Ronaldo Vainfas - Idolatria e Milenarismos - a resistência indígena nas Américas

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  • OLATRIASE LENARISMOS:

    a resistncia indgena nas Amricas

    " a morte prenhe, a morte que d a luz"

    (M. Bakhtin)

    I. A idolatria como resistncia

    specto dos mais notveis da colonio ibrica, a "extirpao das ido

    latrias" figurou, para desgraa dos ndios, entre as maiores prioridades do poder colonialista no sculo XVI. Jean Delumeau viu na obsesso dos extirpadores - verdadeiros demonlogos do Novo Mundo - a verso americana da ucaa As bruxas" que tomou conta da Europa na mesma poca, prolongando-se, como nas colnias, at pelo menos o sculo XVII.'

    Utilizando-se quer de mtodos violen-tos, a exemplo da ao inquisitorial dos bispos, quer de mtodos persuasivos, co-

    Estw'os Histricos, Rio de Janeiro, vol.S, D. 9, 1992, p. 29-43

    Ronaldo Vainfas

    mo foi a catequese jesutica ou llnciscana, a Igreja Colonial mobilizou o mximo de recursos a seu dispor para erradicar os "cultos diablicos" que julgava existir no mundo indgena.

    Na Amrica Hispnica, entre o rigor da ao inquisitorial e a disciplina pedaggica das misses, instaurou-se a prtica de enviar"visitadores" encarregados de inquirir os ndios sobre os seus costumes. Os visitadores agiam como envangelizadores e inquisidores a um s tempo, pois acrescen

    . tavam a tarefas propriamente pastorais a funo de indiciar os "feiticeiros" mais afamados. No mais das vezes atuavam sob as ordens das autoridades eclesisticas, como fez Hemando Ruiz de A1arcn, encarregado pelo Arcebispo do Mxico, no sculo XVlI, de visitar certas regies do Vice-Reinado a fim de "se informar sobre os costumes pagos, as idolatrias e supersties" que ainda persistiam entre os indios mexicanos. Houve casos, no entanto, em

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    30 ES1lJDOS HISTRICOS - '99219

    que foi opoder secular o responsvel pelas visitas, a exemplo do Peru nos anos 1570, cujo terrilrio foi objeto de uma "visita general" ordenada pelo vice-rei Toledo, Cristbal Albornoz foi o encarregado de chefi-Ia, "antes de tudo para extirpar a idolatria e liquidar a religio popular", E nada disso de surpreender, lembrando-se a estreita unio ento existente entre Monarquia e Igreja no mundo ibrico ou, como disse Boxer, "a aliana estreita e indissolvel entre a Cruz e a Coroa, o trono e o altar, a F e o Imprio"?

    Perseguida implacavelmente pelos vice-reis e arcebispos, identificada com pactos diablicos ou, quando menos, com supersties pags, as idolatrias pareciam espalhadas por toda a Amrica, a corroer, para desespero dos colonizadores, a ordem social e espiritual imposta pela conquista. Assim, se foram os europeus que rotularam de "idolatrias" as atitudes indgenas de apego s suas tradies - reiterando com isso o estigma judaico

  • IDOLA EMIlENARISMOS 31

    pouco iluminados da sociedade colonial e, por isso mesmo, no to vulnerveis s perseguies do Poder.

    Nesse tipo de idolatria o espao privilegiado era a casa, o ncleo domstico. Era ali que se reavivavam as cerimnias tradicionais de ""samento, o modo indgena de dar nomes aos recm-nascidos, a con5ulta aos velhos calendrios, as prticas divina!rias, o rulto dos ancestrais e toda uma gama de usos e costumes proscritos pela Igreja.

    Mas tambm fora da casa ou da aldeia a idolatria lograva impor-se como mecanismo regulador da vida cotidiana. No prprio mundo do trabalho, principalmente nas atividades ligadas subsistncia, os ndios recorriam s antigas oraes, a um saber assentado em pressgios e na decifrao dos fenmenos naturais. Assim faziam quando pescavam ou caavam, quando iam coletar os frutos da mata, o mel, a lenha -atividades tradicionais que permitiam o rerurso s palavras eocantadas de um tempo perdido. Ao trabalharpara o colonizador nas minas ou haciendmevitavam tudo isso, rerusando a tradio, vergando-se, inclusive no plano simblico, lgica do vencedor. Ao trabalhar para si mesmos, reatavam os nexos com os antigos usos.

    A idolatria tambm estimulava, nesse caso, o ressurgimento ou a cristalizao de certas relaes de poder, conferindo prestgio e autoridade queles que pareciam dominar os cdigos de outrora: as magias, os pressgios, as palavras de encantamento em lngua nativa. Circulando entre aldeias distantes e visitando uma a uma as casas indgenas, uma profuso de curandeiros, conjuradores e adivinhos conseguia tecer, pouco a pouco, a teia discreta da idolatria nos espaos menos "governados" pelo europeu.

    Idolatria plurifuncional, portanto, que se emplastrava em todos os domnios do social, desde a reproduo material da vida aos rultos da morte. Seria errneo assimi-

    l-Ia ao mero "rulto de dolos" ou de "feticbes". Seria equivocado, tambm, falar de tnues "sobrevivncias" de um passado destrudo. A idolatria , aqui, sobretudo uma reordenao, tanto mais nas regies onde antes haviam florescido os grandes imprios amerndios - o Mxico, o Peru-, sociedades onde os "grandes cultos" estiveram associados ao poder central, quando no pessoa dos soberanos. Nessas regies, a conquista espanhola ps abaixo, simultaneamente, o Estado, o rulto solar, as cerimnias pblicas, os sacrifcios e !odo um sistema de cleoas que permitia ao nativo situar-se quer em relao ao cosmos, quer em relao sua famJIia.

    Realizada a conquista, os "pequenos cultos" e as tradies da aldeia no apenas "sobreviveram", mas se hipertrofiamm, pois eram os veculos quase exclusivos de preservao de uma identidade cultural e subjetiva irremediavelme.tte dilacerada. A idolatria afigurava-se, aqui, como resistncia surda, a minar no cotidiano os esforos da catequese e da explorao colonialista. Mas era idolatria ajustada, que no desafiava nem uma, nem outra, limitando-se a filtrar, colormada, os valores do processo arulturador.

