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[T] Idolatria, poder e comércio. Um estudo de Apocalipse 18,1-24 [I] Idolatry, power and trade. A study of Revelation from 18,1-24 [A] José Adriano Filho Professor e pesquisador na Faculdade Unida, Vitória, ES - Brasil, e-mail: [email protected] [R] Resumo Ao analisar o texto de Apocalipse 18 faço uma leitura teológica do fator econômico ao catalogá-lo como pecado e sujeito ao juízo de Deus. Essa economia é pecaminosa na medida em que acarreta miséria para muitos e, além disso, significa perseguição e morte para a comunidade dos fiéis. O pecado, assim caracterizado, “chega ao céu”, constitui a medula de uma situação pecaminosa. Deus não passa por alto “nem es- quece” isso, pois é expressão de injustiça entre os homens que deve ser remediada. A degradação da vida humana no mundo atual torna-se um ponto a partir do qual podemos entender os efeitos que as formas do poder econômico assumem. Estamos também diante de “uma situação pecaminosa, injusta, que não passa despercebida aos olhos de Deus, nem é algo pelo qual Ele possa ficar desinteressado”. O sistema econômico-político atual também constitui o cerne de uma situação pecaminosa que está sujeita ao juízo de Deus. [#] [P] Palavras-chave: Economia. Pecado. Apocalipse. [#] Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 3, n. 1, p. 137-155, jan./jun. 2011 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

Idolatria, Poder e Comércio. Um Estudo Do Capítlo 18 (1)

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  • [T]

    Idolatria, poder e comrcio. Um estudo de Apocalipse 18,1-24

    [I]

    Idolatry, power and trade. A study of Revelation from 18,1-24

    [A]Jos Adriano Filho

    Professor e pesquisador na Faculdade Unida, Vitria, ES - Brasil, e-mail: [email protected]

    [R]

    Resumo

    Ao analisar o texto de Apocalipse 18 fao uma leitura teolgica do fator econmico ao catalog-lo como pecado e sujeito ao juzo de Deus. Essa economia pecaminosa na medida em que acarreta misria para muitos e, alm disso, significa perseguio

    e morte para a comunidade dos fiis. O pecado, assim caracterizado, chega ao cu,

    constitui a medula de uma situao pecaminosa. Deus no passa por alto nem es-quece isso, pois expresso de injustia entre os homens que deve ser remediada.

    A degradao da vida humana no mundo atual torna-se um ponto a partir do qual

    podemos entender os efeitos que as formas do poder econmico assumem. Estamos tambm diante de uma situao pecaminosa, injusta, que no passa despercebida

    aos olhos de Deus, nem algo pelo qual Ele possa ficar desinteressado. O sistema

    econmico-poltico atual tambm constitui o cerne de uma situao pecaminosa que

    est sujeita ao juzo de Deus. [#][P]

    Palavras-chave: Economia. Pecado. Apocalipse. [#]

    Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 3, n. 1, p. 137-155, jan./jun. 2011

    Licenciado sob uma Licena Creative Commons

  • [B]

    Abstract

    In examining the text of Revelation 18 I make a theological reading of the economic factor to catalog it as sin and subject to the court of God. This economy is sinful in that it brings misery for many and, furthermore, it means persecution and death for the community of believers. Sin, so defined, arrives in heaven, constitutes the heart

    of a sinful situation. God does not undergo high nor forget it because it is an expres-sion of injustice among men that must be remedied. The degradation of human life in todays world becomes a point from which to understand the effects that the forms of economic power assume. We are also faced with a sinful situation, unfairly, that

    does not go unnoticed in the eyes of God, nor is it something that he can be unselfish.

    The current political-economic system also forms the heart of a sinful situation that is subject to the judgments of God. [#][K]

    Keywords: Economy. Sin. Revelation. [#]

    Introduo

    Uma caracterstica marcante do Apocalipse de Joo o uso de tex-tos do Antigo Testamento, em especial os textos profticos. Os textos pro-fticos sobre a queda da Babilnia (Jeremias 50-51; Isaas 13-14; 23; 47) e os cnticos fnebres sobre Tiro, que assinalam o contraste entre o bri-lho da cidade e sua devastao, seu passado glorioso e sua runa presente (Ezequiel 26,15-18; 27,1-8.26-36), so de grande significado para a com-posio de Apocalipse 18, cujo tema a queda da Babilnia e o colapso do mundo associado a ela. O texto combina os orculos contra a Babilnia e os orculos de Ezequiel contra Tiro, mostrando grande originalidade. As referncias tradicionais da Babilnia do o nome cidade descrita em Apocalipse 18, enquanto os orculos de Ezequiel contra Tiro e seu rei do forma ao retrato do colapso da Babilnia, a grande.

