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II SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO DA UNESP NOVAS PERSPECTIVAS PARA DEMOCRACIA BRASILEIRAConferências e Painéis Temáticos

II Seminário Direito do Estado V3 - UNESP: Câmpus de Franca · II Seminário de Direito do Estado da UNESP, 29-30 de outubro, 2014, Franca, São Paulo, Brasil ; Murilo Gaspardo,

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II SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO DA UNESP

“Novas PersPectivas Para Democracia Brasileira”

Conferências e Painéis Temáticos

UNESP – Universidade Estadual Paulista

ReitorProf. Dr. Julio Cezar Durigan

Vice-ReitorProfª. Drª. Marilza Vieira Cunha Rudge

Pró-Reitor de Pós-GraduaçãoProf. Dr. Eduardo Kokubun

Pró-Reitora de PesquisaProfª. Drª. Maria José Soares Mendes Giannini

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISDiretora

Profª. Drª. Célia Maria David

Vice-DiretoraProfª. Drª. Marcia Pereira da Silva

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de FrancaPresidente

Profa. Dra. Célia Maria David

MembrosProf. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa

Prof. Dr. Alexandre Marques MendesProfa. Dra. Analúcia Bueno R. Giometti

Profa. Dra. Cirlene Ap. Hilário da Silva OliveiraProfa. Dra. Elisabete Maniglia

Prof. Dr. Genaro Alvarenga FonsecaProfa. Dra. Helen Barbosa R. Engler

Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da SilvaProf. Dr. Jean Marcel Carvalho França

Prof. Dr. José Duarte NetoProfa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira

Prof. Dr. Luis Alexandre FuccilleProfa. Dra. Paula Regina de Jesus P. Pavarina

Prof. Dr. Paulo César Corrêa BorgesProf. Dr. Ricardo Alexandre FerreiraProfa. Dra. Rita de Cássia Ap. Biason

Profa. Dra. Valéria dos Santos GuimarãesProfa. Dra. Vânia de Fátima Martino

Prof. Dr. Murilo GaspardoProf. Dr. José Duarte Neto

Paulo Henrique Reis de Oliveira(Organizadores)

II SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO DA UNESP

“Novas PersPectivas Para Democracia Brasileira”

Conferências e Painéis Temáticos

Câmpus de Franca2016

© 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Franca

Contato: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900CEP 14409-160 - Jd. Petráglia / Franca - SP

Coordenação Científica:Prof. Dr. José Duarte NetoProf. Dr. Murilo Gaspardo

Organização dos Anais:Prof. Dr. José Duarte NetoProf. Dr. Murilo Gaspardo

Paulo Henrique Reis de Oliveira

Comissão Organizadora:Artur Marchioni

Camila Gabriele Pereira de FariaCauê Ramos de AndradeGiovana de Paula GomesGuilherme Pinho Ribeiro

Luisa Loures TeixeiraMarina Ribeiro da Silva

Otávio Augusto Mantovani Silva Paulo Henrique Reis de Oliveira

Diagramação e RevisãoLaura Odette Dorta Jardim (DTBD)

Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE)Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira

Seminário de Direito do Estado da UNESP (2 : 2014 : Franca, SP) II Seminário de Direito do Estado da UNESP : novas perspectivas para a democracia brasileira [recurso eletrônico] / II Seminário de Direito do Estado da UNESP, 29-30 de outubro, 2014, Franca, São Paulo, Brasil ; Murilo Gaspardo, José Duarte Neto e Paulo Henrique Reis de Oliveira (Organizadores). – Franca: UNESP- FCHS, 2016. 310 p. Inclui bibliografia ISSN: 2526-0391

1. Estado democrático de direito. 2. Direito internacional público. 3. Globalização. 4. Democracia. I. Gaspardo, Murilo. II. Duarte Neto, José. III. Oliveira, Paulo Henrique Reis de. IV. Título. CDD – 341.201

Índices para catálogo sistemático:

1. Estado democrático de direito ............................ 341.2012. Direito internacional público .............................. 341.13. Globalização ....................................................... 338.94. Democracia ......................................................... 341.234

APRESENTAÇÃO

José Duarte Neto*Murilo Gaspardo**

Passados cinquenta anos do golpe militar de 1964, o Brasil chegou, em 2014, à sua sétima eleição presidencial direta consecutiva, com o sistema político funcionando dentro da normalidade institucional. Não obstante todos os elementos que indicam a consolidação da democracia brasileira, há grande descontentamento popular com o funcionamento das instituições democráticas, o que tem se expressado, por exemplo: em pesquisas de opinião que revelam o descrédito com os partidos políticos, no crescimento da abstenção e dos votos brancos e nulos nas eleições; e nas manifestações populares que vem ocorrendo desde junho de 2013.

Por sua vez, o Congresso Nacional debate há anos propostas de reforma política, sem que avanços substanciais sejam alcançados. Além disso, a dificuldade de se garantir a efetividade dos direitos humanos, tanto sociais quanto no campo das liberdades públicas, demonstra os limites da democracia brasileira em seu sentido substancial. É o que se revela quando se observa: a precariedade dos serviços públicos de saúde e educação; a permanência de casos de repressão violenta a

* José Duarte Neto é doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Professor Assistente Doutor de Direito Constitucional e Direitos Humanos e Chefe do Departamento de Direito Público da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campus de Franca.** Murilo Gaspardo é doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Professor Assistente Doutor de Teoria do Estado e Ciência Política da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campus de Franca.

mobilizações sociais, tortura e execução; a crise da segurança pública; e as condições desumanas do sistema carcerário.

Transformações importantes estão em curso, como: o crescimento do papel político do Poder Judiciário; os impactos da globalização sobre a soberania nacional, o que coloca em questão tanto a legitimidade como a capacidade decisória das instituições representativas; mudanças profundas no paradigma de funcionamento da Administração Pública, sobretudo no que se refere à sua atuação por meio das políticas públicas e quanto à sua relação com os administrados.

Diante desse contexto jurídico-político, escolheu-se o tema “Novas perspectivas para a Democracia Brasileira” para o II Seminário de Direito do Estado, organizado pelo Departamento de Público da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP/Campus de Franca e pelo Núcleo de Estudos de Justiça Constitucional e Democracia, entre os dias 29 e 30 de outubro de 2014.

O Seminário abordou a temática de maneira interdisciplinar, reunindo docentes, pesquisadores e estudantes. Em termos metodológicos, pretendeu-se promover, simultaneamente, o debate sobre a produção científica dos professores da própria FCHS/UNESP, especialmente do Departamento de Direito Público (DDPB) – mas também em interação com outros Departamentos, e o intercâmbio de conhecimentos com outras instituições de ensino e pesquisa, por meio de conferências com professores convidados e apresentação de trabalhos de pesquisa de discentes de graduação e pós-graduação.

A abertura do evento foi prestigiada pelas presenças da Professora Doutora Márcia Pereira da Silva, Vice-diretora da FCHS/UNESP, do Professor Doutor Paulo César Corrêa Borges, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da FCHS/UNESP, bem como pela discente Maria Helena Galhani, representante do Centro Acadêmico de Direito (CADIR). Após a abertura, ocorreu um debate com Professores do Departamento de

Direito Público sobre o tema “Democracia, Direitos Humanos e Políticas Públicas”. O Professor Doutor Daniel Damásio Borges, fez sua abordagem com ênfase nos “Fundamentos do Direito Internacional Social: o papel do direito internacional público nas políticas sociais”. Por sua vez, o Professor Doutor Fernando Fernandes tratou da questão “Como as politicas públicas em matéria penal se colocam historicamente e no contexto atual da CF de 88?”. Dentro da perspectiva de abertura para o diálogo com outros Departamentos da FCHS/Franca, discutiu-se o tema “Reforma Política e Democracia”, a partir de conferência da Professora Doutora Rita de Cássia Biason (Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas /FCHS/UNESP). Contamos, ainda com dois conferencistas convidados de fora da FCHS/UNESP: Professor Doutor Daniel Campos de Carvalho, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), que discorreu sobre “Democracia e Globalização”; e Professor Mestre Ivar A. Hartmann, da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV/RJ). As transcrições de todas as conferências, revisadas e aprovadas pelos conferencistas, compõem a primeira parte desses Anais.

O seminário também compreendeu painéis temáticos de Iniciação Científica e de Pós-graduação, cujos trabalhos completos apresentados integram, respectivamente, segunda e a terceira partes destes Anais. Contamos com a apresentação de nove trabalhos de iniciação científica (seis de discentes da FCHS/UNESP e três de outras instituições – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG)/Minas Gerais, Universidade Federal Fluminense (UFF)/Rio de Janeiro e Universidade de São Paulo (USP)//São Paulo), e três trabalhos de pós-graduação (um do PPG em Direito da FCHS/UNESP/Franca – SP, um do PPG em História da FCHS/UNESP/Franca - SP e um do PPG em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP)/São Paulo). Os trabalhos apresentaram enfoques bastante diversificados dentro da temática geral “novas perspectivas para

a democracia brasileira”, e foram capazes de suscitar relevantes questões pertinentes aos cinco eixos do evento: (1) “Democracia e Justiça Constitucional”, (2) “Democracia e Globalização”, (3) “Democracia e Reforma Política”, (4) “Democracia, Direitos Fundamentais e Políticas Públicas” e (5) “Democracia, Sistema Penal e Segurança Pública”. Os trabalhos de Iniciação Científica apresentados, especificamente, tiveram como objeto: (1) “Comissões Parlamentares de Inquérito: análise histórica e evolução na tradição constitucional brasileira”(Guilherme Pinho Ribeiro), (2) “Democracia no Século XX: a complexa relação política entre Estados Unidos e Brasil” (Clara Alves Silva), “(3) “A Internacionalização da Economia e seus Impactos na Garantia da Preservação do Emprego” (Nelma Karla Waideman Fukuoka), (4) “Judicialização da Política e o Ativismo Jurídico: Atuação do Supremo Tribunal Federal, Protagonismo nos Processos de Mudança Social e Democracia” (Ana Carolina de Morais Colombaroli e Agnaldo de Sousa Barbosa), (5) “O Tombamento do Patrimônio Cultural Imóvel no Brasil “Ruth Maria Cordido), (6) “Representatividade, Democracia e a Necessidade de uma Reforma Política” (Jonathan Hassen da Rocha Bernardo), (7) “A Regulamentação do Financiamento de Campanha Eleitoral no Brasil e seus Entraves à Democracia” (Ana Carla Pessin de Souza), (8) “Reforma Política no Financiamento de Campanha” (Jackeline Ferreira da Costa) e (9) “ A Privatização dos Presídios e a Afirmação da Função Social do Cárcere” (Bruna Martins Federici, Fernanda Cristina Barros Marcondes e Isabela Risso da Silva). Por sua vez, os trabalhos de Pós-graduação tiveram como tema: “A Encruzilhada do STF: a sentença da Corte-IDH no caso Gomes Lund e outros x Brasil como oportunidade de superação do ranço dualista-autoritário expresso pelo Supremo Tribunal Federal” (Júlia Lenzi Silva e Vinícius Fernandes Ormelesi), (2) “A Reforma do Judiciário e a Responsabilidade dos Membros do Poder Judiciário” (Luciana Campanelli Romeu) e (3) “A Democratização do Serviço Público no Brasil: os casos

do Ministério da Desburocratização e do MARE” (Caio César Vioto de Andrade).

Além do debate e da divulgação de importantes pesquisas que possam contribuir com a análise crítica e a formulação de propostas tendo em vista as “novas perspectivas para a democracia brasileira”, o evento teve como resultados acadêmicos: a criação do Grupo de Pesquisa “Governança Global, Direitos Humanos e Democracia”, composto pelos docentes do DDPB Daniel Damásio Borges e Murilo Gaspardo (Líder), e pelo Professor Daniel Campos de Carvalho, da UNIFESP, bem como por seus respectivos orientandos; e a formulação de proposta de realização periódica de um “Colóquio de Professores” do DDPB, a qual se encontra em análise no Conselho de Departamento, a fim de se criar um espaço permanente e institucionalizado para discussão da produção científica dos docentes e de seus orientandos de pós-graduação.

Registramos nossos agradecimentos a todos os que colaboraram com a organização do Seminário, especialmente a: Direção da FCHS e membros do Conselho de Departamento, que viabilizaram os recursos necessários para custear a vinda dos conferencistas externos à FCHS; Aliança Francesa de Franca, que patrocinou o evento; todos os funcionários da FCHS/UNESP, especialmente o assessor do DDPB, Márcio Augusto Garcia; e discentes membros da Comissão Organizadora: Artur Marchioni, Camila Gabriele Pereira de Faria, Cauê Ramos de Andrade, Giovana de Paula Gomes, Guilherme Pinho Ribeiro, Luisa Loures Teixeira, Marina Ribeiro da Silva, Otávio Augusto Mantovani Silva e Paulo Henrique Reis de Oliveira.

Esperamos que a leitura desses Anais seja útil para o aprofundamento do debate acadêmico sobre “novas perspectivas da democracia brasileira”.

SUMÁRIO

PARTE I CONFERÊNCIAS1

1. GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL?Prof. Dr. Daniel Campos de Carvalho...................................... 17

2. FUNDAMENTOS DO DIREITO INTERNACIONAL SOCIAL: O PAPEL DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO NAS POLÍTICAS SOCIAISDaniel Damásio Borges............................................................. 27

3. COMO AS POLITICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA PENAL SE COLOCAM HISTORICAMENTE E NO CONTEXTO ATUAL DA CF DE 88?Prof. Dr. Fernando Fernandes................................................... 29

4. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIAProf. Msc. Ivar A. Hartmann..................................................... 37

5. REFORMA POLÍTICA E DEMOCRACIAProfa. Dra. Rita de Cássia Biason............................................. 51

1 Nessa parte da obra constam as transcrições das conferências promovidas durante o evento. Ressalta-se não ser um artigo escrito pelos conferencistas e sim a transcrição de suas apresentações feita pela comissão organizadora. Todos os conferencistas tiveram acesso a transcrição de sua apresentação e as aprovaram no formato aqui publicado.

PARTE II PAINÉIS TEMÁTICOS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

1. COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO: ANÁLISE HISTÓRICA E EVOLUÇÃO NA TRADIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRAGuilherme Pinho Ribeiro........................................................... 65

2. DEMOCRACIA NO SÉCULO XX: A COMPLEXA RELAÇÃO POLÍTICA ENTRE ESTADOS UNIDOS E BRASILClara Alves Silva....................................................................... 83

3. A INTERNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA E SEUS IMPACTOS NA GARANTIA DA PRESERVAÇÃO DO EMPREGONelma Karla Waideman Fukuoka........................................... 103

4 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O ATIVISMO JURÍDICO: ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PROTAGONISMO NOS PROCESSOS DE MUDANÇA SOCIAL E DEMOCRACIAAna Carolina de Morais ColombaroliAgnaldo de Sousa Barbosa...................................................... 119

5. O TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL NO BRASILRuth Maria Cordido................................................................ 139

6 REPRESENTATIVIDADE, DEMOCRACIA E A NECESSIDADE DE UMA REFORMA POLÍTICAJonathan Hassen da Rocha Bernardo ..................................... 161

7 A REGULAMENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO DE CAMPANHA ELEITORAL NO BRASIL E SEUS ENTRAVES À DEMOCRACIAAna Carla Pessin de Souza..................................................... 177

8 REFORMA POLÍTICA NO FINANCIAMENTO DE CAMPANHAJackeline Ferreira da Costa.................................................... 203

9 A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS E A AFIRMAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CÁRCEREBruna Martins FedericiFernanda Cristina Barros MarcondesIsabela Risso da Silva.............................................................. 221

PARTE III PAINÉIS TEMÁTICOS PÓS-GRADUAÇÃO

1 A ENCRUZILHADA DO STF: A SENTENÇA DA CORTE-IDH NO CASO GOMES LUND E OUTROS vs. BRASIL COMO OPORTUNIDADE DE SUPERAÇÃO DO RANÇO NACIONALISTA-AUTORITÁRIO EXPRESSO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERALJúlia Lenzi SilvaVinícius Fernandes Ormelesi................................................... 239

2 A REFORMA DO JUDICIÁRIO E A RESPONSABILIDADE DOS MAGISTRADOSLuciana Campanelli Romeu.................................................... 265

3 A DEMOCRATIZAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL: OS CASOS DO MINISTÉRIO DA DESBUROCRATIZAÇAO E DO MARE Caio César Vioto de Andrade................................................. 291

PARTE I

CONFERÊNCIAS

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1. GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL?

Prof. Dr. Daniel Campos de Carvalho*1

É um chavão iniciar qualquer reflexão sobre elementos centrais da Política com a remissão aos gregos. Hannah Arendt, Jürgen Habermas e uma infinidade de outros teóricos usaram este estratagema. Por algumas razões, este artifício tem permanência e continua útil. Sem discutir os motivos para a continuidade desta prática, vou reproduzi-la – e é dessa forma, portanto, que também inicio minha fala.

Assim, gostaria de me valer inicialmente da noção grega denominada “topói”. Um “topói” é um termo que expressa e ancora a argumentação, uma vez que representa “verdades” amplamente aceitas. O reiterado uso retórico de tais termos lhes amplia o sentido, conferindo-lhes múltiplos significados – o que, no limite, torna a expressão uma palavra-oca (ao ponto de que cada interlocutor poder dar um significado diferente ao termo e

* Doutor (2012) e Mestre (2006) em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), além de Bacharel (2002) pela mesma instituição. Atualmente é Professor-Adjunto da Universidade Federal de São Paulo, sendo também pesquisador do ORBIS (Centro de Estudos em Direito e Relações Internacionais) e membro do grupo de estudos “A inserção internacional brasileira: projeção global e regional (UFABC/UNIFESP). Lecionou junto ao Complexo Educacional Damásio de Jesus e à Universidade Anhembi-Morumbi. Foi professor da Faculdade de Direito de Itu (SP), em que ministrou aulas para os Cursos de Graduação e Pós-graduação. Foi Sylff Mobility Program Fellow no Institut Universitaire de Hautes Études Internationales de Genève (2005), Bolsista do The Ryoichi Sasakawa Young Leaders Fellowship Fund (2005) e pesquisador GV-Law da Fundação Getúlio Vargas-SP (2006-2007). Atua em temas das áreas de Direito Internacional Público, Direitos Humanos, Direito da União Europeia e Teoria Geral do Direito Internacional.

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mesmo assim ocorrer a concordância entre eles). Um exemplo emblemático de “topói” é a ideia de Liberdade.

Da mesma forma, a palavra “democracia” é um “topói”, pois há uma pluralidade de sentidos que dificulta seu entendimento. Entre diversas formulações, democracia pode expressar o “sistema de controle popular sobre as decisões e políticas governamentais” ou a “forma de retirar decisões políticas que exige o voto e o respeito aos direitos fundamentais”, por exemplo.

O mesmo ocorre com o termo “globalização”. A expressão globalização pode ser utilizada primordialmente em sua dimensão econômica (desregulamentação de fluxos de capitais, imaterialidade da produção, etc.), social (emergência de novos atores, espraiamento de inovações tecnológicas), culturais (novos códigos de comportamentos), etc.

Por lidar com termos plurais por excelência, a tentativa de relacionar as noções de democracia e de globalização pode apresentar inúmeros resultados. Tal cruzamento pode ter i) impacto na disseminação do primado dos direitos fundamentais; ii) efeitos na qualidade das experiências políticas nacionais; iii) consequências na utilização de democracia como dimensão da segurança internacional; iv) frutos na ampliação da retórica da democracia cosmopolita e iv) resultados na formulação teórica e no uso prático da noção de soberania.

Nesse sentido, tal variedade de enfoques advinda do cruzamento de duas palavras “topói” poderia levar à conclusão de que a relação entre democracia e globalização é um tema vulgar (por conta das diversas manifestações) ou que este é um tema impossível de ser tratado (por conta da complexidade).

Frente a tal cenário, uma indagação é inescapável: por que é importante aproximar democracia e globalização? Isto ocorre pelo fato de que a globalização nos revela novas formas de manifestação do poder e a única forma racional de submissão ao poder na nossa tradição política é a democracia. Trata-se

19“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

assim de um imperativo da contemporaneidade tentar aproximar as duas grandezas.

A melhor forma de ilustrar esta relação é eleger um recorte dessa complexidade e analisá-lo com mais vagar. Antes, porém, cabe a menção de que qualquer recorte pressupõe o descarte de todo um emaranhado de fenômenos de variada relevância. Assim, seria possível aproximar democracia e globalização por meio da atuação da sociedade civil global no período da Guerra do Iraque, por exemplo. Ou no estudo do papel da Opinião Pública Internacional nas intervenções humanitárias dos anos 1990. Porém, não são esses os nossos temas de análise. O principal caso que ilustra as agruras e vicissitudes do referido tema é a questão do deficit democrático das organizações internacionais contemporâneas.

Há alguns pressupostos nesta análise. O primeiro diz respeito à compreensão do termo “organizações internacionais”. Ainda que parte da doutrina divida as organizações internacionais em organizações intergovenamentais e organizações não-governamentais, vale destacar que neste debate apenas nos valeremos do primeiro tipo de instituição – organizações como por exemplo a Organização das Nações Unidas (ONU ) ou a Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo.

Esta espécie de arranjo institucional é uma grandeza típica do nosso tempo. Especialmente a partir de 1945, vivemos uma era de ouro das organizações internacionais (OIs), em grande medida influenciada pela atuação do processo globalizante. As OIs correspondem a um artifício de que o ente estatal se vale contra a erosão da soberania, uma forma de garantir a manutenção do poder frente ao processo de enfraquecimento das entidades políticas nacionais – como bem ilustra, neste tocante, o exemplo da União Europeia (UE). É um processo que ganha vigor dentro da pretensão dos Estados de conseguir interagir eficazmente com a nova realidade global, algo cada vez mais difícil de ser conseguido de modo unilateral.

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Um segundo aspecto que merece menção é quanto à expressão “deficit democrático”. O conceito surge na década de 1970 para designar dificuldades atinentes ao funcionamento do Parlamento Europeu. É nítida a propriedade da expressão em designar o descompasso entre os padrões democráticos de gerenciamento político (adotados por um determinado corpo social) e a realidade do procedimento decisório da instituição pertinente.

Assim, a noção de deficit democrático passou a ser progressivamente utilizada para além da realidade europeia, como na corporificação de limitações do procedimento decisório de organizações intergovernamentais, de instituições financeiras internacionais (como o Fundo Monetário Internacional) ou mesmo de bancos centrais (caso do Banco Central Europeu). Apesar da disseminação do emprego do conceito, a gama de análises sobre o tema do deficit democrático é invariavelmente composta por estudos de Filosofia Política ou por interpretações baseadas na perspectiva da Teoria das Relações Internacionais. Faltam estudos e análises de tradição jurídica que utilizem o conceito e explorem suas consequências.

Como não poderia deixar de ser, a noção de deficit democrático passa a ter diversas formulações na interface com as organizações internacionais. Tal variedade semântica engloba:

• A ideia de que os cenários políticos nacionais cedem competências para os organismos internacionais e enfraquecem o vigor democrático interno.

• A inexistência ou ineficácia de instâncias de representação popular no procedimento de tomadas de decisões das OIs.

• A percepção de que as organizações internacionais são distanciadas das bases sociais nacionais, empregando políticas por vezes distantes da vontade da opinião pública nacional.

• O desrespeito aos procedimentos decisórios das próprias organizações internacionais.

21“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

• A ausência de transparência e publicidade nas tomadas de decisões destes organismos.

• A Ineficácia das organizações internacionais.

Seja como for, de forma simplificada é possível sustentar que o deficit democrático atinente às OIs se manifesta com a ausência de pelo menos um dos elementos abaixo:

1. A permanência de estruturas institucionais e existência de procedimentos de decisão e de fiscalização cruzada.

2. A disputa eleitoral de projetos distintos.3. A existência de canais abertos de deliberação coletiva

com capacidade de influência decisória.

Para uma maior clareza da relevância destes elementos, precisamos nos socorrer de algumas situações práticas:

1 CASO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS

No caso da ONU há a ausência de todas as características elencadas acima, configurando nitidamente o deficit democrático. Se formos pensar no principal órgão da instituição, o Conselho de Segurança (CS/ONU), isto fica evidente. Na dinâmica de funcionamento do Conselho, não há espaço para os traços 2 e 3 apontados anteriormente. Mas também não existem procedimentos de checks and balances (característica 1) que limitem a ação do órgão.

Isto é claro, por exemplo, no âmbito do Regime da Resolução 1267/1999 do CS/ONU. Tal regime estabeleceu uma série de restrições a serem aplicadas diretamente a empresas e indivíduos pretensamente detentores de laços com organizações terroristas. Implementadas sem o respeito a princípios como a ampla defesa e o contraditório, essas medidas consubstanciam, entre outras ações, a limitação da liberdade de locomoção e a inacessibilidade ao próprio patrimônio. Os sujeitos de tais

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comandos mandamentais não detêm de canais institucionais para questionar tal decisão.

2 CASO DA UNIÃO EUROPEIA

No tocante ao funcionamento da União Europeia, ainda que seja possível notar com clareza tanto a permanência institucional – e a fiscalização cruzada desses organismos – (elemento 1) quanto a disputa eleitoral de projetos distintos (elemento 2), há uma dimensão fundamental pendente. Assim, é possível notar a ausência de uma esfera pública vigorosa capaz de constranger o maquinário institucional e comandar suas ações.

Tal é o caso da controversa situação envolvendo o comércio das lâmpadas incandescentes nos últimos anos. O Regulamento 244/2009, com vigência automática nos Estados-membros, determinou as principais exigências a serem respeitadas na busca do bloco por uma matriz energética mais econômica e ecologicamente correta. Assim, a definição das características centrais do novo marco legal foi atribuída ao corpo técnico apontado pela União (e não às instâncias políticas). A referida decisão inviabilizou o comércio de lâmpadas incandescentes, o que gerou diversas queixas e variados protestos junto às bases sociais nacionais – sobretudo nos Estados setentrionais do bloco. Este descolamento entre o posicionamento da opinião pública e a ação da UE é usual, estando presente em inúmeras áreas, como também é bem emblematizado pelo funcionamento da Política Agrícola Comum.

Diante desses casos, é imperioso pensar em algumas alternativas de combate ao déficit democrático. Um dupla de ações que serviria para adensar a dimensão democrática das instâncias de governança global na contemporaneidade é i) o fortalecimento de parlamentos regionais e internacionais e ii) a reinvenção da cidadania para além das experiências nacionais.

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No primeiro caso, mostra-se fundamental a criação de assembleias regionais, internacionais e globais, capazes de influenciar os cernes deliberativos e funcionar como caixa de ressonância da esfera pública correspondente. Frente às instituições deste tipo já existentes, é fundamental assegurar a ocorrência de eleições diretas para estas casas e o aumento real das competências de tais órgãos.

Quanto ao segundo tema, vale lembra que não há fórmula pronta sobre como a cidadania se manifesta – vide a diversidade de expressões nacionais. É importante analisar a experiência da cidadania europeia e extrapolá-la, como bem ilustraria a disseminação de mecanismos de iniciativa popular junto às instâncias da governança para além do Estado Nacional.

Antes de nos encaminharmos para o encerramento da nossa discussão, há de se fazer um alerta. O termo democracia, justamente por ter múltiplos sentidos e uma alta carga simbólica, pode ser empregado retoricamente para fins controversos – que podem, no limite, desafiar os próprios primados democráticos.

Este é o caso, por exemplo, dos questionamentos submetidos ao Tribunal Constitucional Federal Alemão sobre o plano do Banco Central Europeu de compra da dívida pública dos Estados em dificuldades econômicas (uma vez que tal iniciativa teria um impacto sobre a realidade do orçamento alemão, apesar de definido às margens da população nacional e sendo, assim, “antidemocrático”). No mesmo sentido, ainda que com caracteres próprios, é possível mencionar a polêmica utilização do Protocolo de Ushuaia para a suspensão da participação paraguaia no MERCOSUL em 2012.

De todo modo, é interessante notar como cada vez mais a questão democrática vem ganhando espaço na senda internacional – chegando inclusive a configurar um princípio do Direito Internacional Público, para alguns autores. A atuação da Organização das Nações Unidas em certas searas e o gradual fortalecimento de um sistema internacional de proteção dos

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direitos humanos reforçam esta percepção. Sem sobra de dúvidas, o reconhecimento progressivo da democracia como um princípio norteador das relações para além do Estado tem conexão com o tema da legitimidade internacional.