    111. Idolatrias Insurgentes

    No plo oposto a essas formas ajustadas de resistncia, tem-se as idolatrias insurgentes, marcadas antes de tudo pelo carter sectrio dos movimentos e pelo diSCllrso hostil ao europeu, sobretudo explorao colonial e ao cristianismo. Na dinmica de tais idolatrias, Oiganizadas em funo da defesa das tradies a Rle.oadas pelo colonialismo, as atitudes de resistncia oscilaram da "guerra imaginria" luta armada - mais factvel essa ltima quando os m0-vimentos ocorriam em regies de "frontei-

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    32 ES11JOOS HlSTRlCOS-I991n

    ra", ou seja, em reas incompleta ou precariamente dominadas pelo estrangeiro. Por outro lado, no tocante aos aspedos morfolgicos desta forma de idolatria, preciso salientar que, nem por ser hostil dominao colonial, nem por apoiar-se nas tradies nativas, esses movimentos deixaram d e absorver, como veremos, cer10s elementos da cultura ocidental.

    As pregaes que anunciavam o retomo ao tempo e s tradies perdidas no raro se combinaram, nesses movimentos, com atitudes de resistncia annada. Assim foi no Peru com a resistncia nco-inca de Vilcabamba e Vitcos, isto , com a reorgani?Ao de um novo imprio inca por parte de membros da dinastia cuzquenha inconformados com a vit6ria pi?Arrista e.com a entronizao de soberanos "fantoches" na capital do TawantllSuyo, o "imprio dos quatro quadrantes". Dos anos 1530 a 1572, o chamado imprio neo-inca conbeceu vrias fases e util.izou vrias estratgias para preservara incanato ou, se possvel, expulsa r o espanhol.

    No reinado de Manco Capac - inca que por algum tempo fora servil aos interesses espanhis -os rebeldes de Vitcos chegaram a sitiar OIZCO -entre 1536 e 1537 - tempo em que o "novo imprio" restabeleceu o culto solar e demais tradies da dinastia incaica na fronteira. No reinado de Sayri Thpac-filho de Manco Capac, que morrera assassinado - o Estado rebelde estabeleceu alianas com os espanhis, cbegando o inca a receber o batismo cristo e a solicitar, com xito, a dispensa papal para casar com a inn. No reinado de TItu Cusi - inno de Sayri Thpac, que morreu envenenado em 1560 - foJjou-se o plano de uma rebelio geral no Peru, havendo prova documental de que o inca enviava armas e mensageiros para sublevar aldeias controladas pelo espanhol na regio central do vice-reino, revolta que deveria coincidir, segundo alguns depoimentos, com uma ofensiva geral dos araucanos no Chile.

    \lrias fases e estratgias conheceu, portanto, a resistncia incaica de Vitcos at ser definitivamente derrotada em 1572, com a priso e execuo de Thpac Amaru, o ltimo dos incas rebeldes. Mas quer apoiado na ressurreio do culto solar, quer abraando taticamente a religio crist, a resistncia incaica na fronteira foi conhecida pelos espanhis com a "universidade da idolatria" e mant.eve, enquanto durou, o poder espanhol em estado de alerta.5

    Igualmente violenta foi a insurreio liderada por Tenamaxtle na Nova Galcia (norte do Mxico), entre 1541 e 1542. Contando com o apoio de vrios chefes indgenas que, como ele, haviam servido por algum tempo aos espanhis, Tenamaxtle (ou Dali Diego el Zacateco, seu nome de batismo) planejou expulsar os espanhis para o mais longe possvel de seu territ6rio. Os guerreiros de Tenamaxtle - oriundos da serra de Nayarit ede regies adjacentes que, inclusive, haviam resistido ao donnio asteca - saquearam igrejas, mataram missionrios e arrasaram povoados espanh6is at serem definitivamente derrotados pelo vice-rei de Nova Espanha, Don Antonio de Mendoll7A. Foi uma luta sangrenta, e feroz a represso naquela que ficou conhecida como a "guerra do Mixtn".6

    Diversas revoltas dos ndios tupi-guarani ocorridas no Paraguai e no litoral da Amrica Portuguesa evidenciam, ainda, a referida combinao entre a pregao de xamanes e a guerra contra o coloni?Ador. No Paraguai seiscentista, conta-nos Maxime Haubert, alguns xamanes fundaram verdadeiras igrejas, e dali moveram ataques contra as misses jesuticas, matando padres e at amerndios que se recusassem a largar O cristianismo em favor das tradies ancestrais. Um deles, Jaguacaporo, apoderando-se do padre Crist6bal de Mendoza, umru1dou rortar-lhe o nariz e as orelhas" e, antes de dar-lbe o golpe final, exclamou: "Onde est o teu Deus acerca do qual nos pregaste? Deve ser cego, visto

  • IOOLATRlAS E Mll.ENARISMOS 33

    que no v; deve ser impotente, visto que no consegue arrancar-te s nossas mos." No Guair, apesar da evangelizao intensiva, a idolatria seguia fume, hostilizando os jesutas e incentivando o retomo s tradies guarani, inclusive a venerao dos ossos dos grandes xamanes.'

    O lllumo se pode dizer do Brasil quinhentista, onde parece ter havido eslreita conexo entre a pregao dos "carabas" e as rebelies tupinamb contra engenhos e mi .. ,es do litoral. s pregaes xalllatSticas no Brasil os jesutas deram o nome de IIsantidades", aludindo ao uesprito de santidade" que os pregadores indgenas diziam encarnar quando, em transe, exortavam os ndios para que ataca&sem os portugueses e abandona &Sem o trabalho.

    A mais famosa e documentada das ,,"ntidades indgenas no Brasil foi, sem dvida, a Santidade de Jaguaripe, ocorrida na Bahia, enlre 1585 e 1586, e liderada por um ndio de nome Antnio, que fugira da misso jesutica de llnhar. Antnio, que dizia encarnar Tamanduare - ancestral dos tupinamb - chegou a reunir centenas de ndios sob seu comando, anunciando para breve o fIm da dominao portugu= e da religio dos jesutas - o que estimulou, de fato, diversas rebelies indgenas naquela regio. Paradoxalmente, cedeu ao convite de um importante senhor do recncavo baiano - Ferno Cahral de Tarde -, aceitando que parte da seita migra&se para o engenho do nobre portugus mediante a prom= de que ali os ndios teriam apoio e liberdade de culto.