    Apocalipse 18, antes de mencionar o comrcio martimo, descreve a Babilnia como uma prostituta embriagada com o sangue dos santos e das testemunhas de Jesus (17,1-6). No surpresa, ento, que Apocalipse

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  • 18 condene os que transportam as mercadorias para a grande cidade. A literatura apocalptica da poca revela que Joo no estava sozinho ao condenar a Babilnia, mas sua preocupao estava no fato de que o co-mrcio era, s vezes, um compromisso espiritual e moral duvidoso: Joo estava preocupado com a ao recproca entre idolatria, poder e comrcio. Ele no era contra o comrcio e os comerciantes em si, como se eles fos-sem intrinsecamente maus, mas exorta os cristos a se separar ou evitar ligaes econmicas e polticas com a Babilnia, pois as instituies e es-truturas representadas por ela eram leais ao imperador, que reivindicava ser divino ou era tratado como tal.

    O uso dos orculos contra Tiro destaca a dimenso econmica das transgresses da Babilnia. Os temas mar e comrcio martimo, reis, mer-cadores e marinheiros, riquezas, o catlogo de mercadorias, o orgulho e palavras arrogantes indicam que Apocalipse 18 no somente uma re-leitura dos textos profticos do Antigo Testamento, mas tambm que a crtica teolgica do poder econmico constitui um dos seus componen-tes inovadores.

    Vejamos o texto:

    1 Depois dessas coisas, vi outro Anjo descendo do cu; que tinha gran-de autoridade, e a terra foi iluminada com a sua glria. 2 E gritou com forte voz, dizendo:

    Caiu, caiu, Babilnia, A Grande!Tornou-se moradia de demnios,moradia de todo esprito imundo,moradia de toda ave imunda,moradia de toda besta imunda e detestvel.

    3 Porque todas as naes beberam do vinho da fria da sua prosti tuio,os reis da terra com ela se prostituram,e os mercadores da terra da fora da sua luxria enriqueceram.

    4 E ouvi outra voz do cu, dizendo:

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  • Sa dela, povo meu,para que no participeis dos seus pecados,para que no recebais das suas pragas,

    5 porque os seus pecados chegaram at o cu,e Deus se lembrou das suas injustias.

    6 Dai-lhe, como tambm ela deu, dai-lhe em dobro segundo as suas obras,no clice em que ela misturou, misturai dobrado para ela,

    7 o quanto a si mesma glorificou e viveu em luxria,dai-lhe tanto tormento e pranto.Porque no seu corao diz: Sou rainha, no viva, pranto ja-mais verei.

    8 Por causa disso, em um dia viro as suas pragas, morte, pran-to e fome,e em fogo ser queimada,porque poderoso o Senhor Deus que a julgou.

    9 E choraro e se lamentaro sobre ela os reis da terra que com ela se prostituram e viveram em luxria, quando virem a fumaa do seu incndio. 10 De longe, ficam de p por causa do medo do seu tormento, dizendo:

    Ai, ai, da grande cidade,Babilnia, a poderosa cidade,porque em uma hora veio o seu julgamento.

    11 E os mercadores da terra choram e lamentam sobre ela, porque nin-gum mais compra a sua mercadoria: 12 mercadoria de ouro e de prata, de pedras preciosas, de prolas, de linho e prpura, de seda, de escar-late, toda madeira odorfera, todo vaso de marfim, todo vaso de ma-deira preciosa, de bronze, de ferro, de mrmore, 13 cinamomo, amomo, perfumes, ungento, incenso, vinho, azeite, farinha finssima e trigo, animal de carga e ovelhas, cavalos e carros, escravos e vidas humanas.

    14 O fruto do desejo da sua alma retirou-se de ti e todas as coisas deli-cadas e brilhantes foram perdidas e jamais sero encontradas.

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  • 15 Os mercadores destas coisas, que com ela enriqueceram, de longe fi-caro de p, por causa do medo do seu tormento, chorando e pran-teando, 16 dizendo:

    Ai, ai, da grande cidade,vestida de linho, prpura e escarlate,adornada de ouro, pedras preciosas e prolas,

    17 porque em uma hora foi devastada to grande riqueza.

    E todo piloto, todo o que navega livremente, marinheiros e os que trabalham no mar, ficaram de longe, 18 e gritavam, ao verem a fuma-a do seu incndio, dizendo: Quem semelhante grande cidade?

    19 E lanaram p sobre as suas cabeas, e gritavam, chorando e pran-teando, dizendo:

    Ai, ai, da grande cidade,a qual, da sua opulncia, enriqueceram todos os que tm na-vios no mar,porque em uma hora foi devastada.

    20 Alegrai-vos sobre ela, cus,e vs santos, apstolos e profetas,porque Deus contra ela julgou a vossa causa.

    21 Um Anjo forte tomou uma grande pedra, como de moinho, e a atirou no mar, dizendo:

    Dessa maneira, com violncia, Babilnia, a grande, ser lanada e jamais ser encontrada.

    22 A voz de harpistas, de msicos, de flautistas e de tocadores de trombetas,jamais ser ouvida em ti.E todo artfice (de toda arte),jamais ser encontrado em ti.E a voz do moinho,jamais ser ouvida em ti.

