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* Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), bacharelando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: O CASO DA IMPORTAÇÃO DE PNEUMÁTICOS USADOS Ênio Saraiva Leão* Introdução A elaboração e execução da política externa, segundo os acadêmicos mais clássicos da ciência política e das relações internacionais, compete ao chefe Poder Executivo, auxiliado pelo Ministro das Relações Exteriores e por todos os órgãos burocráticos vinculados a este Poder. Ao Poder Legislativo é atribuída uma participação secundária, quase abstencionista no caso brasileiro, restringindo-se basicamente a autorização do chefe do Executivo declarar a paz ou a guerra, bem como a permissão para a assinatura de tratados internacionais (FARIA, 2008; LINDSAY, 1994; HILL, 2003). Santos (apud FARIA, 2008), demonstra que a política externa, e muito particularmente o comércio exterior, “são objeto natural de delegação de poder decisório do Legislativo para o Executivo”, em razão da sensibilidade às pressões distributivas do tema, requerer elevada expertise e o comércio exterior demandar estabilidade das decisões. As mudanças ocorridas no último século, conseqüência do fortalecimento do comércio internacional, do desenvolvimento de novas tecnologias, com forte efeito na redução das distâncias, resultou numa crescente vinculação entre questões domésticas e internacionais, surgindo durante todo este período novos atores internos e externos, tais como: organizações civis, grupos empresariais, organismos supranacionais, dentre outros, demandando a satisfação de interesses e uma maior participação na vida política do país, inclusive em relação à política externa. Alguns pesquisadores apontam ainda a crescente importância da opinião pública como ator no processo da tomada de decisão de política externa no país, outros apontam uma tentativa do Legislativo em se inteirar de tais questões e recuperar o espaço perdido, porém são raras as pesquisas que tratam do Judiciário como um ator capaz de exercer forte influência de controle da agenda política do Executivo (TAYLOR, 2006; KING e MEERNIK, 1999). Partindo da análise da proibição brasileira da importação de pneumáticos usados, este trabalho busca apontar a crescente importância do Poder Judiciário na fase de execução da política externa brasileira, haja vista a possibilidade do mesmo através do exercício da revisão judicial alterar o rumo da política pública nacional, podendo ser um elemento de democratização da política externa ou um ator de desestabilização da política nacional. Com este objetivo, foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a questão, com a leitura de artigos acadêmicos, documentos oficiais e reportagens relacionadas à importação de pneumáticos, bem como a análise das normas pertinentes ao caso. Foi efetuado ainda um levantamento das ações judiciais atinentes ao caso, que possibilitou o acompanhamento processual das mesmas e a leitura de petições e decisões, quando disponíveis no sítio do Tribunal de origem.

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* Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), bacharelando em Relações

Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: O CASO

DA IMPORTAÇÃO DE PNEUMÁTICOS USADOS

Ênio Saraiva Leão*

Introdução

A elaboração e execução da política externa, segundo os acadêmicos mais clássicos

da ciência política e das relações internacionais, compete ao chefe Poder Executivo, auxiliado

pelo Ministro das Relações Exteriores e por todos os órgãos burocráticos vinculados a este

Poder. Ao Poder Legislativo é atribuída uma participação secundária, quase abstencionista no

caso brasileiro, restringindo-se basicamente a autorização do chefe do Executivo declarar a

paz ou a guerra, bem como a permissão para a assinatura de tratados internacionais (FARIA,

2008; LINDSAY, 1994; HILL, 2003).

Santos (apud FARIA, 2008), demonstra que a política externa, e muito

particularmente o comércio exterior, “são objeto natural de delegação de poder decisório do

Legislativo para o Executivo”, em razão da sensibilidade às pressões distributivas do tema,

requerer elevada expertise e o comércio exterior demandar estabilidade das decisões.

As mudanças ocorridas no último século, conseqüência do fortalecimento do

comércio internacional, do desenvolvimento de novas tecnologias, com forte efeito na

redução das distâncias, resultou numa crescente vinculação entre questões domésticas e

internacionais, surgindo durante todo este período novos atores internos e externos, tais como:

organizações civis, grupos empresariais, organismos supranacionais, dentre outros,

demandando a satisfação de interesses e uma maior participação na vida política do país,

inclusive em relação à política externa. Alguns pesquisadores apontam ainda a crescente

importância da opinião pública como ator no processo da tomada de decisão de política

externa no país, outros apontam uma tentativa do Legislativo em se inteirar de tais questões e

recuperar o espaço perdido, porém são raras as pesquisas que tratam do Judiciário como um

ator capaz de exercer forte influência de controle da agenda política do Executivo (TAYLOR,

2006; KING e MEERNIK, 1999).

Partindo da análise da proibição brasileira da importação de pneumáticos usados,

este trabalho busca apontar a crescente importância do Poder Judiciário na fase de execução

da política externa brasileira, haja vista a possibilidade do mesmo através do exercício da

revisão judicial alterar o rumo da política pública nacional, podendo ser um elemento de

democratização da política externa ou um ator de desestabilização da política nacional.

Com este objetivo, foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a questão, com

a leitura de artigos acadêmicos, documentos oficiais e reportagens relacionadas à importação

de pneumáticos, bem como a análise das normas pertinentes ao caso. Foi efetuado ainda um

levantamento das ações judiciais atinentes ao caso, que possibilitou o acompanhamento

processual das mesmas e a leitura de petições e decisões, quando disponíveis no sítio do

Tribunal de origem.

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Controle de constitucionalidade

O Estado moderno fundamenta suas bases em um sistema normativo, voltado para

regular as relações sociais, as questões políticas e todas as questões atinentes a vida humana.

É pressuposto deste sistema a unidade e coerência entre os elementos que o compõe, da

supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Quando uma

norma integrante desse sistema entra em desarmonia com o mesmo, logo, a mesma deverá ser

extirpada do mundo jurídico. Um dos mecanismos que serão deflagrados, quando configurado

o elemento desintegrante é o controle de constitucionalidade.

O controle de constitucionalidade é, portanto, um processo, por meio da qual o

detentor da atividade jurisdicional verifica se existe ou não compatibilidade formal e material

entre o ato normativo e o objeto paradigma, a Constituição (MONTEIRO, 2007). Este

mecanismo tem como objetivo a uniformização do ordenamento jurídico, como forma de

pacificação social, a partir da segurança jurídica.

Assim sendo, a inobservância das normas constitucionais durante o processo

legislativo há como conseqüência a possível declaração da inconstitucionalidade formal da lei

ou ato normativo produzido. O exercício deste controle de constitucionalidade pelo Judiciário

brasileiro pode ocorrer de forma concentrada ou difusa.

Controle concentrado de constitucionalidade

O controle concentrado de constitucionalidade é de competência do Supremo

Tribunal Federal – STF e sua finalidade primordial, no entender de Moraes (2000) é a guarda

da Constituição. Silva (2005) destaca que o exercício do controle concentrado pode ocorrer de

duas formas: originária, quando do ajuizamento de ações cuja apreciação é de sua

competência, ou recursal, quando o Supremo exerce o duplo grau de jurisdição, apreciando

questões julgadas por Tribunais de instâncias inferiores.

Uma característica do julgamento das ações pelo STF é de que as mesmas não são

voltadas a análise de questões fáticas ou de direito do caso concreto, mas tão somente acerca

da (in)constitucionalidade da norma questionada. Este exercício in abstrato do controle de

constitucionalidade, concebido pelo jurista austríaco Hans Kelsen, foi introduzido no direito

pátrio com o intuito formar, desde logo, precedentes que orientassem o julgamento dos

processos congêneres nas instâncias a quo.

O controle concentrado de constitucionalidade apresenta como vantagem o fato da

matéria decidida ter eficácia erga omnes e efeitos ex tunc, assegurando economia para as

partes, segurança e estabilidade jurídica, além da correção de possíveis injustiças surgidas

pela multiplicidade e contradição dos julgados proferidos pelos juízes ou tribunais sobre

matéria idêntica.

Dentre as ações de controle concentrado de constitucionalidade existentes, destacam-

se apenas as necessárias para a compreensão do presente trabalho, são elas: Ação Direta e

Inconstitucionalidade – ADI (utilizada para se obter a declaração de inconstitucionalidade de

lei conflitante com o ordenamento jurídico, cujos efeitos serão vinculantes aos demais órgãos

do Judiciário e à administração pública, bem como retroativo e para todos, desfazendo, desde

sua origem, o ato declarado inconstitucional) e Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental – ADPF (tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental

resultante de ato do poder público, de eficácia erga omnes e vinculante aos órgãos públicos,

além de possuir efeito repristinatório, podendo sua eficácia ser declarada ex tunc ou ex nunc,

conforme a decisão da Corte), haja vista a existência de cinco ADI e uma ADPF, aguardando

julgamento e diretamente relacionada com a importação de pneumáticos usados. Após a

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apresentação do controle concentrado, passemos ao controle difuso, também de fundamental

importância para a compreensão do caso concreto.

Controle difuso de constitucionalidade

A idéia de controle de constitucionalidade realizado por todos os órgãos do Poder

Judiciário nasceu do caso norte-americano Madison versus Marbury (1803), em que o juiz

Marshall da Suprema Corte Americana afirmou que é próprio da atividade jurisdicional

interpretar e aplicar a lei. Ao fazê-lo, em caso de contradição entre a legislação e a

Constituição, o Tribunal deve aplicar esta última, haja vista sua superioridade a qualquer outra

espécie de lei.

O controle difuso caracteriza-se, principalmente, pelo fato de ser exercitável somente

perante um caso concreto a ser decidido pelo Poder Judiciário. Assim, posto um litígio em

juízo, o Judiciário deverá solucioná-lo e para tanto, incidentalmente, deverá analisar a

constitucionalidade ou não da lei ou do ato normativo. A declaração de inconstitucionalidade

é necessária para o deslinde do caso concreto, não sendo, no entanto, o objeto principal da

ação, como no controle concentrado.