    Em poucos meses, a ... ntidade acaharia destruda por ordem do governador Manuel Teles Barreto, p=ionado pelos senhores da regio que no mais agentavam a fuga de seus escravos ndios e o .&sallo s suas plantaes. Anos depois, em 1591, o Tribunal da Inquisio de Lisboa enviaria sua primeira visitao ao Nordeste brasileiro, rerolhendo, entre outras, denncias relativas ... ntidade, especialmente contra

    a pe&Soa de Ferno Cabral - ardiloso &enhor que parece ter atrado a seita para os seus domnios com o fito de aumentar o &eu contingente de mo-de-obra nativa, embora alega .. se t-lo feito para destruir a ... ntidade de vez. Foi, alis, por ter sido deva&sada a posteriori pela Inquisio que a Santidade de Jaguaripe dispe boje de numerosas fontes para o seu estudo, documentao inexistente para as demais " ... ntidades" do Brasil quinhentista.8

    Pregao xamanstica e guerra anticolonialista no se combinaram, porm, somente nas posse&Ses ibricas da Amrica, mas em diversas regies do 'Novo Mundo, onde quer que houv=e contatos entre eu-

    ropeus e ndios. E o que se pode petceber, por exemplo, na farnosa rebelio liderada pelo importante chefe otawa Pontiac, ocorrida na Amrica do Norte ingle ... , em 1763. O importante estudo de Wt1bur Jacobs indica-nos, com boas provas, que a insurreio contra os ingleses esteve embebida de "aspectos msticos", resultado da pregao de profetas que aconselhavam os cbefes e exortavam os ndios ao ataque. Os ndios delawares - afirma Jacobs - foram especialmente agitados contra os brancos por um indgena conhecido como o Profeta delaware ou Neolim, pregador que, enlre 1762 e 1763, "a fumava ter mantido contato com o Grande Esprito" e "exigia dos ndios que volta&sem a seu velho estilo de vida".9 A insurreio de Pontiac foi, com certeza, a maior rebelio indgena da Amrica inglesa em tempos coloniais, e seu ma&S3cre dos ndios preludiou o autntico genocdio que os norte-americanos iriam perpetrarao longo do sculo XIX, no transCUISO de sua famosa "marcha para o oeste".

    Mas se a ... ntidade baiana do &culo XVI ou a insurreio de Pontiac no XVIII ilustram a estreita conexo por vezes existente enlre pregao xamanstica e guerra, houve movimentos que, aVC""r de seu carter sectrio e anticolonialista, no chega-

  • 34 ESTIJDOS IllSTRIros - 1992'>

    ram a propor ou estimular solues armadas contra o estrangeiro.

    Assim ocorreu com as pregaes de Martin Ocelotl, no Mxico dos anos 1530 .. Nascido em 1496, Ocelotl fora dos raros a escapar da matana ordenada por Montezuma, em 1519, contra os adivinhos do palcio que previram a queda do tlatoa"i asteca diante dos "branros barbudos" que se acercavam de Tenochtitln. Depois da conquista, batizado Martin, dedicou-se ao comrcio e agricultura, pois era homem de algumas posses, c manteve suas atividades de "curandeiro e adivinho", sendo muito requisitado por certos membros da aristocracia indgena cooptada pelos espanhis. Martin Ocelotl, homem afamado por seus saberes idoltricos, talvez no passasse de mais um entre tantos 'conjuradores" discretos que vimos marcar as idolatrias ajustadas, no fossem as numerosas denncias que lhe foram movidas por pregar ostensivamente contra a f catlica. Segundo elas, Martin teimava em executar antigos ritos proscritos pela Igreja, reunindo vrios adeptos, entre os quais alguns "caciques" muito operosos parn o funcionamento da ordem colonial. Foi, por isso, julgado pelo bispo Zumrraga, que dispunha de poderes inquisitoriais e desterrado na Nova Espanha, em 1537. o

    Mais abrangente do que a "seita" de Ocelotl foi o movimento peruano de Taqui Ongoy, cujo apogeu verificou-se na dcada de 560. Difundido em vrias provncias do Peru Cenlral atravs da pregao de xamanes liderados por um certo Juan Chocne, o Thqui Ongoy anunciava a iminente derrota do deus cristo dianle das divindades ancestrais peruanas. Foi, sem dvida, um movimento pacfico, uma resistncia surda ao da Igreja e explorao colonial no Peru quinhentista. No entanto, as possveis ligaes entre o Taqui Ongoy e a resistncia armada dos incas de Vilcos, governados por TIto CUsi, despertaram a sanha das autoridades coloniais,

    razo pela qual o movimento foi perseguido e suas lideran aprisionadas a mando do vice-rei Toledo.u

    O breve painel das idolatrias que chamei de insurgentes parece confirmar a necessidade de distinguir as formas pulverizadas de resistncia daquelas sectrias, dotadas de uma estrutura organizativa mais consistente e no raro desafiadora da ordem colonialista. Ajustadas ou insurgentes, certo que ambas as formas de idolatria contrariavam as expectativas do colonialismo, mas o faziam de modo diferente. Por outro lado, o contedo das pregaes que animavam esses movimentos sectrios, bem como sua morfologia especfica, pennite avanar a reflexo e introdu2ir a problemtica dos "milenarismos indgenas", Pois, de um modo ou de outro, as idolatrias insurgentes caminharam no sentido de (re )instaurar uma nova ordem e um novo tempo em quase tudo opostos ao colonialismo europeu.

    IV, Da idolatria ao milenarismo

    de lodo impossvel falar de "milenarismoH sem abordar o conceito de mito, sobre o que h farta literatura antropolgica. Convm evitar, no entanto, nos limites de um artigo, prolongar em demasia essa discusso, razo pela qual opla-se, aqui, pela definio de Mircea Eliade, talvez a "menos imperreita, por ser a mais lata": o mito "conta uma Histria sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos comeos"Y

    Histria sagrada, o mito tambm, diz Eliadc, a "histria verdadeira" dos povos arcaicos, sempre protagonizada por seres sobrenaturais e referida a uma "criao do mundo", t'origem das coisas e/ou da humanidade", Para o homem das sociedades

  • lOOLA. TRlAS E MO ENARISMOS 35

    que Eliade chama de arcaicas, aquilo que se passou ab origiJle " suscetvel de se repetir pclo poder dos ritos". Ritualizar o mito portanto (re)viv-lo, "no sentido em que se fica imbudo da fora sagrada e exallante dos acontecimentos evocados reatualizados".13