Eis aqui o apontamento final: a mudança do conteúdo material do conceito de legitimidade internacional pode viabilizar que a relação entre democracia e globalização ganhe identidade. A presença da centelha de legitimidade fornece a medida do possível na Política Internacional. Durante muito tempo se considerou que o legítimo era agir de acordo com o interesse nacional. Isso mudou na atualidade, há outros valores e objetivos que informam a ação legítima no plano internacional – como os princípios democráticos.

A própria discussão sobre reforma da ONU (e o combate ao deficit democrático da instituição) evidencia isso. Ainda que seja um cenário de distante verificação, hoje se debate amplamente alterações na dinâmica da organização – como a ideia defendida por alguns teóricos de criação de uma assembleia dos povos, reformando a ONU de modo que sejam criadas duas “casas parlamentares”, uma representando os Estados e outra, as populações internacionais. Ainda que quase lúdica se considerarmos a complexidade vigente na cena internacional atual, tal proposta expressa a importância de alteração de um arranjo institucional congelado por décadas. Um arranjo que carece cada vez mais de legitimidade.

Mas não seria o reconhecimento das relações de poder que garantiu até hoje o funcionamento da ONU? Até que ponto é válido abrir mão deste funcionamento, relativamente eficiente, em nome de uma maior transparência democrática? Sem dúvidas, colocar em risco a eficácia relativa da organização em nome de aspirações democráticas pode implicar uma sentença de morte para a ONU. Dentro do nosso paradigma político, porém, não há como justificar legitimamente a sujeição a um determinado poder que não seja pela via democrática.

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Frente a todo o exposto, retomo o início do debate e a questão da palavra topói. Interessante pensar qual o alcance, face à relação entre democracia e globalização tal qual vivemos atualmente, do ditado popular que afirma: “A palavras ocas, ouvidos moucos”. Espero que, ao menos no tocante ao nosso debate de hoje, a expressão não tenha sentido.

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2. FUNDAMENTOS DO DIREITO INTERNACIONAL SOCIAL: O PAPEL DO DIREITO INTERNACIONAL

PÚBLICO NAS POLÍTICAS SOCIAIS

Daniel Damásio Borges*

Dentre os temas que pautam o debate acerca das relações internacionais, a “questão social” ocupa um lugar proeminente. A expressão surgiu como uma crítica ao sistema capitalista do século XIX em razão das desigualdades e da divisão social causada por esse sistema de produção na sociedade europeia dessa época. Esse termo designou, no século XIX, os riscos para a coesão social dos países capitalistas provocados pelo pauperismo da classe trabalhadora e pela correspondente polarização da sociedade entre as classes sociais decorrentes do livre funcionamento do mercado, em especial do mercado de trabalho. Segundo essa crítica ao capitalismo, a divisão extremamente desigual dos frutos do crescimento econômico colocava em perigo a coesão social.

Diante desse quadro, os Estados europeus começaram, a partir do século XIX, a estabelecer um conjunto de regras e de instituições para fazer face à “questão social”. Essas políticas sociais consistiram na adoção de medidas que protegem e atribuem vantagens aos trabalhadores e que asseguram às classes sociais menos favorecidas o acesso aos bens e serviços essenciais a uma existência digna. O Estado passou, assim, a se ocupar da questão social.

Essa assunção pelo Estado dessa função não teve repercussões apenas para as ordens jurídicas nacionais. Normas internacionais, também, começaram a versar sobre esse tema a partir do início do século XX. A Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1919 desempenhou um papel

* Daniel Damásio Borges é doutor em direito pela Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne) e Professor Assistente Doutor de Direito Internacional da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campus de Franca.

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pioneiro na proteção da dignidade da pessoa humana. Desde 1919, a Conferência internacional do Trabalho adotou 189 convenções que estabelecem normas mínimas sobre as relações de trabalho que os Estados que as ratificarem têm a obrigação de cumprir1.

Segundo esse método, o principal órgão da OIT – a Conferência internacional do Trabalho – adota sucessivamente instrumentos convencionais distintos sobre determinadas matérias acerca do trabalho. Claro está que a adoção da convenção não significa que elas se tornem obrigatórias para os Estados membros, uma vez que elas precisam ser ratificadas para produzirem esse efeito. De todo modo, tal adoção implica o dever dos Estados membros de levá-las à apreciação de suas autoridades competentes para que decidam sobre a ratificação e cria uma pressão política e diplomática para que isso ocorra.

Nesse contexto, deve-se estudar o impacto nos Estados e, em especial, no Brasil das normas internacionais de natureza social. Nesse caso, esses atos internacionais produzem efeito vinculante na esfera internacional. Cabe analisar o modo pelo qual o Brasil cumpre os seus compromissos internacionais. As convenções da OIT, por exemplo, fazem parte de um rico contencioso no Supremo Tribunal Federal sobre os seus efeitos na ordem jurídica brasileira. Esse estudo da jurisprudência assume particular relevo no momento atual em que decisões judiciais exercem uma influência significativa sobre as políticas públicas.

1 Em 2011, a OIT adotou a convenção de número 189 que trata dos trabalhadores e trabalhadoras domésticos. Nós abordaremos novamente essa convenção ulteriormente.

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3. COMO AS POLITICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA PENAL SE COLOCAM HISTORICAMENTE E NO

CONTEXTO ATUAL DA CF DE 88?

Prof. Dr. Fernando Fernandes*

Inicialmente cabe um esclarecimento de que quando se fala em política pública no âmbito penal está se referindo ao que conceitualmente passou a ser denominado por “política criminal”.

Portanto, trata-se de estratégias ante ao fenômeno do crime, que são expressas em determinadas políticas públicas adotadas em cada Estado, nos termos de uma política criminal. Embora esta política criminal apresente alguns vasos comunicantes no tempo presente, seja na forma de algumas estratégias adotadas em comum entre os estados frente a determinados crimes – por exemplo, o fenômeno do tráfico ilícito de entorpecentes, da criminalidade organizada, da operação com ativos ilícitos, do terrorismo internacional –, seja em razão mesmo da semelhança de algumas das práticas deste fenômeno, ela possui, e deve continuar possuindo, uma identidade própria em cada ordenamento jurídico.

* Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista « Júlio de Mesquita Filho » (1987), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1992), doutorado em Direito pela Universidade de Coimbra (2000) e pós-doutorado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (2011). Atualmente é professor Assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área das Ciências Jurídico-Criminais, com ênfase em Direito Penal, Política criminal e Criminologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal Secundário (Direito Penal Tributário, Direito Penal Ambiental, Direito Penal das Relações de Consumo, Direito Penal Informático), Crimes de Corrupção, Crimes de Lavagem de Ativos Ilícitos, Tendências criminológicas contemporâneas, a influência da política criminal no Sistema Jurídico-Penal, Direito Penal e Constituição.

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Assim, embora seja possível identificar um conceito “universal” acerca da política criminal, válido de forma atemporal e independentemente do contexto histórico, o seu conteúdo necessariamente deve ser contextualizado segundo as circunstâncias de tempo e espaço, levando-se em conta as características próprias de cada modelo de sociedade e a sua respectiva organização política. Portanto, é necessário verificar como ocorre esta contextualização na sociedade brasileira, considerando-se principalmente o marco axiológico inserido na Constituição.

Estando ainda pendente de um consenso mais estabilizado a respeito do que consiste esta política criminal, talvez se possa arriscar um ensaio a seu respeito a partir dos próprios elementos integrantes do conceito. Neste sentido, a política criminal consiste em um conjunto de estratégias políticas de natureza pública frente ao fenômeno do crime.

Além da sua natureza pública, a política criminal é, na verdade, uma política jurídica, sendo este o recorte essencial, de modo a diferenciá-la de qualquer estratégia de poder que, sem qualquer limite ou controle, procure “combater” o fenômeno do crime.

Não é sem razão a afirmação de Silva Sánchez1 quando acentua que “[...] também a política criminal está sujeita à racionalidade; a uma racionalidade que se subtrai ao voluntarismo e que exige um esforço argumentativo formal e material.”

Esta racionalidade implica em que são estratégias que só podem ser concebidas e implementadas por meio do Direito, o que no âmbito especificamente penal significa que ela só pode ser exteriorizada por meio de normas jurídicas formalmente elaboradas; mas tão importante quanto a este aspecto, resulta que essas normas revelem um conteúdo material à luz de determinados

1 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Introducción: dimensiones de la sistematicidad de la teoría del delito. In: WOLTER, Jürgen; FREUND, Georg. (Ed.). El sistema integral del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2004. p. 29.

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princípios, em regra consubstanciados nas constituições políticas, ao menos no contexto dos ordenamentos que se estruturam em bases constitucionais.

A competência formal para a elaboração desta política criminal pertence à esfera legislativa, mesmo quando a iniciativa parta de outra esfera de poder estatal ou da própria sociedade. Em relação à sociedade, ela pode exercer sim um relevante papel no que se refere à concepção da política criminal. Desde logo, esta influência ocorre pela via totalmente formal, consistente na forma em que se verifica a composição dos parlamentos, levando-se em conta que, ao menos nos Estados organizados na forma de Estado democrático de Direito, atribui-se à sociedade a indicação daqueles que ficarão responsáveis pela elaboração da política pública geral em matéria criminal. Aliás, já adiantando algo, a realidade do Ordenamento Jurídico brasileiro se revela paradigmática, tendo em vista que na elaboração da Constituição Federal de 1988 forças populares intensas atuaram, por meio de grupos de pressão, no sentido da contemplação no texto constitucional de cláusulas de criminalização em relação a diversas matérias. Porém, ainda neste âmbito assiste-se uma crescente tendência de se chamar a sociedade para diretamente opinar quanto à estratégia a ser adotada em relação ao fenômeno do crime, ainda que não se possa falar em políticas de caráter geral até o presente momento, sendo mais em relação à hipóteses pontuais que dizem respeito a certos crimes específicos. A título de exemplo, podem ser citadas as experiências verificadas em alguns ordenamentos jurídicos, no sentido de realização de consultas populares relacionadas à descriminalização do aborto, da posse e consumo de entorpecentes, do porte e uso de armas. Como exemplo buscado ainda na realidade brasileira, há algum tempo foi realizada uma consulta popular, na forma de plebiscito, visando colher indicações da sociedade a respeito da criminalização do porte de armas de fogo. Além disso, é conhecida a atuação direta de grupos de interesse junto ao Poder Legislativo, visando a

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adoção de certas políticas criminais, podendo ser citadas, a título de exemplo, movimentos ligados à defesa dos direitos de gênero, “de raça”, dos idosos, dentre outros. Também neste aspecto a experiência brasileira revela dados, podendo ser citado, a título de exemplo, o movimento social, tendo à frente grupos de defesa do gênero feminino, que influenciaram na edição de Lei específica criminalizando a violência doméstica (Lei Maria da Penha).

Portanto, é das proposições da política criminal, obtidas através da projeção dos problemas jurídicos no contexto mais amplo da política social, que se poderá esperar uma contribuição para o domínio do problema do crime2.

Quando se fala em política criminal não se está a referir apenas à sanção penal, muito menos somente à pena privativa de liberdade. Deve ser evidenciado o que é mais importante, ou seja, a atuação da Ordem Jurídica por meio da norma (mais importante do que por meio da pena). As normas são as determinações (preceptivas e proibitivas) que pautam a vida de todos em uma determinada sociedade; são instrumentos de comunicação que vem antes mesmo da pena, já que esta só ocorrerá se a norma não for cumprida.

Neste sentido, há uma ligação muito próxima entre política criminal, democracia e cidadania.

Assim, "[...] as proposições político-criminais hão-de ser, também elas, procuradas dentro do quadro de valores integrantes do consenso comunitário e mediados ou 'positivados' pela Constituição democrática do Estado."3

Quando a Ordem Jurídica elabora e o Estado implementa uma determinada opção político-criminal deve visar assegurar

2 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal: lições coligidas por Maria João Antunes Coimbra: Universidade de Coimbra, 1988-1989. p. 17.3 Id. Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 43, p. 12, 1983; ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1972. p. 77.

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as condições democráticas do ordenamento jurídico, só se justificando esta implementação na necessidade de preservar os aspectos inerentes ao valor base da dignidade da pessoa humana; fora disto se trará de mero autoritarismo.

Uma das referências de maior relevância para se avaliar o aspecto democrático do modelo de Estado é atenção para com Direitos Humanos. A esse respeito, pode-se afirmar que os próprios objetos com que lidam as normas jurídico penais relacionam-se aos direitos humanos. Prevalece ainda o entendimento de que a intervenção do Estado por meio de uma determinada política criminal se dá concretamente em decorrência da necessidade de preservação de um determinado interesse (bem ou a norma posta pelo Estado). A afetação (dano ou perigo) que ocorre em relação a este interesse já é uma violação de alguma manifestação dos Direitos Humanos. Exemplos: no crime de homicídio, o objeto da norma penal é a vida (direito humano); quando o Estado implementa uma determinada política criminal no domínio econômico (direito de concorrência ) ele procura preservar as condições de um mercado, que, se desregulado pode prejudicar um direito humano fundamental.

Assiste-se atualmente uma crescente iniciativa de adoção de uma política criminal em relação a manifestações específicas dos direitos humanos, ligadas às ideias de igualdade e solidariedade, sendo disto exemplos: questões de gênero, questão da liberdade de opção sexual, questões de racismo, questões relacionadas às condições de trabalho dentre outras.

No Brasil, antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, já se propunha uma política criminal que pudesse abranger novos aspectos do fenômeno do crime, podendo aqui ser mencionado o que constou na Exposição de Motivos da Reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984, explicitando que se destinava a atualizar o Direito Penal de modo a adequá-lo às novas questões postas pela configuração atual da sociedade. Da mesma forma foram apontados os motivos que indicavam a

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necessidade de um processo de descriminalização, retirando a relevância criminal de algumas condutas, especialmente aquelas ligadas à “moralidade sexual”.

Com o advento da Constituição de 1988, Dometila Carvalho4 afirma que o Estado Social de Direito ressurgiu como Estado Democrático, não se furtando, entretanto, aos compromissos liberalistas – típicos do Estado de Direito – “[...] que, se mantidos em equilíbrio com os compromissos com a socialidade e a solidariedade social, poderá permitir que sejam alcançados os objetivos apregoados (artigo 3º).”

Demonstra-se, assim, a presença dos aspectos “social”, “democrático” e “de direito” na Constituição de 1988, tendo como valor de referência a dignidade da pessoa humana, que devem ser as referências para a elaboração e implementação das opções de política criminal.

As razões que sustentam esta opção [de cunhar o modelo de Direito Penal a partir do modelo de estado] residem em que o modelo de estado “[...] é uma opção política cuja legitimidade não procede de seu reconhecimento constitucional”, mas sim decorre de um consenso político prévio. Todavia, com isso não se desconhece “[...] que o reconhecimento constitucional acresce à legitimidade externa do modelo político e seus princípios sua validade jurídico-positiva.”5

4 CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1992. p. 22.5 MIR PUIG, Santiago. El principio de proporcionalidad como fundamento constitucional de limites materiales del derecho penal. In: CARBONELL MATEU, Juan Carlos; GONZÁLEZ CUSSAC, José Luis; ORTS BERENGUER, Enrique. (Dir.). Constitución, derechos fundamentales y sistema penal. (Semblanzas y estudios con motivo del setenta aniversario del profesor Tomás Salvador Vives Anton). Valencia: Tirant lo blanch, 2009. t. 2. p. 1359-1360. (grifo nosso). Porém, mesmo no contexto por último mencionado no texto a Constituição poderia conservar a sua condição de topos argumentativo na atividade de interpretação da nova Constituição.

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Assim, no plano transistemático, com a Constituição Federal de 1988, verificou-se a consolidação do embasamento da mencionada política criminal, sendo incluídas clausulas de criminalização tanto em relação às mencionadas manifestações específicas dos direitos humanos, ex. crime de racismo, quanto também em relação ao âmbito das relações econômicas, ex. a proteção penal do meio ambiente prevista no art. 225 § 3.

No plano propriamente sistemático, no Ordenamento Jurídico brasileiro esta opção político-criminal se concretizou em uma ampliação da atividade legislativa em matéria penal, que se alinha à tendência que se verifica em outros Estados de mesmo entorno cultural, expandindo as normas penais aos já mencionados campos das manifestações específicas de alguns aspectos dos direitos humanos (racismo, gênero, opção sexual) e da economia (ambiente, consumo, sistema financeiro, ordem tributária), aproximando-se à terceira geração de Direitos Humanos: direitos de solidariedade.

No plano da efetivação das opções político-criminais, uma amostra pode ser obtida na análise da posição adotada pelo Supremo tribunal federal (STF) na ação penal 470 (“Mensalão”), quando foi submetida à Corte a análise de alguns casos de corrupção. Adotou-se uma posição clara no sentido de efetivar um maior rigor no que tange à corrupção, na linha da acentuação da preocupação com este delito que se verifica também em outros ordenamentos jurídicos. A mensagem que o Supremo Tribunal Federal deixou foi: o Estado brasileiro se preocupa com a efetivação da política criminal na questão da corrupção para que seja consolidada a democracia. A corrupção é um vírus que atravanca o caminho da democracia, na medida em que possibilita jogo de interesses por aqueles que deveriam concretizar a condição democrática do Estado.

As perspectivas de futuro da política criminal se orientam na direção da ampliação da legislação diretamente ligada aos Direitos Humanos de 3ª geração. Todavia, o problema não

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consiste na elaboração da política criminal por meio da criação de normas jurídico-penais, mas sim da sua correta implementação pela via dos tribunais.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1992.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal: lições coligidas por Maria João Antunes Coimbra: Universidade de Coimbra, 1988-1989.

______. Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 43, p. 5-40, 1983.

MIR PUIG, Santiago. El principio de proporcionalidad como fundamento constitucional de limites materiales del derecho penal. In: CARBONELL MATEU, Juan Carlos; GONZÁLEZ CUSSAC, José Luis; ORTS BERENGUER, Enrique. (Dir.). Constitución, derechos fundamentales y sistema penal. (Semblanzas y estudios con motivo del setenta aniversario del profesor Tomás Salvador Vives Anton). Valencia: Tirant lo Blanch, 2009. t. 2.

ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1972

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Introducción: dimensiones de la sistematicidad de la teoría del delito. In: WOLTER, Jürgen; FREUND, Georg. (Ed.). El sistema integral del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2004.

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4. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA

Prof. Msc. Ivar A. Hartmann*

Apresento os resultados da pesquisa Supremo em números para falar sobre o assunto que me foi designado que é a justiça constitucional, e dentro da justiça constitucional o relevante questionamento sobre o nosso Tribunal Supremo sobre a nossa suposta corte constitucional, sendo que o foco é a pergunta: seria o nosso Supremo Tribunal federal (STF) uma corte constitucional?

Não faço argumentos no sentido de responder sim ou não, separo a apresentação em três partes que são sub-perguntas: 1) seria essa a carga de uma corte constitucional? ; 2) seria essa a pauta de uma corte constitucional? ; 3) seria esse o processo decisório de uma corte constitucional? Pretendo, desta forma, trazer dados do STF desde 1988, que possam ser utilizados para pensar a resposta a essas perguntas, demonstrando que é possível se pensar questões conceituais e teóricas a partir de constatações empíricas.

Todos os dados que serão apresentados foram coletados no contexto do Supremo em Números, cuja base de dados conta, hoje, desde outubro de 1988 à dezembro de 2013 todos os processos que entraram no Supremo Tribunal Federal, de todas as origens, seja por recursos, seja originária, representando

* Doutorando em Direito Público pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Mestre em Direito Público pela PUC-RS e Mestre em Direito (LL.M.) pela Harvard Law School. Professor e Pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas - RJ. Coordenador do Projeto Supremo em Números. Professor visitante no nível de Extensão e Pós-Graduação nas Universidades FEEVALE, PUCRS e Uninorte e no FGV Law Program. Coordenador Executivo da Revista Direitos Fundamentais e Justiça (B2). Conselheiro Editorial da Revista de Direito das Novas Tecnologias (B5). Ex-bolsista da CAPES, do DAAD e da Harvard Law School.

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quase um milhão e meio de processos. Isso por si só torna a empreitada de análise complicada e é apenas graças a tecnologia que se torna viável. Além desta quantidade de processos há uma quantidade ainda maior de partes: mais de dois milhões e meio de partes atuando nesses processos, e mais de catorze milhões de andamentos. Sobretudo sobre essas variáveis que se constituem os levantamentos. O projeto existe desde 2010, quando começaram a ser levantados os dados, iniciado com o trabalho visionário do professor Pablo Cerdeira, FGV-Rio, que hoje conta com uma equipe de doze pessoas, das quais metade não tem formação em direito, mas sim em engenharia da computação, ciência da computação, estatísticas e história, constando de esforço transdisciplinar. O projeto conta com três relatórios, um de 2012, um de meados de 2013 e um de 2014, tornando-se um projeto fixo que testa os limites da aplicação da ciência e tecnologia na pesquisa em direito.

As partes da palestra mencionadas anteriormente dizem respeito, na verdade, aos três relatórios, sendo que o primeiro, cujo título é “O Múltiplo Supremo” corresponde à pergunta “seria essa a carga de uma corte constitucional”, que compara o Supremo como corte constitucional, recursal e ordinária; a segunda pergunta “seria essa a pauta de uma corte constitucional” diz respeito ao segundo relatório, chamado “O Supremo e a Federação”, analisando quem e o que pauta o Supremo; a terceira parte concentra, principalmente, os dados do terceiro relatório, chamado “O Supremo e o Tempo”, publicado no final de setembro. Todos os dados estão disponíveis no site oficial do projeto: www.supremoemnumeros.fgv.br.

“Seria essa a carga de uma corte constitucional?”Primeiramente, a quantidade de portas de entrada

que tem o nosso STF. As cortes pelo mundo tem de uma à quatro portas de entrada, geralmente recursos de amparo, reclamação constitucional, apelação para o controle difuso de constitucionalidade; o Supremo Brasileiro, por sua vez, chegou

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a contar com 52 portas de entrada: cinquenta e dois tipos de processo ou de procedimento pelo qual alguém pode acessar o STF. Esses são dados do primeiro relatório, do qual o agravo de instrumento e o recurso extraordinário são as principais portas em termos da quantidade de processos, o Habeas Corpus na sequência e as outras formas, se comparadas com a quantidade de agravos de instrumento e recurso extraordinário, parecem ser irrelevantes: temos tipos de porta de entrada como carta rogatória, petição simples, inquérito, ação cautelar, mandato de injunção; mas temos coisas mais obscuras como a suspenção de tutela antecipada, prisão preventiva para extradição, petição avulsa, comunicação, etc, algumas dessas categorias já foram desativadas, mas algumas que persistem como forma de acionar o STF. Nas análises da primeira pesquisa o que surgiu foi que, na verdade, o STF se divide em três: o Supremo Constitucional, do controle de constitucionalidade; o Supremo Recursal, que julga os agravos de instrumento e recursos extraordinários; e a Suprema Corte Ordinária que julga todo o resto.

Quando comparamos a atuação destas três formas, é surpreendente que a atuação do Supremo Constitucional responda por apenas 0,5% dos processos do STF. Quando falamos da corte ordinária, entre 4% e 7%, dependendo do ano e cerca de 90% do que o STF julga são recursos, portanto uma corte absolutamente recursal. Quando comparamos a complexidade do tipo de processo, utilizando como critério a quantidade de andamentos de um determinado processo, assumindo que menos andamentos significa um processo mais rápido de resolver, mais simples, e quantos mais andamentos um processo mais complexo, o STF quando atua como corte constitucional os processos têm cerca de 30 andamentos; quando atua com corte ordinária, como fez na ação penal 470, do “Mensalão”, em média 21 andamentos; e quando atua como corte recursal o problema se resolve em 10 andamentos, em média.

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Comparando o gráfico anteriormente apresentado, referente a todos os dados, com o gráfico ano a ano, nota-se que a corte ordinária chegou a ser, em 1988, por um breve período, mais representativa que a corte recursal, esta que há mais de 20 anos representa mais de 90% dos processos do STF. Há um aumento da corte ordinária, referente a entrada dos habeas corpus, há 5 ou 6 anos, mas a linha constitucional é sempre muito próxima de zero. Nos últimos anos percebemos um fenômeno que é o novo supremo recursal: o supremo recursal até 2011 era o agravo de instrumento e o recurso extraordinário, que é o recurso por excelência, levando o mesmo tipo de questão ao supremo, acionando uma quarta corte recursal. Quando analisamos 2006, último ano antes da entrada em vigor das medidas da reforma do judiciário para o supremo, tínhamos 60.000 novos REs naquele ano, mais de 60.000 agravos de instrumento, e quando olhamos 2012 notamos que o recurso extraordinário caiu abaixo de 10.000, o agravo de instrumento abaixo de 5.000 e o que temos agora são quase 50.000 AREs. O motivo disso é muito simples, houve uma alteração no Código de Processo Civil em 2010, que determina que o caminho de chegada ao supremo não é mais de um Tribunal Estadual ou Regional, mas sim, passando pelo Superior tribunal de Justiça (STJ), então o agravo em recurso extraordinário passou a ser a via principal de acesso, pois destranca o recurso do STJ para o STF, sendo que os outros tendem a extinguir-se logo. Em termos de quantidade do supremo recursal não houve grandes alterações; era uma reforma que pretendia diminuir o número de recursos no STF, mas acabou não diminuindo, apenas se trocou a via.

Há, portanto, essa projeção que foi feita acerca do novo supremo recursal, com a aplicação das AREs, representada pela linha verde e a linha vermelha corresponde à soma das formas de resposta das AREs, que é a negação da presidência da mesa de que este cumpre os requisitos necessários, o qual nem é distribuído ao relator, ou distribuir ao relator, julgar e arquivar, sendo que a diferença entre a linha vermelha e a linha verde é o passivo:

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podemos ver que já havia um passivo grande na metade de 2013, e fazendo uma estimativa conservadora, linear, de crescimento, teríamos um passivo de algumas dezenas de milhares de AREs para julgar ao final deste ano. O que significa que o supremo começaria 2015 com dezenas de milhares de AREs para julgar, sabendo que receberia neste ano outros 50.000 ou 60.000, realmente preocupante.

O principal motivo do filtro da repercussão geral seria: o supremo não julgará de novo um recurso de questão que ele já analisou; portanto, se passa no filtro da repercussão geral deveria ser um caso novo. Quando analisamos janeiro de 2011 até junho de 2013, dos AREs que passaram no filtro da repercussão geral, ou seja, assuntos considerados novos, encontramos 3.600 recursos de direito do consumidor: o quão complexo deve ser o direito do consumidor no Brasil para que, nesse período, se produção 3.600 novas questões jurídicas relevantes; em direito administrativo são 8.325 novas questões jurídicas que passaram pelo filtro da repercussão geral; direito processual civil e trabalhista quase 5.000 questões jurídicas novas com relevância nacional.

Levantou-se a hipótese de que a presidência escolhia aleatoriamente, por conta da impossibilidade de julgar todos os processos, selecionando um número menor de ações. Isso foi analisado, mas notou-se que o filtro não é aleatório, mas que tem critérios: quando se compara a proporção dos processos dos diferentes assuntos antes de aplicado o filtro e depois, nota-se uma variação enorme na porcentagem de cada matéria. Por exemplo: direito eleitoral tem muito mais representatividade depois de aplicado o filtro, processo penal também, direito penal e do trabalho também; o que cai, é direito do consumidor, direito civil, processo civil, previdenciário e tributário.

A ideia é que exista o filtro para que o supremo possa corrigir injustiças: os juízes do STF decidem que há injustiças em apenas 1,5% ou menos dos casos. Dos processos que passam pelo filtro, desde 2011 até junho de 2013, dois em cada três o

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relator conclui que não devia estar julgando e em quase um terço identifica a necessidade de julgar, mas mantém a decisão do tribunal inferior e em 1,5% ou menos dos casos há procedência ou procedência parcial.

Quando observados os litigantes, importante fator para decidir sobre os recursos repetitivos, observamos que há uma pulverização dos litigantes, ou seja, em 2006, 64% de todos os processos que entraram eram de 10 partes, 94% dos processos eram de 100 partes; em 2012 os top 10 passam a 42%; hoje os 100 maiores litigantes representam 72%.