A declaração de inconstitucionalidade será analisada como um quesito anterior a

apreciação do mérito da demanda, com o objetivo de obrigar ou isentar o interessado do

cumprimento da lei questionada. Entretanto, a lei ou ato permanecerão válidos no que se

refere à sua força obrigatória com relação a terceiros não vinculados ao processo.

Mauro Cappelletti (1992) aborda com muita propriedade o problema do sistema

difuso nos países de base romanística, que por não possuírem um sistema de harmonização

das decisões, o stare decisis existente nos países seguidores da common law, resulta em

pensamentos contrastantes sobre a (in)constitucionalidade de uma norma, entre órgãos

jurisdicionais de mesmo grau ou de graus distintos, sendo um forte elemento de instabilidade.

Judicialização da Política

Desde os pensadores clássicos, como Locke e Montesquieu, responsáveis pela

elaboração e desenvolvimento da teoria tripartite de separação de poderes, coube ao Poder

Executivo a consecução das políticas, com ampla margem de discricionariedade; ao

Legislativo o dever de elaboração das normas; e ao Judiciário o de decidir sobre questões de

ordem criminal e civil (FREIRE JUNIOR, 2005).

O ideal democrático, segundo Couto (2004), vem reforçar no Poder Legislativo, o

papel de controle do Poder Executivo, principalmente em questões cujos efeitos repercutam

na ordem externa, porém, a história política brasileira nos demonstra certa inércia daquele no

controle deste. Para o autor, os prováveis motivos para essa falta de atuação do Legislativo

são: a dificuldade em processar questões técnicas distantes da realidade dos parlamentares e

também a sobrecarga da agenda política interna, que elimina o espaço para questões externas

sem efeitos perceptíveis no curto prazo.

Em conformidade com este ideal, Couto (2004) e Freire Junior (2005) destacam que

o Judiciário, detentor do monopólio jurisdicional, pode desempenhar um papel importante,

principalmente considerando as atribuições constitucionais que lhe foram conferidas pela

Carta de 1988, que ampliou sua capacidade de atuação, e desde então, vem suprindo lacunas

não preenchidas pelo Poder Legislativo e aferindo o grau de vinculação dos atos dos demais

Poderes às normas constitucionais e infraconstitucionais, ocorrendo o fenômeno da

judicialização da política.

4

Ressalta Appio (2004) que inúmeras questões de índole estritamente política, as

quais até recentemente eram discutidas e resolvidas dentro da esfera política, agora são

trazidas ao exame do Poder Judiciário, dada a complexidade das atividades desempenhadas

pelo Estado e as colisões de tais atividades com os interesses de muitos grupos de interesses,

ocorrendo o fenômeno denominado Judicialização da Política.

Judicialização da política pode ser definido como a intervenção decisória do Poder

Judiciário em matérias de ordem públicas, provocado por grupos de interesses opositores a

política pública implementada pelo Executivo ou Legislativo, que se utilizam do Judiciário

para a satisfação de seus interesses, no sentido de conseguir bloquear ou reverter ao menos

temporariamente a política executada (PEIXINHO, 2008; OLIVEIRA, 2005; GOLDSTEIN et

alli., 2000).

Este fenômeno decorre em razão das políticas públicas serem resultado de um

alinhamento das preferências de agentes políticos com os interesses de organizações ou

instituições, não representando, necessariamente, a vontade pública de toda a sociedade, que

não participam da discussão política junto ao Executivo e Legislativo e se socorrem ao

Judiciário (GOLDSTEIN e MARTIN, 2000; DOMINGO, 2004). Flexor e Leite (2007)

aduzem que o Executivo e o Legislativo, por serem suscetíveis ao voto, procuram estabelecer

relações que sejam benéficas para ambos, de forma a evitar desgastes junto ao eleitorado,

tendendo a ser influenciado por grupos organizados quando da elaboração das políticas

públicas.

O Judiciário tem aumentado sua força na tomada de decisões (positivas ou negativas)

das políticas públicas do país, através da revisão judicial, atuando como pontos de vetos, vez

que grupos perdedores se aproveitam dos diversos mecanismos recursais resultantes de um

sistema judicial descentralizado, para rediscutir as ações governamentais, não alcançados na

arena política (COSTA JÚNIOR, 2006; FERREIRA et alli, 2004; TAYLOR, 2006). Já

Ferreira et alli (2004) afirmam que a interferência do Judiciário no processo político dificulta

a governabilidade, pois o Executivo passa a depender da concordância do Judiciário para a

implementação das políticas públicas, implicando numa maior dispersão de poder no contexto

decisório, com o aumento de custos e de novas possibilidades institucionais de veto.

Uma série de fatores são apontados como determinantes para a ocorrência da

judicialização da política, dentre eles: a ampliação da legitimação para propositura da ADI, a

hipertrofia do sistema legislativo, a excessiva constitucionalização de temas e a

incompetência do Executivo e do próprio Legislativo em sanar suas falhas burocráticas

(CARVALHO NETO, 2000; ARANTES, 2004).

A jurisdição constitucional não pode ser um instrumento de execução dos projetos

políticos das minorias políticas, na medida em que, apesar do déficit democrático, o Poder

Judiciário deve zelar pela manutenção do confronto político em seu campo próprio, bem

como o operador do Direito deve ter consciência de que um órgão técnico não pode julgar as

causas políticas apenas sob um ponto de vista meramente técnico. A observância destas

questões é de fundamental importância para a democracia e o respeito à repartição de poderes,

evitando principalmente a invasão do Judiciário em matéria diversa de sua competência.

A importação de pneus no Brasil

Ao final da década de 1980, a expansão do comércio de pneumáticos no Brasil

implicou no início da importação de três itens: pneus reformados, pneus usados e carcaças de

pneus usados. Os pneus reformados são os que já foram utilizados uma vez e sofrem um

processo que possibilita o seu reaproveitamento por mais um ciclo de vida. Após esse último

ciclo, o pneu reformado torna-se passivo ambiental para o país que o recebeu de difícil e

5

onerosa destinação. Os pneus usados, não passam por processo industrial, chegando ao país

somente para encerrar o curto período de vida útil que lhes resta, tornando-se, igualmente,

lixo não degradável. Já as carcaças de pneus, são utilizadas como matérias-primas para a

indústria nacional de reforma de pneus (MOROSINI, 2008). Hoje, proíbe-se, expressamente,

a importação dos pneus usados, porém seguem as importações de carcaças de pneus e de

pneus reformados, estes resultantes de uma decisão do Tribunal arbitral ad hoc do Mercado

Comum do Sul - MERCOSUL, aqueles por liminares concedidas pelo Judiciário brasileiro.

Afirmam Deitos (2007) e Morosini (2008) que as indústrias fabricantes de pneus no

Brasil, até o início da indústria de remoldagem, compunham-se, exclusivamente, de empresas

transnacionais (Goodyear, Michelin, Pirelli e Firestone), que dominavam o mercado e

estabeleciam um visível oligopólio. Os pneus reformados e os pneus usados com preços

inferiores aos novos agradaram o mercado consumidor, gerando concorrência entre os pneus

novos e reformados, acarretando além do barateamento e melhoria da qualidade dos

primeiros, a instalação da “Guerra dos Pneus”.

O embate existente resultou na organização do empresariado em associações

representativas das respectivas classes: a Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos -

ANIP reunindo as empresas estrangeiras instaladas no país; Associação Brasileira do

Segmento de Reforma de Pneus - ABR e a Associação Brasileira da Indústria de Pneus

Remoldados - ABIP agregando os importadores de pneus reformados e de carcaças usadas,

todas com grande poder de lobby, exigindo incentivos econômicos ao governo,

regulamentação do setor pelo Poder Legislativo e retaliações para o segmento oposto

(GOLDSTEIN e MARTIN, 2000).

A ABIP afirma que o paradigma sobre os pneus usados foi erigido a partir do ano de

1991, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis -

IBAMA, o Ministério do Meio Ambiente - MMA e o Ministério do Desenvolvimento,

Indústria e Comércio - MDIC lutavam contra as importações dos pneus “meia-vida” ou “semi-

novos, para “proteger a indústria nacional” (Goodyear, Michelin, Firestone e Pirelli), pois na

época, apenas se fabricavam no Brasil pneus novos, já que os remoldados nacionais só

começariam a ser importados ou produzidos no Brasil a partir de 1995.

Das normas proibitivas

Em virtude das pressões exercidas pelos fabricantes de pneus, o governo,

representado por suas autarquias executivas de Comércio Exterior e de Meio Ambiente,

proibiu através de resoluções, decretos e portarias a importação de pneus usados e

reformados, mesmo aqueles importados como bem de produção1, inicialmente em defesa a

indústria nacional e posteriormente em defesa do meio ambiente2.

Logo após a edição das referidas normas, os importadores de pneus usados

questionaram judicialmente a proibição da importação, obtendo, junto a Tribunais brasileiros,

o direito de continuar com as importações, sob o argumento jurídico de que apenas a lei em

sentido formal – e não uma portaria, resolução ou decreto – seria o instrumento adequado para

a edição da norma em questão. Outros argumentos levantados foram: a incompetência de

algumas autarquias para a intervenção em matéria de Comércio Exterior, com a imposição de

1 Foram editados cronologicamente as seguintes normas proibitivas: portaria DECEX n.º 08/91; portaria

IBAMA n.º 138-N/92; resolução CONAMA n.º 23/96; resolução CONAMA n.º 235/98; resolução CONAMA

n.º 258/99; portaria SECEX n.º 08/00; decreto n.º 3.919/01; portaria SECEX n.º 02/02; portaria SECEX 17/03; e portaria SECEX n.º 14/04. 2 Contraditoriamente, o DECEX publicou o Comunicado n.º 02/97 e o CONAMA as resoluções n.º 08/96 e

228/97, que permitiam a importação de materiais usados, de maneira geral, para fins de reciclagem.