    Os milenarismos, que obviamente supem ritos de renovao, aliceram-se, de um lado, nestes "mitos de origem", que pcnnitem reviver o tempo do sagrado (o tempo verdadeiro dos heris). e de outro, nos mitos escatolgicos que fazem do "fun do mundo" o preldio da recriao. Trata-se da crena no "eterno retomo" ou na "perfeio dos primrdios", caracterstica universal de todos os milenarismos, com a exceo, ainda assim parcial, do milenarismo judaico-cristo.14 InscriL1 na lgica do tempo cclico, a estrutura dos milenarismos supe que o "fim do mundo j aconteceu, embora deva reproduzir-se num futuro mais ou menos prximo", de Salte que a previso apocalptica implica necessariamente a indicao do "recomeo".

    nesse contexto que se podem inserir as pregaes que tiveram lugar na Amria, aps a conquista, ela mesma vista simulL1-ncamente como apocalptica e preconi71ldora da renovao do mundo. A ru,a das tradies e do modur vivelldi indgena foi capaz de alimentar, nas mais variacL1S culturas amerndias, a crena na proximidade do retomo s origens e a uma era primordial. No caso das idolatrias insurgentes, que ritualizavam de vrios modos o milenarismo amerndio, cosmogonia e escatologia prolongavam-se uma na outra, adquirindo uma dinmica de resistncia cultural.

    V. Milenarismos indgenas

    A morfologia dos milenarismos indgenas afigurou-se sobremodo complexa, pois

    no obstante ancorados nas tradies prcoloniais, tais movimentos se deixaram impregnar, em graus variveis, de elementos ocidentais e cristos. novamente Eliade quem fornece um roteiro til de questes para a reflexo sobre o que chama de "milenarismos primitivos" -o qual ser doravante adotado como guia das collSideraes que se seguem.1S

    1. Os movime/Uos mile/laristos podem ser cOlISiderados como 11m dese/lvolvime/Uo do cellrio mtico ritual da re/lovao do mUllda

    A expectativa da renovao do mundo um trao presente em quase todos os milenarismos anticolonialistas de que se tem notcia. A expulso ou matana do eumpcu tendeu a se confundir com o advento de uma nova era, entendido tambm como eterno retomo a uma idade primordial, e no raro a conquista europia foi pcnsada e classificada como momento de inflexo ou prenncio deste roteiro celico.

    No caso exemplar do Mxico, a COSIUOgonia nahuall indicava que a humanidade havia vivido, sucumbido e renascido, sucessivamente, durante quatro eras (ou sis), cada qual governada por um elemento natural. Na primeira era, regida pcla Terra, os homens teria m sido devorados por jaguares - o animal-smbolo desta idade primordial-, para renascerem intactos, na era do Vento, ao fim da qual sucumbiriam molestados por fortssima tempestade mgica (um vendaval) e se veriam transformados em macacos. Renascidos no terceiro sol-a era do Fogo -pcreceriam uma vez mais, desta feita no incndio perpetrado pclo raio de TIaloe, transfonn"ndo- se aioda em pssaros, para ressurgirem no quarto sol- e era da Agua, enfim destruda por um dilvio de 52 anos e pcla metamorfose dos homens em pcixes. O quinto sol, tempo em que os mexicanos acreditavam viver quando encontraram

  • 36 ESTIJIX)S HISTRlCX>S - 199m

    Hemn Cortez, teria na conquisla espanhola o agente de sua renovao. Assim previram os adivinhos de Montezuma, camo se pode ler nos textos mexicanos, mesmo quando escritos no ps-conquisla.16

    Cosmogonia e escatologia nahuatl o que se pode ver, com efeito, na pregao de Martin OceloU, parn quem a era dos espanhis -enunciada como o "sol franciscano" - seria aniquilada por monstros devoradores, com presas e garras, atributos do jaguar, o elemento-smbolo da era primordial. A nova era preconizada por Marlin parecia ser o retomo ao tempo primordial regido pela Terra ... E o que dizer do nome original deste xam - OceloU - que na lngua nahuatl significa exatamente jaguar?

    Tambm no Peru incaico, a cosmogonia tradicional identificava ciclos temporais semelhantes aos mexicanos, nos quais a humanidade teria perecido e ressurgido, cielicamente. A primeira era, conhecida oomo "era de Viracochau, teria sucumbido em meio a guerras, pestes, e pela revolla dos objetos contra os homens. A segunda, "a era dos homens sagrados", tenninaria em chamas, resultado da deteno do Sol. A terceira, a "era dos homens selvagens", consumiria seus ltimos dias com os homens afogados num imenso dilvio. A quarta, "a em dos guerreiros", teria sido renegada pelos incas, fundadores e gua rdies da quinta era, que eles mesmos consideravam como a "idade da paz" ...

    A conquisla espanhola, como se sabe, no s ps fim suposta "pax incaica" como reacendeu a esperana no advento de uma nova idade, crena estimulada pelas desgraas que se abatiam sobre a populao indgena no Peru, como rezava, alis, a tradio lendria.

    No foi por acaso, portanto, que uma rebelio geral no Peru, arquitelada pelo DCO-inca TItu Cusi, foi marcada parn o ano de 1565, uma vez que se cria (decerto uma

    , crena do ps-conquisla) ter sido 1565 a dala da fundao do imprio inca ... No

    tambm surpreendente o fato de o Taqui Ongoy ter chegado ao apogeu exatamente na dcada de 1560, tempo em que luan Chocne e seus seguidores pregavam, em transe, a ressurreio das }ItIacas (espritos dos ancestrais) e sua vitria sobre o deus cristo.

    Outro exemplo se pode extrair da cultura tupinamb no litoral brasileiro. Tambm eutre aqueles ndios - embora os registros sejam aqui menos numerosos e mais fragmentrios - a cosmogonia indicava algo prximo a uma sucesso de eras, cada qual governada por um heri-ancestral, concluda por uma catstrofe, e logo seguida de uma recriao. De incio, o tempo de Monan, o "pai grande", que criara o fogo, o cu, a terra, os animais e, possivelmente, os homens, destruindo tudo por meio de um grande incndio. Em seguida, o tempo de Maire-Monan, lambm chamado de lrin-Mag ou de Surn - o filho (ou duplo) de Monan poupado da primeira catstrofe. A ele se atribufa a criao da chuva, a restaurao da vida na terra e a instituio da agricultura. Mas a discrdia entre os homens teria resullado num grande dilvio, concluindo-se esta etapa ntitica, da qual s teriam sobrevivido dois irmos gmeos (ou um casal primordial, segundo algumas verses): Tamendonare (ou Tamanduare) e Aricute, trepados, respectivamente, no alto de uma palmeira e de um jenipapeiro. As verses da lenda coincidem, no entanto, em apontar Tamanduare como o ancestral direto dos tupinamb. Coincidem, tambm, na indicao de que todos esses ancestrais ntiticos viviam nurna espcie de paraso, a Clterra sem ma)", lugar obsessivamente buscado pelos n-d . t7 lOS tupi.