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  • 23 E a luz da candeia,jamais brilhar em ti.E a voz do noivo e da noiva,jamais ser ouvida em ti.Porque os teus mercadores foram os grandes da terra,porque na tua feitiaria foram seduzidas todas as naes,

    24 e nela foi encontrado sangue de profetas, santose de todos os que foram mortos sobre a terra.

    Apocalipse 18 como um cntico fnebre escatolgico

    Apocalipse 18 apresenta a queda da Babilnia e o colapso do mundo associado a ela com os elementos do cntico fnebre, j presen-te nos profetas do Antigo Testamento (NOGUEIRA, 1991, p. 137-139; GERSTENBERGER, 1962, p. 249-263). No Antigo Oriente, o cntico f-nebre falava geralmente do morto, consolo, situao posterior morte, mas os profetas o utilizaram para falar da comunidade, da nao, do povo, do declnio poltico, agitando, advertindo e antecipando (escatologica-mente) a queda do reino, variando entre o contexto afetivo de tristeza e a ironia. O mais antigo exemplo de um cntico fnebre poltico Ams 5:1, que afirma que a virgem, filha de Israel no cumpriu o propsito de Deus para a sua vida. H tambm o lamento de Miquias sobre Samaria (1,8), o de Jeremias sobre Jerusalm (9,18), os lamentos simblicos de Ezequiel sobre a casa real de Jud (Ezequiel 19), Tiro e seus prncipes (Ezequiel 27; 28,11-19), o desdenhoso lamento do mesmo profeta sobre o fara (Ezequiel 32) e o irnico lamento sobre o rei da Babilnia (Isaas 14), que apresentam aos seus destinatrios a vinha cheia de frutos (Ezequiel 19,10-14), as campinas com flores da primavera (Isaas 40,6), Jerusalm como me (Lamentaes de Jeremias 1), a leoa soberba com o seu filho (Ezequiel 19,1-9), o crocodilo do Nilo (Ezequiel 32,2-10) e o espetculo dos mercadores de Tiro (Ezequiel 27) (NOGUEIRA, 1991, p. 139-141; WESTERMANN, 1977, p. 202-203).

    Apocalipse 18, composto a partir dos lamentos acima indicados, con-tm pequenas unidades e est ligado por algumas sees, entre as quais

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  • encontramos as seguintes formas (CROATTO, 1991, p. 35-37; RUIZ, 1989, p. 250-254):

    a) 18,1-3: narrativa de viso. Os vv.1-2a so uma viso apocalp-tica (vi outro anjo) e o relato das palavras do anjo dos vv.2b-3 um anncio de destruio fundamentada na queda da Babilnia (WESTERMANN, 1977, p. 129-198).

    b) 18,4-8: audio (v.4a: ouvi). Os vv.4b-5 so uma ordem para sair da cidade, cujas razes so especificadas no v.5. Os vv.6-8 consis-tem numa ordem para executar julgamento sobre a Babilnia. As ordens so dadas nos vv.6-7a e explicadas nos vv.7b-8. A perdio da cidade narrada com imperativos (realizadores de juzos e sim-blicos). Os vv.7b-8 apresentam um dilogo com o morto, que res-ponde com palavras arrogantes (NOGUEIRA, 1991, p. 142-143).

    c) 18,9-20: Cnticos fnebres dos reis (vv.9-10), dos mercadores (vv.11-17a) e dos marinheiros (vv.17b-19). Estes cnticos apresen-tam uma estrutura semelhante:

    a) os reis, mercadores e marinheiros choram e lamentam (vv.9.11.19);b) eles tm medo do seu tormento (vv.10a.15.18);c) afirmam ai, ai, da grande cidade (vv.10.16.19);d) afirmam que Babilnia a grande cidade e falam da opulncia das

    suas riquezas;e) ficam de longe e falam da destruio repentina da cidade e da sua

    riqueza, o que contrasta com a sua opulncia.

    O v.20 uma ordem dada aos santos, apstolos e profetas para se alegrarem, e sua alegria contrasta com a tristeza dos reis, mercadores e marinheiros nos vv.9-19 (RUIZ, 1989, p. 252; CROATTO, 1991, p. 41-44).

    4-18,21-24: narrativa de uma ao simblica executada por um anjo. Comea com uma narrativa de um ato simblico proftico inter-pretado como uma pr-estreia da queda da Babilnia. Consiste em trs partes: o relato ento anjo forte (v.21a); a interpretao assim ser Babilnia (vv.21b-23b); e a razo porque teus mercadores foram os grandes da terra; na tua feitiaria foram seduzidas as naes; nela se

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  • achou sangue de profetas, santos, e de todos os que foram mortos sobre a terra (vv.23c-24) (AUNE, 1983, p. 285).