“Seria essa a pauta de uma corte constitucional?”Essa parte leva em consideração dois aspectos: quem são

os litigantes e quais são os assuntos. Sobre quem são os litigantes, dados do segundo relatório, acerca de qual estado vem os recursos: a região sudeste representa mais de metade dos recursos; a região sul leva mais ou menos um terço; e centro-oeste, norte e nordeste dividem mais ou menos um quarto. Essa distribuição é tal que quando considerado apenas São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais, a soma dos processos que estes estados mandam para o STF representa 39% a mais que todos os outros estados somados. É claro que ninguém espera algo diferente, como que o maior número de recursos venha do estado da Paraíba, mas é por isso que temos a distribuição simples, apenas por estado: São Paulo, 21%; Rio Grande do Sul, 18%; na sequência Distrito Federal, Minas Gerais e Rio de Janeiro e posteriormente há uma queda [no número de recursos], mas é por conta disso que foi elaborada uma correção, correção erigida sobre o número de habitantes e pelo Produto Interno Bruto (PIB), e o último é até mais preciso de litigância: as cidades, os estados ou os países que tem PIBs maiores, portanto economias mais fortes, são os que tem mais litígios. Quando corrigido pela população, observamos que São Paulo fica abaixo da média nacional, ou seja, no período de 2010 a 2012, para cada um milhão de habitantes a média nacional é de 345 processos, em São Paulo são 337 processos para cada

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milhão de habitantes; no Distrito Federal, amplamente maior que a média nacional, em função de uma série de processos que ali começam em função de sua área de competência e procedimento de certas causas, tornando-se um estado que não se pode comparar. Dentre os estados passíveis de comparação, o Rio Grande do Sul é uma exceção, com três vezes mais processos que a média de São Paulo; podemos notar que, mesmo após a correção, o estado do Rio Grande do Sul tem vinte vezes mais processos que o Pará, Maranhão ou Piauí, no STF. Quando corrigido pelo PIB, a média nacional é de 1,7 recursos para cada cem milhões de reais de PIB. O Rio Grande do Sul tem, novamente, cerca de três vezes a média nacional, ficando à frente do Distrito Federal, e São Paulo tem média de 1,1 recursos para cada cem milhões de reais do PIB. É muito importante que está correção seja efetuada, pois há grandes divergências entre os estados.

Quando observamos os litigantes em 2012, em dados do segundo relatório, notamos que entre os dez maiores, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a União estão disparadamente à frente, na sequência o Brasil Telecom, OI, Estado de São Paulo, Estado do Rio Grande do Sul, STJ, pois este figura como parte nos habeas corpus, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, Estado de Minas Gerais e Banco Santander. Isso está relacionado a um dado de direito do consumidor.

Dados do primeiro relatório, de 2011, quem é que leva os casos para o Supremo?

Entidades públicas são litigantes em 90% das vezes, ou seja, quem leva os processos é o Estado, mais especificamente o Poder Executivo, com 87% dos casos, e dentro do Poder Executivo é a esfera federal, com 68%. Portanto, o Poder Executivo Federal é o principal litigante que leva as causas para o STF.

Temos outra comparação, referente à concentração de processos entre os litigantes ao longo dos anos, com importância à relação entre os primeiros anos e os últimos: o principal litigante nesses anos, em 1990, representa 5% dos processos, mantendo

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essa faixa até 1992; houve um salto para 12% em 2008, e em 2006 o maior litigante chegou a representar quase um em cada cinco processos. As concentrações são altíssimas, podemos ver que o 1% dos maiores litigantes concentravam 10% dos processos e passaram a concentrar metade. Quando observamos os 10% maiores litigantes era uma concentração de um quinto, quase um terço dos processos no início dos anos 1990 e chegou a quase 75% dos processos, que apesar da pulverização recente, anteriormente mencionada, ainda é altíssima.

Posteriormente apresentamos dados sobre o que significava ser um dos maiores litigantes nos anos 1990, com dados sobre os resultados dos processos dos dez maiores litigantes: o maior litigante em 1990, a União Federal, 793 processos; em 2006 o maior litigantes, INSS, 23.000 processos; segundo lugar em 1990, o Banco Central, 500 processos; em 2006, 16.000 processos, apenas para ilustrar essa grande concentração, sendo necessário pontuar que bancos estão sempre figurando entre os principais litigantes.

De onde vêm esses processos, em termos de órgão judicial na esfera do judiciário?

Para grande surpresa, os Juizados Especiais, que foram criados para dar resposta rápida a questões simples levam mais processos para a Corte Constitucional do que a Justiçado Trabalho, e esta não é pequena no Brasil. Como era de se esperar a Justiça Federal Estadual manda mais processos que qualquer outra.

Sob o ponto de vista dos assuntos: O que pauta o Supremo?Quando observamos os grandes assuntos desde 2000 até

2012, notamos que há, de fato, bastante mudança. Por exemplo, em 2000, o Direito do Trabalho teve um pico em função, segundo o ex-Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), por um conflito de competência, depois se tornou irrelevante, representando o penúltimo lugar em 2012: temos a concentração de 12% dos processos, sendo que chegou a representar mais de 60% dos processos; Direito Tributário já foi maior, chegando

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a 35% em 2008, hoje não está nem entre os maiores; o que aumentou? Se observarmos o Direito do Consumidor, em 2000, representa quase zero, em 2006 representa quase 4% dos processos e chegou a 16% dos processos em 2012, quadruplicando sua atividade no Supremo, sendo isto compatível com a inserção de Bancos e Telefônicas entre os grandes litigantes; Direito Penal triplicou entre 2006 e 2012; Direito Processual Penal mais do que quadruplicou; Servidor Público aumentou consideravelmente; Direito Civil aumentou também; e caíram Direito do Trabalho, Previdenciário e Tributário. Chamo atenção para os números de Servidor Público, presente no primeiro lugar, algo que nunca foi insignificante, ao contrário de Direito do Consumidor, e que em 2012 foi o assunto que mais vezes chegou ao STF, representando quase 1 entre cada 5 processos. Quando corrigimos pela quantidade de servidores públicos estatutários, em torno de cinco milhões, e corrigimos pelo numero de processos de Direito Material do Trabalho, em função do número de trabalhadores com carteira assinada, o servidor público estatutário tem vinte e seis mais vezes de ter seu processo julgado no STF do que o trabalhador de carteira assinada, e no período de 2000 a 2009 essa diferença era de treze vezes.

A terceira parte referente aos relatórios: o processo decisório do Supremo.

Quando comparadas as decisões colegiadas com as decisões monocráticas, sendo que o Supremo nos últimos anos funciona com a decisão individual, mesmo quando nas instâncias anteriores a decisão foi por órgão colegiado. Havia um esforço para manter o número de decisões colegiadas próximo ao numero de decisões individuais, chegou a ser igual em 1993, 1994 e 1995, mas em 1998 há uma famosa alteração no Código de Processo Civil que deu poderes diferenciados pro relator de em certos casos decidir o processo em casos de decisão já pacificada sobre aquele assunto. A partir de então as decisões individuais saltaram e as decisões colegiadas estão quase sempre próximas de zero.

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No início de 2007, em uma única sessão o pleno do Supremo decidiu cinco mil processos. Portanto o Supremo é um tribunal que tem o processo decisório focado no individual.

Agora se apresentam os dados do terceiro relatório, este que analisou como o STF lida com o tempo, sob seis indicadores: liminares; art 12. da Lei de Controle Concentrado; publicação de acórdão; trânsito em julgado; pedidos de vista dos Ministros; e o tempo concluso ao relator. Dentro desses seis indicadores foram adicionadas algumas variáveis: o tipo do processo; o assunto do processo; o Ministro relator; o ano; e caso limite.

Liminares: observamos primeiro do início do processo até a decisão liminar, seja para conceder ou negar o pedido de liminar. Em média são 44 dias do início do processo até decisão da liminar. Mandato de segurança são 48 dias; ADIn, são 158 dias. Quando observamos por assunto também há grande variação, Direito Penal e Processual Penal ficam na faixa de 30 dias; Consumidor são 80 dias; Direito Civil são 76 dias; Tributário, 65 dias. Há uma grande variação quando observado quem é o Ministro relator do processo. Enquanto o Ministro Teori Zavaski leva 15 dias para decidir a liminar, o Ministro Fux leva 72 dias. A divisão é aleatória e ambos estão recebendo a mesma quantidade de processos de ADIns e habeas corpus. A variação ao longo dos anos, levando em consideração a entrada de processos em determinado ano, o tempo que demorou para a resolução da liminar e o número de liminares. Era esperado que quanto maior o número de novas liminares, maior o tempo para a resolução destas: não foi o que ocorreu. Enquanto ocorre um aumento no número de liminares, a média de tempo para sua resolução continua estável ou diminui. Quando examinados os casos limite temos um processo em que a liminar demorou seis mil e seiscentos dias e diversos outros em que esta veio em três mil dias e, no sentido oposto, as liminares mais rápidas em ADIns que foram concedidas, o principal caso é o de solução em apenas seis horas e vários casos em um dia. Em relação ao tempo de

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vigência da liminar, levando em consideração apenas os casos em que a liminar foi concedida ou parcialmente concedida, por conta do efeito que esta produz, a média foi de 643 dias; em ADIn são 2.267 dias, ou seja, há casos de legislação federal ou estação que ficou suspensa por decisão monocrática durante anos. Tem uma legislação em especial, referente ao Estado do Rio de Janeiro, que dizia respeito à divulgação do salário dos juízes e promotores, em que a legislação que a Assembleia do Rio de Janeiro era no sentido de disponibilizar as informações acerca dessas categorias, e o Ministro suspendeu essa lei parcialmente. Esta liminar ainda está vigente, sendo ela expedida em 2009, aguardando julgamento. Em habeas corpus a média de duração da liminar é de 286 dias; em mandato de injunção 355 dias. Essas são as liminares em que, até dezembro de 2013, foram encontradas as decisões de mérito, entretanto existem processos em que ainda não havia a decisão de mérito até essa data, portanto liminares que ainda estão vigentes. A média desses casos passa de 600 dias para 2.500 e em ADIn passa para 4.414 dias.

Quando observado quem era o Ministro relator quando foi concedida a liminar, o Ministro Sydney Sanches tem as liminares mais duradouras, com 757 dias; o Ministro Jobim, 733 dias; dos que ainda estão na Casa, o Ministro Marco Aurélio, 463 dias; e, no sentido oposto, o Ministro Barroso, 121 dias e o Ministro Zavaski, 185 dias. Aqui os números são bem menores, pois são contabilizados apenas os números do último relator. Desta forma existem duas situações: o Ministro recebe o processo, julga e dá liminar, ou outro Ministro recebeu o processo, deu liminar e o novo Ministro herdou o processo, sendo contabilizado a partir de então o período para levar o processo ao mérito, sendo que os processos herdados são lidados de maneira mais lenta. E na relação ano a ano, esta parece manter relação com a entrada de processos de 1988 até 2005, mas depois salta o número de processos, mas o tempo de vigência das liminares não acompanha este movimento. Entre as dez liminares que ficaram mais tempo

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em vigência todas ultrapassam os 6.000 dias de vigência, e entre as não decididas até 31 de dezembro de 2013, todas ultrapassam 8.000 dias de vigência: as liminares se eternizam.

Sobre a publicação de acórdãos, esta é uma fase extremamente burocrática. Tem a sessão de julgamento colegiado, em que os Ministros levam o voto escrito, o leem, e há a junção desses votos e posterior publicação no diário oficial. Em habeas corpus esse processo leva 240 dias; em ADIn, 368 dias; sendo que o regimento interno obriga os Ministros a publicarem em 60 dias e em nenhuma das formas de processo está sendo cumprida, mesmo nas mais rápidas demoram 100 dias ou mais. Esse dado varia em relação ao assunto: os acórdãos de Direito do Consumidor são publicados em 75 dias; Processo Penal em 197 dias; e Penal em 228 dias, estes últimos dois valores são elevados por conta do habeas corpus; Administrativo, 147 dias; Tributário, 149 dias. Quando observado pro Ministro, ou seja, quem era o relator do processo, os acórdãos do Ministro Celso de Melo demoram em média 679 dias para serem publicados; do Ministro Néri da Silveira, 318 dias; do Ministro Marco Aurélio, 173 dias; dos Ministros abaixo do exigido, Dias Toffoli, 59 dias; Ministro Teori Zavaski, 39 dias; Barroso, 32 dias. Há uma grande diferença entre esses períodos, mas o que faz com que isso ocorra? Segundo pessoas que eram assessores dos Ministros e, portanto, conheciam o funcionamento da Casa, o Ministro Celso faz questão de checar, palavra por palavra, a transcrição da sessão, corrigindo falhas gramaticais e suprimindo trechos de sua fala que não foram do seu agrado. Portanto, quando elaborada a lista com os dez acórdãos que mais tempo demoraram a ser publicados, todos pertenciam ao Ministro Celso de Melo, desta forma a média de dias para a publicação de acórdãos referentes a habeas corpus elevadas, por conta da prática do Ministro. Quando comparada a quantidade de trabalho com o tempo de demora para a publicação do acórdão, mantem-se o fato de que apesar do aumento de trabalho a média de acórdãos produzidos continua a mesma.

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No que tange ao trânsito em julgado, do início do processo até o final, em ADIn este período é de, em média, 1492 dias; habeas corpus, 310 dias; recurso extraordinário, 379 dias; AREs, 133 dias, portanto, conforme esperado, há grandes variações conforme o tipo do processo. O que não era esperado é conforme o assunto: os processos de Tributário demoram mais, 482 dias, enquanto o de Consumidor demora 188 dias. Mais uma vez a quantidade de processos parece não estar relacionada com a duração da resolução dos processos. Dos casos que mais demoraram para ser julgados, a duração é de mais de 8.000 dias.

Pedidos de vista dos Ministros do Supremo: vasculhados os mais de um milhão de processos, forma identificados aqueles que tem, pelo menos, uma decisão colegiada, passível de pedido de vista, que são cerca de 100.000 e foram encontrados cerca de 13.000 pedidos de vista dos Ministros. A regra do pedido de vista variou ao longo do regimento, mas jamais foi superior a 30 dias o prazo de devolução. Foram encontrados 2.863 pedidos devolvidos até o final de 2013 e 124 em aberto. A média de duração dos pedidos devolvidos é de 346 dias, e a dos pedidos em aberto 1.095 dias: estas não precisariam ser tão diferentes. Poderia ser igual, se fosse feita constante pedida e devolução, isso entretanto não ocorre por conta de que há pedidos que são feitos para sempre devolvidos e outros que não o são. Entre os devolvidos, apenas 22% foram dentro do prazo e entre os não devolvidos 6% ainda estavam dentro do prazo. Esses pedidos são de 2.340 processos, há vários processos que tem vários pedidos de vista, e ocorre em apenas 2% dos processos que poderiam ter pedido de vista. Em relação ao assunto, Direito do Trabalho é o que tem o período mais longo de devolução de vista, 704 dias e o mais rápido em Processo Penal e Penal, 163 e 209 dias, respectivamente. Em relação à quantidade de pedidos de vista: Direito Administrativo, 950 pedidos. Em relação à quantidade de pedidos e tempo para devolução de pedidos não há uma relação, apesar de se esperar se o pedido é para estudar o processo.

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Concluso ao relator: por motivos distintos, ao longo do processo, o relator tem de decidir sobre algo. Foi observado o período desde o concluso ao relator até o andamento seguinte, sendo que este pode ser um pedido da parte de análise do processo, ou seja, estes dados são um piso e subestimação do tempo do concluso ao relator, entretanto foi adotada esta medida por garantir a confiabilidade do dado. A conclusão ao relator, neste panorama, leva em média 160 dias, mas esta varia conforme a classe processual, por exemplo, inquérito são 28 dias; 38 dias em habeas corpus; em ADIn, 150 dias; em reclamação, 75 dias; em AREs, 76 dias. Em relação ao assunto, Tributário é o de maior demora, 182 dias; em Processo Penal e Penal, 54 e 64 dias, relativamente. Em relação aos relatores há, também, grande variação, o Ministro Joaquim Barbosa, 283 dias; Ministro Marco Aurélio, 163 dias; no sentido oposto, Ministro Barroso, 40 dias; Zavaski, 55 dias; Celso de Melo, 57 dias. Na variação ao longo dos anos parece que o tempo de duração está caindo, mas chegou a quase 260 dias de média. E, por fim, os processos com o maior número de dias com concluso ao relator, alguns com 5.000 dias de concluso ao relator, outros com 4.000 dias ou 3.000 dias.

Eram esses os dados que pretendia apresentar, para posterior análise reitero a possibilidade de acesso aos dados por meio do site, desta forma concluindo a apresentação.

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5. REFORMA POLÍTICA E DEMOCRACIA

Profa. Dra. Rita de Cássia Biason*

O cenário político brasileiro, a partir do ano de 2015, deverá tratar de um tópico importante e que ganhou destaque com a declaração da Presidente Dilma após sua reeleição: a Reforma Política no Brasil. Segundo a pesquisadora Doutora Rita de Cássia Biason será um desafio no próximo ano, pois o pano de fundo dessa situação é o pior em virtude da reforma desejada tem sido apenas discutida por meio de propostas e não por meio da elaboração de projeto.

“Boa noite. Agradeço o convite para participar deste seminário. Destacaremos nove pontos, considerados sensíveis, na estrutura política brasileira e por isso precisam ser meticulosamente analisados e incluídos no projeto da reforma. São eles: o sistema eleitoral; o financiamento de campanha; as coligações; a suplência para senador; o voto secreto no Congresso Nacional; a reeleição do executivo; o voto obrigatório; o calendário eleitoral; e a participação popular.

O primeiro ponto que analisaremos é o sistema eleitoral. Atualmente tem-se um sistema de lista aberta, no qual qualquer cidadão pode lançar-se como candidato e isto tem acarretado um número absurdo de candidatos. Um recurso utilizado pelos partidos, nas últimas eleições, para ampliar sua força junto ao Congresso Nacional tem sido a participação de candidatos midiáticos, os quais acabam por receber o que chamamos de “voto personalizado” por parte dos eleitores, isto é, vota-se no candidato e não no partido. A proposta, para sanar tal comportamento, é que ao invés de deixar essa miscelânea de candidatos ocupar o

* Professora de Instituições Políticas Brasileiras na Universidade Estadual Paulista - UNESP/ Câmpus de Franca e coordenadora, na mesma instituição, do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Corrupção (www.cepcorrupcao.com.br).

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espaço político, muitas vezes sem propostas coerentes, sugere-se uma restrição, através da chamada lista fechada. Para resolver as dificuldades acerca da lista aberta, que é o sistema atual, existem algumas soluções apresentadas na reforma. São elas:

• A primeira é a aplicação do sistema majoritário para o legislativo, no qual vencem os mais votados. O problema neste sistema, se não for aplicado juntamente à lista fechada, é que poderemos sofrer o chamado “efeito Tiririca”, ou seja, a eleição de um candidato midiático, sem representatividade e sem propostas que interessem ao eleitor;

• A segunda propõe um sistema proporcional com lista fechada, no qual o partido deve indicar os candidatos em uma lista previamente definida e os eleitores votam no partido, sendo assim o vencedor é definido por ordem de indicação na lista partidária. Nessa alternativa é possível encontrar uma vantagem e uma desvantagem: a primeira diz respeito ao fortalecimento do partido uma vez que teremos de ter consciência acerca do conjunto das propostas partidárias; e a segunda questão diz respeito ao modelo, que poderá perpetuar os mesmos candidatos;

• A terceira traz um sistema proporcional com lista flexível, no qual partido estabelece a lista dos candidatos, mas ao contrário da anterior o eleitor pode escolher se vota integralmente na sugestão do partido ou apenas em um candidato;

• A quarta alternativa é a que defende o sistema distrital, o qual propõe manter a lista aberta, todavia se inclui o voto de rolamento ou na cidade ou no país, ou seja. A cada número de eleitores há um

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candidato que os representaria. Esta última proposta poderá mudar o comportamento eleitoral, pois há candidatos que surgem apenas no período eleitoral e com o voto distrital isto tende a ser alterado. O que pode ocorrer é uma aproximação do eleitor com o político, permitindo que os primeiros passem a exigir prestação de contas do segundo, ou seja, Accountability;

• O sistema distrital misto é uma combinação do voto proporcional e do voto majoritário. Os eleitores têm dois votos: um para candidatos no distrito e outro para as legendas (partidos). Os votos em legenda (sistema proporcional) são computados em todo o estado ou município, conforme o quociente eleitoral (total de cadeiras divididas pelo total de votos válidos). Por sua vez os votos majoritários são destinados a candidatos do distrito, escolhidos pelos partidos políticos, vencendo o mais votado;

• Por fim, o sexto e último modelo é o sistema em dois turnos, este seria uma adequação do majoritário usado no executivo para o poder legislativo, e funcionaria da seguinte maneira: o primeiro turno para definir quantas cadeiras cada partido tem direito, em seguida no segundo turno se escolheria o nome do candidato.

Entendemos que em decorrência das dimensões continentais do Brasil o número de candidatos por vaga nas eleições brasileira é exorbitante. Isso é comprovável por meio dos dados encontrados no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)1 sobre as eleições de 2014 que demostram que para Deputado

1 TSE. Estatísticas eleitorais 2014. Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/ estatisticas/estatisticas-candidaturas-2014/estatisticas-eleitorais-2014>. Acesso em: 2015.

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Estadual houve 14.875 candidatos para 1.035 vagas em todo o Brasil, sendo assim, a nota de corte foi de 14,37 candidatos para uma vaga. Para Deputado Federal a relação foi de 6.165 para 513 vagas na Câmara dos Deputados, o que produz uma média de 12,04 candidatos por vaga. O sistema distrital poderá ser um caminho para resolver o sistema atual.

O financiamento de campanha e de partidos é o segundo tópico que deverá ser avaliado e reformulado. Há atualmente dois grandes problemas: a presença de pessoas jurídicas (empresas) fornecendo recursos aos partidos e candidatos durante as eleições para posteriormente cobrar ações junto ao Congresso Nacional, ou seja, o Lobby e os Grupos de Interesse atuando nas eleições com interesses pós-eleitorais; e o segundo problema, mais delicado e preocupante, é o chamado “Caixa Dois” que são aquelas arrecadações que os partidos e candidatos obtêm e não declaram ao TSE.

O sistema misto de financiamento de campanha no Brasil é constituído por recursos públicos e privados. O recurso público é composto pelo horário eleitoral gratuito (no rádio e televisão) e o Fundo Partidário, que é formado por restos de dotações orçamentarias e multas pagas pelos próprios partidos. O Fundo é distribuído aos partidos da seguinte forma: 5% é distribuído igualitariamente e o restante é proporcional ao número de cadeiras no Congresso Nacional. Quanto ao financiamento privado é àquele fornecido por pessoas Física e Jurídica, definido na Lei nº 9.504/19972 que estabelece:

• Pessoa física a doação é de 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição (art. 24);

2 BRASIL. Lei n. 9.504, de 30 de setembro 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 out. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L9504.htm>. Acesso em: 2014.

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• Para pessoa jurídica, as doações e as contribuições ficam limitadas a 2% do faturamento bruto do ano anterior à eleição (art. 81).

Há outros modelos de financiamento público que estão sendo usados para se pensar as propostas da reforma política, um deles é o financiamento público aliado ao fundo nacional, no qual as empresas podem contribuir para um fundo que deverá ser gerido pelo TSE, uma vez que não podem o fazer diretamente para o partido. Outra proposta é o financiamento público com teto limite para pessoa física, ou seja, a empresa pode doar dinheiro para partido, contudo haveria um limite. É importante pontuar que os países que adotaram o financiamento público tem revisto esta escolha. Temos uma crença que os problemas tradicionais que surgem do financiamento privado serão todos resolvidos. Há um equívoco em afirmar que o financiamento público vai inibir o esquema de “Caixa dois” ou as relações lobistas, pois estas são relações políticas e deverão se manter.

Nesse sentido, a melhor solução poderia ser a manutenção do atual sistema misto com um controle mais apurado na prestação de contas (função do TSE) ou a diminuição do teto de contribuição para pessoas jurídicas a fim de facilitar o controle dos órgãos fiscalizadores. Um aspecto que deve ser considerado é a necessidade de regulamentar a função de lobista, para saber quem são e realizar uma ampla fiscalização sobre sua atuação. Consequentemente poderemos produzir informação para os eleitores a respeito de quais são os interesses dos candidatos que receberam os votos e os grupos de interesse aos quais estão vinculados.

O terceiro ponto, as coligações partidárias, pode ser considerado um capítulo a parte na reforma política. Coligação é o nome que se dá à união de dois ou mais partidos que apresentam conjuntamente seus candidatos para uma eleição. As coligações podem ser formadas nas eleições majoritárias (escolha de prefeitos, governadores, senadores e presidente da república),

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nas proporcionais (vereadores, deputados estaduais, distritais e federais) ou em ambas.

Nas eleições majoritárias, a coligação é responsável por definir o tempo do horário eleitoral gratuito de cada candidato, uma vez que o tamanho da bancada parlamentar na Câmara dos Deputados é utilizado como base do cálculo. Quanto mais deputados uma coligação tiver, maior o seu tempo na televisão.

No caso das eleições proporcionais, além do horário eleitoral, as coligações influenciam também na definição dos eleitos. As vagas eletivas são distribuídas em proporção aos votos obtidos pelos partidos ou coligações partidárias. Ou seja, quanto mais votos uma coligação ou partido receber, mais candidatos irão se eleger. Esse sistema faz com que um candidato com muitos votos ajude a eleger candidatos da sua coligação ou partido com menos votos.

Após o fim do pleito eleitoral, essas alianças formadas no período eleitoral mudam seu escopo e tendem a ocupar-se com a formação de uma ampla base parlamentar no Congresso. Tomando as eleições para presidente, por exemplo, a ocupação dos ministérios terá que levar em conta o apoio dos partidos que coligaram durante as eleições ou aqueles partidos que obtiveram maios número de cadeiras e que podem não ter participado da coligação na fase de campanha eleitoral. A proposta na reforma política inclui desde a proibição das coligações em eleições proporcionais3 até a criação das federações partidárias com tempo

3 PODER EXECUTIVO. Projeto de Lei 4636/2009, 10 de fevereiro de 2009. Altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, para dispor sobre o voto em listas partidárias pré-ordenadas. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 3 mar. 2009. p. 5821. Disponível em : <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=423423>. Acesso em: 2015.

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definido4. Consideramos que o ideal seria o fim das coligações também nas eleições majoritárias.

A suplência de senador, o quarto ponto, deverá sofrer alteração. Hoje quando um candidato se lança ao senado deve, obrigatoriamente, indicar dois nomes para suplência que tem que constar na propaganda eleitoral. Após a eleição, se o Senador precisar se afastar, assume o 1º suplente, e se este estiver impossibilitado, assume o 2º suplente. Há três propostas em curso: reduzir o número de suplentes; nova eleição em caso de vacância; e a proibição da eleição de suplente que seja parente consanguíneo ou de até segundo do titular do cargo5.

O quinto tópico é o fim do voto secreto no Congresso Nacional, pois quando há votações para cassação de políticos, por exemplo, apenas alguns parlamentares se manifestam de maneira aberta e transparente, os demais seguem a orientação do líder do partido e o fazem de maneira secreta. O ideal seria adotar a votação

4 Emenda ao Projeto de lei n. 1.210/2007 de Francisco Alencar e outros. (REGIS, Oliveira. Projeto de lei n. 1.2010, de 30 de maio de 2007. Dispõe sobre as pesquisas eleitorais, o voto de legenda em listas partidárias preordenadas, a instituição de federações partidárias, o funcionamento parlamentar, a propaganda eleitoral, o financiamento de campanha e as coligações partidárias, alterando a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições). Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 1 jun. 2007. p. 27691. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=353741>. Acesso em: 2015).5 As três propostas estão arroladas em : MENDES, Lourival. Proposta de Emenda Constitucional 37, de 8 de junho de 2011. Acrescenta o § 10 ao art. 144 da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 9 jun. 2011. p. 29334. Disponível em : <http://www.camara.gov.br/proposicoes Web/fichadetramitacao?idProposicao=507965>. Acesso em : 2015.

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nominal e presencial em todos os casos. Nossa percepção é que aliar o voto distrital com o voto aberto no Congresso possibilitaria que os eleitores ampliassem a fiscalização sobre os políticos.

O sexto ponto refere-se à reeleição para o executivo (Presidente, Governador, Prefeito) e defende-se o fim da reeleição para este cargo com a ampliação do mandato para cinco anos. Devemos lembrar que a reeleição era vetada de acordo com a Constituição Federal de 1988, mas foi modificada no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. A alteração da proposta é interessante e deveria se estender ao poder legislativo limitando-o a dois mandatos consecutivos. Caso fosse inaplicável para o legislativo municipal e estadual, deveria se aplicar principalmente ao legislativo federal.