    No caso dos milenarismos tupi da poca colonial, v-se exatamente a presena desses mitos, doravante reorientados no sentido anticolonialista. Os carabas - pajs especiais que tinham o dom de encamar os espritos e de com eles se comunicar atra-

  • IOOLA TR.lAS E MI1.DlARlSMOS 37

    vs do marac - diziam ser a encamaao dos ancestrais, incumbidos de guiar seu povo para uma nova era, tempo de abundocia e paz, que se confundia, no ""so, com um espao especfico: a "terra sem mal". O ""so exemplar , sem dvida, o caraba da Santidade de Jaguaripe, cujo nome de batismo era Antnio, mas que denominava a si mesmo de Tamanduare, dizendo que escapara do dilvio metido no olho de uma palmeira ... Caraba-mor da santidade, exortava os ndios para que o seguissem, anunciando para breve um tempo em que os frutos cresceriam por si na terra e as Oecbas caariam sozinhas no mato. Antnio (ou Tamanduare revivido) pregava, sem dvida, a renovao do mundo e o retomo a uma era primordial: tempo que excluiria os portugueses, a catequese e a escravido.

    Seria possvel, de fato, multiplicar ad injiniJum os exemplos comprobatrios desses movimentos que enunciavam sua resistocia ao colonialismo nos termos de uma volta ao passado mtico, inaugurao de um novo ciclo temporal. Mas creio que esses poucos exemplos bastam para ilustrar as concepes de tempo presentes nos mlenarismos indgenas. E para confirmar e generalizar uma certa afinna.o de Todorov segundo a qual, para os ndios, "a profecia memria".18

    2. A illfluncia, direta ou indireta, l1 escatologia crist parece quase sempre ufubitve/

    Eis um trao de dificlima comprovao, seja porque as fontes acerca destes movimentos procedem majoritariamente de agentes colonialislas, seja porque, de fato, as culturas indgenas estavam j em contato com o cristianismo europeu, e portanto, penneveis aos valores ocidentais. Alm do mais, penso que s uma pesquisa caso a caso seria capaz de elucidar a maior ou menor presena da escatologia crist

    nas pregaC5 indgenas sobre o fun do mundo.

    Em certos casos, a influncia da escatologia crist no parece provvel, ao menos enquanto fora decisiva da pregao xamanstica. Em Martin Oceloll, por exemplo, o prenncio de um "novo sol", bem como a presena do jaguar nos atributos dos mensageiros que comunicaram ao xam a iminncia do cataclisma csmico, dizem mais respeito era primordial da cosmogonia nabuatl do que ao apocalipse cristo, no obst.1ntc Ma rti n tenha passado pelas miios dos franciscanos e recebido alguns ensinamentos cristos. O que sobressai, no entanto, a releitura que Oce-1011 fez de sua experincia com os franciscanos, aos quais atribuiu o papel de "monstros devoradores" de tudo quanto havia naquele tempo decadente. Assim como na cosmogonia tradicional teriam sido os jaguares a pr fim no ciclo de que eram smbolo, em Ocelotl seriam os frades, metamorfoseados em jaguares, os responsveis pelo fim do "sol franciscano".

    Tambm no Taqui Ongoy o que parece prevalecer claramente a cosmogonia e a escatologia tradicional dos peruanos. O fim do mundo se identificava com a ressurreio dos antigos deuses ancestrais, no caso as /ruacas, que, lidemdas pelas de Pachacamac e de Tticaca, combateriam e dorrotariam o deus crist.10 no ar. No resta dvida queo Taqui Ongloy prenunciou um novo tempo que no correspondia a ncnhu,na das eras anteriores da cosmogonia antiga do Peru. No preconizou o retomo do Sol ou do Inca, nem manteve a diviso quatripartida do Tawa1llinsuyo, substituindo os primeiros pelas atividades ancestrais, e a segunda pela dualidade costa/serra -expressa na liderana mgica da dupla Pachacamacmticaca. Mas nada disso pennite afmnar qualquer influncia da escatologia crist.

    H, no entanto, numerosos indcios de que o cristianismo penetrara no universo

  • 38 ESllJOOS IUSTRlCDS - 1992JJ

    cultural dos indgenas e, possivelmente, na escatologia de alguns movimentos milenaristas. Ocelotl, por exemplo, no obstante fosse muito fiel cosmogonia mexicana, chamou de "apstolos de Cristo enviados por Deus" aos dois mensageiros que o haviam notificado sobre a iminncia do apocalipse. Juao Chocne, o lder-mor do Taqui Ongoy, pregava ladeado por duas ndias chamadas de Santa Maria e Santa Maria Madalena - sinal eloqente de que o movimento buscava apropriar-se da fora do deus cristo para derrot-lo.

    No Paraguai seiscentista, houve xams que se vestiam de padres, construram igrejas e at incluam os jesutas na hierarquia de suas divindades, embora os considerassem como deuses secundrios. Adescrio que d Maxime Haubert destes templos indgenas sugere, de fato, um cenrio COffipsito de sincretismo religioso: eram "espaosos e omamentados de tapearias feitas de esteiras lavradas", dotados de "uma cmara secreL1, espcie de Santurio, defendido por uma parede ricamente omamentada, onde os ossos do mgico falecido se conservam nUIll3 rede suspensa de duas colunas. As cordas da rede, as faustosas cobertas de algodo que protegem o cordo so enriquecidas de penas multicores e ornamentadas com grinaldas de flores que diariamente se renovam; uma chama brilha sem interrupo diante das relquias sagradas. Dentro da igreja, alinham-se os b d fi' " 19 ancos os I IS ...