    Apocalipse 18 contm anncios de julgamento e lamentos fnebres. Com-bina os cnticos fnebres com os anncios de desgraa e especifica as ra-zes para tal desgraa: duas formas literrias dominam Apocalipse 18: o anncio de julgamento e o lamento fnebre. Da perspectiva do autor e do contexto maior, os lamentos fnebres tambm funcionam como anncios de julgamento. A anlise dos lamentos fnebres em Apocalipse 18 mostra que no h somente uma correspondncia simples entre forma e funo. Na superfcie eles expressam lamento. Mas, quando funcionam em ou-tro nvel para expressar julgamento, e quando este julgamento sobre um inimigo, o lamento fnebre assume um carter paradoxal ou irnico, por causa da impossibilidade do genuno lamento (AUNE, 1983, p. 285; NOGUEIRA, 1991, p. 147; COLLINS, 1980, p. 196-197).

    Caiu, caiu Babilnia, a grande cidade

    Anncio da queda da Babilnia: vv.1-3

    Apocalipse 18,1-3 relata a viso da queda da Babilnia e as razes pelas quais a cidade deve ser destruda. O mensageiro que se dirige ao vi-dente vem do cu, tem grande autoridade e ilumina a terra com a sua gl-ria. Ele no apresenta uma revelao particular, mas o vidente ouve uma proclamao que tem um destinatrio particular: um anncio pblico que consiste na queda da Babilnia: caiu, caiu Babilnia, a grande, a mesma linguagem usada no Antigo Testamento nos orculos contra a Babilnia (Jeremias 50-51), que exprime a certeza da queda da cidade. Alm disso, a descrio da Babilnia destruda, como morada de demnios, morada de espritos imundos, de aves impuras, de bestas impuras e detestveis, utiliza as figuras das profecias sobre a devastao da Babilnia, Edom e Nnive (Isaas 13,19-22; 34,11-15; Jeremias 50,39; 51,37).

    Apocalipse 18,3 apresenta as razes da queda da Babilnia. Empre-ga as metforas da m conduta sexual e da intoxicao (14,8), mas prov um quadro mais extenso ao apresent-las. Outras causas, como sua sober-ba (v.7) e o martrio dos santos (v.24), sero ainda mencionadas. O texto

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  • menciona trs grupos que esto associados Babilnia na prtica da in-justia, atribuindo uma atividade diferente a cada um desses grupos: as naes beberam o vinho da fria da sua prostituio; os reis que com ela se prostituram; os mercadores da terra se enriqueceram da fora da sua luxria. Fica clara a apropriao do nome Babilnia como designao simblica do poder mundial hostil por meio de uma releitura dos orculos profticos dirigidos contra ela. O uso das metforas da m conduta sexual e intoxicao e a meno das transgresses econmicas prepara o cami-nho para o uso dos orculos de Ezequiel contra Tiro e seu rei (Ezequiel 26,1-28,19) nos vv.9-19.

    Exortao a sair da Babilnia: vv.4-8

    Apocalipse 18,4-8 apresenta uma audio: e ouvi outra voz (v.4a). O v.4b contm um aviso que consiste numa ordem dada ao povo de Deus para que ele saia da cidade: sai dela povo meu. Os vv.6-7a consistem numa ordem para executar julgamento sobre a Babilnia: dai-lhe em dobro segundo as suas obras, que explicada nos vv.7b-8. A perdio da cidade narrada por meio de imperativos. Os vv.7b-8 apresentam uma mulher que responde com palavras arrogantes. A seo termina com um apelo ao justo julgamento de Deus: Poderoso o Senhor Deus que a julgou (v.8b).

    O povo de Deus primeiro exortado a romper a sua relao com a Babilnia, para no compartilhar dos seus pecados, os quais chegaram at o cu. Essa exortao indica uma apropriao de passagens profti-cas (Ezequiel 48,20; Jeremias 50,8; 51,6.9.45; Isaas 48,20; 52,11), sendo tambm um tema recorrente nas Escrituras (Gnesis 19,12; xodo 1-15). O povo de Deus chamado a retribuir o mal para Babilnia, o sofrimen-to que ela lhe causou: dai-lhe como tambm ela deu, dai-lhe em dobro se gundo as suas obras. No clice em que ela misturou, misturai dobra-do para ela (v.6). Dai-lhe em dobro segundo as suas obras e preparar a taa so expresses da lex-talionis (Jeremias 50,29; 51,34-40; xodo 22,4.7; Isaas 40,2). Joo combina a noo da dupla retribuio com a imagem da taa, a metfora da intoxicao apresentada antes. Babilnia ser punida apropriadamente: ela beber uma dupla poro de sua prpria

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  • taa, de acordo com as suas obras. A metfora da taa empregada numa irnica inverso: a imagem aplicada influncia intoxicante da Babilnia sobre as naes tambm a imagem usada para descrever sua sentena (16,19; 17,2.4). A retribuio expressa em termos da inverso de situa-es (Salmo 137,8; Isaas 14,1-8) e as repeties dai/deu, dai-lhe em dobro e misturou/misturai em dobro enfatizam a correspondncia dos crimes da Babilnia com a punio que ela deve sofrer. O v.7 descreve a autoglorificao e o orgulho da cidade, cujo destino resultado do seu prprio orgulho. O orgulho e a soberba nascem do conhecimento de que se tem o poder poltico e econmico total; eles so ostentados sem reco-nhecer nenhum tipo de poder superior (PRINGENT, 1981, p. 269).

