partir de diferenas culturais as quais, embora muito especficas do universo pedaggico, so oriundas de diferentes instncias sociais. O sujeito se forma nos pontos de encontro entre elementos que so da ordem do poltico, do econmico, do social, das relaes de gnero, do profissional. Tais elementos se constituem, por conseguinte, numa espcie de fronteira que dissolve a polarizao: ao mesmo tempo em que ela estabelece um sentido em relao a outro (X em oposio a Y, por exemplo), d visibilidade a uma espcie de processo de descascamento dos sentidos pelo qual a linguagem se hibridiza - o sentido pode ser um, pode ser outro, pode ser nenhum, pode ser todos ao mesmo tempo. Bhabha, de certa forma, desenvolve tal idia quando nos fala da linguagem da diferena no mesmo, a linguagem que desestabiliza, rompe, fura fronteiras dicotmicas pelo apelo multiplicidade dos sentidos, ao seu descascamento. Segundo o autor,

Apesar dos esquemas de uso e aplicao que constituem um campo de estabilizao para a afirmativa, qualquer mudana nas condies de uso e reinvestimento da afirmativa, qualquer alterao em seu campo de experincia ou comprovao, ou, na verdade, qualquer diferena nos problemas a serem resolvidos, pode levar emergncia de uma nova afirmativa: a diferena do mesmo (BHABHA, 1998, p. 47).

Tal assertiva permite a pergunta sobre o que produziria a diferena do mesmo num discurso pedaggico marcado por sentidos de crise do magistrio e do trabalho docente. Uma possvel resposta remete necessria identificao de movimentos intervalares manifestados pelos sujeitos quando transitam pelos pontos de sentidos e de poderes supracitados. Ao transitar, tais sujeitos e sentidos se constituem e se desconstituem de modo permanente. Sendo esta a condio primeira para a constituio de suas identidades e filiaes, por extenso, tambm condio de possibilidade de autoria no momento em que, como pontua Santos (2000), revela diferentes combinaes dos sentidos e das formas de poder que circulam na sociedade.

Neste momento, lcito aventar o encontro das perspectivas de Pcheux, Bhabha, Authier-Revuz e Lacan. Falar em trnsitos, deslocamentos ou derivas dos sujeitos e dos sentidos est relacionado aos processos de estabilizao/desestabilizao dos sentidos a que faz referncia Pcheux (1997a, 1999) - o que se articula, por extenso, ao desdobramento do dizer ou, para citar Authier-Revuz (1998a, 1998b), s operaes de desdobramento metaenunciativo ou reflexividade opacificante do dizer. De alguma forma, tudo isto se associa ao

problema fundamental do equvoco enquanto prprio do sujeito e necessidade de acompanhar ou, pelo menos, de o sujeito se incluir/inscrever nesses jogos sobre o qu (aquilo qu) da lngua trabalhado pelo equvoco e pela conseqente proliferao do significante (liberado e vigiado) que a se manifesta (FISS, 2001, p. 15).

De alguma maneira, tambm se costuram tais consideraes aos acenos, mais ou menos evidentes, de Lacan para a produo de descontinuidades por um real necessariamente faltoso, em funo de o real ser impossvel de se escrever enquanto tal, remetendo a uma dimenso que poderia ser caracterizada como inassimilvel e que acionaria o surgimento de possibilidades de reviramento dos sentidos pela via da equivocidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidades de evocar o dizer em sua totalidade. Seria como dizer que aquele que utiliza a linguagem no pode manter com ela uma relao de pura literalidade, buscando negligenciar os movimentos de escapncia de sentidos-outros/Outros que so constitutivos tanto da linguagem quanto dos sujeitos e que, talvez, possam remeter a estranhos momentos marginais, lapsos de lngua, irrupes do inconsciente que se instituem na perda de controle do falante e se manifestam como que simulando fascas crepusculares da linguagem. Conforme lembra Lacan (1983, p. 129), o que parece harmonioso e compreensvel que encerra alguma opacidade. E , inversamente, (...) na dificuldade que encontramos chances de transparncia.

Parece-me que, em um tal contexto, o desafio que est posto ao professor a construo de processos de autoria para alm do mal-estar enquanto degenerao da prtica docente que se sustenta no discurso da incompetncia inerente ao discurso pedaggico. Em decorrncia disso, professores e alunos tero de se tornar exmios nas pedagogias das ausncias, ou seja, na imaginao da experincia passada e presente se outras opes tivessem sido tomadas (SANTOS, 1996, p. 23).

Nesse sentido, os deslocamentos de sentidos e de sujeitos que terminam por constituir condies de possibilidade de produo de entre-lugares e, por extenso, de processos de autoria inspirados em imagens desestabilizasdoras do passado e do presente (que j no so compreendidos de maneira linear e seqencial), portanto, imagens suscetveis de desenvolver nos professores a capacidade de espanto e indignao e a vontade de inconformismo. Talvez possam derivar das perguntas de P, de suas perplexidades e mesmo de seu mal-estar, aprendizagens de novos relacionamentos entre saberes e, assim, entre pessoas, grupos sociais e culturas.

REFERNCIAS

AUTHIER-REVUZ, J. A. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outrono discurso (Htrognit montre et htrognit constitutive: elements pour une approache de lautre dans l discours). Trad. por Alda Scher & Elsa Maria Nitsche-Ortiz. 1998a. Texto digitado. 72 pp.

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a organizao das propostas de ao pedaggicas

a condio de mulher-esposa

o sujeito-aluno

as polticas pblicas de educao

as aes do sindicato

DISCURSO PEDAGGICO: as relaes do sujeito-professor com

a condio de mulher-me

a carreira do magistrio

a estabilidade profissional

a condio de mulher-professora

o ser funcionria pblica

a condio de mulher-proletria

o ato pedaggico enquanto trabalho intelectual e caminho investigativo

Fig. 1 A constelao de lugares de sentidos

e o discurso pedaggico