    Na Santidade de Jaguaripe, caso que conheo mais detalbadamente, h vrios sinais de que o sincretismo prevaleceu. A.ntnio, caraba-mor que dizia encarnar o anceslral Tarnanduare, intitulava-se Papa e nomeava bispos entre os seus auxiliares. Era igualmente comum, nos rebatismos da seita, darem nomes de santos catlicos aos nefitos, alm do que a ndia mais prestigiada do movimento - que alguns docu-

    , mentos sugerem como sendo a mulher de Ant1o - ostentava o pomposo ttulo de

    "Santa Maria, Me de Deus". No interior da igreja que os sectrios erigiram no engenho de Jaguaripe, com o assentimento de Femo Cabral, os ndios oravam per cOluas e faziam confisses moda crist. E no obstante cultuassem um dolo de pedra, "com olhos e nariz enfeitado com paninhos velhos", puseram urna cruz de pau porta do templo.20 Os indcios cristos so realmente numerosos na Santidade de Jaguaripe, sendo lcito presumir a "innuncia" da escatologia crist na pregao de que "a Santidade era a verdadeira religio e o verdadeiro caminho para se ir

    C .. ao . u ...

    3 . Embora atrados pelos valores ocidemais e desejaI/do apropriar-se talllo da religio e da educao dos bral/Cos como de suas armas e riquezas, os aderel/tes dos movimentos milenaristas sao antiocidentais

    Se alguns elementos desta fom1Ulao de Eliade so, no mnimo, discutveis - a exemplo do desejo indgena de se apropriar da ueducao dos brancos" -, no se pode duvidar do carter antiocidental dos vrios milenarismos, marca da insurgncia das idolatrias que lhes davam forma.

    No bastasse o contedo das mensagens, que de vrias maneiras hostilizavam e repeliam o europeu, numerosos aspectos rituais indicam o apego s tradies e a necessidade de purificar os ndios da influncia crista.

    Refiro-me, por exemplo, aos rebatismos - rito emblemtico que muitas vezes invertia, mimetizando, o sacramento cristo. O xam guarani Nbeu, revestido do hbito sacerdotal, deitava gua quente na cabea, no peito e nos ombros das crianas, "a fim de apagar a lnarca dos santos leos, esfregando-lhes a lngua com argila e uma concha para suprior o gosto de sal", banhando-lhes depois "os r!;, e no a cabea como fazem os jesutas".2t Os pregadores

  • TOOLA TRlAS E Mil FNARIS M OS 39

    da santidade rebatizJlvam com "gua benta e santos leos", segundo a maioria dos que testemunbaram o rito, mas provvel que a defumao da cabea dos nefitos com a fumaa da "erva santa" (tabaco) tivesse papel importante na converso dos ndios. No Peru, alm de rebatizar os aderentes do Taqui Ongoy, Juan ChoClle deles exigia alguns dias de jejum e abstinncia sexual, aps o que deviam consagrar-se integralmente s I//Jacas, oferecendo libaCS de chicha e oferendas de milho nos lugares sagrados (paknrina).

    Outro trno igualmente emblemtico -e sobre o qual h muito o que pesquisar a presena de danas rituais e do trnnse JIstico na veiculao da mensagem insurgente -costumes assentados nas trndiCS indgenas, embora por vezes modificados e no de todo desarticulados dos ingredientes litrgicos cristos. o que se v, por exemplo, no litoral do Brasil, onde muitos observadores chegaram a ver na dana quase um sinnimo das "santidades" tupinamb, pois era em meio aos "bailes gentios" que os ndios recebiam o caraimo'lQga depois de sorverem o petim ou serem por eles defumados, a comear pelos carabas. No caso do Peru, o prprio nome Taqui Ollgoy significa, em quechua, "a enfermidade da dana", referindo-se no caso possesso que tomava conta dos ndios dedicados s hUflcas. E, assim, em inmeras outras cuHuras amerndias, inclusive na Amrica do Norte (ghost dance religion), a dana era um elemento essencial do JIlenarismo indgena, bem como a "possesso coletiva", ou pelo menos o xtase do pregador (s vezes com o recurso a plantas alucingenas), prova de seu carter sobrenaturnl (homens-deuses) e do seu particular dom de comulcar-se com os espritos.

    4. Esses elementos so sempre suscitados por fortes persollalidades religiosas

    do tipo proftico e orgalliwdos ou ampllldos por po/{ticos ou para fms poltricos

    Os lideres dos milenarismos indgenas, alm de muitas vezes serem guerreiros, quase sempre apareciam aos olhos da c0-munidade como home/lS-deuses, e sua legitiJIdade repousava numa combinao entre o carisma pessoal e as crenas coletivas que atnbuam poderes especiais a certos indivduos.

    O maiorpoderdos homens-deuses residia, antes de tudo, na sua capacidade de falar com os ancestrais, estabelecendo um dilogo que nonnalmente os conduzia ao xtase, possessao e alucinao, como se neles pousasse a divindade. Os homensdeuses eram tambm aqueles que detinham o controle das "palavras secretas", de um saber oral cuja linguagem, rica em metforas e prenhe de ambigidades, estabdecia uma espcie de nexo entre a realidade cotidiana e o mundo JItico. Eram, por isso mesmo, "guias espirituais" das comunidades a que tinbam acesso e, via de regra, diziam ser imortais. Personificavam, assim, os mitos cosmognicos e escatolgicos que veiculavam com sua linguagem peculiar: eles no morriam, abandonavam o mundo; e tambm no nasciam, retomavam.22

    Martin Ocelotl j dODnava o /IO/lUa//atol/i, a linguagem secreta e esotrica dos astecas, desde antes da conquista espanhola. Fora, como se viu, adivinho de Montezuma e um dos que previram o fim do "sol asteca". Alegava ter res

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    curandeiro. profetizava secas. Oceloll. seu nome indgena. significava jaguar: o elemento smbolo da era primordial na cosmogonia nabuatl; uma das fonuas de Tezcallipoca. o deus dos guerreiros astecas.

    luan Chocne fora Kuraca (chefe aldeo) no Peru Central. antes de tornar-se o lder espiritual do Taqui Ongoy. Alegava possuir o extraordinrio poder de encarn.1r as huacas (fato novo na religio andina). ser portador de espritos que "ningum era capaz de ver'. Chocne tambm dizia ser capaz de metamorfosear-se e. a exemplo das buacas. transportar-se de um lugar para outro no ar. Como guia dos ndios nesta luta pela ressurreio dos antigos deuses. o xam .do Taqui Ongoy advertia a todos que. se no o seguissem. seriam excludos da "nova era" - intimidao alis generalizada em todos os milenarismos indgenas.