    A exortao ao povo para sair da cidade termina com um apelo ao justo julgamento de Deus, um anncio fundamentado do julgamento da Babilnia: em um s dia (v.8). O acontecimento repentino desse julga-mento destacado nos vv.8.10.17.19, em que em um s dia o refro re-corrente na boca dos reis, mercadores e marinheiros. Esse julgamento, que traz morte, pranto, fome, a cidade queimada em fogo (Jeremias 50,32; 51,25.30.32.58), realizado pelo poder de Deus. Deus exerce a sua justi-a definitiva no tempo final em favor do seu povo, como o seu Salvador:

    Deus contra ela julgou a vossa causa (v.20).

    Lamentos sobre a Babilnia: vv.9-20

    Apocalipse 18,9-20 apresenta o lamento dos reis, mercadores e ma-rinheiros. Babilnia descrita como uma cidade que se enriqueceu a par-tir do domnio das rotas martimas, mas sua queda representa o rompi-mento de toda a rede de relaes econmicas que ela estabeleceu. Essa a razo do lamento dos reis, mercadores e marinheiros, pois estes, antes associados cidade, agora compartilham da sua sorte. Esses versculos denunciam a injustia do exerccio do poder econmico e seu modo de expresso. Nesse caso, o fator econmico o elemento bsico que consti-tui o pecado do poder vigente e que merece o juzo de Deus. Trs grupos esto comprometidos com Babilnia, a grande: os reis da terra (v.9); os comerciantes da terra (v.11); os armadores navais (v.17).

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  • O lamento dos reis: vv.9-10

    O primeiro dos trs lamentos pertence aos reis da terra, cujo rela-cionamento com a Babilnia descrito como os que com ela adulteraram e viveram em luxria (v.3). O v.10b apresenta a repetio do semitismo

    ai, ai. Em Ezequiel 16,23, essa expresso no indica tristeza, mas parte da denncia contra Jerusalm. No captulo 18, ai, ai faz parte dos lamen-tos de funeral sobre a queda da Babilnia e enfatiza a declarao do seu julgamento. Sua repetio nos lamentos seguintes d o tom para todos os lamentos. O grito e lamento dos reis ecoa nas introdues dos lamentos dos mercadores e marinheiros. Os reis permanecem de longe, como fazem os dois outros grupos. No caso dos reis e mercadores, o medo do tormento da Babilnia a razo da sua distncia (vv.10.16) (RUIZ, 1989, p. 412).

    A expresso ai, ai, junto com a expresso: Babilnia, a poderosa cidade, concentra-se na runa do seu poder. O final do lamento assinala a queda repentina da cidade e reafirma a qualidade forense desse fato: o seu julgamento veio em uma hora. O orgulho da Babilnia (v.7) e seu poder descrito com a metfora da m conduta sexual e intoxicao (14,8; 17,2.4; 18,3.9) so repentinamente destrudos: Poderoso o Senhor Deus que a julgou (v.8). Glria, poder so atributos divinos no Apocalipse. Deus poderoso e seu poder se estende aos anjos que fazem a sua vontade (10,1). Poder uma qualidade atribuda a Deus e a Cristo nas doxologias (5,12; 7,12). Aquele que pretende ter tal poder na terra est destinado derrota (6,15; 18,10). O poder de Deus exercido na execuo do julga-mento contra a Babilnia, a grande. Apocalipse 18,10b emprega Ezequiel 26,17 para afirmar, de forma negativa, que o julgamento da Babilnia en-volve a perda do seu poder (RUIZ, 1989, p. 423).

    O lamento dos mercadores: vv.11-17a

    O segundo lamento dos mercadores da terra, sem deixar de enun-ciar as consequncias da runa da grande cidade, precedido por uma enu-merao das mercadorias fornecidas Babilnia, o que ilustra a luxria da sua vida e a vastido do seu comrcio, que se concentrava, sobretudo, nos

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  • portos da sia (vv.12-13). Aqueles que lamentam so identificados como os que se enriqueceram da fora da luxria da grande cidade (v.3).