O sétimo ponto é o voto obrigatório, na reforma política se propõe o fim do voto obrigatório e instituição do voto facultativo. Considerando-se o grande número de justificativas de votos nas eleições de 2012, algo em torno de 7.639.044 dos 140.461.838 eleitores no Brasil6 o fim da obrigatoriedade tem fundamento.

O oitavo e penúltimo tópico refere-se à unificação do calendário eleitoral a cada quatro anos. Devemos lembrar que inicialmente se separou as eleições municipais, das estaduais e federal, para dar ao eleitor a oportunidade de acompanhar as eleições nas três esferas. O que se observa nos últimos anos é a criação de uma indústria das eleições que movimenta uma engrenagem de impressão de cartazes, santinhos, e etc que é considerada extremamente lucrativa. A proposta de unificação dar-se-ia para as eleições de 2016 e de 2018, resultando num mandato estendido, ou unificá-las a partir das eleições de 2022.

A participação popular é o último tópico em discussão na pauta da reforma política e o que se pretende e buscar é uma

6 Refere-se às eleições municipais e os dados estão disponíveis em: TSE. Estatísticas de justificativa eleitoral: origem e destino. Brasília, DF, 2015. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleitor/ estatisticas-de-eleitorado/origem-e-destino>. Acesso em: 2015.

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via para que a sociedade civil possa propor leis e afins junto ao Congresso Nacional. Hoje, para que um projeto de lei de iniciativa popular possa ser produzido, necessita-se que cumpram as exigências estabelecidas no §2º do art. 61 da Constituição Federal: “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.” Foi esse o caminho para aprovação da Lei da Ficha Limpa7 e da Lei nº 9840/19998, que criminaliza a compra de votos.

Conhecidos esses nove pontos é preciso ter ciência que poderão ser aprovados através de uma consulta popular que se dá de dois modos: via plebiscito ou referendo. O plebiscito é convocação prévia para criação do ato legislativo-administrativo que trata do assunto da pauta. O referendo é convocado posteriormente cabendo ao povo rejeitar ou aceitar a proposta discutida no Congresso. Considerando-se a complexidade dos temas, usar uma dessas duas maneiras é uma forma de subtrair a participação dos eleitores. Qualquer que seja a forma de votação para a escolha das propostas contidas na reforma política deve-se

7 BRASIL. Lei Complementar n. 135, de 4 de junho de 2010. Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 7 jun. 2010. p. 1. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp135.htm>. Acesso em: 2015.8 Id. Lei n. 9.840, de 28 de setembro de 1999. Altera dispositivos da Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997, e da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. Diário Oficial da União, Iniciativa popular, Brasília, DF, 29 set. 1999. p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L9840.htm>. Acesso em: 2015.

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ter claro que são tópicos de extrema complexidade e precisam ser amplamente debatidos com os eleitores. Perguntamos: Como é possível decidir todos os dispositivos arrolados nesta apresentação por meio de uma escolha que se resumirá a um sim ou não? Devemos lembrar que as decisões que forem tomadas por nós eleitores, trarão consequências sobre nós mesmos.

O que se tem presenciado, até o momento, é que cada segmento social e político apresentou seu projeto de reforma política sendo que há pontos que convergem e outros divergem. Esta falta de consenso e a ausência de um ator político, que pressione o congresso para aprovação da Reforma Política, poderá retardar a reforma. Portanto devemos ficar atentos e pressionar para que as mudanças políticas ocorram. Muito Obrigada.”

REFERÊNCIAS

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MENDES, Lourival. Proposta de Emenda Constitucional 37, de 8 de junho de 2011. Acrescenta o § 10 ao art. 144 da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 9 jun. 2011. p. 29334. Disponível em : <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=507965>. Acesso em : 2015.

PODER EXECUTIVO. Projeto de Lei 4636/2009, 10 de fevereiro de 2009. Altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, para dispor sobre o voto em listas partidárias pré-ordenadas. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 3 mar. 2009. p. 5821. Disponível em : <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=423423>. Acesso em: 2015.

REGIS, Oliveira. Projeto de lei n. 1.2010, de 30 de maio de 2007. Dispõe sobre as pesquisas eleitorais, o voto de legenda em listas partidárias preordenadas, a instituição de federações partidárias, o funcionamento parlamentar, a propaganda eleitoral, o financiamento de campanha e as coligações partidárias, alterando a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições). Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 1 jun. 2007. p. 27691. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?id Proposicao=353741>. Acesso em: 2015).

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PARTE II

PAINÉIS TEMÁTICOS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

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1. COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO: ANÁLISE HISTÓRICA E EVOLUÇÃO NA TRADIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

Guilherme Pinho Ribeiro*

INTRODUÇÃO

O objetivo central da presente pesquisa é expor de maneira sucinta e sistematizada o surgimento e a evolução histórica do instituto das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), iniciando a análise pelo seu surgimento na tradição constitucional inglesa, passando pelo seu acentuado desenvolvimento na tradição constitucional americana. Ainda, partindo para uma análise da evolução e atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito no sistema português, em virtude da similitude deste sistema com o sistema brasileiro e da inevitável relação histórica existente entre estes países. Por fim, a análise recai na evolução histórica e a utilização desde instrumento de controle do parlamente na tradição constitucional brasileira,desde o Brasil Império até a Constituição de 1988.

Para o desenvolvimento do presente trabalho foi utilizado o método histórico de análise, uma vez que parte da análise de instituições do passado para verificar a influência na atual sociedade.

1 ORIGENS HISTÓRICAS E DIREITO COMPARADO

1.1 Inglaterra

Quanto ao surgimento do instituto das comissões parlamentares de inquéritos ter ocorrido na Inglaterra não há controvérsia. Há, no entanto, acalorada discussão na literatura * Graduando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP. Contato: [email protected]. Apoio Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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específica no que se refere ao período de surgimento. O que se observa, no entanto, é que não há negação dos fatos noticiados por um ou por outro autor. Na verdade, a divergência ocorre no tocante ao conceito, se determinada comissão criada em um ou outro período seria, sob o conceito moderno, comissão parlamentar de inquérito ou não.

Aguinaldo Costa Pereira (1948, p. 21), noticia o surgimento das comissões parlamentares de inquérito quando da investigação relativa aos atos praticados pelo Comandante Lundy na Guerra da Irlanda, em 1689, levando-o a condenação pela Coroa.

Marshall Dimock (1929, p. 49), atribui o surgimento do instituto em 1571, citando a primeira investigação de grande relevância a ocorrida em 1604, referente à eleição contestada por Sir Francis Godwin, com poderes de ouvir testemunhas e requisitar documentos. Andyara Klopstock Sproesser (2008, p. 149), entende só estar consolidado o instituto em meados do século XIX, tendo em vista a edição de duas leis aprovadas pelo Parlamento Inglês, em 1858 e 1871, tratando sobre o juramento prestado pelas testemunhas e sua proteção.

José Alfredo de Oliveira Baracho (2001, p. 78), noticia que a atribuição a poderes ilimitados às CPIs ocorreu durante o reinado de Jorge III, em meados do século XVIII.

Em sua história, os principais temas tratados nas comissões parlamentares de inquérito inglesas são: aquisição de informação para a tarefa legiferante, inquérito sobre matéria financeira para fiscalizar a distribuição do orçamento e a supervisão de repartições públicas e seu pessoal (PEREIRA, 1948, p. 16).

Há poderes concretos e consolidados no parlamentarismo inglês no que se refere ao instituto, que são eles: obrigar o comparecimento de pessoas, prestando juramento; poder de acessar documentos na posse de terceiros; e ordenar e impor sanções, como prisões, executadas diretamente sob sua ordem (SPROESSER, 2008, p. 152).

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Apesar do surgimento e consolidação na Inglaterra, a partir de meados do século XIX houve queda na utilização do referido instituto, optando o Parlamento pela utilização de outro instituto, considerado – para a realidade constitucional daquele país – mais eficiente, as chamadas “comissões reais” (MARTINELLI, 2003, p. 104).

1.2 Estados Unidos da América

Importante destacar os Estados Unidos da América em se tratando das comissões parlamentares de inquérito, por é neste país que o instituto ganhou mais força, se aperfeiçoou e consolidou. Mesmo no período colonial e as restrições impostas pela Inglaterra, suas Casas Legislativas adotaram o processo com a mesma amplitude conferida ao Parlamento Inglês (PEREIRA, 1948, p. 23).

Não há previsão constitucional federal para as comissões de inquérito, podendo citar as Constituições de Maryland (1776) e Massachusetts (1780) as primeiras constituições estaduais a constarem expressamente. Embora silente, nunca houve dúvida quando a aplicação do instituto. Após a independência estadunidense, a primeira comissão com este caráter ocorreu em 1792, com objetivo de investigar as causas da derrota do General St. Clair – tanto no aspecto financeiro, quanto no militar – em batalha contra os índios (BARACHO, 2001, p. 5). Após, todos os conflitos militares que estiveram envolvidos os Estados Unidos houve a instauração de inquérito desta natureza, com exceção da guerra hispano-americana, que houve instauração de uma Dodge Comission, antecipada pelo Presidente McKinley (PEREIRA, 1948, p. 24).

Como já dito anteriormente, a possibilidade de instaurar inquérito desta natureza sempre foi consagrado na ordem constitucional americana, e as primeiras normatizações sobre o tema ocorreram em 1957, complementada em 1862,

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possibilitando expressamente a possibilidade de requerer documentos e impondo sanções a testemunhas desobedientes (SPROESSER, 2008, p. 154).

A doutrina se consolidou em 1927, com o leading case da Suprema Corte Americana, conhecido como o caso McGrain vs. Daugherty, sedimentando o entendimento de que toda investigação parlamentar tem um propósito genuinamente legislativo (ALECRIM, 1954, p. 45). Por fim, importante ressaltar que os Estados Unidos da América são o país por excelência em se tratando de comissões parlamentares de inquérito.

1.3 Portugal

Apesar de alguns autores afirmarem a possibilidade de instauração de inquérito parlamentar durante a vigência da Primeira Constituição Portuguesa, de 1822, não houve criação de nenhuma comissão com este caráter – em ambos os períodos de sua vigência (CARAJELESCOV, 2007, p. 38). Em 1824 são restauradas as leis tradicionais, por Dom João VI. Com sua morte, ascende ao trono Dom Pedro IV, outorgando nova constituição, em 1826 (SPROESSER, 2008, p. 176). Presente nesta Constituição o Poder Moderador. Embora possa ser extraído do texto constitucional a possibilidade de instauração de comissões parlamentares de inquérito, não há previsão expressa. Somente com a Constituição de 1838 que há consagração dos princípios de independência dos poderes e soberania nacional, desaparecendo o Poder Moderador. Surge, expressamente, pela primeira vez no constitucionalismo português a figura das comissões parlamentares de inquérito (SPROESSER, 2008, p. 177).

Em decorrência do golpe de Estado de 1842, a figura do inquérito parlamentar não surte efeito, em decorrência da restauração da Constituição de 1826, mantendo-se como lei fundamental até 1910. Em virtude de um Ato Adicional editado em 1852, passa a constar a possibilidade de criação de comissões

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parlamentares de inquérito novamente (SPROSSER, 2008, p. 178). As primeiras propostas de constituição de comissão parlamentar de inquérito ocorreram em 1843, na Câmara dos Pares, para investigar a possibilidade de pagamento de mais tributos pelo país; e em 1845 na Câmara dos Deputados, para investigar as causas de estagnação e depreciação dos produtos agrícolas. Apesar das propostas, a primeira comissão a apresentar suas conclusões foi aquela com objeto de investigação recaindo sob a legalidade da administração do Banco de Portugal, em 1849 (CARAJELESCOV, 2007, p. 39).

A Constituição de 1911 rompe com a tradição monárquica, inaugurando a república e a doutrina liberal. O período é notadamente marcado pelo deslocamento de poder do Executivo, que não possuía pode de veto, para o Legislativo, que poderia destituir o presidente. Apesar deste deslocamento de poder, o texto constitucional não previa a possibilidade expressa da criação de comissões parlamentares de inquérito, tratando-se de matéria regimental, apenas (SPROESSER, 2008, p. 178).

Em 1933 é promulgada Constituição com caráter autoritário, denominando o período como Estado Novo. Em contrapartida ao período anterior, seu objetivo era a diminuição dos poderes do Congresso. Tal Constituição foi silente quanto ao instituto das comissões parlamentares de inquérito, sendo fragilizado, ainda, ao dispor em seu artigo 78 que o Presidente não responderia ao Parlamento, mas diretamente à Nação. Em virtude disso, em 43 anos de sua vigência, houve instauração de apenas uma comissão parlamentar de inquérito, com finalidade de apurar, pós Segunda Guerra Mundial “[...] o funcionamento de organização corporativa , acusada de ter exorbitado do âmbito de sua esfera própria sob a pressão das necessidades de economia bélica.” (PIÇARRA, 2004, p. 468).

O instituto retorna expressamente ao texto constitucional português com a Constituição de 1976, promulgada em virtude da Revolução de 1974. Há críticas quanto a timidez de seu retorno,

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sendo necessárias sucessivas reformas para atenuar e corrigir seus erros. Somente com a revisão de 1982 que é assegurado às minorias parlamentares o direito de criar uma CPI e a inclusão da expressão “[...] poderes de investigação próprio das autoridades judiciais.” (FERREIRA, 1999, p. 13). Vigem, ainda, tais regramentos para as comissões parlamentares de inquérito.

1.4 Brasil

A Constituição Imperial de 1824 delegou à Assembleia Geral – composta pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal – o Poder Legislativo. Há dependência direta entre este e a sanção do Imperador, em virtude do Poder Moderador por ele exercido. Já neste período o Poder Legislativo possui funções legislativas, inspeção e fiscalização (BUENO, 1958, p. 59). O entendimento majoritário da doutrina caminha no sentido da não previsão expressa das comissões parlamentares de inquérito na Constituição de 1834. Entendimento diverso adotado por Nelson de Souza Sampaio entende estar previsto em caráter retrospectivo, sob administração pretérita, previsto no artigo 15, VI: “[...] na morte do Imperador ou vacância do trono, instituir exame da administração que acabou e reformar os abusos nela introduzidos.”

Apesar da instauração de diversos inquéritos parlamentares durante a vigência da Constituição Imperial, nenhuma delas atingiu autoridades ou o Poder Executivo propriamente dito (BARACHO, 2001, p. 102).

A promulgação da Constituição de 1891 representou a ruptura com a ordem política até então existente. Há, notadamente, grande influencia do constitucionalismo estadunidense, em virtude do notório conhecimento deste ordenamento jurídico por Ruy Barbosa (DUARTE NETO, 2010, p. 218). É introduzido o sistema presidencialista e a clássica tripartição do Poder, deixando de existir o Poder Moderador (MARTINELLI, 2003, p. 124). Apesar de não constar no texto constitucional, constava

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no Regimento Interno do Senado Federal regramentos quanto ao instituto das comissões parlamentares de inquérito. Estima-se que foram propostas 19 comissões parlamentares de inquérito durante o período, poucas sendo aprovadas e instaladas (BARACHO, 2001, p. 104). Referidos insucessos são justificáveis pelo regime de maciças maiorias nas Câmaras, constituindo terreno não favorável ao instituto, além das incertezas da sistemática do instituto, que contava com escassa normatização (SAMPAIO, 1964, p. 22). Assim como o período constitucional anterior, a análise que se faz é que as autoridades e o Poder Executivo não foram atingidos por comissões parlamentares de caráter investigativo (PEREIRA, 1948, p. 146).

Alavancada pela Revolução Constitucionalista de 1932 – embora derrotado – a Constituição de 1934 é promulgada, inserindo ao ordenamento jurídico brasileiro direitos sociais, individuais e econômicos, sob forte influencia da Constituição Social de Weimar. É marcada, ainda, pelo estimula à fiscalização exercida pelo Poder Legislativo (MARTINELLI, 2003, p. 125). É nesta Constituição que, pela primeira vez, o instituto das comissões parlamentares de inquérito consta expressamente. Ainda, sob influencia da Constituição de Weimar, atribui o direito de criar CPI à minoria de 1/3 da Câmara dos Deputados. A atribuição das CPIs recaia, segundo a Constituição, exclusivamente, à Câmara dos Deputados, causando estranhamento aos constitucionalistas, que consideram o poder de fiscalização inerente ao exercício do Poder Legislativo, não a uma ou outra Casa que o compõe (MIRANDA, 1937, p. 499). No período em análise, há instauração de seis comissões parlamentares de inquérito, com conclusão de apenas duas (SAMPAIO, 1964, p. 24).

Na contramão da Constituição de 1934, o texto constitucional de 1937 não trouxe expressa possibilidade de sua instauração. O período que antecedeu a outorga da Constituição de 1937 foi marcado pela instabilidade política, exemplificado pelo intenso confronto entre integralistas e comunistas. Aproveitando-

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se do momento, Getúlio Vargas instala o Estado Novo (SPROESSER, 2008, p. 201), que foi marcado pela inatividade do Poder Legislativo, cabendo ao Presidente da República a convocação de novas eleições, que nunca ocorreram, pendendo o equilíbrio dos Poderes para o Executivo (DUARTE NETO, 2010, p. 233). Não muito a se analisar, tendo em vista a inexistência do Poder Legislativo no período e, consequentemente, inexistência de comissões parlamentares de inquérito.

Com a queda de Vargas do Poder, coube ao provisoriamente eleito Legislativo promover a reconstitucionalização do País, sendo promulgada em 18 de setembro de 1946 a Constituição da Terceira República. Suas bases eram a consolidação dos direitos sociais e econômicos e o reequilíbrio dos Poderes (MARTINELLI, 2003, p. 127). Quanto às comissões parlamentares de inquérito, foi reproduzido, em suma, o disposto na Constituição de 1934, ampliando os poderes, expressamente, de sua instituição por ambas as Casas do Congresso Nacional (SAMPAIO, 1964, p. 25). Foi sob a vigência desta Constituição que se editou a Lei 1.579 de 1952, importante medida legislativa capaz de tornar eficaz o trabalho das Comissões, que não possuíam regramento expresso para funcionamento, passando do nível constitucional diretamente para o nível regimental das Casas (OLIVEIRA, 1999, p. 9). Foram criadas notáveis comissões parlamentares de inquérito durante o período, por exemplo: Indústria Têxtil, do Senado; Arrecadação e Aplicação das Rendas dos Institutos de Previdência; Atos Delituosos da Ditadura; Porto de Santos, etc (BARACHO, 2001, p. 113).

Apesar de manter a Constituição de 1946, o Ato Institucional de 9 de Abril de 1964 mudou as atribuições do presidente da República. O Ato Institucional nº4 determinou que o Congresso elaborasse nova constituição, não observados, porém, os princípios básicos que regem o Poder Constituinte Originário, tendo seu procedimento limitado. Aprovado, a nova ordem constitucional manteve a forma presidencialista, de

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forma autoritária, e exercia, quase que exclusivamente, o poder político (MARTINELLI, 2003, p. 129). Quanto às comissões parlamenteares de inquérito, foi repetida a fórmula constante na Constituição de 1946, acrescentando a possibilidade de criação de comissão parlamentar de inquérito pelas duas Casas em conjunto. A Emenda Constitucional nº1 de 1969 trouxe limitações ao instituto, limitando para cinco o funcionamento simultâneo em cada Casa e proibiu o funcionamento destas comissões fora da sede do Congresso Nacional, não permitindo diligências e gastos por seus membros. Período antidemocrático e repressor, que representou recrudescimento do Poder Legislativo que poderia ser suspenso a qualquer tempo pelo Chefe do Executivo (SPROESSER, 2008, p. 207).

2 DISCIPLINA JURÍDICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A constituição de 1988 é marcada por seu caráter democrático. O Poder Legislativo foi incumbido ao Congresso Nacional, composto pelo Senado Federal e a Câmara dos Deputados. Em contrapartida ao período anterior, foram atribuídas certas garantias ao Poder Legislativo, como a indissolubilidade, autogoverno e auto-organização, além de garantias individuais aos seus membros (MARTINELLI, 2003, p. 131).

Inovação importante trazida pela ordem constitucional em questão é a expressão “poderes de investigação próprio das autoridades judiciais”, seguindo modelo trazido pela Constituição Portuguesa de 1976 e sua reforma de 1982.

Para se constituir uma comissão parlamentar de inquérito é necessário requerimento de um terço dos membros da respectiva Casa Congressual, é o chamado modo constitucional, pois não dependem de aprovação plenária, apenas os requisitos formais para sua constituição. É uma prerrogativa das minorias parlamentares, andando bem o Constituinte neste sentido (SPROESSER, 2008, p. 219).

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Há, ainda, o modo regimental de criação de uma comissão parlamentar de inquérito. Não havendo o número de assinaturas necessário para sua criação, pode-se submeter a matéria a votação plenária (BARACHO, 2001, p. 148).

Como anteriormente dito, devem ser observados os requisitos formais para a criação de uma CPI. O texto constitucional traz o “fato determinado” como um destes elementos. Pontes de Miranda afirma “tratar-se de qualquer fato da vida constitucional do País, para que dele tenham conhecimento, preciso e suficiente, a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal; e possam tomar as providências que lhe couberem” (MIRANTA, 1937, p. 46). Por ser vaga a expressão utilizada no texto constitucional, recaiu sob a doutrina a função de definir “fato determinado”.

Para que seja passível de investigação, é mister que o fato a ser investigado seja de interesse público. Não há sentido em investigar fatos exclusivamente particulares. Não estão excluídos, porém, aqueles fatos da vida privada que alcancem repercussão coletiva ou reproduzam reflexos sociais que exijam medidas estatais (MARTINELLI, 2003, p. 181).

Quanto à atribuição constitucional de competência, em observância à estrutura bicameral do Legislativo brasileiro, é necessário que o fato a ser investigado por uma das Casas seja de sua atribuição constitucional, não podendo adentrar nas atribuições da outra Casa (SCHIER, 2002, p. 111). Ainda, pelo princípio do federalismo, não pode uma CPI de âmbito federal investigar fatos que invadam atribuições dos Estados e municípios. Há, porém, possibilidade de investigações sobre o mesmo fato, em âmbito federal, estadual e municipal, quando tratar-se de competência concorrente entre os entes federativos (BARACHO, 2001, p. 183). Não há restrição de criação de CPI sobre o mesmo fato em ambas as Casas, individualmente, nem de inquérito policial e inquérito parlamentar.

A CPI se enquadra no rol das comissões temporárias, portanto devem existir por determinado período e depois de

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extinguirem ao alcançarem seu objetivo (SPROESSER, 2008, p. 244). O limite máximo de funcionamento das CPIs é o término da Legislatura. O prazo certo é elemento formal para a constituição da CPI, sendo limitada a 120 dias, prorrogáveis para mais 60, na Câmara dos Deputados; e um limite não restrito no Senado Federal, contando que seja prazo certo. Sua prorrogação pode ocorrer quantas vezes entenderem necessário, bastando requerimento de 1/3 dos Senadores para tanto (SPROESSER, 2008, p. 245).

Quanto à composição das comissões parlamentares de inquérito, deve obedecer a regra atinente a todas as outras comissões congressuais, proporcional ao número de cadeiras que cada partido político possui na Casa, cabendo aos líderes partidários a indicação dos membros a comporem a comissão (FIGUEIREDO, 2001, p. 696).

Importante ressalva quanto a expressão “tanto quanto possível”. Ou seja, há relativização quanto a necessidade de representação de todos os partidos políticos nas comissões (MARTINELLI, 2003, p. 184).

Deve ser apurado o número de integrantes na comissão que cada partido ou bloco parlamentar tem direito. Após, abre-se prazo de cinco dias para as respectivas indicações dos líderes. Na omissão de um dos líderes em indicar seus membros – o que obstaria a instalação e funcionamento da comissão de inquérito – cabe ao Presidente da Casa a nomeação. Podem os partidos modificar os membros nas comissões a qualquer momento, pois o direito de composição é do partido ou bancada, não do membro propriamente dito (SPROESSER, 2008, p. 203).

Outro princípio importante que rege os trabalhos das CPIs é o da colegialidade. Os poderes a esta modalidade de comissão, como propriamente dito, são outorgados à comissão, não a seus membros individualmente (FERREIRA FILHO, 1983, p. 113). Ou seja, para que se tome uma decisão visando a quebra de um sigilo, por exemplo, ou de requisição de documentos ou depoimentos, deve haver decisão colegiada e fundamentada

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para tanto, não sendo permitido atos isolados de seus membros, principalmente em se tratando de violação de direitos e liberdades.

Há grande discussão doutrinária, ainda, quanto a expressão “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. Luís Roberto Barroso entende que tais poderes estão diretamente relacionados à possibilidade de produção de provas, através da tomada de depoimentos, realização de perícias e requisição de documentos (BARROSO, 2000, p. 12). Odacir Klein, em estudo das Constituições Federal e Estaduais, das normas legais e regimentais, consegue traçar pontualmente tais poderes: requerer diligências; requerer a convocação de ministros de Estado e deputados; tomar depoimento de autoridades; ouvir indiciados; inquirir testemunhas sob compromisso; requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos; locomover-se para onde for necessário; requerer ao Tribunal de Contas da União (TCU) inspeções e auditorias; requisitar serviços de quaisquer autoridades, inclusive policiais; obter informações junto às instituições financeiras (KLEIN, 1999, p. 42).

Terminadas as investigações, cabe ao Relator redigir o Relatório Final, a ser apresentado e votado no interior da comissão, não sendo necessária submissão à Plenária para tanto.

O artigo 37 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina a publicação e encaminhamento de relatório circunstanciado ao final dos trabalhos da CPI à Mesa da Câmara dos Deputados; ao Ministério Público ou à Advocacia-Geral da União; ao Poder Executivo; à Comissão parlamentar permanente afim à matéria investigada pela CPI; à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização; e ao Tribunal de Contas da União (ZAULI, 2011, p. 201).

Já o artigo 150 do Regimento Interno do Senado Federal determina o envio de seu relatório e conclusões à Mesa Diretora do Senado Federal para conhecimento do Plenário. Segundo o art. 151 a CPI encaminhará suas conclusões, se for o caso, ao

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Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal de possíveis infratores (ZAULI, 2011, p. 201).

Pode trazer a público dados sigilosos nele contidos, desde que justificados e em caráter de excepcionalidade. Há possibilidade, ainda, de a comissão parlamentar de inquérito produzir, antes de findos os trabalhos, relatório parcial sobre as apurações realizados até o momento, encaminhando às autoridades judiciais competentes para que sejam tomadas, desde já, as devidas providências. Lembrando que não há necessidade de aprovação Plenária do Relatório Final ou dos Parciais (CARAJELESCOV, 1998, p. 162).

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2. DEMOCRACIA NO SÉCULO XX: A COMPLEXA RELAÇÃO POLÍTICA ENTRE ESTADOS UNIDOS E

BRASIL

Clara Alves Silva*

INTRODUÇÃO

A segunda metade do século XX, em dimensões globais, foi marcada pela Guerra Fria, que foi a polarização decorrente da emergência de duas potências ideologicamente conflituosas após a Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Diante desse novo cenário de tensão, o resto do mundo se viu obrigado a se alinhar a um dos eixos em questão.

Na esfera ocidental, o continente americano se encontrou na condição imutável de subordinação político-ideológica à potência norte-americana. E qualquer comportamento que divergisse dessa subordinação foi tratado com austeridade. Simultaneamente, emergem na América Latina regimes ditatoriais de liderança militar os quais sobrevivem décadas até a redemocratização no final do século XX.

As ditaduras militares latino-americanas, mais especificamente a brasileira, inseridas no contexto da Guerra Fria não eram indiferentes ao polo ocidental e ao seu maior dirigente, os Estados Unidos, e vice-versa. Frente a essa circunstância, faz-se necessário avaliar como decorreu a relação desses atores no continente e de que forma a supressão das democracias latino-americanas foi interpretada pelos Estados Unidos. Para isto,

* Graduanda do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Bolsista de Iniciação Científica/ CAPES, vinculada ao Laboratório de Estudos em Política Internacional (LEPIN-UFF). Eixo temático: Democracia e Globalização. Contato: [email protected]

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por meio de um debate com a bibliografia específica sobre esta temática, pretende-se atingir os objetivos propostos.