    Do mesmo modo que Chocne. Antnio. o lder da Santidade de laguaripe. dizia encarnar Tamanduare. o ancestral dos tupinamb, chegando mesmo a afinnar que, a exemplo do heri mtico. escapara do dilvio metido no OUlO de uma palmeira. Pensava e agia. portanto. como um paje-au. os grandes carabas (karai) da cultura tupiguarani. E como diria Egon Schaden: "o paj um pequeno heri. assim como o heri um grande paj"P Por outro lado. Antnio. encamando Tamanduare, tambm legitimava o seu poder com o prestgio da hierarquia crist : dizia ser o verdadeiro Papa. e nomeava bispos e sacristos ...

    Limitei-me a dar alguns exemplos de personalidades profticas dos milcnarismos indgenas. Exemplos expressivos no apenas da fora das tradies amerndias como da presena. em diversas situacs. de ingredientes cris'os como instrumento ancilar do poder xamaDstico. Nbeu. o xam guarani. vestia hbito sacerdota l. Ocelotl dizia receber mensagens de Deus

    por meio de franciscanos-jaguares. luan Chocne pregava ladeado por ndias com

    nomes de santas catlicas. Vrios desses lderes haviam passado pelas mos dos missionrios, e absorvido, quando menos, os rudimentos da f crist. E o que dizer de Lago BeUo - o profeta 1dio dos senecas na Amrica do Norte setecentista - que pregava em nome de um deus comum a brancos e 1dios?

    "Messias contra Messias": a expresso de Maxime Haubert, e parece resumir muito bem a luta dos xams amerndios que. armal. eram homens-deuses extasiados, que s vezes podiam voar ...

    5. Para todos estes movimentos, o mi Illio est imillente, mas no ser illStaurodo sem cataclismos csmicos ou catstrofes histricas

    ,

    Ultima caracterstica. de que os milenarismos amerndios do provas numerosas e eloqentes.

    Em certos casos. o que se percebe o predomnio de cataclismas que no raro preludiam ou se confundem com "guerras imaginrias". No Taqui Ongoy. luan Chocne pregava que as "huacas do reino", j ressuscitadas e comandadas pelas de Pachacamac e Ttticaca. estavam j vagando no ar. espera do combate sem trguas contra o deus cristo. Esse ltimo. dizia. havia j concludo a sua meta, o seu "turno de mando", e uma vez destronado, daria lugar a um novo mundo governado pelas huacas. E, assim como a antiga vitria do deus cristo sobre as huacas havia correspondido ao triunfo dos espanhis sobre os ndios, sua iminente derrota levaria os antigos conquistadores morte: "o mar haveria de cresccre os haveria deafogar'. como num grande dilvio "para que deles no houvesse memriaH.Guerra imaginria o que se v tambm na pregao dos homens-deuses mexicanos: Occlotl. seu inno Andrs Mixcoatl. seu criado Papalotl. Occlotl. alm de realizar sacrifcios. curar enfennos etc .... pre-

  • IDOLATRlASE MnENARtsMOS 41

    gava, como se disse, que o usol fraociscano" estava no fim. Exortava os ndios para que o seguissem, tanto "caciques" como macehuales (camponeses), pois somente os que retomassem s tradies se poderiam salvar ou renascer. Para apre'5S3r a "nova era", chegou a ordenar que seu irmo, Mixcoatl, recolhesse 3.600 pontas de flecha para combater os cristos numa guerra mgica, ao que parece, pois Ocelotl jamais urdiu uma batalha em campo aberto contra o espanhol.

    Noutros casos, especialmente nas regies de fronteira, a expectativa da renovao do mundo enveredou francamente para a luta armada, a escatologia se confundiu com a "catstrofe histrica" deque nos fala Eliade. Foi o caso da rebelio liderada por Tenamaxtle, no norte mexicano, cuja pregao dos profetas de "11a101" levou os ndios destruio de povoados e igrejas espanholas, at serem derrotados pelo vice-rei, em 1542 Foi tambm o que ocorreu no prprio Peru, quando o oco-inca TItu OJSi esboou seu plano de uma insurreio geral no vice-reino, marcando-a para 1565. Foi o que ocorreu em vrias rebelies dos guarani contra os jesutas, no Paraguai, todas elas empenhadas em apressar (j retomo dos indios ao espao e ao tempo da "terra sem mal". E, deslocando-se o cenrio para a Amrica do Norte, foi o caso da insurreio de Pontiac, cujos guerreiros otawas, bUles e senecas pareciam atender aos apelos do Profeta delaware, ou de seu sucessor, Lago BeUo, quando exigiam em nome do "Senhor da Vida" que tndos voltassem aos antigos costumes, expulsando os brnncos da terra de seus ancestrais.

    Situao intennediria entre a guerra mgica e a luta armada se pode perceber, entre outros movimentos, nas "santidades" do Brnsil quinbentista, rujos carabas orn

    pregavam ostensivamente a guerra, ora apontavam vagamente parn o triunfo prximo dos ancestrais. Em qualquer dos casos, porm, o destino que se reservava aos

    portugueses ern trgico: seriam expulsos da \erra, mortos, ou escravizados pelos 1dios. A prpria Santidade de Jaguaripe, no obstante ter se instalado nos domnios de um senhor de engenho colonial - quem sabe na esperana v de (re)encontrar o parnrso tupi nas bandas do mar -, no deixou de ser um foco de rebelies e fugas em todo o recncavo baiano. Assim a viram, pelo menos, os potentados da Bahia, exceo de Femo Cabral, quando exigirnm do governador a destruio da igreja de Jaguaripe. Assim pensou o prprio governador Manuel Teles Barreto quando a dermiu, em 1586, como "raiz de que os ramos arrebentava e parn onde fugiam todos esses ndios".

    Concluso

    o estudo das idolatrias e dos milenarismos assume importncia inegvel parn uma histria rulturnl latino-ame';cana. por meio dessas atitudes e movimentos, enquanto manifestaes de resistncia, que se pode perceber, com alguma profundidade, o universo rultural dilacerndo pelo colonialismo.

    tambm digna de nota a extraordinria semelhana de traos - guardadas as especificidades de cada culturn e regio -entre certas manifestaes idoltricas e rnilenaristas no fundo muito diferentes e sujeitas, ainda, a tipos variveis de contato com o europeu. Refiro-me a certos indlcios, a exemplo do papel e do simbolismo dos xams, idia de tempo cfclico, aos tipos de trnnses individuais e possesses coletivas, e a todo um conjunto de eleme.1-tos que pode sugerir um patrimc?nio cultural comum aos povos amerndios .