    Entre as mercadorias apresentadas, encontramos ouro, prata, pedras preciosas, linho, prpura, seda, escarlate, madeira aurfera, vaso de mar-fim, vaso de madeira preciosa, de bronze de mrmore, cinamomo, amomo, perfumes, unguento, incenso, vinho, azeite, farinha finssima e trigo, ani-mal de carga e ovelhas, cavalos e carros, escravos e vidas humanas. H tambm pedras preciosas, objetos de luxo, metais (ouro, bronze, ferro), madeira e mrmore, alimentos (vinho, azeite, farinha, trigo) e o negcio de escravos (RAMIREZ FERNANDEZ, 1990, p. 61; PRINGENT, 1981, p. 269-273; RUIZ, 1989, p. 443). Esse catlogo de mercadorias descreve a imensa luxria da Babilnia. Ele enfatiza, principalmente, o que per-dido com a queda da cidade. O prprio lamento, que repete seis dos itens da lista, assinala essa runa de forma a lembr-lo, faz a ligao entre as vestes da prostituta e as vestes idnticas da grande cidade. Apocalipse 18,15 assemelha-se a 18,9 e 18,17b-19 ao descrever o medo dos mercado-res e sua distncia do incndio da cidade. Eles choram e pranteiam, pois no mais se beneficiam do comrcio com a Babilnia. O v.16 retoma 17,4, que descreve a opulncia do aparecimento da prostituta, destruda pelo julgamento divino. Os reis choram por causa da queda da cidade, mas os mercadores lamentam a destruio das suas riquezas, numa descrio que deriva diretamente da apresentao da grande prostituta.

    O lamento dos marinheiros: vv.17b-19

    A identificao daqueles que lamentam como pilotos, os que na-vegam livremente, marinheiros e os que trabalham no mar enfatiza mais o aspecto comercial que o martimo, claro no vv.19b: na qual enri-queceram todos os que tm navios no mar, e evidente na identificao do quarto grupo como os que trabalham (tm negcios) no mar. No come-o de Apocalipse 17, a grande prostituta est associada a muitas guas e com a besta que emerge do mar (13,1; 17,3). Em Apocalipse 12,12, a terra e o mar so designados como a esfera da atividade do diabo, numa clu-sula que comea com ai. A repetio de ai, ai nos vv.10.16.19 refora a

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  • conexo. Os lamentos dos vv.9-19 so atribudos aos reis da terra, aos mercadores da terra e aos que tm negcios no mar, toda a rea de influncia da besta (PRINGENT, 1981, p. 272-273; RUIZ, 1989, p. 438). Os marinheiros completam o retrato da Babilnia e seu lamento, que co-mea com uma expresso geral de tristeza, seguida por uma referncia glria anterior da grande cidade, expressa a tristeza pela runa da riqueza adquirida por meio do comrcio martimo com a Babilnia. Os marinhei-ros lamentam as oportunidades perdidas para adquirir mais riqueza, da mesma forma que os mercadores tambm o fizeram (vv.15-17a).

    A seo finaliza com um imperativo dirigido aos santos, apstolos e profetas para regozijarem-se, pois Deus contra ela julgou a vossa causa (v.20). Ao julgar a Babilnia, Deus vingou os cristos e lhes fez justia. O tema do julgamento perpassa toda a seo. Est presente na exortao inicial para fugir da Babilnia (v.4), nos detalhes do veredicto contra a cida-de (vv.5-8), no lamento dos reis, dos mercadores e dos marinheiros (vv.9-19) e vem tona no refro em nica hora (vv.10.17.19). O que causa de lamento para os clientes e associados da grande cidade proclamado pela voz celestial como causa de celebrao, para os santos, apstolos e profetas, daqueles que so vtimas da injustia da Babilnia (PRINGENT, 1981, p. 273; RUIZ, 1989, p. 463; KLASSEN, 1966, p. 300-311).

    Ao simblica e sua interpretao: vv.21-24

    Apocalipse 18,21-24 contm o ltimo lamento da queda da Babil-nia. Distingue-se dos anteriores porque comea com uma narrativa curta que descreve um ato simblico proftico, a ao do anjo de atirar uma grande pedra, como de moinho, ao mar, sugerida pelo orculo proftico de Jeremias contra Jerusalm e Jud (25,10; 51,63-64), interpretada como uma pr-estreia da queda da Babilnia. Ele contm os elementos de amea a e razo do julgamento, o que nesse caso consiste de uma acusao. Con-tm trs partes: o relato: v.21; a interpretao do gesto simblico do anjo: vv.21b-23b; as razes do julgamento: vv.23c-24.

    Os vv.23b-24 apresentam trs razes para o julgamento da grande cidade:

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  • 1) os seus mercadores foram os grandes da terra (Isaas 23,8);2) na sua feitiaria foram seduzidas todas as naes (Apocalipse 14,

    8; 17,2; 18,3; Naum 3,4; Isaas 47,12);3) nela se encontrou sangue de profetas, santos e de todos os que fo-

    ram mortos sobre a terra (Apocalipse 6,10; 16,6; 17,6; 19,2).