1 DESENVOLVIMENTO

1.1 Antecedentes do Golpe

O golpe de 1964 que deu fim ao período democrático brasileiro possuiu uma clara sustentação político-ideológica abraçada pela classe militar. A legitimação do processo de intervenção nos trâmites da democracia foi baseada na premissa de uma Segurança Nacional, que prevê a necessidade do estabelecimento de ordem para garantir a projeção dos interesses nacionais.

Para entender essa visão militar de envolvimento na política é necessária uma avaliação acerca da formação dessa classe. As Forças Armadas, desde suas primícias, proporcionavam uma formação mais política do que profissional aos seus militares. Gerava-se um perfil militar consciente politicamente e crente de que eles eram os mais identificados com o interesse nacional. Portanto, os militares possuíam o dever e o direito de arbitrar crises políticas, através da intervenção, em nome da ordem interna (BORGES, 2007, p. 18).

A politização do setor militar e a disseminação dos valores da Segurança Nacional foram primordialmente executadas no Brasil na Escola Superior de Guerra (ESG). Criada em 1949 pelo Exército brasileiro, a ESG “[...] assume um alto significado político de um ‘movimento’ que tem como objetivo o reforço de sua posição no aparelho de Estado.” (GOMES; LENA JÚNIOR, 2014, p. 4).

Na ESG foi difundido mais especificamente a Doutrina de Segurança Nacional, elaborada na National War College, em Washington, que inclusive promoveu inúmeros intercâmbios de

85“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

estudantes entre Brasil e Estados Unidos. O desenvolvimento moderno da Doutrina tem origem nos Estados Unidos e é uma resposta ao contexto de Guerra Fria. Ela nasce, então, do antagonismo entre leste e oeste e sugere um perfil de guerra permanente ao sistema, nesse sentido o combate ao inimigo (comunismo) é contínuo. Esse inimigo não se limita à área externa à nação, pois pode estar inserido nas fronteiras nacionais. Portanto, a agressão pode vir do ambiente interno ou externo.

Tal cenário inóspito requer uma estrutura específica de combate às ameaças da situação global. Por isso, a Doutrina reconhece a necessidade da instalação e manutenção de um Estado forte e/ou de uma determinada ordem social.

Sobre a situação de guerra permanente na esfera interna denunciada pela Doutrina de Segurança Nacional, Nilson Borges afirma que:

A essência da Doutrina de Segurança Nacional reside no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica antissubversiva contra o inimigo comum. A partir desse ponto de vista a Doutrina converte o sistema social em sistema de guerra. (BORGES, 2007, p. 29).

O final da Segunda Guerra Mundial trouxe uma nova dinâmica ao continente americano. Com a ascensão da ameaça soviética ao bloco ocidental, os Estados Unidos abandonam o isolacionismo para adotar uma nova perspectiva de segurança coletiva. Os fundamentos da Doutrina de Segurança Nacional tem origem nessa noção de segurança hemisférica sugerida pela Doutrina Monroe. Frente à tensão leste-oeste, os norte-americanos se viram na obrigação de promover uma aliança com os Estados americanos. “Na esteira dessa aliança, os Estados Unidos enviaram [...] missões militares para diversos países da América Latina, inclusive Brasil, e lançaram um programa de assistência militar.” (BORGES, 2007, p. 24).

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No Brasil, a ESG se dispôs a propagar os valores da Doutrina através dos seus diversos cursos. Porém, essa disseminação não se limitou ao campo militar. Nilson Borges (2007) demonstra a profunda difusão das ideias ministradas na ESG em todo território brasileiro e em ambientes civis.

Os cursos programados pela Escola, que de início eram dirigidos somente a militares, atingem também segmentos civis, notadamente profissionais liberais, empresários, magistrados, sindicalistas, professores universitários e dirigentes de órgãos públicos. Tendo por base a sede da Escola, no Rio, esses cursos propagam-se por todo o país, onde cada Estado-membro se encarrega de implementar as filiais[...]. (BORGES, 2007, p. 36).

Os brasileiros seguidores da Doutrina instalaram no pensamento dos estudantes militares um imaginário ameaçador o qual consistia na existência do inimigo inserido dentro de toda sociedade. Esses conspiradores apoiados por forças externas (comunismo internacional) ambicionam a tomada do poder e a transformação do país em um regime totalitário, portanto é essencial que esse mal seja eliminado.

Diante dessa intensa adequação da ideologia dos militares brasileiros à problemática norte-americana no contexto de Guerra Fria, eles construíram ao longo dos anos uma comunidade civil de apoio às premissas da Doutrina de Segurança Nacional, sustentados por instituições como a ESG. As ideias norte-americanas foram fortemente acolhidas e adaptadas às percepções brasileiras e propagadas para todo o país. E, assim, a parcela civil favorável aos militares foi de substancial importância para a concepção da legitimação do golpe de 1964, visto como necessário em meio à crise política da época.

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1.2 O Golpe de 1964

A historiografia brasileira produziu diversas interpretações acerca do golpe de 1964. Todas elas propõem uma possível justificativa para o acontecido e apontam também responsáveis pelo fim do período democrático instalado desde o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Um breve esclarecimento sobre alguns pontos de vista a cerca do golpe nos é necessário. Existem, no pensamento sobre a história brasileira, correntes que atribuem ao golpe um carácter de inevitabilidade. A supressão da democracia no Brasil poderia ser uma consequência de um processo econômico, o qual o “[...] golpe seria inevitável porque a implantação de um regime autoritário era indispensável para a manutenção da super exploração do trabalho em um sistema de dependência econômica.” (CARVALHO, 2005, p. 126). Outra vertente entende que golpe seria um resultado do contexto de intensificação da Guerra Fria. O eixo ocidental, intolerante a qualquer oposição, não tinha permitido a permanência de Goulart devido sua política de governo “comunista” para o governo do país.

Uma terceira versão atribui à direita brasileira - civil e militar, a conspiração frente os regimes políticos que se sucederam no Brasil. O período que sucedeu imediatamente a morte de Vargas foi de intensa desestabilização política. A comunidade militar aproveitou da conjuntura conflituosa para lançar um programa e propaganda a favor de um regime militar. Essa campanha dizia ser “[...] necessário a intervenção saneadora, profilática e providencial de outro ator que [...] seria representado por mitos e versões: as forças armadas.” (FERREIRA, 1994, p. 68). Porém, segundo Jorge Ferreira, o golpe é “adiado” devido à reação popular sensibilizada com o suicídio do presidente.

Estruturais ou conjunturais, as perspectivas sobre o golpe não descartam o envolvimento norte-americano nesse processo, em parte dele ou no todo, de forma substancial ou secundária. O

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objetivo desta reflexão é avaliar a participação norte-americana, sem necessariamente culpa-los de imediato pela supressão da democracia no Brasil. A partir do nível de envolvimento dos Estados Unidos poderemos concluir a proporção da influência norte-americana no Brasil.

O contexto de Guerra Fria e a consequente política anticomunista no Ocidente fizeram o governo de João Goulart intolerável para os setores brasileiros fortemente alinhados às percepções norte-americanas e até mesmo aos próprios Estados Unidos. O perfil reformista do discurso de Goulart e seu excelente índice de popularidade ameaçavam o status quo e identificavam o presidente como simpático aos valores comunistas, segundo interpretações conservadoras da época. As ambições de Goulart, “[...] aos olhos de certos setores da elite, poderiam levar à radicalização da democracia.” (FICO, 2008, p. 75), o que era considerado inadmissível.

Além da intensa oposição interna, o presidente da República enfrentou uma árdua campanha externa de desestabilização, até então nunca evidenciada na história brasileira. Carlos Fico (2008) frisa a diferença entre essa “campanha de desestabilização” e “conspiração”. Esta seria a operação que objetivava efetivar o golpe e, então, derrubar Goulart. Aquela, no entanto, apenas seria encabeçada por organizações nacionais e norte-americanas que desestabilizaria o governo, não necessariamente desencadeando um golpe.

Essa perspectiva se opõe à compreensão de René Dreifuss (1987). Para ele o golpe de 1964

[...] se tornou inevitável em função da falta de apoio eleitoral das forças políticas reunidas em torno do IPES [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais] e do IBAD [Instituto Brasileiro de Ação Democrática] [...]. Somente restaria, por isso, a derrubada de Goulart, consequência quase natural das atividades de doutrinação e propaganda. (FICO, 2008, p. 75).

89“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

O autor Fico, entretanto, crê que essa alternativa levaria ao assentimento de uma intenção inicial dessas organizações opositoras que talvez não existisse, mas, segundo ele, não há evidências empíricas que sustente essa tese.

A campanha de desestabilização e a conspiração não deixam de ser processos interligados, porém deve-se considerar uma relativa autonomia entre eles. O golpe não era a única alternativa para aqueles que patrocinaram a campanha anti-Goulart. Outra opção seria enfraquecer uma possível candidatura do presidente nas eleições de 1965, barrando qualquer intenção de continuidade. A instabilidade interna provocada pela campanha seria essencial para esse anseio. De acordo com Fico (2008), Lincoln Gordon - embaixador norte-americano no Brasil - alegava que o objetivo inicial era manter a constituição até o final do mandato de Jânio e permitir eleições presidenciáveis em 1966.

Foi a partir das eleições parlamentares de 1962 que a intervenção norte-americana na política brasileira se acentuou, passando a desenvolver uma propaganda ideológica contra o comunismo além dos níveis “comuns” aplicados em outros países. Esse foi o começo “[...] do processo que tornou a embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro um ator político plenamente envolvido nos negócios internos brasileiros.” (FICO, 2008, p. 77).

A campanha de desestabilização, porém, se encaminhou para o planejamento de um possível golpe. A discussão se fixa em como deveria se comportar o governo norte-americano na hipótese de uma tentativa interna de infringir a constituição brasileira. Em 1963 a embaixada dos Estados Unidos inicia a realização de um “plano de contingência”, ou seja, o desenho de cenários hipotéticos que podem vir a ser desdobrados, dado a conjuntura do país. Dessa forma, seria possível prever quais as iniciativas norte-americanas frente a cada possibilidade.

O plano estabelecia que, embora não se devesse estimular um golpe direitista, a embaixada norte-americana manteria contato secreto com os grupos conspiratórios brasileiros para se

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manter informado e exercer influência. Mais especificamente, o plano determinava que no caso de conflito no cenário brasileiro, nenhum apoio seria dado a Goulart. E ainda nesse contexto, recomendava-se que os EUA providenciassem apoio logístico aos golpistas, não de forma explícita, e sim secreta.

Existe, porém, um claro receio da embaixada norte-americana nas delimitações do seu projeto. Para que não fosse utilizado como documento acusatório contra os Estados Unidos, o plano negava o que ele realmente propunha: mudar o caráter do regime que governava o Brasil. Umas das iniciativas do plano foi a Operação Brother Sam. Para convencer seu Departamento de Estado, Gordon utiliza como argumento a existência de desordem (de protestos e guerrilhas) extensa e prolongada no Brasil, isso poderia sobrecarregar as forças de segurança, sendo, então, necessária a assistência norte-americana.

A intenção da operação era disponibilizar aos conspiradores brasileiros auxílio logístico durante o golpe, caso houvesse algum tipo de resistência. Ela contou com “[...] um porta aviões, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros [...] carregado com 100 toneladas de armas [...] e quatro navios-petroleiros.” (FICO, 2008, p. 98). Porém, Castelo Branco estava, em 1º de abril, em contato com a embaixada norte-americana e comunicou que não precisaria do apoio dos EUA. A partir desse comunicado a operação começa a ser desmontada.

1.3 Manutenção e Abertura

O presidente Goulart é deposto e o golpe de 1964 é consumado. Os Estados Unidos concedem imediato reconhecimento ao novo regime brasileiro. Frente à mudança, a potência se empenha em desenvolver um discurso explicativo sobre o acontecido. Era necessário que esse discurso fosse palatável internacionalmente para que no Brasil não fosse

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interpretado como mais um dos inúmeros golpes militares na América Latina. Apoiar o regime também era necessário para preservar a autoimagem norte-americana, dado que o país se precipitou ao reconhecer a ação dos golpistas.

O apoio se manteve durante o governo de Castelo Branco e possibilitou expressivas assistências econômicas, mesmo depois da implantação dos Atos Institucionais. Antes, no governo de Goulart, os EUA consideravam que investimentos no Brasil seriam de teor inadimplente, dado o perfil caótico de sua administração. Diferentemente, após o golpe os EUA disponibilizaram um conjunto de enormes ajudas econômicas.

A proximidade entre EUA e Brasil imediatamente após o golpe foi intensa, principalmente pela política de alinhamento do governo de Castelo Branco, que adotou os princípios da ESG como direcionadores da sua política externa. Entretanto, é possível perceber que no decorrer dos anos de administração dos militares o Brasil adota uma posição diferente à pregada por Castelo Branco e o relacionamento com os EUA vai se modificando. Como o objetivo do trabalho aqui desenvolvido é analisar o envolvimento norte-americano no período de regime ditatorial brasileiro, nós nos limitaremos a pontuar as políticas de diálogo com o sistema internacional e algumas situações de tensão que configuram o caráter da relação entre EUA e Brasil.

Seria um notório exagero pontuar a Política Externa Independente (PEI) de Jânio e continuada por Goulart como a causa do interesse norte-americano no desenrolar das tensões internas anteriores ao golpe de 1964. No entanto, não se deve descartar a repercussão que essa proposta teve no cenário em questão. Por fim, no entanto, houve o sucesso das aspirações golpistas e Castelo Branco inicia seu mandato utilizando do retorno ao “alinhamento automático” aos EUA.

Artur da Costa e Silva, como segundo presidente do regime ditatorial, chega na administração brasileira no período de avaliação dos resultados da Aliança para o Progresso, programa

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de investimento para a América Latina. É notória a falta de expressividade do programa, levando a um desapontamento quanto ao empenho norte-americano em ajudar a América Latina. Nesse mesmo contexto passa a ser cada vez mais perceptível as contradições da Guerra Fria, dado que a duas potências antagônicas estavam se empenhando em colaborar, e a tensão da bipolaridade era majoritária nas bases do sistema. Frente a esse contexto, o embaixador Araújo Castro desenvolve “[...] uma densa e penetrante reflexão a respeito da estrutura hierárquica e dos influxos e interações do sistema internacional” (GONÇALVES; MIYAMOTO, 1993, p. 12). O Brasil também, visando a nuclearização do país, afronta a sugestão norte-americana e não assina o Tratado de Não Proliferação (TNP).

Durante o governo Emílio Médici o país se vê confiante com os resultados positivos do “milagre econômico”1, e por isso procura reforçar suas relações bilaterais, sem sofrer influência de instituições como a Organização dos Estados Americanos (OEA), de supremacia política norte-americana. O Brasil ainda decretou a ampliação do seu limite do mar territorial para 200 milhas, com o argumento de proteger seus depósitos de petróleo. Essa medida sofreu oposição norte-americana, dado que “[...] denotava a vontade de aumentar o grau de independência nacional no contexto do sistema internacional.” (GONÇALVES; MIYAMOTO, 1993, p. 19).

Ernesto Geisel recebe a presidência brasileira em um contexto crítico de crise econômica devido aos choques de petróleo. Isso provoca desequilíbrio em todo sistema e uma consequente e relativa flexibilização das relações internacionais. De forma pragmática o governo se aproxima da África e reconhece a independência da Angola, constrangendo os EUA, pois as mobilizações africanas possuíam um signo do socialismo. Além

1 “Milagre Econômico” é a denominação dada à época de excepcional crescimento na economia brasileira durante o Regime Militar, entre 1968 e 1973. Nesse período, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi expressiva possibilitando um desenvolvimento nacional sem precedentes.

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do mais, o Brasil assina um acordo de cooperação nuclear com a Alemanha, porque os EUA, antigo parceiro nuclear brasileira, recusava-se a compartilhar tecnologia.

O viés do discurso de política externa norte-americana mudou com a entrada do presidente Jimmy Carter. Com ênfase na busca pelos Direitos Humanos, Carter pressionou as ditaduras da América a voltarem para um regime democrático. Dessa forma, a tensão entre EUA e Brasil é transparecida por desentendimentos no campo político e econômico.

Os desacordos com os EUA não eram só políticos, mas também econômicos. Aliás, estes últimos passaram a caracterizar as relações dos dois países desde que o Brasil iniciou o avanço no caminho da industrialização. A tranquila complementaridade deu lugar ao contencioso quando os manufaturados brasileiros começaram a penetrar no mercado interno norte-americano. Contudo, o afastamento econômico, longe de levar o Brasil ao isolamento, conduziu-o a um maior entrosamento com os países da Europa Ocidental e com o Japão. (GONÇALVES; MIYAMOTO, 1993, p. 25).

João Figueiredo, por fim, intensificou a diversificação de Geisel e acompanhou a tendência à mundialização do sistema internacional com uma política de universalização. Apesar da retomada intensa da campanha anticomunismo de Reagan, o Brasil ampliou relações com a África, Oriente Médio, Ásia e Europa Oriental.

Todo o período da ditadura brasileira foi delineado pela busca do reconhecimento do país como potência. Porém, o regime não foi homogêneo e mesmo dentro das particularidades de cada governo é possível, segundo Gonçalves e Miyamoto (1993), dividi-lo em dois períodos marcadamente distintos. O primeiro período começa em Castelo Branco e se estende até Médici, tal é formado pelo princípio “fronteiras ideológicas”. Todo o sistema

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internacional estava construído pelos eixos Leste-Oeste, e não era possível qualquer movimentação sem o alinhamento com umas das vertentes. Para esses governantes a criação de tensão com os EUA era inadmissível, haja vista a ambição brasileira em prosperar e obter reconhecimento.

O segundo período significou um rompimento com as fronteiras ideológicas. O Brasil conquistou o estágio de país em desenvolvimento e procurou maior interação com não potências, reivindicando assim uma posição mais prestigiada no sistema, e não o tradicional consentimento sobre seu perfil de país subdesenvolvido. Porém, esse não foi um comportamento particularmente brasileiro, e sim estratégia utilizada pelos países do “Terceiro Mundo” para modificar a ordem estabelecida.

1.4 América Latina

A intensa relação dos EUA com o período de ditadura militar não foi uma peculiaridade brasileira. Em toda a América Latina o governo norte-americano manteve uma política de contato próximo com os governantes do continente, influenciando cada regime doméstico.

A expressão “pentagonização” da América Latina representa a instauração de um arsenal institucional originariamente norte-americano no sul do continente. Como esclarece Serra, “em essência” esse fenômeno

[...] foi a expressão da ampliação gradual de uma complexa rede de relações, subordinadas ao poder norte-americano, que compreendeu: intercâmbio de informação, fornecimento de equipamento militares e munição, treinamentos diversos para fins de segurança interna, instrução para ações encobertas, acessos às escolas militares estadunidenses criadas ou reconvertidas para esses fins, oferta de linhas de financiamento específicas, etc. (PADRÓS, 2007, p. 13).

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Além dos ganhos políticos que esse processo proporcionou aos EUA, houve também contribuição com o nível de lucro extraído pelos norte-americanos dos países latino-americanos, pois a “[...] ‘pentagonização’ reafirmou o poderio militar-industrial dos EUA, assegurando o fornecimento de matérias-primas a preços baixos, obtendo máxima rentabilidade dos investimentos na região e garantindo a fidelidade dos Estados clientes.” (PADRÓS, 2007, p. 15). Também, a criação de Forças Armadas sólidas e pró-ocidente para atuar na América Latina diminuiria gastos norte-americanos com suas próprias tropas, dado que não havia mais necessidade de intervenção direta, deixando de desagradar a opinião pública e o direito internacional.

A Escola das Américas é um claro exemplo da presença norte-americana no continente. E mais especificamente, nos grupos militares latinos que passariam a exercer o poder em seus países principalmente a partir da segunda metade do século XX. A Escola foi fundada em 1946, no Panamá. Trata-se de uma instituição do Departamento de Defesas dos EUA e, com a intensificação da Guerra Fria, tinha como objetivo formar líderes capazes de confrontar a insurgência comunista no continente. A década de 1960, pós Revolução Cubana, foi marcante para essas organizações de ensino, pois avivou a necessidade de lutar contra a emergência de aliados do leste no território latino-americano.

Destacavam-se na Escola cursos de operação técnica (engenharia, comunicação e manutenção de armas e veículos), de operação de apoio (curso de polícia militar, logística e sanidade) e operação de combate (contra guerrilha urbana e na selva) (PADRÓS, 2007, p. 25). Esses treinamentos e formações de capacitação contra potenciais insurgências geraram nos seus alunos um sentimento de necessário protagonismo da classe militar na política nacional. Os estudantes da Escola, quando já diplomados, retornavam aos seus países de origem com uma mentalidade anticomunismo enraizada. A disseminação de teorias como a Doutrina de Segurança Nacional, referida

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anteriormente, instalou no ambiente militar um compromisso, quase uma missão, dos militares, únicos capazes, de conter as ameaças advindas do Leste.

A América Latina também foi palco de uma grande aliança político-militar. Vários regimes militares (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e com a colaboração da Bolívia) se dedicaram a uma cooperação na política de repressão que ficou conhecida como “Condor”2. Essa operação, inicialmente, era um sistema de inteligência que almejava o intercâmbio de informações entre os países membros. Porém, a operação através de adidos militares adquire um nível distinto do que uma simples reunião sobre serviços de inteligência. O diálogo entre as ditaduras e a ausência de um aparelho burocrático-formal entre aliados possibilitaram prender opositores de nacionalidades diferentes, fora de seus territórios de origem. Independente de onde estivessem, os inimigos do regime eram perseguidos e apreendidos. Além do intercâmbio de prisioneiros, a operação proporcionava aos líderes de cada país para trabalhar em parceria pelo “bem da América Latina”.

Não existem evidências de ligações diretas entre a inteligência norte-americana CIA e os procedimentos da operação. Contudo, “[...] a repressão tinha a participação e o acompanhamento do governo norte-americano, uma vez que vários documentos da Operação Condor eram distribuídos para autoridades norte-americanas.” (AGUILAR, 2011, p. 75),

2 Condor (2007), documentário brasileiro dirigido por Roberto Mader. O documentário utiliza de depoimentos e imagens de arquivos das ditaduras militares da segunda parte do século XX na América do Sul, procurando destacar as ações da chamada Operação Condor, nome atribuído a um acordo entre as políticas secretas dos países do Cone Sul com conhecimento da CIA, que teria resultado em várias ações violentas contra militantes e representantes da esquerda comunista e socialista da região.

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demonstrando a ciência do Departamento de Estado sobre o que, de fato, acontecia.

CONCLUSÃO

O contexto de Guerra Fria foi inegavelmente relevante para a consolidação da ditadura brasileira. Por trás da ação concreta que levou o país ao fim da democracia pelas mãos dos militares, com o apoio civil, está um conjunto ideológico arraigado aos líderes golpistas. De forma didática, esse conjunto ideológico pode ser dividido em duas partes. No primeiro, o anticomunismo disseminado pelo eixo ocidental, liderados pelos EUA, exigia um combate feroz a qualquer eminência esquerdista na esfera internacional e nacional. Então, no caso brasileiro a postura política de Goulart era inadmissível perante uma conjuntura tão polarizada. No segundo, desde os primórdios, os militares possuíam “[...] uma formação mais política do que profissional.” (BORGES, 2007, p. 18). Isso gerava um sentimento de competência para gerir a política nacional. Essa perspectiva se encaixou e se intensificou com a teoria norte-americana de Doutrina de Segurança Nacional.

As duas compreensões sobre inimigo - comunismo e heróis militares - possuem a influência norte-americana. A ESG, na dimensão brasileira, e a Escola das Américas, na dimensão latino-americana, são evidências da consolidação dessa presença dos EUA no território de seus aliados. Atribuir culpa integral aos EUA não faz justiça a todos os envolvidos nesse conjunto ideológico, em razão dos militares e de setores conservadores da sociedade civil do Brasil não terem sido indiferentes às condições e aos fundamentos da Guerra Fria. Pelo contrário, essa elite foi bastante receptível às premissas recebidas, porque estas conciliavam com a mentalidade e os objetivos.

A operação Brother Sam criada para apoiar o golpe de 1964 e é mais um exemplo além da abstração ideológica

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disseminada pelos EUA. Essa concretude material do interesse norte-americano no Brasil demonstrou até que ponto a potência poderia chegar para mantê-lo no círculo de alianças pró-ocidente. Diferentemente, aconteceram em Cuba na Invasão da Baía dos Porcos, em 1961, e na Invasão da República Dominicana, em 1995, eventos os quais os EUA efetivaram a invasão.

Cabe ressaltar ainda que o golpe não foi uma iniciativa originalmente americana. No entendimento de Carvalho (2005) a conspiração foi interna, como também foram as causas de seu êxito. Para o autor, a operação Brother Sam apenas encorajou os golpistas. Fico (2008) dá outro enfoque a essa questão, pois entende que os Estados Unidos poderiam se julgassem necessário, intervir militarmente no Brasil. Entretanto, a origem da operação Brother Sam não objetiva acerca do desembarque de fuzileiros. Isso se justifica porque para uma intervenção militar no Brasil, seria necessário atuar de forma explícita a partir da autorização do Congresso dos Estados Unidos.

Pode-se concluir que no caso brasileiro o golpe foi conduzido prioritariamente por personagens internos com o apoio norte-americano, protagonizado pelo embaixador Lincoln Gordon, como ilustra bem o documentário “O dia que durou 21 anos”3. Contrariando a interpretação de Carvalho (2005) sobre a operação, a participação dos Estados Unidos foi decisiva sim e demonstrou a sua “disposição intervencionista”.

O próprio reconhecimento imediato norte-americano do novo regime brasileiro faz necessária a confirmação do apoio dos EUA depois de 1964. A Política Externa dos presidentes militares variou ao longo de cada mandato, é possível, porém, encontrar pontos convergentes entre cada um. A citada divisão do período

3 O Dia que Durou 21 Anos (2012), documentário brasileiro dirigido por Camillo Galii Tavares sobre a participação dos Estados Unidos na preparação, desde 1962, do golpe de Estado de 1964, no Brasil. O diretor utilizou de documentos divulgados pelo governo dos Estados Unidos, desde os anos de 1970.

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militar sugere dois períodos de diferente interpretação de como deveria ser o relacionamento brasileiro com a potência ocidental.

Em síntese, os anos de ditadura não apresentaram uma ameaça à política norte-americana, pelo contrário, convinha ao Departamento de Estado a manutenção do regime. Apesar das divergências na esfera da política externa e direitos humanos, os Estados Unidos não efetivaram oposição direta e enfática ao período. Assim também aconteceu no período de abertura política. O processo de redemocratização dos países da América Latina, e outras regiões do globo, apelidado pelo teórico americano Samuel Huntington de “Terceira Onda” democrática foi bem interpretado pelos norte-americanos. É importante considerar que, em regra geral, o gradual movimento de substituição do sistema político criava condições para a diminuição dos riscos de um corte radical do status quo (SÁ; LIMA, 2005, p. 9). Além do mais, os regimes posteriores a esse processo foram majoritariamente de centro-direita, e não de esquerda.

Frente à relação Brasil-EUA aqui exposta, é essencial uma reflexão acerca do envolvimento de uma potência com os países submetidos a sua hegemonia. Foi demonstrado que princípios democráticos acordados entre as nações de soberania e não-intervenção foram violados, direta ou indiretamente, em prol da manutenção e união do bloco ocidental.

Nilson Borges sinaliza que os atentados de 11 de setembro de 2011 promoveram, nos Estados Unidos e nas Escolas de Guerra norte-americanas, uma “[...] readaptação da Doutrina de Segurança Nacional” (BORGES, 2007, p. 41), cujos novos postulados centram-se no combate ao terrorismo internacional. Arno Dal Ri Júnior reforça esse diagnóstico quando frisa que a passagem entre o fim do século XX e o início do século XXI trouxe uma mudança significativa no que tange a interpretação do perfil do inimigo do ocidente. Assim, ele acredita que “[...] não foi difícil encontrar no fundamentalismo islâmico e no ‘terrorista árabe’ ótimos sucessores para os velhos ‘comunistas’.”

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(DAL RI JÚNIOR, 2006: 355). É necessário atentar a tais novas proposições, dado que já foi reconhecida a amplitude que esses tipos de ideias conseguem alcançar.