6

penalidades, ou ainda a “demonstração” do cumprimento das obrigações ambientais

devidamente cumpridas.

O Executivo então tentou consumar a proibição através de projeto de lei

encaminhado ao Legislativo (4.109/93 e 6.136/05), no entanto, em face do forte lobby dos

importadores no Legislativo, o Executivo acabou por retirar de votação os referidos projetos,

ante a iminência de ao invés de proibir a importação, regulamentar o setor de remoldados.

O governo brasileiro defende que o processo de reforma só faz sentido do ponto de

vista ambiental se as carcaças a serem reformadas forem aquelas que já se encontram no

território nacional, pois importar carcaças de pneus usados para reformar no país somente

atenderia aos interesses do país exportador.

Dando cumprimento ao laudo arbitral proferido em favor do Uruguai, pelo Tribunal

ad hoc do MERCOSUL, que será comentado posteriormente, o Brasil editou a portaria

SECEX n.º 02, de 08 de março de 2002, que reconheceu o direito dos países do MERCOSUL

de exportarem para o Brasil pneus remoldados.

O Estado do Rio Grande do Sul baniu através das leis n.º 12.114/2004 e 12.182/2004,

a comercialização de pneus usados, incluindo os remoldados que foram remanufaturados fora

do Brasil. Esta lei foi emendada em 2005 pela lei n.º 12.381/2005, quando a importação e

comercialização foram permitidas, desde que importador comprovasse a destruição de dez

pneus usados brasileiros para cada pneu importado.

Hoje, através da portaria SECEX n.º 14/2004, a importação de pneus usados segue

proibida, porém, com forte discussão acerca da proibição no âmbito judicial.

Questão ambiental e de saúde pública

Para Motta (2008), o acúmulo dos resíduos dispostos inadequadamente resultante do

consumo da sociedade é um problema ambiental que, embora haja diversos encaminhamentos

na tentativa de minimizar o impacto gerado, não foi ainda resolvido. Ela afirma que tal

acúmulo ocorreu porque esta questão foi tratada por vários anos como uma conseqüência

indesejada, mas inevitável, do desenvolvimento econômico, e sempre foi carente de regulação

e fiscalização ambientais intensivas.

Os associados da ABIP afirmam que a remoldagem se trata de um processo de

reciclagem, pois compreende um importante método para a economia de recursos naturais

não-renováveis, haja vista a considerável economia no uso de petróleo que cada pneu

remoldado, além de custar 40% menos que um pneu novo.

No entanto, a gestão do pneu é extremamente complexa e onerosa, em virtude da

diversidade de materiais e produtos químicos envolvidos em sua fabricação, o que dificulta a

destinação adequada dos mesmos, ante a inexistência de métodos eficazes ou a

disponibilidade apenas em países desenvolvidos.

A questão da proibição ganha importância, quando se verifica que a gestão de pneus

é um problema global. A União Européia – UE e os Estados Unidos não sabem o que fazer

com esses resíduos, cuja destinação adequada custa em torno de € 1.2 por pneu de automóvel

(MRE, 2006). A solução encontrada, tanto por um quanto por outro, principalmente com o

endurecimento das legislações ambientais internas, é exportação destes produtos para os

países em desenvolvimento (CASOTECA). Dessa forma, livram-se de um resíduo

extremamente danoso ao meio ambiente e à saúde pública, além de reduzir o passivo

ambiental interno, já que esse é transferido aos países importadores dos pneus usados. No

Brasil, o método mais utilizado de destinação dos resíduos inservíveis dos pneus é a

laminação (uso do pneu pela indústria calçadista, moveleira e de construção civil, porém, há

apenas o retardamento do dano, vez que ao final da vida destes produtos, torna-se da mesma

7

forma, passivo ambiental de difícil destinação), seguido pela incineração em fornos de

cimenteiras3 (resultante na emissão de compostos químicos altamente tóxicos e cancerígenos:

furanos, dioxinas4, cujo índice tolerado de emissão desses compostos na Europa é de

0,1ng/Nm3 e no Brasil, 0,5ng/Nm3, além de monóxido de carbono, gás carbônico, óxido de

enxofre e nitrogênio). Em seguida, é utilizado o co-processamento de pneus em usinas de

xisto-betuminoso, para a produção de gás natural e óleo combustível, mas que produz como

rejeito uma “borra oleosa” que contém metais pesados de elevado nível de toxidade e que

representa 40% do produto da incineração. Outro método adotado é a produção do asfalto de

borracha, de maior durabilidade, mas de custo mais elevado (DEITOS, 2007). Todos os

métodos são questionáveis do ponto de vista ambiental e da saúde pública, visto que só dão

destinação “adequada” a apenas 1/3 dos pneus inservíveis em território nacional.

Aos pneus é atribuída ainda à responsabilidade pelo aumento de casos de dengue,

malária, febre amarela e leptospirose, pois quando abandonados em aterros se transformam no

criadouro ideal para seus respectivos transmissores. A acumulação de pneus em pilhas cria o

risco de incêndios de difícil controle e a lixiviação tóxica de chumbo, níquel, cromo e cádmio.

Este método é condenado, inclusive, pela Convenção de Basiléia, que entende que “o aterro e

o armazenamento em pilhas são as opções menos desejáveis.”

Dossiê elaborado pela FGV (2007) destaca que dentre os países em desenvolvimento

que proíbem a importação de pneus usados e reformados, o Brasil é o de maior população e

frota de veículos, sendo o seu mercado o maior objetivo de toda indústria de pneus

reformados, ao ponto de ter sido o único país em que a União Européia efetuou estudo acerca

de sua legislação e a requer a instauração de painel junto a OMC. Este mesmo estudo cita

ainda dado da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento -

UNCTAD que adverte que entre 1990 a 1994 o comércio de pneus usados em geral dobrou,

sendo que as exportações desses produtos de países da Organização para a Cooperação e

Desenvolvimento Econômico - OCDE para países que não integram a organização – ou seja,

de países desenvolvidos para países em desenvolvimento – cresceu cerca de 700%.

O Brasil alega que a proibição de importações é a única opção conhecida de

gerenciamento de resíduos de pneus capaz de reduzir os efeitos danosos de maneira que não

ponha em risco a saúde humana e o meio ambiente, vez que a medida evita a criação de

resíduos adicionais de pneus que precisarão ser coletados, reduzindo os perigos causados pela

acumulação e destinação de resíduos de pneu.

A Convenção da Basiléia - CB constitui um documento contrário a exportação, na

direção desenvolvidos/subdesenvolvidos, de resíduos perigosos. A CB tem origem em uma

reação internacional liderada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente -

PNUMA, em razão da descoberta de inúmeros casos de transporte de resíduos tóxicos para a

deposição em países pobres5.

No mínimo curioso é o fato da proibição de pneus, caso exemplar da defesa

ambiental contra a destinação inadequada e desnecessária de resíduos nacionais e

estrangeiros, existir há cerca de dezenove anos, mas inexistir, até hoje, um plano de gestão de

resíduos sólidos, que regulamente e oriente a coleta e destinação dos mesmos, possibilitando,

3 De acordo com a Agência Européia de Meio Ambiente, a incineração é apropriada apenas “se nenhuma outra

saída for possível.” (MRE, 2006a). 4 Pertence ao rol dos 12 contaminantes a serem retirados pela Convenção de Estolcomo. 5 Em 1988, o custo da disposição final de uma tonelada de resíduos industriais, conforme o rigor ambiental

aplicado, variava entre US$100 e US$2000 dólares nos países desenvolvidos. Essa mesma tonelada, depositada

na África, com os custos de transporte, se estabelecia entre US$2,50 e US$50. Durante esse período cinco milhões de toneladas de resíduos tóxicos foram exportados para os países em desenvolvimento, conforme o

PNUMA. Atualmente, cálculos do mesmo órgão das Nações Unidas estimam que cerca de 40 milhões de

toneladas de resíduos tóxicos continuam cruzando as fronteiras dos países (DEITOS, 2007).

8

inclusive, a permanente e intensa fiscalização dos órgãos ambientais. Isto leva a crer que

mesmo que a proibição ganhe a plenitude desejada pelo governo, ou seja, proíba a importação

de pneus usados e reformados, milhões de pneus produzidos no território nacional ou

importados continuarão a ser destinados de forma inadequada, degradando o meio ambiente e

ferindo as normas ambientais, limitando apenas um dos segmentos poluidores.

Das pressões e justificativas dos setores empresariais

Os associados da ANIP defendem a proibição da importação em defesa da saúde

pública e do meio ambiente, porém suas associadas são autoras de Ação Judicial6, cujo

objetivo é extirpar do mundo jurídico a resolução CONAMA n.º 258/99, que obriga

igualmente fabricantes e importadores de pneus a destruir, de forma ambientalmente

adequada, pneus inservíveis a serem coletados em território nacional, na proporção dos pneus

colocados no mercado brasileiro. Em 08/09/05 os associados, apesar de responsáveis por 73%

do “lixo-pneu” existente no Brasil (ABIP, [s.d.]) e cumpridores de apenas 35% de sua

obrigação ambiental, obtiveram a suspensão da exigibilidade das multas lavradas pelo

IBAMA. As empresas associadas, defensoras da proibição em prol do meio ambiente, não

cumpriram a legislação e deixaram de recolher, apenas em 2004, 70 milhões de pneus

inservíveis, tendo recebido, de acordo com os cálculos do IBAMA, multa de R$ 0,30 por pneu

não recolhido, valor muito inferior ao que seria gasto na operação de destinação final (R$

1,80).