    Em razo de seus crimes, a Babilnia deve receber a pena adequada. Dessa forma, esses versos apresentam o quadro de uma cidade desolada e desprovida dos sons e atividades que caracterizam a vida urbana. Em seu lugar, encontramos o sangue daqueles que a Babilnia silenciou e que consiste na evidncia dos crimes pelos quais ela merece condenao. Os mercadores, mencionados como os que se beneficiaram com a luxria da Babilnia, aparecem pela ltima vez em 18,24. O retrato da desolao da cidade completado pelo silncio dos vv.22-23. A cidade veio abaixo por causa do julgamento divino e sua queda apresentada por meio do contraste entre o antes e o agora, prprio do cntico fnebre (RUIZ, 1989, p. 471-473). Notamos tambm que, se os vv.9-19 falam da runa da Babilnia em sua relao com o mundo tal como representado nos seus aspectos poltico e comercial, os vv.21-24 indicam a destruio repentina da Babilnia numa referncia extino da sua vida interna, representada nos seus prazeres, no trabalho de seus artesos e na sua vida familiar:

    nela no mais se achar ali a voz de harpistas, de msicos, de tocadores de flautas, de clarins; no haver mais artfices, no se ouvir mais a pedra do moinho, luz no mais brilhar, no se ouvir mais a voz do noivo e da noiva (vv.22-23; Jeremias 7,34; 25,10; Ezequiel 26,13).

    Babilnia e Roma no Apocalipse de Joo

    Na histria da tradio bblica, a Babilnia, como entidade sociopo-ltica que destruiu o templo de Jerusalm e conduziu o povo de Deus para o exlio (587 a.C.), ganhou um papel paradigmtico e permanente como o poder mundial hostil a Deus e ao seu povo. Foi isso que permitiu a reapro-priao dos orculos profticos do Antigo Testamento contra a Babilnia e a releitura e reaplicao desse smbolo num novo contexto histrico. Em

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  • Apocalipse 18, a metfora da grande cidade permite uma identificao exclusiva numa identidade histrica (RUIZ, 1989, p. 384-386, 528-529; NOGUEIRA, 1991, p. 148-157) e, mais do que qualquer outro exemplo de polmica antirromana, o uso desse simbolismo, pelo menos em um nvel de significado, uma aluso a Roma. Entre as vrias razes para a esco-lha desse nome, a mais provvel que Roma, como a Babilnia, destruiu o templo e a cidade de Jerusalm em 70 a.C. Nesse sentido, a aplicao dessa imagem a Roma implica, provavelmente, que a sua queda iminente vista pelo autor, pelo menos em parte, como retribuio para a queda de Jerusalm (COLLINS, 1980, p. 200).

    A descrio da cidade como uma prostituta visitada pelos reis da terra importante nessa identificao, pois indica a idolatria, o envolvi-mento com o seu comrcio, alm do destaque dado sua autoglorificao e arrogncia: a propaganda romana atribua eternidade e universalidade sua dominao. Babilnia e a personagem grande meretriz so ima-gens utilizadas que estigmatizam a idolatria do culto e do luxo desse im-prio. Trata-se de um sistema poltico que abrange tudo: h aliados que se beneficiam da sua poltica e esto associados no seu projeto econmico. Assim, essas imagens no s descrevem Roma, mas tambm apresentam as razes para a sua queda. Riqueza, orgulho, blasfmia, atitudes arrogan-tes e obras injustas esto unidas, num mesmo comportamento, em passa-gens que expressam principalmente a certeza de que Deus derruba os so-berbos e os injustos (WENGST, 1991, p. 180-183).

    A denncia que se expressa na forma do lamento dos reis, merca-dores e marinheiros assinala a destruio do poder imperial e de todos os que se beneficiaram com ele. A hbil integrao de Jeremias 50-51 e Ezequiel 26-28 no desenvolvimento do captulo indica como o tema po-der um aspecto da ordem poltica que inseparvel da ordem teolgica. Os lamentos anunciam a destruio da Babilnia, a cidade para onde con-fluam as riquezas do mundo e onde a idolatria do mundo inteiro, dos pe-quenos e dos grandes, dos trabalhadores e dos chefes, se manifesta com a mais insuportvel luxria. A estrutura de poder na qual o imprio se converteu, submetendo muitos povos ao seu poderio econmico, do qual se sustentava, e a expanso desse poder para os estados e reinos que dele participam e a rede de relaes de dependncia que foi criada vm ao fim.

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  • O juzo escatolgico de Deus alcana o poder absoluto, as riquezas acumu-ladas e a cidade. O poder de Deus se manifesta no julgamento por meio do qual a Babilnia perde o seu poder e aqueles que choram a sua runa so todos aqueles que compartilhavam da sua atividade.

    Babilnia, smbolo do inimigo do povo de Deus, identificada presen-temente com o poder vigente, vem ao fim, consumando dessa forma a justia de Deus. A justia se realiza na forma de uma inverso escatol-gica. Nessa inverso de papis est presente o tema da vingana escatolgi-ca, pois o sofrimento da comunidade dos justos ser vingado (Apocalipse 6,9-11; 16,4-7). Em Apocalipse 18, contudo, essa troca ampla, envol-vendo uma potncia poltica, Babilnia/Roma (vv.6-8). O imperativo para executar julgamento sobre a Babilnia est em comunicao com a tradio da Oposio Asitica, que afirma que Roma teria que devol-ver todos os tributos recolhidos dos orientais e o poder poltico passaria do Ocidente (representado por Roma) ao Oriente (representado pela sia Menor) (NOGUEIRA, 1992, p. 102-103; ADRIANO FILHO, 2010, p. 139-146).