Theotonio dos Santos discorre sobre a instituição Diálogo Interamericano, criada em 1982, como um dos

[...] mecanismos pelos quais o governo dos Estados Unidos e os grupos de interesse organizados a partir daquele pais interveem ativamente na vida política do [Brasil] [...]. Isto é normal, pois a função de centro hegemônico do sistema mundial que este país ostenta o leva a desenvolver mecanismos de intervenção diversificados que atuam sobre vários setores da vida econômica, politica, social e cultural. Entre estes mecanismos é pouco conhecida a criação de instituições voltadas para a formação e filiação de quadros políticos que se subordinam aos objetivos estratégicos colocados por estas entidades. Trata-se claramente do estabelecimento de um time de ponta a serviço dos poderosos interesses dos capitais nacionais e transnacionais que buscam operar cada vez mais com princípios e objetivos comuns. (SANTOS, 2014).

No trecho de Theotonio é interessante ressaltar expressões que fazem referência aos mecanismos de intervenção dos EUA como “isto é normal” e “pouco conhecido”. O autor denuncia uma prática comum da grande potência mundial e que também não é recente, vide as intervenções diretas e indiretas no Brasil durante o governo militar. Diante dessa característica intervencionista norte-americana, é essencial a busca pela mudança de tal cenário na América Latina. Pois, se ainda são desconhecidos ou ignorados os meios de imposição dos EUA,

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dificilmente o Brasil conseguirá agir com autonomia e a partir de construções ideológicas próprias.

REFERÊNCIAS

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BORGES, Nílson. A doutrina de segurança nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (Org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura - regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 4.

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FICO, Carlos. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo: o governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

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PADRÓS, Enrique Serra. As escolas militares dos Estados Unidos e a pentagonização das Forças Armadas da América Latina. Outros Tempos, São Luís, v. 1, esp., p. 13-31. 2007. Disponível em: <http://www.outrostempos.uema.br/vol_especial/dossieespecialart02.pdf>. Acesso em: 2015.

SÁ, Tiago Moreira de; LIMA, Bernardo Pires de. A teoria da transição para a democracia. [S.l.], 2005. Disponível em: <http://www.academia.edu/429973/A_Teoria_da_Transicao_para_a_Democracia>. Acesso em: 2015.

SANTOS, Theotonio dos. Marina Silva: É possível servir a dois senhores? Brasil de Fato, São Paulo, 3 out. 2014. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/ node/30050>. Acesso em: 4 out. 2014.

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3. A INTERNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA E SEUS IMPACTOS NA GARANTIA DA

PRESERVAÇÃO DO EMPREGO

Nelma Karla Waideman Fukuoka*

INTRODUÇÃO

Apesar da proximidade do novo milênio, permanecem os trabalhadores brasileiros à margem de qualquer garantia formal de emprego e sustento, visto inexistirem regras positivas que coíbem a dispensa sem justa causa de muitos trabalhadores como artifício empresarial de diminuição de custos em sua produção (PÔRTO, 2000, p. 517).

No novo paradigma do trabalho e do emprego, suscitado pela substituição das formas clássicas de trabalho com base no modelo taylorista e fordista pelo advento do trabalho com base na era da informação e do conhecimento, que tem como característica uma prestação de serviços mais flexível, precária de certa forma desprotegida das garantias tradicionais de estabilidade e segurança no emprego, cabe um papel fundamental ao Direito do Trabalho na contribuição da crise do emprego. (PÔRTO, 2000, p. 281).

Neste contexto é que deve ser identificado e compreendido o direito à garantia de emprego contra o despedimento arbitrário ou injusto, segundo o disposto no art.7º, I da Constituição Federal de 1988, a partir do qual também deve ser analisada a questão relacionada com a obtenção da sua real eficácia jurídica, principalmente em períodos de crises econômicas em âmbito internacional.

* Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista « Júlio de Mesquita Filho » – UNESP/Franca. Contato: [email protected].

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O pressuposto da proteção social do trabalhador, frente a supremacia econômica do empregador, expressão da desigualdade jurídica, se perfaz como forma de colocar em situação de relativa igualdade os dois polos da relação de trabalho (SANTOS, 1999, p. 232).

Nesse quadro, a proteção legal contra as despedidas arbitrárias ou sem justa causa, representa assunto atual e de especial relevância, na medida em que novos paradigmas são ditados pela ordem econômica mundial favorável aos países centrais e que inexoravelmente se instala em face do atual processo de globalização, refletindo, nos países de economia dependente como o Brasil, os seus efeitos mais perversos, como, por exemplo, o agravamento do desemprego.

O presente trabalho busca analisar os impactos da internacionalização da economia na preservação de empregos quando das dispensas arbitrárias, bem como suas consequências no âmbito social e econômico frente à imperatividade constitucional de respeito aos direitos fundamentais sociotrabalhistas.

A abordagem se realizará através do método dialético, para compreensão e interpretação crítica e aproximada da realidade, partindo do pressuposto de que esta é historicamente superável. Cabe ressaltar a vertente marxista a ser adotada, estabelecendo que o fator determinante da mudança não advém de intencionalidades subjetivas ideológicas ou políticas, mas da infraestrutura econômica. O procedimento se dará, fundamentalmente, por pesquisas bibliográficas em materiais já publicados. Contudo, também se fará pertinente o levantamento de dados estatísticos e comparativos a respeito da temática proposta.

1 DESENVOLVIMENTO

A crise econômica global de 2008 evidenciou o desacerto do sistema capitalista, afetando gravemente as relações entre o

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capital e o trabalho. Com a atual recuperação, mas ainda lenta, da economia global, o número de desempregados no mundo aumentou em 5 milhões e chegou a 202 milhões em 2013, segundo o relatório Tendências Mundiais de Emprego 2014, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a entidade, o número representa uma taxa de desemprego mundial de 6% e se a tendência atual se mantiver, o desemprego mundial continuará piorando e poderá chegar a 215 milhões de pessoas em 2018. No Brasil, a taxa ficou em 6,7% em 2013, com a projeção de que, em 2016, o índice chegue a 6,5% (OIT BRASIL, 2014).

No conjunto das seis regiões brasileiras onde a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) é realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) - (Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo), a taxa de desemprego chegou aos 10,3% em 2013 (DIEESE, 2014).

O desemprego, como fenômeno coletivo que atualmente se mostra, é coetâneo da moderna economia capitalista, ainda que não produto seu e nela se apresentou como fenômeno estrutural, em razão da extrema divisão do trabalho, dos métodos de produção, distribuição e acumulação de renda (COSTA, 1991, p. 52). O uso da tecnologia e a exigência de trabalhadores extremamente qualificados pelo modelo toyotista cria um exército de reserva, pronto para ocupar postos de trabalho, cada vez mais raros, elevando em todo o mundo as taxas de desemprego (GONÇASVES, 2013, p. 21).

Nas palavras de Enoque Ribeiro dos Santos:É inegável que a globalização da economia e seus efeitos – abertura dos mercados, aumento da concorrência, maior fluidez financeira, transferência de propriedade, novas tecnologias, introdução de novos procedimentos eletrônicos e de informatização, diminuição das margens de benefícios concedidos aos empregados, alteração da política de pessoal – ocasionam maior

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descentralização das empresas e são responsáveis não apenas pelo recrudescimento do nível de desemprego na economia, como também por transformações profundas no mercado de trabalho (SANTOS, 2006, p. 83).

Neste contexto, é imperioso considerar os fatos políticos, econômicos e sociais decorrentes da globalização econômica, que têm imposto uma revisão crítica do processo judicial. Dentre eles está a crise econômica de 2008/2009, que se originou da tendência do mercado financeiro de crescer além do que permitem os recursos da economia real.

Desde o seu início está o capitalismo sujeito a crises e, a partir do momento em que ele passou a dominar a economia de várias nações, estas crises adquiriram caráter cíclico e passaram a desempenhar um papel decisivo no que se refere à compreensão crítica do funcionamento do sistema. (SINGER, 2006, p. 83).

Por crise se entende algo eventual, passageiro e esporádico. Assim, sendo do empregador o risco do negócio, não se pode transferi-lo aos empregados, que nenhuma culpa tem, em épocas de turbulência. Pelo contrário, nos momentos de crise é que deveria haver um verdadeiro pacto de superação entre empregado e empregador (ROCHA, 2010, p. 227). Apesar disso, os órgãos midiáticos constantemente noticiam reações das empresas à referida crise através de demissões em massa, corte de custos, fechamento de estabelecimentos, dentre outras medidas drásticas.

O núcleo de uma crise global, no entanto, não repousa na fria análise mercadológica, mas sim num aprofundamento das desigualdades sociais, na equidistância da justiça social e, no empobrecimento da classe trabalhadora (MAIOR, 2000, p. 129-130). Com essa geração de inseguranças do mundo do trabalho, o desemprego se mostra como a ponta mais visível desse verdadeiro iceberg (MATTOSO, 1996, p. 27).

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É evidente que a estrutura atual não consegue absorver o desemprego com o necessário equilíbrio, já que a atual lógica global impõe o desemprego e a diminuição do rendimento daquele que ainda consegue trabalho. Numa análise qualitativa do desemprego, nota-se que os empregos mais nobres se preservam para os segmentos de renda mais alta, embora em dimensão insuficiente para permitir a contínua mobilidade socioprofissional. O resultado disso se apresenta no “[...] aprofundamento da crise de reprodução social no interior do mercado de trabalho.” (ANTUNES, 2011, p. 122).

Para Souto Maior, no entanto, o consequente achatamento das garantias sociais não se dá em virtude de crise, pois os lucros do capital têm sido cada vez maiores, mas em virtude da concorrência internacional (MAIOR, 2000, p. 129-130). A mudança na natureza do trabalho também está contribuindo para a insegurança econômica dos trabalhadores, uma vez que muitos trabalhadores já não conseguem encontrar empregos de período integral e estabilidade a longo prazo (RIFKIN, 1995, p. 209). Disto pode-se concluir que o direito do trabalho acaba se tornando o ambiente jurídico mais suscetível às transformações decorrentes do processo de globalização (GODOY, 2003).

Na tradição keynesiana, a discussão conceitual sobre o desemprego se limita a uma análise ao desemprego involuntário, isto é, dos que oferecem força de trabalho disponível aos salários vigentes e não encontram aproveitamento. Esse conceito, em seu uso original, liga-se aos períodos de declínio da demanda agregada, principalmente em países capitalistas desenvolvidos, onde esse desemprego tem sido, em grande parte, de caráter cíclico (HOFFMAN, 1980, p. 58), quando, subitamente, a mão invisível do mercado falha (SINGER, 1968, p. 160).

O despedimento do obreiro, quando ocorre pela manifestação volitiva lícita do empregador, representa, além dos números, uma profunda significação social, se apresentando como forma de desequilíbrio social. Por meio dela, os empregados

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perdem seus empregos involuntariamente, e, em consequência, o meio único de suas subsistências de que dispõem. E quando o desemprego perdura, pode haver consequências degradantes para quem se vê obrigado a ficar parado (MOCHÓN MORCILLO, 1994, p. 357-358).

A morte da força de trabalho global está sendo interiorizada por milhões de trabalhadores que experimentam sua própria morte individual, diariamente, nas mãos de empregadores que visam exclusivamente o lucro e de um governo desinteressado. São aqueles que esperam o bilhete azul, e então são forçados a trabalhar meio período com salário reduzido, ou ser empurrados para as filas do auxílio desemprego. A cada nova indignidade, sua confiança e sua autoestima sofrem mais um golpe. Tornam-se descartáveis, depois irrelevantes e, finalmente, invisíveis (RIFKIN, 1995, p. 218).

Porém, inclusive para a sociedade, é prejudicial que uma parte da população ativa encontre-se durante um certo período desempregada, já que em nível macroeconômico o desemprego também implica um alto custo, por causa da produção que poderia ter sido efetivada (MOCHÓN MORCILLO, 1994, p. 357-358).

A situação econômica de um país acaba sendo refletida, aproximadamente, pela estrutura de emprego dos trabalhadores organizados sindicalmente (RÖSNER, 1996, p. 26). Por consequência, Sérgio Pinto Martins observa que o desemprego também acaba tendo reflexos no índice de sindicalização dos empregados, pois o obreiro, ao perder o posto de trabalho, num segundo momento acaba se desfiliando da agremiação; esta, então, ao deixa de arrecadar recursos para seus planos sindicais (MARTINS, 200, p. 314). Os desempregados também não entram em conta na política de negociação trabalhista, nem podem participar de greves. Do outro lado do espectro do emprego, no entanto, o núcleo de pessoal que permaneceu empregado não carece de apoio sindical, podendo perfeitamente defender seus interesses através das comissões de fábricas (RÖSNER, 1996,

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p. 26-27). Consequentemente, o enfraquecimento do sindicato diminui a capacidade de reivindicação.

Numa análise globalizada, então, pode-se notar que a perda de empregos gera uma cadeia de danos, envolvendo o trabalhador (diminuição do padrão de vida para sua família com a perda da renda; sentimento de inutilidade, desprestígio, impotência e rejeição social, podendo ocasionar problemas familiares e doenças; surgimento de problemas sociais, como a criminalidade, por exemplo); a empresa (pode representar a diminuição da produtividade; perda de trabalhadores qualificados, treinados e capacitados; redução do consumo); e também o Governo (aumentos de recursos destinados ao seguro-desemprego, gerando a necessidade do aumento da carga tributária para esse fim; diminuição do número de trabalhadores recolhendo sua parte da contribuição previdenciária, havendo diminuição na arrecadação da citada exação; o desempregado continua usando os benefícios que a saúde pública proporciona, sem estar contribuindo; há queda da produtividade nacional e, consequentemente, do Produto Interno Bruto (PIB); aumento da criminalidade e da miséria em certas regiões; diminuição do crescimento econômico do país) (MARTINS, 2000, p. 309).

Pode-se concluir, a partir desse diagnóstico, que os trabalhadores, além de homens, que devem ser respeitados e ter sua dignidade protegida pelo direito, possuem um alto valor para a economia, pois são, na essência, os consumidores que o capitalista precisa para manter-se vivo. “A produção necessita do consumidor e necessita, portanto, do trabalhador.” (MAIOR, 200, p. 160).

A classe trabalhadora, embora tenha se beneficiado com as mudanças de visão do mundo ocasionadas pela ascensão do comércio e do capitalismo, acabou se tornando refém dos mesmos. Com as ameaças geradas pela crise, os meios que o trabalhador possui para a efetivação de seus direitos, como sindicatos, por exemplo, acabaram sendo enfraquecidos. Mas o

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desemprego é um problema, também, da ciência do Direito e não simplesmente da Economia.

Nessa seara, apesar de a Constituição Federal prever uma série de garantias a esta classe, os fatores políticos atrelados aos econômicos impedem que estes direitos sejam fielmente efetivados.

É desencadeado um ciclo. O trabalhador desamparado e desmotivado não alcança o rendimento esperado, o que pode ocasionar a dispensa do mesmo. Desempregado, ele não consume o mesmo que consumiria se possuísse um emprego, afetando assim, a economia. E mesmo que não fosse dispensado, o baixo rendimento causa reflexos na produção, o que também atinge a economia. A condição de vida da classe trabalhadora se torna, então, um termômetro econômico e social.

Em muitas vezes, o emprego, além de representar a única fonte da sua própria subsistência e de sua família, representa, antes de tudo, a base de sua existência e da sua própria dignidade como pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana é inerente à própria condição de pessoa humana. Assim, é indubitável que os ideais trabalho e dignidade humana são indissociáveis, sendo os direitos sociotrabalhistas uma parte dos direitos fundamentais. E a dignidade do trabalhador, como ser humano, deve ter profunda ressonância na interpretação e aplicação das normas legais e das condições contratuais de trabalho. A vida de trabalho sem dignidade é a redução do ser humano à condição análoga à de escravo ou até mesmo à de animal.

A valorização do trabalho é algo que torna possível a sobrevivência do próprio capital e, no fundo, a sobrevivência desse modelo de sociedade. Quanto menos o trabalho vale, mais as pessoas o desprezam. O trabalho é pena – a concepção vem dos gregos - e não prazer. O prazer advém dos benefícios que o trabalho nos proporciona – benefícios econômicos, já que vivemos num mundo capitalista. (MAIOR, 2000, p. 187).

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O pressuposto da proteção social do trabalhador, frente à supremacia econômica do empregador, expressão da desigualdade jurídica, é uma forma de colocar em situação de relativa igualdade os dois polos da relação de trabalho. Para Maurício Godinho Delgado, o trabalho com garantias mínimas – que no mundo capitalista tem se confundido com o emprego, ao menos para os despossuídos de poder socioeconômico – torna-se, na prática, o grande instrumento de alcance no plano social da dignidade human (DELGADO, 2011, p. 1046).

Esta, ao lado do direito à vida, constitui o núcleo essencial dos direitos humanos. Ela fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos fundamentais, mas também à organização econômica.

Para a OIT, o pleno emprego é fundamental para a erradicação da pobreza e da fome. A população teria direito ao pleno emprego e caberia à sociedade estabelecer as leis e as normas que possibilitem a utilização integral da oferta de trabalho, desde que o pleno emprego é uma condição necessária para a restauração da dignidade dos trabalhadores e uma condição essencial para a estabilidade e o progresso da sociedade (KON, 2012).

O valor social do trabalho, como um dos princípios constitucionais que fundamentam nossa República, há de ser experimentado pela pessoa humana tanto no âmbito da sociedade como no da economia, numa exploração de conteúdos que requerem a necessidade de conjugar uma relação de complementaridade e tensão entre os aspectos de direito e de dever do trabalho humano - abarcando em si tanto a dimensão do direito a manter uma vida humana por meio da sobrevivência oportunizada por esse mesmo trabalho, como também a dimensão de dever, uma vez que a sociedade necessita da contribuição de todos para o seu adequado funcionamento e para a harmonização social (BRANCO, 2007, p. 61-62).

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Se os direitos sociotrabalhitas constituem autênticos direitos fundamentais da pessoa humana do ordenamento jurídico, é exatamente nessa espécie de direitos que nosso Estado encontra sua própria razão de ser, motivo pelo qual se deve, a respeito deles, ser defendida sua inquestionável efetividade (BRANCO, 2007, p. 63-64). No entanto, há de ser observar que:

Um equívoco hermenêutico vem sendo, constantemente, cometido, qual seja: atrelar o valor do trabalho humano às possibilidades econômicas e não em correspondência às necessidades humanas. [...] Ao contrário, esse mesmo hermeneuta é chamado a ficar atento a dois princípios fundamentais fixados pela Constituição da República: a Dignidade da Pessoa Humana e o valor social do trabalho, para que, de fato, a Ordem Econômica fundada na valorização social do trabalho humano possa realmente buscar o Pleno Emprego. (BRANCO, 2007, p. 64).

Destarte, cabe-nos visualizar as potencialidades transformadoras que são trazidas com as cláusulas principiológicas a valorização do trabalho humano e reconhecimento do valor social do trabalho na Constituição Federal (GRAU, 2008, p. 201), se mostrando como um dos alicerces para efetiva garantia da dignidade humana. Ou seja, a pergunta que se lança, ademais todo o exposto é se se faz prevalecer a Constituição, com a força de seus dispositivos em prol da dignidade da pessoa humana, ou a lex mercatoria, que converte tudo e todos em instrumento para a riqueza de poucos (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO EM MINAS GERAIS, [20--]).

Ainda que se o negue ou se pretenda enunciá-los como convergentes, titulares de capital e de trabalho são movidos por interesses distintos. Daí porque o capitalismo moderno, renovado, pretende a conciliação e composição entre ambos. Essa pretensão de conciliação e composição entre ambos é instrumentalizada através do exercício, pelo Estado, de uma série de funções (GRAU,

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2008, p. 200). Impõe-se, por isso, ao Estado Democrático e Social a função de criar mecanismos que assegurem liberdade e acesso ao mercado de trabalho; e também que, por meio do trabalho, propiciem uma existência digna ou compatível com a dignidade da pessoa humana - o que implica ambiente de trabalho saudável dos pontos de vista físico, psicológico, social e econômico (PANCOTTI, 2009, p. 42).

Indiscutivelmente a sociedade, em geral, sofre uma crise sem precedentes, afinal vive-se um afrouxamento de valores. Isso tem reflexo certo no âmbito do Direito, visto que se refere a uma ciência social e, como tal, intimamente ligada à dinâmica social, motivo pelo qual os rumos que perpassam a sociedade geram ego imediato, ou pelo menos deveriam gerar, no seio da ciência jurídica (BRANCO, 2007, p. 19).

É certo que a mencionada crise atingiu, em cheio, a regulação das relações individuais e coletivas de trabalho humano, propondo-lhe mutações, por vezes teratogênicas, em nome da “modernização” de seus fundamentos elementares e, quiçá, das premissas constitucionais vigentes, na medida em que atinge e afeta, violentamente, a proteção de direitos fundamentais constitucionais (BRANCO, 2007, p. 19) - dentre eles o direito fundamental ao trabalho.

Nesse contexto que a atualização do Direito do Trabalho é necessária para enfrentar os desafios do próximo milênio, dentre os quais o desemprego constitui-se uma das principais ameaças. A solução não se restringe ao campo econômico, cabendo ao Direito do Trabalho papel decisivo e preponderante, não se submetendo pura e simplesmente às regras ditadas pela economia, embora o conteúdo das regras a serem ditadas pelo direito tenham forte conteúdo socioeconômico (SANTOS, 2006, p. 94).

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CONCLUSÃO

O novo paradigma mundial do trabalho e do emprego tem como característica uma prestação de serviços mais flexível, precária de certa forma desprotegida das garantias tradicionais de estabilidade e segurança no emprego. Assim, torna-se incontestável a certeza prevalecente nos dias de hoje da imperativa necessidade de modernizar e atualizar os direitos dos trabalhadores face à realidade econômica, no sentido de enfrentar os grandes desafios próprios desse ramo, dentre os quais a crise do emprego se no afigura o mais complexo.

A encruzilhada da globalização econômica desafia os teóricos a demonstrarem a viabilidade prática de suas ideias. Falar em princípio protetor do direito do trabalho em um momento em que o capitalismo tem todas as portas abertas para avançar, apresenta-se mesmo um desafio, requerendo, ainda, uma comprovação da viabilidade econômica da sustentação do social, pois que a economia se rege pelas regras do livre comércio e da lei da oferta e da procura, esvaziando os valores sociais (MAIOR, 2000, p. 357).

A crise econômica, ainda, favorece à crítica, a ponto de se pregar a total desregulamentação das relações de trabalho. Portanto, quando se analisa os desafios do Direito face ao desemprego, não podemos olvidar da revisão de nosso modelo de relações de trabalho.

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4 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E O ATIVISMO JURÍDICO: ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL, PROTAGONISMO NOS PROCESSOS DE MUDANÇA SOCIAL E DEMOCRACIA

Ana Carolina de Morais Colombaroli*Agnaldo de Sousa Barbosa**

INTRODUÇÃO

Grande parte da bibliografia política recente sobre o Brasil, ao que nos parece, estabeleceu um consenso acerca da ausência de uma cultura democrática profundamente enraizada. Embora atestando alguns câmbios positivos, tende a reafirmar a distância que nos separa dos níveis confortáveis para a consolidação da democracia. Segundo tal viés, a democracia brasileira teria seu componente cívico atrofiado: afinal, uma sociedade que nunca viveu uma revolução, cuja trajetória política conheceu longos períodos ditatoriais e que, diante da globalização, vê enfraquecido o Estado-nação, não se habituou à democracia.

A abordagem sociológica da democracia tem buscado condicionantes na “cultura política”, associando-a aos processos de institucionalização das democracias, a partir do entendimento

* Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP. Membro do LEDMUS - Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Direito e Mudança Social. Contato: [email protected]ículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4389564A1** Professor de Sociologia e Sociologia do Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP. Líder do LEDMUS - Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Direito e Mudança Social. Contato: [email protected]ículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4704697P3

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da sociedade e da natureza do processo político como expressões de uma comunidade de valores e consciências. O argumento sociológico sobre a democratização em países não originários está voltado para os movimentos (re)construtivos de identidades coletivas (CARVALHO, 2002, p. 307). Este argumento está presente nas concepções pessimistas acerca da democratização brasileira.

[...] a sugestão de que a democracia brasileira é débil porque a cultura política democrática jamais grassou entre nós articula uma ampla gama de interpretadores com implantação histórica real na imaginação do país, mais buliçosa agora, quando o revival culturalista encontra franca acolhida nas pesquisas de opinião mundializadas. (CARVALHO, 2002, p. 308).

No entanto, diferentemente da maioria dos intérpretes da democracia brasileira, Luiz Werneck Vianna – ao qual nos filiamos – e Guilhermo O’Donnel se afastam da rota do pessimismo sociológico e enfrentam a questão da cultura democrática brasileira deslocando o tema da cidadania cívica para o da cidadania jurídica.

Embora estes dois autores apresentem divergências nas definições que oferecem de democracia, convergem teoricamente em torno da idéia de que a assimilação e institucionalização da democracia não necessitam de um acordo ético preliminar, ao passo que as normas obrigam todos os destinatários a um comportamento, o que preenche as expectativas generalizadoras.

Segundo Maria Alice Rezende de Carvalho (2002, p. 309-310), essa ideia desdobra-se no reconhecimento de que a democracia não se resume à institucionalidade do governo, mas demanda também um Estado Democrático de Direito, sustentador das normas legais que correspondem à permanência e exigência do regime democrático, bem como que esse sistema legal seja válido, ou seja, capaz de ordenar, de fato as relações sociais, de utilidade reconhecida por todos.

121“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Em oposição ao “pessimismo sociológico”, acreditamos que a construção democrática brasileira ganha força na contemporaneidade, especialmente com o advento da Constituição Federal de 1988, de caráter societário e comunitário, nos dizeres de Carlos Alberto de Siqueira Castro (1987).

O processo constituinte marcado pela efetiva participação de diversos setores da sociedade civil faz emergir uma Constituição com uma estrutura normativa que envolve um conjunto de valores. Pode-se afirmar, portanto, que existe uma conexão de sentido entre os valores compartilhados pela comunidade civil e política e a ordenação jurídica fundamental, que prioriza os valores de igualdade e dignidade humana.

José Afonso da Silva (1985, p. 6), acerca das características constitucionais brasileiras, afirma que

O constituinte [...] rejeitou a chamada constituição sintética, que é a “constituição negativa”, porque construtora apenas de liberdade-negativa ou liberdade-impedimento, oposta à autoridade, modelo de constituição que, às vezes, se chama de “constituição-garantia” (ou constituição-quadro). A “função garantia” não só foi preservada como até ampliada na nova Constituição, não como mera garantia do existente ou como simples garantia das liberdades negativas ou liberdades-limites. Assumiu o novo texto a característica de “constituição-dirigente”, enquanto define fins e programa de ação futura [...].

O constitucionalismo brasileiro assume caráter definitivamente democrático, com base no binômio dignidade humana/solidariedade social, significando um movimento de retorno do direito no país.

Num contexto de construção democrática tardia, a constitucionalização de direitos civis, políticos e sociais e a incorporação da linguagem dos direitos pela cena política e jurídica brasileiras faz com que floresça um processo de cidadania

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jurídica concomitante à procedimentalização democrática, ativando processos de identidades coletivas.

O acesso à justiça passa à raiz da adesão à democracia, ao permitir a construção de uma atividade política permanente na busca pela satisfação de interesses, culminando no ativismo judicial e judicialização da política como processos intrínsecos à dialética de mudança social.

Concebendo a cidadania jurídica como perspectiva democrática e, no intuito de compreender de que modo o direito, o ativismo jurídico e constitucional se constituem instrumento de dialética da mudança social na contemporaneidade, nas próximas páginas discorreremos sobre o potencial emancipatório do Direito, empreenderemos discussões sobre o ativismo jurídico e a judicialização da política, bem como sobre o protagonismo do STF na implementação de políticas públicas com vistas à mudança social.

1 DISCUSSÕES SOBRE JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS

A discussão acerca da ampliação do controle normativo do Poder Judiciário se desenvolve tanto na ciência política, quanto na sociologia jurídica e na filosofia do direito. O protagonismo do Poder Judiciário parece abalar o princípio da separação dos poderes, bem como inaugura um novo espaço público, desvinculado das instituições político-representativas tradicionais.

A fronteira entre o político e o jurídico torna-se cada vez mais fluida na contemporaneidade. Se nos países de common law o ativismo judicial já era favorecido em razão das práticas criativas jurisprudenciais e da influência política do juiz, nos países de civil law, especialmente após o movimento neoconstitucionalista, como é o caso do Brasil, a instituição do Estado Democrático de Direito garante espaço a interpretações construtivistas por parte da jurisdição constitucional. Já é, inclusive, possível falar em

123“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

um direito judicial, em oposição ao direito legal (CITTADINO, 2002, p. 17-18).