    Mas este um tema por demais romplexo, que no ollsaria desenvolver DOS limites deste trabalho. A presena de "heris ances-

  • 42 ES11JDOS IOSTRlCXlS - 199219

    trnis", de gneros ou de = is primordiais -assunto que j ocupou muito a ateno dos antroplogos - pode vir a ser matria de uma investigao histrica centrada em arqutipos culturais, a exemplo da "arqueologia do sab" empreendida por Carlo Ginzhurg em seu mais polmico Iivro.26

    Mas no caso da Amrica todo o cuidado pouco. Deve-se desconfiar sempre - o que no novidade - da aparente semelhana entre traos de culturas distintas - e no s por uma eventual oposio tc6rica ao modelo de tipo "difusionista".

    H, em primeiro lugar, o problema da aculJurao (expresso que os historiadores reabilitaram nas ltimas dcadas), que bem pode ter moldado certos contedos e formas das atitudes indgenas de resistncia: a adoo de santos e de liturgias crists, a importncia da Virgem Maria em alguns movimentos, a prpria idia de "fim de mundo" que, se visto pelos ndios como irremedivel e definitivo, poderia comprovar a "influncia da escatologia crist'\que Eliade atribuiu aos "milenarismos primitivos",

    E, em segundo lugar, h o problema da documentao que, alm de fragmentria e contraditria, provm quase toda do europeu, embora muitas vezes baseada em infonnantes indgenas e compilada por missionrios dotados, como Sahagn, de forte "sensibilidade etnogrfica". certo que no se deveesperarda narrativa mtica uma " histria linear' -como bem ensinam os antroplogos. Mas tambm certo -como lembrou recentemente Sabine MacConnack a propsito dos Andes coloniais - que a maioria do que sabemos sobre os ndios provm de cristos escrevendo sobre coisas em que no acreditavam.

    Entre arqutipos e aculturaes, idolatrias e milenarismos indgenas seguimrn, contudo, a sua obstinada sina de resistir ao europeu. Provocando nos colonizadores o medo de uma "reconquista" amerndia ou, quando menos, o estranhamento e a repul-

    sa diante do que chamavam de "costumes bizanos". Bizanos, talvez, e por que no grotescos, como as clebres velhas grvidas de Kertch? Um grotesco ambivalente, diria delas Bakhtin: "combinam-se ali o corpo decomposto e disfonne da velhice e o coroo aioda embrionrio da nova vida".2'T

    Notas

    1.1. Delumeau, Histria do medo no Ocn te (1300-1800), So Paulo, Companhia das letras, 1989, p. 260-268.

    2. 01. Boxer. A Igreja e a expanso ibrica (1440-1 770), Lisboa, Edies 70, p. 98.

    3. S. Gruzinski, LA colonisa/ion de I'imagip na;rej socils indigen.e.s et occidenlalisation dons te Mexique espagno/; XVle. XVIle. siecle, Paris, Gallimard, 1988, p. 195.

    4. R. Vainfas, "Colonialismo e idolatrias: cultura e resistncia indgenas no mundo colonial ibrico". Trabalho apresentado no V Enrootro de Historiadores LatinoAmericanos e do Caribe (ADH1.Aq, So Paulo. Asairem prximo nmero da Revista Brasileira de Histria.

    5. E.G. Guillen, Vrsin peruana de la con quista; la resistncia incaica a la invasin upa no/a, Lima, Editorial Milla Batres, 1970.

    6. J. Oliva de CoII, lA resistencia indgt!tUJ ante la conquista, Mxico, Sigla XXI, 1974, p. 139 e segs.

    1. M. Haubert, A vida quotidiana no Paraguai no tempo dos jesuitas, Lisboa, Edio Livros do Brasi l, s/d, p. 165-167.

    8. R. Vainfas, "Idolatrias lusobrasileiras: as santidades indgenas". em Amrica em tempo de conquista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992. A melbor fonle para o estudo da Santidade de Jaguaripe o processo inquisitorial rontra Ferno Cabral de Tade: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboal, Inquisio de Lisboa, nmero 17065.

    9. W.R. Jaoobs, EI apolio dei ndio norr.amer;cano; ndios y blancos t:n la frontera colo nial, Madrid, AJiam.a Editorial. 1984.

  • moLA nu.AS E MIl ENARlSMOS 43

    10. J. Lafaye. Quet",/c",,'1 y Guadalupe. Madrid. FCll. 1977. p. 59 e segs.; J. Klor de AJba, "Martin OceJoll: dirigente dei culto c1andeslino (Nueva Espana. sigla XVI)". em David Sweel e Gary B. Nash, Luduz por In survivencio DI ltJAmerica Colonial, Mxico. FCE. 1987. p. 135-146; S. Gnllinski. ManGods in lhe Mi.rican Highlatuls. trad. Slanrord University 1'Ies.s. 1989. p. 38 e segs. A principal fonle para o esludo do caso OceloU o 'Proceso dei SanlO Oficio oootra Marin Ucelo, incHo por idolatria y hechioero". em Procesos de {ndios ... Publicaciones dei Archivo General de la Nacin. 19 12 1913. p. 17-5 1.

    11 . L. Millooes, "Un movimienlo nalivista dei siglo XVI: el Taqui Oogoy", Revista PeruaM de Cultura, Lima, nO 3:134-140, 1964, e "Nuevos aspectos dei Taki Oogoy", Historia Cultura, Lima. nO 1 : 138-140. 1965; P. Duviols, "Religion y represio eo los Andes eo los siglas XVI y XVU .... em El etnocidio a travs de las Americas. Mxico. Siglo XXI, 1976, p. 84-94; M. OU310la, "Mito y milenarismo en los Andes: dei Taki Ongoya Inkarri" ,Allpanchis. vol. X:65-92, 1977; N. Wachtel, Los vencidos; los indios dd Per !reNe a la conquista espanola (1530-1570). Madrid. Alianu Edilorial. 1976. p. 282-290; C. Caillavel. "Riluel espagnol. pralique indienne: I'occidentalisalioo du monde andio par le spetade des inslilUlions ooloniales". em Struduclurer t!I cUures der socits ilJro-a",ricaines, Paris, dilions du CNRS. 1990, p. 25-42; S. MacCormack. Religion in lhe Andes; vUiotI aM imaginaJion in early colonial Peru, PriDCeton. PrinrelOn University Press. 1992.

    12. M. Eliade, spedos do mito, Lisboa. Edies 70. 1986. p. 12.

    13. Idem. ib . p. 23. 14. Idem, ib., p. 59. Diz FJiade que o "ais

    liaoismo judaico apresenta uma inovao fundan