A ABIP ressalta ainda que em 2006 as importações de pneus usados representaram

9,63% do total de quilos de pneus colocados no mercado brasileiro. Os pneus novos

importados somaram 17,41%, 81% a mais que os usados importados, devendo-se considerar

que aqueles também ficarão velhos e serão problemas para o meio ambiente e saúde pública.

Já os pneus novos fabricados no Brasil representaram 72,75% e estes fabricantes cumprem

apenas 1/3 de suas obrigações ambientais.

A ABIP “buscando” garantir a eficácia da resolução CONAMA n.º 258/99, ajuizou

em 2002, Ação Civil Pública7 com o objetivo de impedir qualquer mudança no texto da

mesma e, garantir o cumprimento imediato da obrigação nela estabelecida, por parte de todas

as empresas fabricantes e importadoras, indistintamente. Todavia, a própria ABIP, através da

Associação Brasileira dos Importadores de Pneus Chineses – ABIPEC8, também ingressou

com ação judicial9 na busca de suspender os efeitos da citada Resolução (VÉGAS, 2008).

A ABIP argumenta ainda que a proibição ocorre por estar desestabilizando o

oligopólio dominante no mercado de reposição, vez que no mercado de trocas de pneus de

automóvel e de caminhonete a BS Colway, a maior indústria de remoldagem do país, já teria

ocupado uma grande fatia do mercado (ABIP, [s.d.]).

Essa evidência também foi expressa em audiência pública na Câmara Federal, em

abril de 2002, quando Henrique Augusto Gabriel, representando o ministro Alcides Tápias,

declarou: "Ao editar a portaria DECEX 08/91 e SECEX 08/2000, proibindo as importações de

pneus usados, a intenção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio foi

defender a indústria nacional contra a concorrência predatória de produtos sem valor nos

países de origem" (ABIP, [s.d.]).

6 Processo n.° 2005.34.00.022604-1, que tramita na 9ª Vara Federal do Distrito Federal. 7 Processo n.º 2002.34.00.002356-8, que tramita na 14ª Vara Federal do Distrito Federal. 8 As indústrias de remoldagem, temendo pela consumação da proibição de pneus usados como matéria-prima para a indústria de reforma nacional, começaram a importar pneus novos, permitidos por lei, originados da

China, já tendo se organizado na referida Associação. 9 Processo n.º 2008.34.00.019883-1, que tramitou na 9ª Vara Federal do Distrito Federal.

9

Verifica-se, portanto, uma constante e incansável disputa entre as associações

empresarias, na busca por resguardar seus interesses. Os grupos se utilizam do Poder

Judiciário para bloquear a implementação da política pública do governo federal. Apesar da

forte questão ambiental e de saúde pública envolvida, há em segundo plano, uma grande

questão comercial e concorrencial envolvida. Disputa-se o mercado de reposição de pneus,

pendendo o governo em favor do oligopólio dos fabricantes de pneus.

Das conseqüências externas e internas da proibição

A proibição brasileira à importação de pneumáticos importados usados e remoldados

é alvo de uma série de questionamentos tanto interna quanto externamente, resultado da

ausência de coordenação política entre os três poderes brasileiros e a ausência de uma

uniformização da questão nos Tribunais Federais brasileiros. No plano doméstico, as

contestações são originadas pelas empresas importadoras e de remoldagem, já

internacionalmente, os protestos ocorrem tanto no âmbito regional, através do Tribunal ad hoc

do MERCOSUL, promovido pelo Uruguai, quanto pelo painel da OMC, originado de uma

reclamação da Comunidade Européia. Como resultado destas contestações, a proibição

brasileira se encontra fragilizada e o Brasil passível de uma série de penalidades.

Internamente a questão ainda se encontra longe de estar pacificada, com ações de

grande importância tramitando vagarosamente em todas as instâncias do Judiciário, tornando-

se este ao invés de um solucionador de conflitos, um elemento de desestabilização da política

comercial brasileira.

O tribunal ad hoc do MERCOSUL

O MERCOSUL é uma União Aduaneira criada pelo Tratado de Assunção em 1991,

com objetivos, sobretudo, de ordem econômica, buscando o desenvolvimento comercial dos

países membros, através da criação e eliminação de barreiras não-tarifárias nas importações

de outros membros, além do estabelecimento de uma tarifa externa comum e a harmonização

das leis domésticas e regulamentos.

Em 2002, o Uruguai, país membro do bloco, requereu a instauração de um

procedimento arbitral contra o Brasil em razão da proibição brasileira a importação de

pneumáticos recauchutados, por meio da portaria SECEX n.º 08/00, afirmando que a citada

portaria violou a decisão do Conselho do Mercado Comum - CMC n.º 22/2000, que

determinou que, a partir de 29 de junho de 2000, “os Estados Partes não adotarão nenhuma

medida restritiva ao comércio recíproco, qualquer que seja sua natureza”.

Já vigorava no país, desde 14 de maio 1991, a portaria DECEX n.º 08/91, que proibia

todo o comércio de bens usados, inclusive de pneus. No entanto, não especificava que os

pneus reformados também estavam proibidos, tendo o Brasil alegado que a edição da portaria

combatida se deu para sanar um problema de interpretação da norma anterior, afirmando o

governo, que o comércio nesse período ocorreu somente devido a falhas no sistema de

comércio exterior e que o silêncio da portaria n.º 08/91, sobre bens recondicionados, não

implicaria numa permissão, visto que todas as suas exceções eram expressamente definidas.

Como conseqüência, o Tribunal arbitral ad hoc ao dirimir a controvérsia estabelecida

entre o Uruguai e o Brasil, entendeu no ano de 2002, que a portaria DECEX n.º 08/91 refere-

se, exclusivamente, à proibição de importação de pneus usados e que, portanto, a portaria

SECEX n.º 08/00 estaria ampliando as restrições, com a inclusão dos pneumáticos

recauchutados, após quase uma década de permanente e intensa comercialização desta espécie

10

de pneus, ferindo princípios, como: o da livre circulação e o da previsibilidade comercial. Foi

imposto ao Brasil o dever de alterar as legislações conflitantes, ante a irrecorribilidade da

decisão, vez que a criação da Corte de Apelação se deu apenas no ano de 2004, tendo o Brasil

revisto suas normas e editado a portaria SECEX nº 02/2002 e o decreto nº 4.592/2003

anteriormente comentados, que mantiveram a proibição, mas autorizando a importação de

pneumáticos remoldados procedentes do MERCOSUL.

Para Morosini (2008) a falha brasileira no MERCOSUL é resultado da pouca

comunicação e articulação entre os Ministérios brasileiros, vez que exceções ambientais não

foram levantadas durante a disputa. Segundo ele, membros do Ministério do Meio Ambiente

não tinham conhecimento da disputa e o próprio Ministro apenas tomou ciência do mesmo

após o relatório final da disputa Uruguai-Brasil.

Morosini (2008) ressalta ainda que, após a internalização do laudo arbitral

Mercosulino, o Ministério Público Federal – MPF apresentou, Ação Civil Pública10

combatendo o decreto presidencial n. º 4.582/03, levantando os questionamentos ambientais

que o Brasil não suscitou quando dos procedimentos do MERCOSUL. O MPF buscou a

manutenção das penalidades para a importação de pneus remoldados de todos os países, sem

exceção, não observando a validade constitucional da decisão do Tribunal Mercosulino, o que

para Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores, foi “um tiro no pé”, pois para um país

que deseja a liderança do bloco, questionar a decisão arbitral resulta na perda de legitimidade

em outras disputas de seus interesses.

Todavia, o juízo, com base na determinação do VI° Laudo do TAHM, negou o

pedido de proibição feito pelo MPF, ressaltando, em particular, que “a proibição de

importação de pneus remoldados dos países do MERCOSUL, contrariando a determinação do

Tribunal Arbitral, provavelmente viria a gerar problemas no processo de integração, o que não

seria desejável”, tendo a decisão sido confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região.

O painel da OMC

A OMC iniciou suas atividades em 1995 e tem como principais funções a

administração de acordos comerciais, servindo também como instância para sua negociação,

solucionar controvérsias comerciais, monitorar as políticas comerciais nacionais, fornecer

assistência técnica e formação aos países em desenvolvimento, além de cooperar com outras

organizações internacionais.

O mecanismo de solução de controvérsias da OMC é considerado um dos grandes

resultados das negociações da Rodada Uruguai, pois representa o pilar do sistema multilateral

de comércio. É ele que garante a executoriedade dos acordos da organização. Esta obrigação é

executada pelo Órgão Solucionador de Controvérsias – OSC e pelo Órgão de Apelações - OA,

responsável por receber os recursos contra as decisões dos painéis julgados pelo OSC.

Com o julgamento do recurso, o Estado perdedor deverá tomar as medidas

necessárias ao seu restabelecimento as normas da OMC, podendo o país demandante negociar

compensações comerciais mútuas ou, mediante autorização do OSC, adotar contramedidas,

suspendendo concessões comerciais previamente conferidas ao país demandado. Como a

alteração de legislações usualmente implica uma série de procedimentos legislativos internos

que precisam ser levados em consideração, é natural que para o Estado-Membro retirar de seu

quadro legislativo a medida considerada violadora dos acordos da OMC necessite de tempo

razoável para fazê-lo (SALVIO, 2006).

10 Processo n.º 2003.71.00.033004-2, que tramitou na 6ª Vara Federal de Porto Alegre.

11

Em 05/11/2003, o Bureau International Permanent dês Associations de Vendeurs et

Rechapeurs de Pneumatiques - BIPAVIER, associação internacional que representa os

interesses das empresas de recauchutagem de pneus europeus, efetuou uma queixa acerca das

práticas comerciais brasileiras que previnem a importação de pneus remoldados e que

estariam causando efeitos comerciais adversos aos reformadores da CE, sendo, portanto,

inconsistentes com a normatização do General Agreement on Tariffs and Trade - GATT

1994.