A judicialização significa que algumas questões de repercussão política e social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias tradicionalmente políticas, como as Câmaras Legislativas e o Poder Executivo. Envolvendo uma transferência de poder aos juízes e tribunais, com alterações de linguagem, argumentação e modo de participação da sociedade, a judicialização indica a expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas (BARROSO, 2009).

1.1 Judicialização da política e das relações sociais

Tal qual definida por Vallinder (1995, p. 13 apud EISENBERG, 2002, p. 47), a judicialização corresponde ao processo de “infusão de processos decisórios e de procedimentos típicos de tribunais nas arenas políticas onde estes processos e procedimentos não se faziam presentes”. Assim, a judicialização da política é um processo composto de dois movimentos distintos: (1) refere-se a um processo de expansão dos poderes de legislar e executar leis do sistema judiciário, representando uma transferência do poder decisório do Poder Executivo e do Poder Legislativo para os juízes e tribunais – isto é, uma politização do Judiciário; (2) a disseminação de métodos de tomada de decisão típicos do Poder Judiciário nos outros Poderes.

A expansão do princípio democrático tem provocado, por toda a parte, uma institucionalização do direito na vida social, invadindo espaços antes a ele inacessíveis. É visível e crescente a expansão do direito, seus procedimentos e instituições, tanto sobre a política quanto sobre a sociabilidade. A emergência do constitucionalismo democrático no mundo ibérico europeu e americano trouxe consigo a universalização do judicial review,

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bem como a afirmação de leis fundamentais que impõe limites à regra da “vontade da maioria”.

Esse contexto de ampliação do alcance da ação executiva e legislativa do Judiciário resulta numa expansão das demandas por resolução dos conflitos sociais, gerando a necessidade de raciocinar sobre novas conseqüências desejáveis.

No entendimento de Vianna et al. (1999, p. 15), o fim à rigorosa separação entre o Estado e a sociedade civil, marcada pela ótica liberal de liberdades negativas, foi efeito da emergência dos novos detentores de direitos, especialmente o movimento operário e da institucionalização do welfare. Com a adoção da agenda de igualdade, o direito é difundido na sociabilidade e a relação entre os três Poderes, redefinida, adjudicando ao Judiciário a função de controle dos poderes políticos.

Assim, a democratização social, tal como se apresenta no Welfare State, e a nova institucionalidade da democracia política que se afirmou, primeiro, após a derrota do nazi-fascismo e depois, nos anos 70, com o desmonte dos regimes autoritários corporativos do mundo ibérico (europeu e americano), trazendo à luz a Constituições informadas pelo princípio da positivação de direitos fundamentais, estariam no cerne do processo de redefinição das relações entre os três Poderes, ensejando a inclusão do Poder Judiciário no espaço da política. O Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa da legitimação do nazi-fascismo pela vontade da maioria, lhe confiou a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. (VIANNA, 1999, p. 22).

A possibilidade de tutela jurídica aos conflitos entre grupos sociais e à proteção de interesses coletivos e difusos por

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meio das class actions e public interests litigation resulta num envolvimento do direito na própria construção da sociabilidade, na medida em que tais ações favorecem a formação de identidades e de núcleos de organização social, sem os quais seria impossível a viabilização.

As mudanças no campo de disputa de conflitos, mais do que um novo padrão de relacionamento entre os Poderes, têm levado a uma ação social substitutiva a dos partidos e instituições políticas tradicionais, na qual o Poder Judiciário surge como alternativa para a solução de conflitos coletivos, para agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação da cidadania, traduzida em facilitação no acesso à justiça (VIANNA et al., 1999, p. 22). A juridificação da sociedade brasileira apresenta-se como um substitucionismo, ou seja, em sua versão mais radical, “[...] espera-se que o Judiciário seja o ponto de partida da regeneração do sistema social, de luta contra a desigualdade social e patrimonialismo.” (SORJ, 2001, p. 115).

Os procedimentos políticos são substituídos pelos mecanismos judiciais, expondo o Judiciário à interpelação direta de indivíduos e grupos sociais em busca materialização dos princípios “[...] deixando-se para trás as antigas fronteiras que separavam o tempo passado, de onde a lei geral e abstrata hauria seu fundamento, do tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do ético e do justo.” (VIANNA et al., 1999, p. 23).

No entanto, se o diagnóstico de “invasão” do campo da política e da sociabilidade pelo direito no mundo contemporâneo é comum, as avaliações sobre as repercussões são bem divergentes.

De um lado, temos o eixo de compreensão procedimentalista, identificado em Habermas e Garapon, restaurando as sombrias previsões de Tocqueville e entendendo-se, contemporaneamente, que a judicialização da política e das relações sociais e a ampliação do papel direito na positivação de direitos fundamentais desestimularia a face libertária e reivindicatória da cidadania social. A subsunção da efetivação e

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implementação dos direitos sociais ao campo do direito, portanto, fora do terreno da sociedade civil, conduziria a uma cidadania passiva de clientes.

Nessa chave de leitura, o processo de democratização social em sua orientação igualitária é visto como uma ameaça à liberdade, reclamando uma forte intermediação da política com o objetivo de restaurar as suas “instituições clássicas” e os valores republicanos no homem comum, mesmo considerando que a diluição das identidades sociais e com ela, a perda de substância da vida associativa e dos partidos, faz parte da natureza da sociabilidade contemporânea, inclusive pelos naturais efeitos derivados do processo de globalização em curso. (VIANNA; BURGOS, 2002, p. 369).

Conforme esse eixo interpretativo, [...] a igualdade somente daria bons frutos quando acompanhada de uma cidadania ativa, cujas práticas levassem ao contínuo aperfeiçoamento dos procedimentos democráticos, pelos quais o direito deveria zelar, abrindo a todos a possibilidade de intervenção no processo de formação da vontade majoritária. (VIANNA et al., 1999, p. 23).

Em outro pólo, o eixo de compreensão substancialista, encontram-se Capelletti e Dworkin. As mudanças nas relações entre direito e política, especialmente por meio da criação jurisprudencial, seriam, além de inevitáveis, favoráveis ao desenvolvimento das efetivações da agenda igualitária, sem prejuízo à liberdade. O juiz é, nesse eixo, valorizado enquanto personagem de uma intelligentzia, especializada em declarar enquanto direito, princípios admitidos pela sociedade, como intérprete do justo na prática social.

127“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

[...] o eixo Capelletti-Dworkin confronta a invasão da política pelo Direito de uma perspectiva um pouco mais otimista, apontando para o importante papel que juízes e demais atores do judiciário exercem no sentido de estabelecerem um contraponto conservador à inevitável tendência dos legisladores de atuarem em convergência com os desejos da maioria. Defensores da Constituição, símbolo máximo do contrato original que estabelece o horizonte normativo da ordem política democrática, os juízes são capazes (e têm, até mesmo, a responsabilidade) de intervir ativamente nos processos políticos no sentido de assegurar a estabilidade e a coerência dessa ordem, bem como a sua extensão aos setores menos integrados da sociedade. (EISENBERG, 2002, p. 45).

Filiamo-nos, aqui, ao eixo substancialista, alimentado por uma perspectiva pragmática, tendo em vista os sistemas legais e suas condições de imposição no Ocidente moderno. Em países de democracia não originária, podendo-se dizer, até mesmo, retardatários, como o Brasil, a judicialização da política viabiliza o encontro da comunidade com os propósitos declarados constitucionalmente, sendo necessária, por motivos pragmáticos.

Nos dizeres de Paulo Bonavides (1993, p. 9-10)A Constituição aberta levanta, entre outras, a questão medular da validade da democracia representativa clássica e tradicional ao modelo vigente na América Latina, de natureza presidencialista [...]. Sem meios de produzir legitimidade capaz de manter os titulares do poder no exercício de uma autoridade efetivamente identificada com os interesses da cidadania, o bem estar, a justiça e a prosperidade social, a velha democracia representativa já se nos afigura em grande parte perempta, bem como desfalcada da possibilidade de fazer da Constituição [...] o instrumento da legítima vontade nacional e

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popular [...]. A Constituição aberta, que põe termo a uma ordem constitucional assentada sobre formalismos rígidos e estiolantes, somente se institucionalizará, a nosso ver, em sociedade por inteiro franqueada à supremacia popular. De tal sorte que a politização da juridicidade constitucional dos três Poderes possa fazer assim legítimo o sistema de exercício da autoridade, com o funcionamento dos mecanismos de governo transferidos ao arbítrio do povo.

Embora não desacreditemos na democracia representativa, não é possível ignorar a conjuntura de exclusão das minorias no processo de formação da vontade do soberano, não é possível acreditar que ela seja suficiente para promover a justiça. Nos últimos anos, evidencia-se uma crise de legitimidade, representatividade e funcionalidade no âmbito dos Poderes políticos por tradição. O executivo e o legislativo não se comportam como instituições de vocalização popular – e a população brasileira, ciente disso, dá demonstrações de descrédito à classe política tradicional –, mas atua como complexa estrutura política que, em busca de vantagens, opera em diferentes centros de poder, resultando não necessariamente na vontade popular, e sim, com frequência, na concretização de interesses de grupos com interesses conflitantes.

Não queremos dizer, com isso, que os juízes sejam os personagens ideais para decidir acerca de direitos – é necessário considerar que estes têm seus próprios interesses e ideologias envolvidas nos processos que julgam, e podem, também, ser déspotas. No entanto, não existe razão, a priori, para considerá-los teóricos políticos menos competentes que os legisladores (DWORKIN, 1994, p. 388 apud VIANNA et al., 1999, p. 35).

Vianna e Burgos (2002, p. 342) estabelecem um paralelo interessante entre a valorização do direito e o conceito

129“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

de americanismo1 em Gramsci. O americanismo é explorado a fim de conceber uma contínua radicalização da democracia pela procedimentalização da produção do direito e pela procedimentalização de sua aplicação.

O americanismo como filosofia em ato do homem-massa da sociedade moderna significaria, pois, um processo “espontâneo” – como tal, não utópico nem “cerebrino” – de criação da vida estatal e do direito, este último, sob a ótica de Gramsci, mais uma vez contra a corrente, destinado a cumprir importante papel de caráter educativo e criativo na mudança social. (VIANNA; BURGOS, 2002, p. 357-358).

A emergente pluralidade de formas expressivas da soberania na atualidade – processos de afirmação da democracia deliberativa, da democracia representativa e das organizações não governamentais – nos leva à idéia de soberania complexa, proposta por Rosanvallon (apud VIANNA; BURGOS, 2002, p. 370-371). Ao lado da cidadania política, vinculada ao processo eleitoral, tem-se feito uma cidadania social, compreendendo, além dos representantes eleitos pelo povo, os que falam, agem e decidem em

1 O americanismo pode ser compreendido enquanto “[...] modalidade particular de revolução passiva que admitiria, ao contrário do sentido de origem desse conceito – a solução reacionária dada ao Risorgimento italiano –, uma revolução continuada a partir de uma autocomposição social, irradiada, em sua teoria, pela eticidade nascida na fábrica moderna.” (VIANNA; BURGOS, 2002, p. 342). “O americanismo representaria em Gramsci a percepção de uma revolução passiva em registro positivo, expressando tanto uma aceleração da societas rerum, em um protagonismo dos ‘fatos’ tendente a intensificar as transformações moleculares na sociedade e nas relações desta com o Estado, quanto mudanças na societas hominum, dando partida a um processo constituinte permanente de regulação ‘por baixo’ de uma nova vida estatal (VIANNA, 1997, p. 81; GRAMSCI, 2001, v. 4, p. 241 apud VIANNA; BURGOS, 2002, p. 358).

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seu nome, como a magistratura e as demais instâncias legitimadas pela lei com a finalidade de exercer funções de regulação.

A influência da sociedade no processo político é aumentada no contexto de soberania complexa. O social se auto-institui, pelas vias institucionalmente disponíveis, participando enquanto sociedade civil organizada.

A judicialização da política, na conjuntura nacional, ao invés de enfraquecer o sistema de partidos, especialmente os de esquerda e oposição, tende a reforçá-los, propiciando uma conexão entre democracia representativa e participativa, onde a cidadania tem legitimidade para impetrar processos judiciais contra as instâncias de poder. Estabelece-se, assim, uma judicialização da política que tem como base a Constituição de 1988 e sua apropriação por parte da sociedade civil. Quanto ao processo de judicialização

Não se trata, pois, de uma “migração” do lugar da democracia para o da Justiça, mas da sua ampliação pela generalização da representação, que pode ser ativada tanto pela cidadania política nas instituições clássicas da soberania quanto pela “cidadania social”. [...] Nesse sentido, se a cidadania política dá as condições ao homem comum de participar dos procedimentos democráticos que levam à produção da lei, a cidadania social lhe dá acesso à procedimentalização na aplicação da lei por meios de múltiplas formas, individuais ou coletivas, de um simples requerimento a uma ação pública, proporcionando uma outra forma de participação na vida pública (VIANNA; BURGOS, 2002, p. 371-372).

A abertura dos procedimentos jurídicos dá ao Poder Judiciário uma capilaridade sem precedentes, capaz de abranger praticamente todo o tecido social, solidarizando a comunidade à Constituição Federal, o direito e seus procedimentos a toda a sociedade civil. A mobilização social para a defesa se seus interesses e direitos não pode prescindir dos recursos que lhe

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estão disponíveis para que alcancem sua emancipação enquanto cidadãos.

2 ATIVISMO JUDICIAL, O STF E SEU PROTAGONISMO NA IMPLEMENTAÇÃO DE MUDANÇAS SOCIAIS

Nas duas últimas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem se tornando um ator cada vez mais central no cenário político brasileiro. É impossível não notar sua influência na formulação e implementação de políticas públicas. Esse protagonismo fica mais evidente a partir da extensa cobertura midiática dedicada ao Judiciário na medida em que este é chamado para decidir sobre questões notáveis da agenda de políticas públicas.

Nos últimos anos o STF foi chamado a decidir sobre temas como privatização de empresas; a contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos; a pesquisa com células-tronco; o aborto de anencéfalos; a demarcação de terras indígenas; a implementação do sistema de cotas na universidade; a fidelidade partidária; a distribuição de medicamentos; a liberdade de expressão na imprensa; a delimitação do campo de autonomia das agências reguladoras; o reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo para fins de previdência (união homoafetiva) etc. (TAYLOR, 2007; VIEIRA, 2009, SADEK, 2011 apud OLIVEIRA, 2012, p. 89).

Quando chamado a decidir questões de importância, em âmbito nacional, o Supremo vê aumentada a sua força política e sua influência na agenda de políticas públicas, num processo de transferência de poder das instâncias tradicionais de representação política (Legislativo e Executivo) para o Judiciário.

Essa expansão de autoridade do STF, decorrente dos instrumentos ofertados pela própria Constituição Federal, leva-o a exercer uma espécie de poder moderador, o responsável pela

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última palavra sobre inúmeras questões de importância nacional, ora referendado as decisões dos órgãos “tradicionalmente políticos”, ora se posicionando contra decisões majoritárias. Podemos chamá-la ativismo judicial.

O termo ativismo judicial foi utilizado pela primeira vez em 1947, pelo jornalista americano Arthur Schlesinger denotando a postura do juiz que se incumbe do dever de interpretar a Constituição no sentido de garantir direitos (RAMPIN, 2011, p. 211).

Embora não tenham as mesmas origens, a judicialização e o ativismo judicial são fenômenos muito próximos. Como demonstrado acima, a judicialização no Brasil surge em decorrência das conjunturas sociais, políticas e do modelo constitucional adotado, mas não é um exercício deliberado da vontade política do Poder Judiciário. “Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria.” (BARROSO, 2009, p. 6). O ativismo judicial, por sua vez, representa a escolha de um método específico, proativo de interpretação da Constituição, ampliando seu alcance.

Via de regra, o ativismo judicial se apresenta em situações de retração do Poder Legislativo, como reflexo do descolamento entre classe política e sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. Sua ideia está associada a uma participação ampla e intensa do Judiciário na concretização de valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos Poderes Executivo e Judiciário (BARROSO, 2009).

A postura ativista do Poder Judiciário pode se manifestar, basicamente, por meio de três diferentes condutas:

(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com

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base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2009, p. 6).

No caso brasileiro, os juízes têm tomado uma posição claramente ativista. Pode-se citar, como exemplo, os casos em que a Constituição é diretamente aplicada em situações que não estejam expressamente contempladas em seu texto, e independente de manifestação do legislador: o da fidelidade partidária, onde o STF declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político; a extensão de vedação ao nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo; a declaração de inconstitucionalidade da aplicação de novas regras sobre coligações eleitorais à eleição que se realizaria em menos de um ano da sua aprovação; a declaração de inconstitucionalidade das normas legais que estabeleciam cláusula de barreira (BARROSO, 2009).

Outro ponto em que o ativismo judicial faz-se fortemente presente é na imposição, ao Executivo, da execução de políticas públicas, especialmente em relação à saúde, distribuição de medicamentos e determinação de terapias por meio de decisão judicial. Embora a questão não tenha sido ainda contemplada pelo STF, as decisões que obrigam a União, Estado e/ou Distrito Federal se multiplicam nas justiças estaduais de todo o país.

A aplicação do ativismo judicial apresenta contornos específicos em se tratando de tutela coletiva, posto que, com ela, entra em cena uma maior participação do magistrado nos processos coletivos, resultante do forte interesse público nessas causas, por meio do princípio inquisitivo e do impulso oficial. Se é poder e responsabilidade do Poder Judiciário a jurisdição, nas ações coletivas, os entes legitimados não possuem somente a faculdade, mas também a responsabilidade pela solução de lides

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coletivas, posto que a efetividade deste tipo de direitos depende da sua efetiva participação (RAMPIN, 2011, p. 212).

CONCLUSÃO

Em nosso entendimento, a atuação do STF, na história recente do país, cumpre múltiplos papéis no aprofundamento da dinâmica da mudança social. Primeiramente, é decisivo na resolução de grandes temas do cenário político-nacional. Por outro lado, diante das reformas de matiz neoliberal, que resultaram no afrouxamento da estrutura de direitos sociais, vem representando um importante canal de acolhimento de expectativas sociais quando partidos e sindicatos se mostram impotentes no que tange à garantia de acesso à saúde, educação, benefícios trabalhistas e previdenciários, entre outros. É igualmente representativo de sua efetiva centralidade na tarefa de consolidação democrática do país o papel que tem desempenhado como instrumento de racionalização da administração pública, confrontando interesses oligárquicos regionais no julgamento de ADINs apresentadas contra legislativos estaduais.

O STF tem atuado como agente público que, mobilizando recursos Constitucionais, se coloca como executor das prerrogativas previstas no texto da lei maior, buscando cumpri-las em sua acepção plena. Seu fortalecimento implica em possibilidades de transformação, num vibrante processo de emergência de novos atores da esfera de materialização dos direitos sociais.

Embora o ativismo judicial apresente caráter extremamente positivo ao atender demandas da sociedade que não foram, ou foram insuficientemente, atendidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, ele exibe a crise apresentada

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nas instâncias tradicionais de representação, e não fomenta a reaproximação destas com a sociedade civil.

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139“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

5. O TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL NO BRASIL

Ruth Maria Cordido*

INTRODUÇÃO

A importância da conservação do patrimônio cultural implica na construção da identidade de um povo e na preservação de sua memória. Um povo sem memória é um povo despreparado à participação social, ficando à margem da vida política consciente e crítica. Conservar o patrimônio e incentivar o seu uso para fins de educação e cultura é um mecanismo, portanto, de promoção da cidadania.

Dentre as tutelas constitucionais do patrimônio cultural no Brasil, o tombamento é o modo mais tradicional de proteção e promoção do patrimônio cultural imóvel.

O objetivo principal do trabalho se concentra na análise crítica do tombamento nas três esferas da Federação brasileira (União, Estado de São Paulo e Município de Ribeirão Preto/SP). Afinal, até o momento o Decreto-lei nº 25/37 não passou por uma atualização, apesar de sempre ter sido recepcionado pelas Cartas constitucionais, e são muitas as discussões doutrinárias tanto sobre a natureza e a finalidade da norma quanto sobre a necessidade de uma modificação no conteúdo e no processo.

Para tanto o trabalho é dividido em dois capítulos em linha metodológica dedutiva e com pesquisa descritiva

* Estudante de Graduação em Direito do último semestre da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto-Universidade de São Paulo/Campus de Ribeirão Preto (FDRP-USP) cuja pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq referente ao Edital 2013/2014 do Programa de Iniciação Científica/ Universidade de São Paulo sob orientação do Prof.º Dr.º Raul Miguel Freitas de Oliveira da FDRP/USP já fora concluída e aprovada. Contato: [email protected].

140II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

documental. No primeiro capítulo, o tema central é responder o que significa patrimônio cultural. São abordados quatro tópicos: importância em se tutelar cultura, origem e definição do conceito de patrimônio cultural, origem da proteção do patrimônio cultural no Brasil e normativa internacional sobre o tema. No segundo capítulo, o viés é essencialmente jurídico, faz-se um estudo mais aprofundado sobre medidas de proteção cultural, e especificamente sobre tombamento de acordo com os três entes políticos referidos.

1 DESENVOLVIMENTO

Antes de chegar ao objeto principal, são abordados dois problemas: a base conceitual, histórica e internacional do instituto (capítulo 1), e o sistema de proteção ao Direito Cultural (parte inicial do capítulo 2) – sistema esse em que o tombamento se insere, apesar de ainda ser classificado como um instituto típico do Direito Administrativo.

Isso porque é premente esclarecer o fundamento filosófico e histórico de vigência do tombamento para assim defender a sua manutenção e eventual atualização conforme o ordenamento jurídico brasileiro.

Adota-se, então, sobre a importância em se tutelar cultura a filosofia hegeliana, explicando que para Hegel a história é um fator imprescindível de desenvolvimento humano e, consequentemente, de formação do Estado.

O Estado é visto como uma condição necessária ao convívio social a fim de equilibrar as relações humanas, o que gera uma possibilidade maior de mais pessoas tomarem consciência de sua existência e, por conseguinte, de viverem em liberdade. Defende-se, assim, que por meio do conhecimento da história e da reflexão crítica sobre seus acontecimentos, a consciência humana é despertada em direção a sua liberdade de criação.

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A conservação do patrimônio cultural representa não apenas um conjunto de referências simbólicas, mas também um poder de como a comunidade se reconhece em sua vida social e individual para agir conforme suas convicções. Para fins de promoção da cidadania, é imprescindível, portanto, entender qual é o aparato jurídico que o Estado viabiliza para manter vivo o passado dos grupos formadores de sua sociedade.

Já sobre o que é patrimônio cultural, orienta-se a pesquisa por meio dos estudos da historiadora contemporânea Françoise Choay.

Ao longo da história, cada país consolidou um tratamento próprio sobre o seu patrimônio cultural. Enquanto a Inglaterra tende a reconhecê-lo de modo inerente a sua vida cotidiana (como uma tradição); a França tende a vê-lo de modo mais distanciado de sua convivência diária: dentro de museus ou de instituições afins (como um nacionalismo).

É interessante notar essa diferença, porque isso permite exemplificar a teoria de Choay (2001a, 2001b) de que o valor cultural decorre essencialmente da comunidade que convive com o objeto. Dessa forma, transportar o conceito europeu de patrimônio cultural para a escala mundial não seria possível. Afinal, dada a diversidade cultural da humanidade, cada grupo social carrega sua especificidade de valores políticos, afetivos, históricos, econômicos, sem que faça sentido medir qual critério é melhor que o outro.

Acentua Choay (2001a, 2001b) que uma forma de tornar o patrimônio cultural, mesmo o mundial, mais localizado com vistas não apenas à conservação, mas também à reflexão crítica sobre seu o símbolo, é utilizá-lo conforme as demandas sociais com o cuidado de fazer as adaptações necessárias sem que o descaracterize.

Compreende-se assim que Choay (2001a, 2001b) defende uma metodologia de conservação do patrimônio cultural a fim de que a decisão parta principalmente da comunidade que origina o

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valor cultural do objeto. Por isso, que é possível defender como necessária a mediação do Poder Público por ter mais ferramentas à garantia de melhor legitimidade nesse processo de decisão.

Vistas as razões de conservar o patrimônio cultural e a origem europeia de sua criação, traça-se o percurso histórico das tutelas jurídicas em âmbito nacional e internacional.

No Brasil, pode-se dizer que ainda que as propostas de leis estaduais e federais anteriores à década de 1930 não alcançaram nenhum efeito prático, elas fomentaram uma discussão do conceito de patrimônio histórico-artístico. Isso ganhou envergadura depois com o anteprojeto de Mário de Andrade de 1936 a favor da diversidade cultural brasileira e da tutela de bens imateriais, mas que foi suplantado com a edição do Dec.-lei nº 25/37 durante o Estado Novo, segundo ensinado por Silva (2002, p. 133).

Fechando o capítulo 1, sobre o ordenamento internacional, importa mencionar ao direito brasileiro a segunda metade do século XX em função do conceito de patrimônio cultural adotado pela CF/88 ao projetar atenção à diversidade cultural.

Afinal, em 1972 foi produzida a Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial. Trata-se do ato internacional mais importante sobre o tema por instituir os princípios de solidariedade às presentes e futuras gerações, de responsabilidade dos Estados e proteção além dos limites da jurisdição nacional, e de cooperação internacional.

Já no segundo capítulo, sobre as tutelas culturais, orienta-se a apresentação dos institutos nominados e inominados a partir do texto constitucional. Isso porque a Constituição de 1988 (CF/88) inaugurou uma sistematização do Direito Cultural como uma política de Estado conforme dispõem o caput e o § 3º do art. 215 da CF/88 (BRASIL, 1988).

O art. 216, § 1º da CF/88 determina que o Poder Público com a colaboração da sociedade civil protegerá o patrimônio cultural por meio de institutos específicos e por meio de outras

143“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

formas de tutela. São tutelas nominadas: inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação.

O tombamento não é a única medida de tutela do patrimônio cultural e, por isso, a Administração Pública deve ponderar sobre a sua aplicação ciente do sistema que compõe o Direito Cultural e de modo atento à gestão pública (previsão orçamentária, estratégias de promoção, de educação e de desenvolvimento cultural).

Da organização das tutelas nominadas, tem-se que o inventário e a vigilância são medidas sempre esperadas. Isso porque o inventário é o passo necessário ao diagnóstico dos bens de interesse cultural, dos potenciais riscos de degradação desses bens, ou dos potenciais investimentos à propagação desses bens. E, a vigilância pode ser traduzida como o acompanhamento contínuo dos bens culturais juridicamente já protegidos ou não.

O tombamento, por sua vez, se caracteriza como uma restrição do exercício de propriedade material, sendo que a desapropriação é o modo mais severo de intervenção por resultar na transferência do título a favor do Poder Público.

Das tutelas inominadas, que são identificadas no texto constitucional (art. 216, § 1º) como “outras formas de acautelamento”, existe uma miríade de possibilidades. Essas iniciativas podem surgir dos três Poderes Públicos bem como da sociedade civil.

Com o apoio da explicação de Soares (2009, p. 336-370), vislumbram-se medidas preventivas, restritivas e punitivas para que se conserve e promova o patrimônio cultural.

Podem ser criadas zonas de proteção especial ao Meio Ambiente Cultural por meio do instituto da Chancela da paisagem cultural brasileira (Portaria nº 127/2009 do IPHAN). Essa área é identificada a partir da relação do homem com o seu espaço (a relação social, cultural que é protegida). Trata-se de uma ferramenta que pode ser útil à contextualização do bem tombado em seu espaço, isso porque muitas vezes o tombamento é aplicado

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como uma medida isolada em relação ao entorno, o que dificulta a construção do valor cultural do bem.

Pensando do lado da Administração Pública, os incentivos fiscais podem constituir uma ferramenta eficaz de estímulo à conservação do patrimônio cultural pelo proprietário, o que pode evitar gastos públicos.

O Estatuto da Cidade também pode ser utilizado como uma medida compensatória ao proprietário de um bem tombado. Isso porque o Estatuto faculta ao proprietário a transferência do direito de construir desde que haja uma normativa municipal a respeito (art. 35, inciso II). Essa medida mostra-se como uma peça-chave para balancear os interesses públicos e privados que normalmente se confrontam em relação ao tombamento.

Ademais, reforça-se a preocupação do Estatuto da Cidade pela política urbana das cidades, sendo a proteção do patrimônio cultural um de seus eixos (art. 2º, inciso XII). Carrega-se, assim, uma atenção maior à gestão pública local em criar uma Administração Pública organizada e atuante sobre essa matéria.