    Essa tradio teve recepo na Apocalptica Judaica, principalmente nos livros III-V dos Orculos Sibilinos. Nos orculos contra as naes, contra Babilnia/Roma e o anncio da vinda do Nero redivivus, os orculos sobre a inverso escatolgica entre o Ocidente e o Oriente, a forma mais antiga da tradio contida nos Orculos Sibilinos, afirma-se:

    sia chegar uma grande riqueza que h tempos Roma arrebatou por si mesma, e depositou em sua luxuosa morada; e logo devolver sia o dobro e algo mais (IV, 145-148).

    Novamente a sia haver de receber de Roma o triplo de todas as riquezas que Roma recebeu da sia, sua tributria, e lhe haver de pagar a pernicio-sa soberba que mostrou contra ela. Vinte vezes mais quantos procedentes da sia serviram como criados nas moradas dos talos ser o nmero dos que trabalharo como tais na sia, imersos na pobreza, inumerveis paga-ro a sua dvida (III, 350-355).

    No final dos tempos o mar se tornar seco e jamais se dedicaro os navios a navegar at a Itlia, e a sia, a grande e muito desditada, ser um grande mar (V, 447-450)

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  • No possvel provar uma dependncia literria do Apocalipse de Joo dos Orculos Sibilinos. Contudo, o Apocalipse compartilha a vizi-nhana ideolgica dos Orculos Sibilinos e respira uma ideologia antirro-mana (NOGUEIRA, 1992, p. 103-104). Nesse sentido, Apocalipse 18, ao fazer uma leitura teolgica da poltica econmica de sua poca por meio da mediao dos profetas do Antigo Testamento, denuncia o sistema econmico instaurado por aquele poder poltico. O Apocalipse exorta tambm os cristos a se afastar de toda ligao poltica e econmica com o poder injusto, idlatra e avarento, ao denunciar o orgulho e a soberba da cidade.

    O convite para se afastar de toda ligao poltica e econmica no significa apenas tomar distncia geogrfica, mas separar-se e no se mis-turar na poltica econmica sustentada pela ordem poltica vigente. Envol-ver-se nesse projeto, apesar dos lucros que se pode obter, ou por causa deles, cair em pecado e tornar-se participante do juzo de Deus, juzo que deve cair somente contra o poder imperial (v.20). Apocalipse 18 faz uma leitura teolgica do fator econmico ao catalog-lo como pecado e sujeito ao juzo de Deus. Essa economia pecaminosa na medida em que acarreta misria para muitos e, alm disso, significa perseguio e morte para a comunidade dos fiis. O pecado, assim caracterizado, chega ao cu, constitui a medula de uma situao pecaminosa. Deus no passa por alto nem esquece isso, pois expresso de injustia entre os homens que deve ser remediada (RAMIREZ FERNANDEZ, 1990, p. 59).

    No mundo atual, a globalizao do mercado acontece de forma rpi-da e radical e a expectativa que a economia e o comrcio mundial cres-am, produzindo maior benefcio para todos. Mas, ironicamente, enquan-to o mercado global triunfa integrando a todos os povos e sociedades, o que visto a promoo da injustia econmica entre as naes pobres e ricas e entre os economicamente fortes e fracos. A ilimitada competio das foras econmicas torna a situao social voltil, provocando confli-tos violentos, criando a excluso de milhes de pessoas: os grupos fragili-zados (cada vez mais fragilizados) e a maior parte da populao so exclu-dos dos benefcios do mercado globalizado pelos poderes constitudos e autoridades econmicas. As suas vtimas j no mais se restringem a uma parte do mundo e so hoje visveis em toda parte. O sacrifcio dos mais

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  • fracos justificado em nome do progresso. Trata-se de um novo Moloch, que devora vidas humanas.

    Torna-se, portanto, apropriado retornar Bblia, no s porque muitos dos seus escritos falam nossa situao, mas tambm porque na comunidade de f o povo a busca, convictos de que ela uma fonte para o entendimento teolgico do momento atual. A degradao da vida huma-na no mundo atual torna-se um ponto a partir do qual podemos entender os efeitos que as formas do poder econmico assumem. Estamos tambm diante de uma situao pecaminosa, injusta, que no passa despercebida aos olhos de Deus, nem algo pelo qual Ele possa ficar desinteressado. O sistema econmico-poltico atual tambm constitui o cerne de uma si-tuao pecaminosa que est sujeita ao juzo de Deus.

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    Recebido: 23/04/2010Received: 04/23/2010

    Aprovado: 17/06/2010Approved: 06/17/2010

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