A investigação européia (CE, 2004) demonstrou que o Brasil era um importante

mercado para a indústria de remoldagem européia, até a introdução da proibição em

25/09/2000. Entre o período de 1995-2000, o Brasil foi o destino de 58% dos pneus

remoldados europeus para carros de passeio, em 2001, após a imposição do banimento, caiu

para 32% e nos dois anos seguintes passou a representar apenas 10% do volume anual das

exportações anteriormente percebidas.

Devido a ausência de consenso, em 17 de novembro de 2005, a Comunidade

Européia requereu a instalação de um painel à OMC, cuja instalação ocorreu em 20 de janeiro

de 2006, autuado sob a sigla DS332. O argumento foi de que as restrições brasileiras estavam

em desconformidade com a normativa do GATT/94, pois: se trataria de uma medida

discriminatória aos pneus reformados europeus, haja vista que o comércio era autorizado entre

os países do MERCOSUL, individualmente integrantes da OMC; empresas nacionais

obtinham liminares concedidas pelo Poder Judiciário que autorizam a importação de pneus

usados para a indústria nacional de reforma; inexistia qualquer restrição a importação de

pneus europeus novos; a imposição pelo Brasil de multa sobre a importação, comercialização,

transporte, armazenagem, guarda ou manutenção em depósito de pneus reformados

importados ia colidia com as normas do GATT; as leis Estaduais do Rio Grande do Sul, que

proíbem a comercialização de pneus reformados, constituiriam uma barreira não-tarifária.

A defesa brasileira perante o OSC justificou que a proibição da importação dos

pneumáticos e as multas anti-circunvenção estão amparados no artigo XX(b) do GATT, pois é

uma medida necessária para garantir a saúde da população e do meio ambiente e não se

tratava de uma descriminação arbitrária ou injustificável, pela inexistência de outra medida a

ser adotada de forma eficaz.

Convém destacar que a CE concorda que a acumulação de resíduos de pneus

apresenta riscos à saúde humana e ao meio ambiente e que a redução da acumulação de

resíduos de pneus é uma resposta legítima a tais riscos, o bloco afirma que a proibição não se

dá por questões ambientais ou de saúde pública, tanto que a portaria que proibiu a importação

de pneus usados foi assinada pelo Ministro da Indústria e Comércio e não do Meio Ambiente,

configurando, portanto, na visão européia, um método para possibilitar uma reserva de

mercado para os fabricantes “nacionais” de pneus.

Quanto às importações de carcaças através de medidas liminares, o Brasil defendeu

que as mesmas não reduzem a contribuição da proibição das importações, haja vista que

continua a reformar os pneus que consome. Limitar as importações de pneus usados reduziria

ainda mais os resíduos desnecessariamente criados. O Brasil aduz que se opõe vigorosamente

às liminares e que como resultado, a tendência da concessão de liminares foi revertida, vez

que em 92,5% dos casos em que medidas liminares foram concedidas, os tribunais de segunda

instância decidiram em favor do governo, mantendo a proibição das importações e revertendo

a autorização temporária para a importação de carcaças; ademais, em 67% dos casos, o

mesmo juiz que deferiu a liminar a cassou quando do julgamento do mérito. Buscando uma

maior efetividade a cassação das liminares ainda vigentes, o Presidente da República

ingressou com ação junto ao STF objetivando consumar a proibição e evitar ou reduzir

quaisquer penalidades impostas pela OMC. O Governo brasileiro acredita que a concessão

12

dessas liminares é um equívoco legal e tem lutado para salvaguardar a integridade da

proibição das importações de pneus usados.

O OSC entendeu que, embora as liminares não serem resultados de uma medida

arbitrária e unilateral brasileira, as mesmas têm comprometido o objetivo do Brasil, haja vista

que a importação de pneus usados cresceu após a proibição, sendo a medida aplicada de

forma que configura uma discriminação injustificável, pois a discriminação ocorre entre

empresas e países que apresentam as mesmas condições.

O Brasil ressaltou ainda que possui uma obrigação jurídica de cumprir a decisão do

tribunal do MERCOSUL, no entanto, estaria trabalhando em conjunto com seus parceiros do

bloco para implementar uma política comum de resíduos e espera poder brevemente também

proibir importações de pneus reformados dos países membros do bloco.

Concluiu o OSC que o acúmulo de pneus contribui para o aumento das doenças

transmitidas por mosquitos, notadamente, a dengue, febre amarela e malária, acarretando

riscos à saúde humana, além de aumentar a probabilidade de incêndios em aterros sanitários,

trazendo outros riscos à vida animal e vegetal pela emissão de gases tóxicos e pelo acúmulo

de pneus velhos.

Ultrapassada esta questão, analisou-se a necessidade de uma medida restritiva e seus

impactos, tendo os relatores concluídos que os interesses e valores promovidos, pela proibição

da importação de pneus reformados, devem ser considerados importantes, vez que não

existem medidas alternativas benéficas, e que o impacto restritivo da medida é máximo, pois

proíbe a importação de pneus reformados à exceção dos Estados-membros do MERCOSUL,

cuja permissão se deu em decorrência de uma decisão de um Tribunal regional e o volume é

desprezível. A proibição de importação desses produtos contribui para a consecução dos fins

almejados pelo Brasil, pois reduz o número total de carcaças abandonadas no país e, como

conseqüência, diminui os riscos à vida e à saúde humana, animal e vegetal. As medidas foram

consideradas justificáveis, porém, no tocante as liminares - que concederam o direito a

empresas brasileiras de importarem carcaças de pneus europeus, contrariando o disposto na

Resolução CONAMA n.º 258/99, resultando no ingresso de mais de 40 milhões de pneus - foi

considerada uma medida injustificável, em virtude de ocorrer entre países nos quais estão

presentes as mesmas condições.

A CE solicitou ao Órgão de Apelação que revisasse a decisão inferior, tendo este

confirmado a constatação do painel, de que a proibição às importações é necessária, porém,

reformou o entendimento do mesmo nos seguintes pontos: entende que a isenção do

MERCOSUL às importações é aplicada de forma que constitui uma discriminação arbitrária

ou injustificável; que as liminares judiciais só se tornaram uma restrição ao comércio

internacional unicamente na medida em que tais importações se fizeram em quantidades que

reduziram significativamente o objeto da proibição;

No entender de Costa (2008), a sucumbência brasileira não decorre da isenção às

importações de pneumáticos remoldados do MERCOSUL, apesar do entendimento do Órgão

de Apelação da OMC, mas pelas liminares concedidas pelo Poder Judiciário, pois estas

geraram o aumento da importação de pneus, após a proibição brasileira, sendo incompatível

com os objetivos brasileiros de reduzir a acumulação, em seu território, de pneus. O autor

citado destaca a situação contraditória que se criou no Brasil, vez que apesar do Brasil ter

tomado uma medida restritiva ao comércio internacional, fundada na preservação ambiental, o

fluxo de entrada de pneumáticos usados e remoldados elevaram-se no mesmo período.

A questão, até o momento, não foi solucionada internamente, tendo a OMC

concedido prazo para o cumprimento de sua decisão, porém, o Ministério das Relações

Exterior dá como certa a retaliação por parte dos países Europeus contra produtos brasileiros

(MARIN e RECONDO, 2008), pelo descumprimento do prazo dado, que se venceu em

13

dezembro de 2008. A seguir, serão analisadas as questões internas discutidas no âmbito

judicial.

A guerra de liminares

Os importadores utilizam, em regra, o Mandado de Segurança contra a não

concessão ou morosidade do DECEX, SECEX ou IBAMA, na concessão do licenciamento

para a importação dos artigos desejados, questionando: a ilegitimidade da autoridade

elaboradora da proibição; o uso de mecanismos inadequados para a finalidade, vez que a

proibição se utiliza de portarias e decretos, para proibir atividade lícita; o descumprimento do

princípio da isonomia, em razão da permissão da importação de pneus remoldados originados

dos países membros do MERCOSUL; e o cumprimento da legislação ambiental.

Os Tribunais, representados neste momento pelos juízes singulares, apresentaram

uma forte tendência pela concessão das liminares e da segurança aos importadores, haja vista

que em 84% das ações ao menos a liminar foi deferida.

Os juízes favoráveis a importação, em regra, fundamentam suas decisões com base

apenas no direito interno, nos seguintes pontos: a existência de precedentes judiciais; a

importação de pneus usados não como bens de consumo, mas como bens de produção,

espécie não abarcada pela proibição; o cumprimento da legislação ambiental; a incompetência

das Autarquias para editar ato prejudicial à atividade econômica legalmente prevista; e a

aplicação do princípio da isonomia. Raros foram os julgados que levantaram alguma

discussão de ordem multilateral, discutindo-se uma questão interna com claros efeitos

externos, apenas segundo o direito brasileiro.

As partes se utilizam de todos os meios recursais para o alcance de seus interesses,

através de embargos de declaração, constantes agravos de instrumentos e apelações ao juízo

ad quem, quando se inicia a disputa pela concessão ou não do efeito suspensivo da decisão

inferior.

Quando as decisões chegam a Brasília, para apreciação do Superior Tribunal de

Justiça - STJ, a partir de 2006, mesmo ano em que o governo adota uma postura mais ativa

quanto a consumação da proibição, em razão do painel na OMC, a tendência favorável as

importadoras, no juízo de primeiro grau, se reverte, pois a regra se torna o não seguimento dos

Recursos Especiais interpostos, provavelmente pela Corte Superior estar mais suscetível as

pressões do Poder Executivo Federal.

Deve-se destacar que no momento em que o juiz brasileiro decide, por meio de

medidas liminares inaudita altera pars, permitir a importação de carcaças de pneus para a

indústria nacional de reforma de pneus, sua fundamentação e conhecimento dos fatos se dão

de uma forma parcial, pois só considera as alegações de uma das partes, que combinado com

a sobrecarga de processos nas varas, o controle misto de constitucionalidade e a ausência de

varas especializadas, pode levar a uma decisão que desconheça seus impactos na ordem

regional e multilateral.

Apesar de o juiz agir amparado segundo as normas internas, sua atuação em matéria

econômica pode, com a internacionalização dos mercados, gerar constrangimentos ao Estado

brasileiro, quando não são observados os tratados internacionais aos quais o Brasil é

signatário. Em parte a não observância se dá em virtude dos tratados serem manipulados com

maior freqüência por diplomatas e não juízes (CUNHA, 2007).

Estas decisões, munidas muitas vezes de “meias verdades”, interferirão diretamente

em políticas comerciais, de competência do Poder Executivo, podendo gerar disputas

internacionais, que em razão da responsabilidade estatal em relação ao Direito Internacional

ser indivisível e independente de sua organização interna, será suportada pelo Executivo,

14

mesmo não tendo sido este o agente causador. Independentemente de culpa, se houveram

repercussões externas suficientes para constituí-lo em um ato ilícito conforme o direito

internacional, o Estado tem o dever de reparar a parte prejudicada com o ato ilícito. Couto

(2004) destaca que em razão da crescente judicialização da política, para garantir o

cumprimento dos compromissos assumidos internacionalmente, “o cálculo do Poder

Executivo, precisa ser muito mais meticuloso, pois aumentam as chances do Estado ser

condenado a pagar reparações, bem como aumentam os custos políticos da publicidade de

situações constrangedoras.”

Não se observa que por trás de argumentos jurídicos levantados, as empresas buscam

a manutenção de seus mercados e vislumbram a possibilidade de reversão da questão ou

minimização dos danos a baixos custos pelo questionamento da política pública pela via

judicial. Em virtude da inércia legislativa quanto à questão e a determinação do Poder

Executivo na manutenção da proibição em benefício dos fabricantes de pneus, os Tribunais

começam a ser utilizados como instrumentos empresariais na busca da legitimização de seus

interesses ou no bloqueio das políticas governamentais.

Apesar de o julgamento ocorrer perante um Tribunal brasileiro, com partes

processuais também nacionais, discute-se a (in)constitucionalidade de um ato emanado do

Poder Executivo com claros efeitos na política externa brasileira. Franck (1991), tratando do

sistema judicial norte-americano, destaca que muitos dos casos em que o Judiciário se recusa

a se envolver, possuem vínculos com a política externa, sendo esta abstenção apropriada, em

virtude da política externa demandar continuidade e uma única voz, sendo intolerável,

segundo o autor, que Cortes não detentoras de informações relevantes anulassem atos do

Executivo tomados com base em informações que não são de seu conhecimento.

É exatamente este acontecimento que tem ocorrido no Brasil: a política externa

brasileira tem sido questionada judicialmente e o Judiciário tem participado sem observar as

conseqüências externas de sua atuação divergente da política postulada pelo Poder Executivo,

sendo um óbice e um novo elemento que deve ser analisando quando da tomada de decisão da

política externa pelo Executivo.

Das ações no Supremo Tribunal Federal:

O STF é a mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro e acumula competências

típicas de Suprema Corte e Tribunal Constitucional. Sua função institucional principal é de

servir como guardião da Constituição Federal, apreciando casos que envolvam lesão ou

ameaça a esta última, sendo de vital importância para o Executivo, já que cabe a ela decidir as

ações que versem sobre a constitucionalidade das normas.

Entre suas principais atribuições está a de julgar a ação direta de

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de

constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a argüição de descumprimento de preceito

fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por país estrangeiro.

Como resultado da ampla discussão judicial da proibição da importação de

pneumáticos usados e remoldados, tramitam no Pretório Excelso cinco Ações Diretas de

Inconstitucionalidade e uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Algo interessante nestas ações que tramitam no STF é o fato de algumas delas terem

como proponentes o Governador do Estado de Paraná, Estado onde estão instaladas as

maiores indústrias de remoldagem, o Partido PFL, hoje Democratas, o Procurador-Geral da

República e o próprio Presidente da República, demonstrando de forma clara toda a

politização da questão. Merece destacar ainda a participação das empresas e de suas

respectivas associações de classes, bem como de organizações não governamentais em defesa

15

dos direitos humanos e do meio ambiente, como amici curiae, que despendem recursos na

busca de salvaguardar seus interesses.

Convém destacar que todas as ações estão em tramitação, o que impede uma

afirmação mais contundente acerca dos efeitos das mesmas, no entanto, as mesmas são de

fundamental importância, não apenas para a proibição, mas também para a uniformização do

entendimento do Judiciário brasileiro, evitando de tal forma maiores problemas. Certamente,

a ação que for julgada primeira, ao que indica a ADPF n.º 101, será um importante norte

sobre as demais ações em trâmite no Supremo e nas demais instâncias judiciais.

ADI 3.241

A Ação Direta e Inconstitucionalidade n.º 3.241, ajuizada pelo Partido da Frente

Liberal – PFL, hoje Democratas, em 25/06/2007 e ataca o Decreto n.º 4.592/03 (isenta do

pagamento da multa de R$ 400, por unidade, as importações de pneumáticos reformados

procedentes dos Estados parte do MERCOSUL), sob o argumento de que se trata de uma

excepcionalidade à regra prevista pelo Decreto n.º 3.919/01, considerando-a, ilegítima.

O partido questiona a proibição, e eventual punição, da importação de pneus

reformados de outros países, quando o próprio governo permite a importação dos mesmos

pneus, porém oriundos de países membros de um determinado bloco econômico, violando de

tal forma o princípio constitucional da isonomia e da proporcionalidade, deitando por terra

qualquer justificativa de caráter ambiental.

Adverte ainda sobre a ineficácia de tal medida, pois a isenção permitirá que os países

estrangeiros não contemplados pela mesma, importem seus pneus para países membros do

MERCOSUL, que ficarão responsáveis pelo envio dos mesmos para o mercado brasileiro.

ADI 3.801

A ADI n.º 3.801, promovida pelo Procurador-Geral da República, tem por objetivo a

declaração de inconstitucionalidade das Leis n.º 12.114 de 5 de julho de 2004, 12.182 de 17

de novembro de 2004 (proíbem a comercialização de pneus usados importados,dentre os

quais, incluem-se os reformados) e 12.381 de 28 de novembro de 2005 (permite a importação

de pneus usados, desde que todo pneu usado importado tenha um destino final

ambientalmente adequado e para cada pneu reformado importado, outros 10 pneus usados

tenham uma destinação final adequada), todas do Estado do Rio Grande do Sul.

Para o Procurador-Geral, os interesses dos Estados encontram-se cada vez mais

afinados com o viés comercial e econômico, ficando cada vez mais tênue a distinção entre o

interesse público ou privado, mesmo nessa esfera mais ampla. Para ele, tratativas comerciais

são, via de regra, componentes das pautas de discussões nas arenas diplomáticas, devendo,

portanto, as normas de comércio exterior serem de competência legislativa privativa da

União, tendo esta se posicionado por não permitir a importação de pneus usados, reformados

ou recauchutados. O procurador destaca ainda que as leis do Rio Grande do Sul vão de

encontro ao que a União propõe em debates internacionais sobre comércio, como, por

exemplo, na OMC, gerando incerteza judicial e política quanto ao caso.

As citadas normas também foram alvos do painel na OMC, que entendeu que os

reformadores nacionais de pneus foram favorecidos em detrimento dos importadores de pneus

reformados, pois a destinação final adequada para pneus inservíveis era menos onerosa para

os primeiros em relação ao segundos. Vale salientar que as normas ora atacadas, sob o

16

argumento das mesmas prejudicarem os interesses nacionais foram defendidas pelo Governo

brasileiro, perante o OSC.

ADI 3.938

Na ADI.º 3.938, datada de 06/08/2007, que é contra o art. 47-A, do decreto n.º

3.179/99, inserido pelo Decreto n.º 3.919/01, o então governador do Paraná, Roberto Requião,

contesta a penalidade de R$ 400 reais imposta pelo citado dispositivo, sob o argumento de

que: 1) o decreto foi elaborado apenas para satisfazer os interesses dos fabricantes de pneus

novos; 2) a penalidade foi criada sem previsão legal, ressaltando que existiram dois projeto de

lei (4.109/93 e 6.136/05), mas que no entanto, foram retirados de pauta pelo Executivo, frente

a possibilidade de regulamentação do setor, ao invés da proibição; 3) a multa imposta não

observa a individualização da pena, quando de sua aplicação; 4) que o dispositivo inserido não

possui relação material com o art. 47, que trata da infração ambiental para a importação de

veículos sem a respectiva licença expedida pelo IBAMA, tratando o pneu como acessório; 5)

não observa que é permitida a importação de pneus novos, que após o uso ficarão usados e

caso o possuidor dos mesmos não possa comprovar sua entrada lícita será penalizado. Na

visão de Requião, o dispositivo ofende o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, ao

restringir a liberdade de atividade profissional lícita (art. 5º, XIII) e prejudicar a livre

concorrência em prol da manutenção do mercado da indústria fabricante de pneus.

O Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza, considera o governador

do Paraná incompetente para o questionamento de questões atinentes a pauta de importação

nacional, de responsabilidade exclusiva do Executivo Federal, que segundo ele, está obrigado

a detectar e banir práticas comerciais que se demonstrem lesivas ao meio ambiente e a saúde

pública.

ADI 3.939

No dia posterior ao ajuizamento da ADI n.º 3.938, Roberto Requião, ajuizou nova

ADI objetivando a suspensão do caput do artigo 41 da portaria nº 35/2006, da Secretaria de

Comércio Exterior, que proibiu a concessão de licenças para a importação de pneus

recauchutados e usados.

Requião aduz que a norma impugnada discrimina a importação de pneus usados

como matéria-prima, enquanto autoriza (até com isenção ou suspensão de tributos) a

importação de outros bens usados para a finalidade de recondicionamento, tudo isso em

confronto com o artigo 5º da Constituição Federal.

O Proponente alega que a portaria é o instrumento adequado para disciplinar um lei,

portanto, a mesma seria inconstitucional, pois inexiste lei que proíba a importação de pneu

usado ou recauchutado, vindo à mesma inovar no mundo jurídico, ao proibir uma atividade

lícita.

O demandante afirma ainda ser a SECEX, órgão do Ministério do Desenvolvimento,

Indústria e Comércio Exterior, incompetente para a elaboração da portaria combatida,

invadindo competência do Congresso Nacional, pois a referida secretaria não pode se valer da

prerrogativa conferida ao Ministério da Fazenda pelo art. 237 da Constituição de 88, em

matéria de lei fazendária para proibir, por questões ambientais, a importação de matéria-

prima, sem lei que expressamente a autorize.

Ademais, o governador adverte que o Pretório Excelso não poderá se manifestar de

forma semelhante quando da declaração da constitucionalidade da Portaria DECEX n.º 08/91,

17

pois este departamento é integrante do Ministério da Fazenda, o que não ocorre com a

SECEX, além do fato da aludida portaria ter tido claro interesse fazendário, em razão da

disparidade de preço entre o produto novo nacional e o produto usado importado.

Roberto Requião sustenta, também, que a portaria privilegia as indústrias de pneus

remoldados do MERCOSUL em detrimento das indústrias de pneus remoldados do Brasil em

confronto com o artigo 170, inciso IX, da Constituição, que prevê tratamento favorecido para

empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e

administração no País; e, por fim, priva o livre exercício de atividade econômica sem lei que

proíba, amplamente regulamentada (art. 170, parágrafo único, CF), criando uma indevida

limitação a uma atividade lícita e uma distinção entre atividades econômicas similares

(importação, para consumo ou para uso como matéria-prima).

O governador recorda, neste contexto, que a Resolução nº 258/99 CONAMA apenas

se refere à primeira categoria de pneus usados (bens de consumo) como problema ambiental,

ao determinar às empresas fabricantes e às importadoras de pneumáticos que dêem destinação

final ambientalmente adequada a eles. Não trataria, no entanto, da mesma forma os pneus

usados como matéria-prima (bens de produção).

ADI 3.947

Em 28/08/2007, o Governador do Paraná ingressa com nova ADI, desta vez contra o

art. 4º in fine e anexo da resolução de n.º 23/96 do CONAMA, elaborada com o fito de

regulamentar a Convenção de Basiléia, aprovada pelo Decreto n.º 875/93.

Ele afirma que o citado decreto estabeleceu os critérios e padrões relativos à

movimentação transfronteiriça de resíduos, atribuindo duas classes (perigosos e não-

perigosos), no entanto, a resolução em comento atribuiu quatro classes, declarando ainda que

os resíduos inertes - classe III não estão sujeitos a restrições de importação, com exceção dos

pneus usados.

Novamente sua defesa é o fato da ausência de lei que proíba tal importação, motivo

pelo qual a citada resolução inovaria no mundo jurídico, ao proibir atividade lícita. Porém,

destaca o fato da resolução ser omissa quanto ao Anexo IV A do decreto n.º 875/93, o qual

especifica quais as operações que não condizem à possibilidade de recuperação, reciclagem,

regeneração, reutilização direta ou usos alternativos de resíduos. Afirma ainda que a

importância do citado anexo foi ratificada com a emenda à Convenção de Basiléia,

promulgada pelo Decreto n.º 4.581/03, que estabeleceu nova lista de resíduos, dispondo em

seu anexo IX B, sobre resíduos não perigosos.

Requião ressalta ainda algo interessante no tocante a justificativa ambiental, que em

1997 o CONAMA revogou a resolução n.º 37/94, através da Resolução n.º 23/96, mantendo a

mesma orientação da Resolução revogada, exceto para pneus usados, cuja proibição abarcou

também para fins de recondicionamento. No entanto, no mesmo ano o CONAMA publicou a

resolução n.º 08/96, autorizando pelo prazo de seis meses a importação de sucatas de chumbo

sob a forma de baterias usadas. Em 1997, através da resolução n.º 228/97, autorizou por

tempo indeterminado a importação de desperdícios e resíduos de acumuladores elétricos de

chumbo na forma de bateria usada, com fundamento no art. 2º, da resolução CONAMA n.º

23/96, que prevê a hipótese de importação de resíduos perigosos em situações excepcionais.

18

ADPF 101

O Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, ingressou em 21/09/2006 com

a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de n.º 101, a fim de reparar lesão a

preceito fundamental resultante de ato do poder público, representado por decisões judiciais

que violam o mandamento constitucional previsto no art. 225 da Constituição Federal de

1988.

Lula informou que desde a edição da Portaria DECEX n.º 08, de 13 de maio de 1991,

existe norma legal no Brasil proibindo a importação de bens de consumo usados, dentre os

quais se incluem os pneus e que na época, instado a se manifestar sobre a constitucionalidade

e legalidade da vedação imposta à importação de bens de consumo usados em sede de mera

portaria, o pleno do Excelso Pretório reconheceu a constitucionalidade da medida, quando do

julgamento do RE 203.954/CE, assentando que a citada portaria encontraria fundamento no

art. 237 da Constituição Federal, que expressamente submeteu ao Ministério da Fazenda,

órgão à época que detinha a atribuição legal para a fiscalização e controle sobre o comércio

exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, ou seja, questões fazendárias

e não ambientais motivaram a proibição.

O Presidente, com apoio das ONG’s e da ANIP, aduz que se por um lado o

fundamento genérico da vedação de importação de bens de consumo usados se justificava em

razões de índole comercial e de interesses da Fazenda Nacional, como reconhecido pelo

Supremo Tribunal Federal, por outro, não se poderia olvidar que tal vedação, especialmente

no que concerne a pneus usados, também encontraria respaldo na defesa do meio ambiente,

que fora elevada a princípio geral da atividade econômica pelo art. 170, VI, da Constituição

Federal e por força o art. 225 da Carta Magna, que garante a todos o direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida,

impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para a

presente e futuras gerações, cabendo aquele controlar a produção, a comercialização e o

emprego de técnicas, métodos e substância que comportem risco para a vida, a qualidade de

vida e o meio ambiente, pois é direito de todos e dever do Estado adotar políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doença.

Para ele, não obstante os dispositivos acima expostos, dos quais se depreende a

existência de proibição legal à importação de pneus usados, tal medida vem sendo ameaçada

por uma série de decisões judiciais que vêm autorizando, por vários anos, a importação de

milhões de pneus usados provenientes de países não integrantes do MERCOSUL, tendo sido

importados cerca de 12 milhões só em 2005, pondo em risco a proteção ao preceito

fundamental, representado pelo direito à saúde e a um meio ambiente ecologicamente

equilibrado.

As empresas a favor da importação de pneus requerem a improcedência da demanda,

com base nos seguintes fundamentos: 1) ofensa ao regime constitucional de livre iniciativa e

da liberdade de comércio (art. 170, IV, parágrafo único, da CF/88); 2) ofensa ao princípio da

isonomia (art. 5º caput, da CF/88), uma vez que o poder público estaria autorizando a

importação de pneus remoldados provenientes de países integrantes do MERCOSUL; 3) que

os mencionados atos normativos só abarcariam pneus usados, nos quais não estariam

compreendidos os pneus recauchutados; 4) que tais restrições não poderia ser veiculada por

meio de ato regulamentar, mas apenas por lei em sentido formal, ferindo o princípio da

legalidade estrita; 5) que a resolução CONAMA n.º 258/99, com redação determinada pela

Resolução CONAMA n.º 301/2002, teria revogado a proibição de importação de pneus

usados, na medida em que teria previsto a destinação de pneus importados reformados; 6) que

os pneus produzidos no Brasil são inservíveis para a remoldagem realizada pelas empresas

nacionais; 7) que em razão da existência de legislação ambiental e inscrição das empresas no

19

IBAMA e a conseqüente sujeição à sua fiscalização, o ambiente está adequadamente

protegido.

Lula destaca ainda a existência do contencioso da OMC e que caso o Brasil saia

vencido do mesmo, poderá ser obrigado a receber, via importação, pneus reformados de toda

a Europa, que detém um passivo de pneus usados da ordem de 2 a 3 bilhões de unidades,

abrindo-se a temível oportunidade de receber pneus usados do mundo inteiro, inclusive dos

Estados Unidos da América, que também possuem um número máximo de 3 bilhões de pneus

usados.

O interesse dos importadores brasileiros, segundo o presidente, pode ser explicado

unicamente por razões de ordem econômica, vez que, por mais surpreendente que seja, as

carcaças importadas são substancialmente mais baratas do que as carcaças brasileiras.

A alegação de que a vedação da importação de pneus usados para serem empregados

como matéria-prima para reforma de pneus consubstanciaria ofensa ao regime constitucional

da livre iniciativa e liberdade de comércio não procederia, uma vez que deve ser pautada para

a defesa do meio ambiente e não impede o exercício da atividade de reforma de pneus, pois

existe um passivo de 100 milhões de pneus no país. O fato de supostamente não se tratar da

melhor opção comercial no que se refere à lucratividade não teria o condão de significar a

inviabilidade do empreendimento.

Lula entende ainda ser descabido se falar em ofensa ao princípio da igualdade pelo

fato de a proibição de importação de pneus usados não se estender aos países membros do

MERCOSUL, uma vez que tal exceção é resultado da internalização do laudo arbitral

proferido pelo Tribunal ad hoc do bloco, ao qual o Brasil é submetido a sua jurisdição.

Diante deste cenário, é possível que, mesmo em face de uma decisão favorável à

proibição no âmbito da ADPF 101 (o que implicaria, portanto, na cassação de todas as

decisões favoráveis à importação de pneus usados), as importadoras ingressarão judicialmente

com novos argumentos que justifiquem o levantamento da proibição. Nada impede, assim,

que novas liminares favoráveis à importação de pneus usados sejam concedidas. Obviamente,

em virtude do efeito erga omnes da ADPF, isto seria muito mais difícil – mas não impossível,

o que ameaçaria a implementação da decisão do painel da OMC nos moldes delineados pelo

Ministério das Relações Exteriores.

A argüição em comento encontra-se suspensa, após o pedido de vista do Ministro

Eros Grau, no entanto, a relatora do processo, Ministra Carmen Lúcia, apresentou seu voto em

audiência ocorrida em 11 de março deste ano, no sentido de julgar parcialmente procedente a

demanda, validando os atos normativos do Poder Executivo, que desde a última década vedam

a compra de pneus usados ou remoldados de outros países, no entanto, mantendo intactas as

ações judiciais que já transitaram em julgado no sentido de autorizar a importação de pneus,

pois, segundo a relatora, a ADPF não é o meio pelo qual se possa atingir a coisa julgada.

A matéria está longe de ser pacificada e o tramite nos Tribunais não tem ocorrido de

forma célere, prejudicando o Estado brasileiro no plano externo. Apesar da Ministra Relatora

já ter apresentado seu voto, verifica-se que os Tribunais inferiores continuam seguindo o

entendimento diverso do Pretório Excelso, a exemplo do Tribunal Regional Federal da 2ª

Região, parte argüida na referida ADPF, concedeu no dia 25 de maio deste ano o direito à BS

Colway a importar pneus estrangeiros.

Pode-se verificar, portanto, que a atuação dos Tribunais, quanto mais elevada à

instância, costuma considerar não apenas questões jurídicas em sua decisão, mas também os

custos envolvidos, principalmente se relacionado à política externa (GOLDSTEIN et alli.,

2000). Lindsay (1994) afirma uma tendência das Cortes decidirem de forma mais reduzida à

legislação nacional e mais ampla as prerrogativas do Executivo, quando em matéria de

política externa, pois os Tribunais são mais relutantes em anular atos executivos relacionados

a questões externas que domésticas. Verifica-se que no Brasil esta tendência não é diferente,

20

em virtude dos juízos inferiores se deterem mais a lei que o STF, que demonstra que apesar da

proibição ter ocorrido de uma forma juridicamente incorreta, terá sua constitucionalidade

declarada.

Considerações Finais

As empresas importadoras, buscando a preservação de seus direitos, se utilizam do

Poder Judiciário e de sua capacidade de revisão judicial, para bloquear esta política

governamental, levando, deste modo, à judicialização da política pública. As empresas e o

Poder Executivo, por sua vez, vão percorrer todas as instâncias judiciais em defesa de seus

interesses, não tendo a Justiça Federal respondido a esta questão de maneira uniforme, ora

concedendo a segurança a empresas importadoras, ora defendendo a proibição imposta pelo

Poder Público.

A ausência de consenso do Poder Judiciário e sua morosidade em dirimir esta

questão, têm aumentado a complexidade e os efeitos da mesma, haja vista que a aplicação

desigual tem resultado em constrangimentos para o Estado brasileiro, na ordem multilateral.

Com o risco de imposição de penalidades ao Estado brasileiro, o Judiciário é convocado

novamente a solucionar esta questão, através do Supremo Tribunal Federal, que deverá

declarar ou não a constitucionalidade da proibição emanada do Executivo Federal, para que a

sua uniformização de entendimento possibilite a consumação da proibição e a conseqüente

minoração dos transtornos externos ocasionados.

A dogmática jurídica tradicional brasileira, de base romanística, não se coaduna com

o surgimento de novos conflitos de interesses oriundos de relações jurídicas cujos efeitos

desconhecem fronteiras. No caso da importação de pneus, o ordenamento jurídico e a atuação

do Poder Judiciário tem se mostrado inapta para agir nesta conjuntura.

O tema proposto ganha maior relevância ante o atual contexto de globalização e de

crescimento da interdependência entre os Estados, pois a linha limítrofe entre público e

privado, interno e externo tem se tornado cada vez mais tênue, sendo de fundamental

importância, portanto, a harmonização das instituições políticas nacionais de forma a evitar o

descumprimento de obrigações internacionais. Ademais, a questão torna-se ainda mais

interessante, uma vez que o ato violador origina-se no Poder Judiciário, sendo o agente

transgressor convocado para ordenar, ele mesmo, esta situação, quando do ingresso ações

junto ao STF.

Empresas reformadoras, como a BS Colway, acreditando na dificuldade de reversão

da questão em favor de seu segmento, já mostra sinais de que serão adotadas três novas

condutas, são elas: a importação de pneus novos chineses, tanto que já houvera a criação da

ABIPEC. São pneus mais caros que o remoldados, mas cerca de 30% mais barato que o pneu

nacional; a remoção das indústrias nacionais de remoldagem para países membros do

MERCOSUL que permitam a importação de carcaças de pneus européias, para que sejam

processadas e destinadas ao mercado brasileiro, em razão da exceção existente; a fusão das

empresas de remoldagem nacionais com as empresas detentoras de decisões permissivas à

importação já transitadas em julgado, caso a ADPF seja julgada procedente nos moldes do

voto da Relatora e o governo não adote outra medida de cassar estas decisões.

Convém destacar que apesar do governo brasileiro há anos preocupar-se com os

danos ambientais e de saúde humana causados pelos pneus importados, esta preocupação não

se reflete na contenção da importação de outros produtos usados tão poluidores quanto os

pneus, bem como não se preocupa com a importação de pneus novos pelos fabricantes

nacionais de pneus, empresas estas que há décadas dominam e ditam os preços do setor e

responsáveis pelo passivo ambiental existente.

21

A proibição da importação de pneus usados tem, deste modo, prejudicado em

demasia o exercício da concorrência no setor em discussão, favorecendo a situação dos

fabricantes de pneus, que dominam todo o setor de pneus novos, eliminando a concorrência

no mercado de reposição. O prejuízo em decorrência desta postura do Executivo Federal não

recai apenas para o consumidor, mas também para o meio ambiente, a que o governo estava

supostamente protegendo, pois as empresas atuando em um mercado sem concorrência não

terão interesse em desenvolver tecnologia mais eficiente e menos prejudicial ao meio

ambiente, bem como não se importarão com a preservação do mesmo, haja vista que as

penalidades que lhes são impostas são inferiores aos custos operacionais da preservação,

sendo mais barato para a empresa poluir o meio ambiente e ser penalizada pelos órgãos de

preservação ambiental, que adotar medidas de controle a degradação do meio ambiente. O

judiciário exerce, então, um papel fulcral na correção de tais distorções, devendo o julgador

levar em consideração não apenas as normas, mas as conseqüências da mesma entre as partes

e toda a sociedade, como forma de decidir de forma eficaz e efetiva, sendo a análise

econômica do direito um instrumento de fundamental importância para auxiliar o juiz, pois o

mesmo observará o caso concreto sob todas perspectivas plausíveis.

Deve-se levar em conta, ainda, que os importadores estão sendo prejudicados, mas os

mesmos importam matéria-prima para sua atividade não porque não existe no país, mas

porque é muito mais lucrativa a importação de produtos que no exterior são considerados

custos e acabam vendidos por qualquer valor. No entanto, não se pode esquecer que a forma

em que a proibição vem sendo realizada, demonstra inicialmente a ausência de consenso

sobre a matéria, haja vista que o Executivo não conseguiu aprovar lei no Congresso Nacional

que proibisse a importação, recorrendo a decretos e portarias, que não tem força de lei, para

proibir o exercício de uma atividade até então lícita.

Verifica-se na primeira perante o juízo singular e os Tribunais Regionais, uma

atuação do Judiciário mais legalista e pró-importadores, voltada ao rigor da norma, enquanto

nas Cortes Superiores, mais suscetíveis as questões políticas, uma atuação pró-governo,

homologando, inclusive, as normas proibitivas, apesar do vício em relação ao processo

legislativo.

O julgador se vê numa situação de enorme conflito, pois ao defender a proibição em

busca de preservação do meio ambiente e da saúde pública, reconhece como válida uma

norma que descumpre os preceitos mais básicos do ordenamento jurídico pátrio,

descumprindo todas as regras que regem o processo legislativo, bem como favorece o

oligopólio existente, prejudicando de forma indireta não só o meio ambiente que buscou

proteger, mas toda a sociedade, por consumidores que são e que serão prejudicados com a

ausência de concorrência.

Por outro lado, ao reconhecer a ilegitimidade da proibição, o julgador atende aos

interesses dos importadores nacionais e dos exportadores estrangeiros, bem como prejudica a

argumentação brasileira em órgãos internacionais de comércio na busca pela preservação

ambiental, causando constrangimentos ao Estado, mas que não serão arcados pelo Poder que o

causara.

Infere-se, portanto, a necessidade do Judiciário avaliar não apenas questões jurídicas,

mas se inteirar mais sobre a causa, levantando tudo o que está em jogo, para que assim possa

exercer de forma satisfatória o controle das políticas públicas de forma responsável. Todo o

conflito demonstra que o judiciário não estava preparado para dirimir controvérsias, até então

discutidas em outras arenas, como no caso comentado, tornando-se um elemento de

instabilidade ao Estado brasileiro, não apenas pela ausência de consenso, mas também pela

não observância de algumas normas e jurisdição internacional e morosidade com que a

questão, de relevante interesse interno e externo tem sido tratada.

22

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