Quanto à educação patrimonial, é uma questão de interesse em todas as espécies de proteção e que merece sempre ser incentivada a fim de que se construa cada vez mais um pensamento crítico acerca do patrimônio cultural nacional, regional, local. Por meio da educação que se estimula a sensibilidade a esse problema social de consequência direta sobre a identidade dos “[...] grupos formadores da sociedade brasileira.” (CF/88, art. 216, caput).

Da atuação do Ministério Público, pode-se verificar tanto por iniciativa própria a fim de evitar uma demanda judicial (Recomendações e Termos de Ajustamento de Conduta) quanto para propor uma Ação Civil Pública em defesa do Meio Ambiente Cultural

Complementa-se quanto aos instrumentos judiciais que qualquer cidadão pode propor uma Ação Popular a fim de pretender a anulação de um ato lesivo ao Meio Ambiente Cultural. Atem-se ainda que o envolvimento da sociedade civil é amplo

145“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

quanto à legitimidade de tutela do patrimônio cultural (§ 1º do art. 216 da CF/88), podendo inclusive propor o tombamento de algum bem de valor cultural à Administração Pública.

Mas o que seria o tombamento?Segundo Pires (1994, p. 78), o tombamento é um ato

administrativo que modifica tanto o regime jurídico do bem ao criar maiores responsabilidades sociais ao proprietário (ainda que toda propriedade deva estar condicionada à sua função social, considera-se que o tombamento detalha essa função e, por conseguinte, altera o conteúdo do regime jurídico, que mantém a sua natureza híbrida/ público-privada) quanto inclui o bem tombado no rol do patrimônio cultural brasileiro (o que sustenta eventuais intervenções públicas). Sendo que o tombamento se perfaz com a sua inscrição no livro de Tombo (último procedimento previsto na norma infraconstitucional em todas as instâncias analisadas).

O que se diverge de Pires (1994, p. 130-132), porém, é a classificação da natureza do tombamento como servidão administrativa. Afinal, o encargo social/ de interesse público gerado pelo tombamento não objetiva atingir as características essenciais do direito de propriedade (usar, fruir, dispor, reaver), mas sim instituir uma nova gama de direitos e obrigações que visem cuidar do exercício desse direito tal qual uma limitação administrativa.

Importa dizer, então, que com o tombamento a Administração Pública não pode interferir no bem como se gozasse também da titularidade da propriedade, mas sim de modo suplementar e em caso de risco sério e eminente ao patrimônio cultural.

Sobre a natureza administrativa do tombamento, detalha-se também a tendência defendida por Noia (2006, p. 78-79) e Di Pietro (2008, p. 137-138) de que o tombamento representa uma nova categoria de restrição administrativa, sendo que Noia (2006, p. 78-79) se refere a uma nova espécie de limitação administrativa.

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Isso porque a decisão pelo tombamento procura ser a mais precisa possível para identificar o bem a ser protegido, diferentemente da característica comum da limitação administrativa em instituir uma medida genérica.

Nesse sentido, classifica-se o tombamento como uma limitação administrativa sui generis. Ao mesmo tempo em que é caracterizado pelo poder-dever fundamental do Estado à proteção do Meio Ambiente Cultural, só deve ser aperfeiçoado com a precisão do objeto a ser tutelado e de seus efeitos à órbita do exercício de propriedade.

Sobre a polêmica questão acerca da indenização, acredita-se que sua procedência sempre será fruto de uma decisão casuística. Afinal, o órgão julgador deve ponderar os interesses públicos e privados envolvidos a fim de concluir se houve abuso de direito, ou seja, se a intervenção pública apoiada na função social foi excessiva, acarretando sério prejuízo ao exercício da propriedade.

Há ainda que se questionar se ato administrativo é vinculado ou discricionário.

Defende-se que o tombamento suscita um poder discricionário em seus dois momentos de tomada de decisão. Primeiro pelo órgão de proteção do patrimônio cultural que decide pelo valor cultural do bem (uma decisão técnica) e também se o tombamento é a medida mais adequada dentre das outras tutelas possíveis (nesse sentido que se interpreta como uma decisão política, discordando da posição de Rabello (2009, p. 60) – para quem o parecer é eminentemente técnico). E, por fim pelo Ministro da Cultura ou outro representante político que decide após ponderar sobre outros interesses públicos envolvidos (uma decisão política).

Adianta-se aqui que essa reflexão é de suma importância para a discussão sobre as impugnações possíveis no processo administrativo do tombamento.

147“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Com base em toda essa reflexão, interessa agora discutir sobre a necessidade de atualização do desenho institucional fixado pela norma geral de tombamento (Dec.-lei nº 25/37). Isso porque as normas do Estado de São Paulo e do Município de Ribeirão Preto - SP devem se espelhar na norma geral quanto ao direito material (NOIA, 2006, p. 75-76).

Um dos únicos pontos de convergência entre os doutrinadores diz respeito à mudança conceitual do tombamento em função do art. 216, caput da CF/88. De acordo com o caput do art. 1º do Decreto-lei nº 25/37, os bens de interesse ao tombamento são os de valor histórico-artístico e que sejam excepcionais. Uma visão que resta superada pela Constituição por instituir como marco o valor cultural (mais abrangente que histórico-artístico por incluir, por exemplo, um valor afetivo ou mesmo um bem natural de interesse social) e que importe na formação da sociedade brasileira (independente de ser notável/excepcional).

Quanto ao tombamento dos bens públicos, parte da doutrina é favorável à possibilidade de impugnação pelo proprietário. Posição essa adotada no trabalho, pois o ente político pode ter razões contrárias tanto à regularidade processual do tombamento quanto ao conteúdo técnico-político para sua aplicação.

Outro ponto controverso trata da possibilidade de determinar um uso específico do bem. Para Rabello (2009, p. 113) a admissão dessa hipótese transformaria o tombamento em uma servidão administrativa, pois o uso não é um bem material (móvel ou imóvel). Já para Noia (2006, p. 123-124) se o uso específico implicar no sucesso do tombamento, o Poder Público deve intervir de algum modo (desapropriação, incentivo fiscal).

Porém, para Araújo (2010, p. 185-189) o uso poderia sim ser restringido tanto por ser uma das faculdades do direito de propriedade quanto por poder ser lido como um direito autônomo (como o direito à moradia). Sendo assim, se se admite um rol de medidas sobre o que se deve proteger, gerando uma obrigação

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negativa, pode-se pensar também que o uso pode implicar diretamente na conservação almejada.

Tem-se que essa questão deve ser resolvida à luz do caso concreto. Isso porque, sendo o uso uma das expressões do direito de propriedade, é lógico se pensar que, dentre as obrigações negativas definidas pelo tombamento, uma delas possa limitar o uso ideal para conservar o bem.

Assim, se essa medida implicar em um prejuízo excessivamente oneroso ao proprietário, o Poder Público pode ser chamado, como explica Noia (2006, p. 123-124), a conferir alguma medida de indenização ou de compensação ou a desapropriar o bem.

No que diz respeito ao tombamento compulsório (de bens particulares), o único momento que o proprietário do bem tem mais para se manifestar ocorre com o recebimento da notificação do tombamento provisório.

Considera-se essa abertura insuficiente, pois o parecer do Conselho Consultivo é classificado como uma decisão técnica e também política (classificação contrária à de RABELLO, 2009, p. 60). Sendo assim o mérito da decisão ultrapassa a identificação do valor cultural do bem para orientar a decisão final do representante político de que o tombamento é a melhor medida dentre as tutelas culturais possíveis (o juízo do Ministro da Cultura serve mais para contrabalançar outros interesses públicos e privados envolvidos do que para gerir o patrimônio cultural – matéria essa que compreende a especificidade do órgão de defesa).

Com base nesse raciocínio, defende-se uma nova abertura do processo ao proprietário para que ele possa se manifestar sobre o conteúdo exaurido do processo, sobre a regularidade processual e também possa demonstrar mais elementos de convencimento à decisão final e eminentemente política do Ministro da Cultura, que assumiria essa responsabilidade com maior legitimidade, pois se intensificou a participação dos interessados.

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O art. 18 do Decreto-lei nº 25/37 é mais um dispositivo que desperta bastante discussão doutrinária sobre a necessidade ou não de mudança. Trata-se dos efeitos do tombamento à vizinhança do bem tombado.

O primeiro ponto de discussão se refere ao conceito de “vizinhança”/ “entorno”. Alinha-se à posição de que esse conceito deve ser construído conforme a especificidade do caso. Por mais que Marchesan (2010, p. 118-119) pense com cautela ao defender um patamar mínimo à característica da área de proteção do entorno, esse problema é lido como essencialmente técnico e casuístico, o que fugiria da seara da lei ao prever uma norma geral e abstrata sobre o tema.

Sendo assim, considera-se a norma atual satisfatória sobre esse ponto por deixar em aberto o que seria “vizinhança”.

Contudo, um ponto que merece revisão no dispositivo se refere ao efeito do tombamento à vizinhança: o conceito de visibilidade.

Concorda-se com Marchesan (2010, p. 122-123) de que esse conceito de visibilidade não está mais adstrito apenas a uma limitação visual, pois outros fatores (mobilidade urbana, construções ao redor, poluição sonora) podem interferir à conservação satisfatória do bem tombado. Logo, o conceito se ampliou para “ambiência”, termo esse que remete a ideia de contextualizar o bem nas diversas características ambientais do seu espaço e que possam influir em sua conservação.

Nesse sentido, a norma precisa de uma atualização para que preveja mais elementos para fundamentar a decisão administrativa (MARCHESAN, 2010, p. 120). Afinal, o parâmetro atual se destina apenas à limitação visual da norma (construções, anúncios e cartazes).

O assunto dos efeitos ao entorno do bem tombado é tumultuado na discussão doutrinária especialmente porque a norma não prevê expressamente a possibilidade de notificação e impugnação pelo entorno.

150II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

Para Rabello (2009, p. 69), sendo o direito de petição uma garantia constitucional (art. 5º, inciso XXXIV, alínea a), a omissão do Dec.-lei nº 25/37 sobre notificação e impugnação da vizinhança não seria um problema em si.

Posição essa rebatida, pois como os efeitos ao entorno do bem tombado geram uma limitação administrativa sui generis ao exercício das respectivas propriedades, também se considera importante notificar esses proprietários, abrindo prazo para também impugnarem a proposta de tombamento a fim de gerar maior envolvimento da comunidade atingida pela medida e que tem, consequentemente, interesse pelo valor cultural identificado no bem.

Apesar de a notificação não representar o parecer final do Conselho, com a fundamentação exauriente sobre o mérito do tombamento, é importante que contenha as diretrizes técnicas básicas que norteiam a abertura do processo de tombamento. Logo, se há necessidade de delimitar efeitos ao entorno, é esperado assim que a notificação apresente quais seriam os bens que comporiam o “entorno cultural” do bem tombado.

Dessa forma, esclarece-se melhor que os efeitos ao entorno do bem tombado começariam a partir do tombamento provisório (notificação), medida essa emergencial a ser ratificada pelo tombamento definitivo (inscrição no Livro do Tombo). E, para conferir efeitos a terceiros, interessa também tornar obrigatória a averbação do tombamento nos bens que compõem o entorno do bem tombado.

Por fim, sobre o direito de preferência (art. 22 do Decreto-lei nº 25/37), concorda-se com a posição de Machado (1986, p. 91) sobre a necessidade de ampliar o prazo para os três entes políticos poderem se manifestar. A norma confere o prazo de 30 dias, o que tende a ser insuficiente ao se pensar que os três entes políticos tem características de gestão complexas.

Além da necessidade da matéria de interesse ao Direito Administrativo, considera-se também imprescindível que a norma

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se atente a outras repercussões no ordenamento jurídico em especial para o que se referem os Direitos Ambiental e Urbanístico.

Isso porque é importante fixar a ideia de que o tombamento não deve ser uma medida isolada: ele deve ser pensado conforme a interação do bem tombado com o seu entorno, integrando-se assim ao zoneamento ambiental/urbanístico donde está localizado.

Sendo o tombamento uma ferramenta de aplicação prioritária pelo Executivo, considera-se o instituto ainda como típico do Direito Administrativo. Porém, é inegável que o instituto precisa ser atualizado de acordo com os demais ramos do Direito.

Tratando-se agora da normativa estadual, sabe-se que de uma maneira geral esta segue a federal quanto ao procedimento e aos efeitos. A disposição da legislação estadual segue uma organização diferente da federal, porém. Por exemplo: os artigos 141, 144, 149 do Decreto nº 13.426/79 tratam de tombamentos de bens privados e públicos, mas estão distantes uns dos outros (a norma federal/Decreto-lei nº 25/37 trata em dois artigos contínuos: 5º e 6º); os artigos 142 e 146 tratam do tombamento provisório e suas consequências, mas também estão distantes entre si, o que dificulta a leitura (esses dispositivos se equiparam ao art. 10 e seu parágrafo único da norma federal).

Como pontos positivos da legislação estadual, têm-se: a) § 2º do art. 134 em que se exige a comunicação ao

Conselho sobre o uso da propriedade (cessão de uso e locação do bem),

b) § 4º do art. 134 em que se exige a ciência do Conselho das atualizações da matrícula do imóvel,

c) Inciso IV do art. 140 em que se faz referência ao folclore,

d) Art. 142 em que se define a deliberação do Conselho e não a notificação do proprietário como marco inicial do tombamento provisório,

e) Parágrafo único do art. 142 em que se firma o dever de vigilância em conjunto com a autoridade policial;

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f) Art. 148 sobre o dever de manter as informações em dia.

Já como pontos divergentes entre a norma federal e estadual, têm-se:a) § 3º do art. 134 e o art. 144 que não fazem referência

ao bem pertencente à União, o que suscita a se pensar na impossibilidade de tombamento estadual de bem federal,

b) Art. 139 que não exige averbação matricular do tombamento definitivo,

c) Art. 142 que fixa um marco diferente do tombamento provisório, sem o conhecimento/notificação do proprietário do bem,

d) §§ 1º e 2º do art. 143 no qual se observa a natureza da decisão da Secretaria da Cultura como aprovação e não como homologação. Sendo assim, a Secretaria pode tomar uma decisão técnica diferente do Conselho. Isso é ainda mais questionável no sentido que o proprietário do bem não participa em pé de igualdade com o Conselho, mas apenas é chamado a se manifestar na fase inicial do processo por meio da notificação do tombamento provisório;

e) § 3º do art. 143 que limita a admissibilidade do recurso ao Governador apenas ao tombamento compulsório (aquele que apresenta impugnação).

Esses pontos de divergência são problemáticos no sentido de que a norma federal deve ser lida como parâmetro à formação do substrato do instituto do tombamento de acordo com Noia (2006, p. 75-76).

Cita a autora de que as legislações estaduais e municipais deveriam se adequar com normas próprias mais no sentido de atender as suas peculiaridades procedimentais ou de infração, e

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não sobre o que seja o instituto do tombamento e de que forma o órgão administrativo se estrutura.

Assim, com base nessa definição, resulta que os dispositivos que omitem o bem federal de um possível tombamento estadual (§ 3º do art. 134 e o art. 144) não condizem com o propósito de proteger ao máximo o patrimônio cultural do Estado.

E mais, que a inobservância de registro matricular pelo art. 139 do tombamento definitivo implica em uma falha na publicidade irrestrita da medida (erga omnes), o que representa um risco a direito de terceiros.

Quanto ao art. 142, porém, sobre o marco inicial de tombamento provisório, é possível entender que esse dispositivo trataria menos do instituto material do tombamento e mais de seu procedimento processual. Assim, o momento de proteção do bem cultural poderia ser desenhado de modo diferente, desde que não se impeça a eventual impugnação do proprietário do bem.

Já em relação aos parágrafos do art. 143 chama a atenção dois pontos: primeiro (§§ 1º e 2º) a natureza de aprovação e não de homologação da decisão da Secretaria da Cultura, o que pode implicar em cerceamento de direito, pois o processo de tombamento é restrito à participação do proprietário do bem, e depois (§ 3º) à tendência de apenas admitir recurso ao Governo do Estado de processo referente a tombamento compulsório, o que pode colocar em risco o devido processo legal do tombamento.

Ou seja, dos cinco pontos de divergência entre a norma federal e estadual, apenas um ponto seria tecnicamente admissível.

Destaca-se ainda que a norma estadual não menciona a necessidade de notificação à vizinhança do bem tombado. Essa omissão se torna mais problemática em razão do que será tratado abaixo sobre a possibilidade de se averbar o tombamento na matrícula do entorno.

Afinal, mesmo que a vizinhança possa participar do processo administrativo por um direito constitucional à petição,

154II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

não há uma previsão infraconstitucional para tanto, o que não impediu de a norma prever um efeito real ao entorno.

Vale mencionar, então, o que a Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo orienta aos ofícios de registros de imóveis sobre a averbação de tombamento em Provimento CG nº 37/2013.

Isso porque o item 86 do Provimento CG nº 37/2013, acrescenta a possibilidade de registro de bem cultural, independentemente da existência de tombamento (item 86.2, alínea “b”) e mesmo de bem provisoriamente tombado (alínea “a”) ou que foi tutelado por “ato administrativo ou legislativo ou decisão judicial” (alínea “b”).

É de se concluir, assim, que em âmbito estadual, vige um apelo à publicidade erga omnes do tombamento por meio do registro imobiliário. Nesse sentido, dada a possibilidade de registro de bens circunvizinhos ao bem tombado, seria esperado haver maior participação dos vizinhos interessados por meio de notificação, o que hoje em dia, porém, não existe previsão federal e estadual do Estado de São Paulo.

Sobre o Município de Ribeirão Preto, de uma maneira geral, a legislação (Lei Complementar nº 2.211/2007) se organiza à semelhança da norma federal, porém não discute alguns temas apresentados por esta.

Não se sabe, por exemplo, quais são as espécies de Livro de Tombo em âmbito municipal. Seriam as mesmas da legislação federal, ou estadual ou seriam diferentes?

Apesar de o art. 16 da LC nº 2.211/2007 prever um tombamento imediato de bem público tombado pela União ou pelo Estado, não se sabe como será o processo de tombamento de bem público nunca tombado por estes entes políticos. Assim, utilizando por base as normas superiores, conclui-se que deve ser de ofício sem abertura à impugnação.

Outra omissão relevante diz respeito à transferência de bem público tombado. E isso é um ponto importante, porque diz

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respeito a um ponto de divergência entre a norma federal (art. 11: inclusão de todos os entes políticos) e a norma estadual (§ 3º do art. 134: omissão de bem federal).

Como já discutido a respeito da legislação estadual, defende-se que o dispositivo estadual sobre alienação de bem público seja materialmente inválido frente ao instituto do tombamento a ser espelhado pela legislação federal. Sendo assim, a norma a ser seguida pelo Município sobre esse tema seria a federal.

Outro ponto não abordado pela legislação municipal trata dos recursos obrigatórios despendidos pelo proprietário à conservação do bem (art. 136 do Dec. Estadual nº 13.426/79 e art. 19 do Dec.-lei nº 25/37).

Esse é um ponto que chama bastante atenção. É patente na norma uma obrigação em não descaracterizar o bem (art. 30), porém não se explicita a obrigação de o proprietário empreender ações diretas à conservação do bem tombado.

A legislação municipal prevê mecanismos de compensação ao proprietário a fim de garantir a conservação do bem (art. 38), mas não deixa clara a condicionante de ele zelar e conservar o patrimônio cultural.

Observa-se, então, uma predileção em trazer medidas de ressarcimento ao proprietário, ao invés de assentar o compromisso de conservação do bem tombado pelo proprietário. Sutilmente essa visão se reforça pelo adiamento legislativo em se criar sanções e multas administrativas (art. 42).

O último ponto de destaque sobre a ausência de previsão municipal diz respeito ao dever de vigilância permanente do órgão técnico, mesmo que a contragosto do proprietário. Seguindo a mesma leitura de aplicação imediata das normas hierarquicamente superiores em razão das características de proteção do patrimônio cultural, são aplicáveis tanto a normativa federal (§ 1º do art. 216 da CF/88 e primeira parte do caput do

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art. 20 do Decreto-lei nº 25/37) quanto a estadual (§ 5º do art. 134 do Decreto Estadual nº 13.426/79).

Reforça-se que a omissão legal do Município não impede a aplicação das legislações hierarquicamente superiores por se tratarem dos conteúdos estruturais do instituto do tombamento.

Outro dispositivo que suscita bastante discussão se refere ao art. 19. Neste caso, o ponto mais polêmico do dispositivo se refere ao § 1º. Afinal, este fixa um prazo de “validade” de um ano do tombamento provisório. Apesar de à primeira vista parecer que o processo de tombamento deva ter duração de um ano, na verdade a medida cautelar representada pelo tombamento provisório que tem esse tempo de duração.

O término do tombamento provisório de imediato como está coloca em risco a segurança do objeto do processo. É positivo o balanceamento dos interesses públicos e privados que o processo administrativo deflagra. Contudo, antes de se aplicar uma medida favorável ao proprietário é de esperar que o bem esteja a salvo até a conclusão do processo administrativo.

De qualquer, havendo risco ainda à proteção do bem em caráter provisório, a Administração Pública teria ainda legitimidade para aplicá-la, uma vez que a medida corresponde a um poder-dever do Estado em relação aos bens de interesse cultural. Ou seja, o Estado não pode se afastar da responsabilidade em salvaguardá-los em função de uma aparente perda do direito de agir. Tratando-se de um poder de Império, afastam-se os efeitos da decadência, já que prevalece o interesse público à tutela em contraponto a uma observância formal de prazo (CAETANO, 2002).

De outra monta, são pontos positivos:a) Artigos 18, 20 que dão um apelo maior à publicidade

das decisões administrativas mesmo das provisórias pela edição no Diário Oficial e na imprensa,

b) Inciso II do Art. 23 que permite a solicitação de novas diligências do Prefeito ao Conselho de Preservação do Patrimônio Artístico e Cultural (CONPPAC),

157“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

apesar de a decisão do Prefeito (homologatória e não aprovação) estar vinculada ao conteúdo do parecer do CONPPAC. Acredita-se que isso pode evitar pedidos de recurso ou de cancelamento por abrir espaço a novos debates. Não existe essa previsão na norma federal (art. 1º da Lei nº 6.292/1975),

c) Art. 28 que permite a contratação de serviço especializado, caso o Corpo Técnico não seja capaz a um problema certo e determinado,

d) Artigos 36, 37 e 41 que procuram atualizar a sistemática de proteção do tombado, inserindo normas sobre direito urbanístico como planejamento urbano e transferência do direito de construir e incentivo fiscal,

e) Artigos 38 e 43 que, apesar de instituírem uma visão econômica sobre política de estímulos à conservação do bem tombado, definem de modo mais claro medidas de compensação ao proprietário do bem tombado e de seu entorno. Reitera-se, porém, a ideia de que a compensação não deve ser uma medida genérica, e sim condicionada a certas ações e/ou prejuízos comprovados pelo proprietário do bem do tombado e de seu entorno.

CONCLUSÃO

Tem-se assim uma necessidade de uma revisão geral do tombamento, mas principalmente em uma mudança de mentalidade sobre sua aplicação. Afinal, apesar de ser um instituto consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, não é o único instrumento de proteção à cultura. E, mais ainda, suas consequências à propriedade (pública ou privada) ainda são vistas como uma ofensa ao direito de propriedade.

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Nesse sentido, a aplicação do tombamento deve ser cautelosa, pois de fato gera restrições ao exercício da propriedade. Diferentemente da desapropriação, o titular do bem tombado continua com seu domínio, mas, em obediência ao interesse público pelo valor cultural identificado no bem, deve seguir algumas limitações de uso.

Não necessariamente as limitações implicam em um prejuízo financeiro e mesmo o ordenamento prevê medidas de estímulo à conservação do bem tombado (incentivo fiscal, programas de fomento) como também medidas de compensação (indenização judicial, alienação do potencial construtivo impedido de ser usado), porém não dá para fechar os olhos que o tombamento gera uma responsabilidade maior ao proprietário e, nesse raciocínio, mais inconveniente a ele.

A configuração do instituto do tombamento merece uma atualização, e em igual é necessário tanto promover a educação patrimonial quanto consolidar a aplicação do tombamento de forma integrada aos demais elementos de tutela que compõem a gestão pública à Cultura.

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161“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

6 REPRESENTATIVIDADE, DEMOCRACIA E A NECESSIDADE DE UMA REFORMA POLÍTICA

Jonathan Hassen da Rocha Bernardo*

INTRODUÇÃO

Em junho do ano de 2013 pudemos presenciar um grande processo de mobilização popular que denunciou diversas insatisfações, e demandou uma série de melhorias às condições e política do país. Condenávamos a corrupção, as deficiências da saúde, educação, mobilidade urbana, dentre outros, e pedíamos mais mudanças. Criticávamos os atuais representantes políticos em todas as esferas de poder, indicando também que o mero ato de votar já não era mais suficiente para satisfazer os interesses da sociedade brasileira.

Além de todas as insuficiências do Estado para com os serviços mínimos e ineficientes, fomos além dessas questões e criticamos aqueles/as que nos representam hoje especialmente no Congresso Nacional. A pouca representatividade das mulheres, dos negros/as, trabalhadores/as e da população LGBT era outra questão problemática em nossa realidade e estávamos sendo afetados/as por esta carência.

Demonstramos também nossa insatisfação com a atual conjuntura da mídia evidenciando a carência de democracia neste ponto, e o desonesto jogo desses meios de comunicação privados que oferecem visibilidade para algumas ideias, setores e pessoas e encobre outras ideias, setores, movimentos e pessoas

* Graduando em Direito pela PUC Minas. Monitor da disciplina Teoria Geral do Direito. Coordenador de Extensão e Diretor Acadêmico do Diretório Acadêmico de Direito Coração Eucarístico – PUC/MG campus Coração Eucarístico. Membro do Núcleo de Estudos Justiça e Democracia. Extensionista do Projeto AJUP PUC Minas – Assessoria Jurídica Universitária Popular. E-mail: [email protected]

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(MAGALHÃES, 2014). A violência e a criminalização das manifestações e lutas populares também demonstraram o quão necessárias são uma série de mudanças no país, em especial quanto a questão da segurança pública e da polícia. Policiais militares violentamente cuidaram do cerceamento dos/as manifestantes, ante a confusão entre “baderneiros/as” e efetivos reivindicantes.

Analisando-se o nosso atual Congresso Nacional, aproximando-se, enfim, do nosso objetivo que consiste no convencimento da necessidade de uma Reforma Política, podemos identificar o cerne da nossa crise e de diversos problemas que estamos enfrentando na atualidade. De acordo com os dados do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), tendo em vista os/as representantes em exercício, eleitos para o mandato a partir do ano de 2010, podemos visualizar o quão distantes nós estamos da efetiva representatividade do povo brasileiro em toda a sua heterogeneidade e diversidade de interesses. A bancada eleita para a legislatura do ano de 2011 na Câmara dos Deputados contou com 168 (cento e sessenta e oito) representantes empresários/as, 158 (cento e cinquenta e oito) representantes ruralistas, 70 (setenta) representantes da bancada evangélica, ao passo que os/as representantes dos trabalhadores/as, como sindicalistas, significavam apenas 62 (sessenta e dois) do total de deputados/as. Somente 43 (quarenta e três) dos/as representantes reconhecidos/as como negros/as estão em exercício, e 45 (quarenta e cinco) das representantes são mulheres. No Senado Federal a lógica se repete. De acordo com os dados do Censo do ano de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a título de demonstração, a razão entre o número de mulheres e de homens no Brasil foi de 100 (cem) mulheres para 96,9 (noventa e seis vírgula nove) homens evidenciando uma maioria feminina. A população que se declara negra e parda consistiu em 50,7% (cinquenta vírgula sete por cento) do total de habitantes. Identificamos que estas questões são problemáticas quando acompanhamos os mandatos e verificamos

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as tendências dos/as representantes, os interesses defendidos, as leis aprovadas e os projetos que estão sendo propostos.

Por esta exposição, verificamos que a crise de legitimidade vem desde a promulgação de nossa atual Constituição que, apesar de ter garantido uma série de direitos e princípios, não possibilitou que eles fossem concretizados, não possuindo instrumentos de factibilidade, “[...] e que até hoje não encontrou soluções efetivas e legitimas para contemplar as demandas e aspirações da comunidade política.” (DIEHL, 2014).

Diante de tal cenário, é necessário que analisemos criticamente o espaço em que vivemos para que identifiquemos as condições atuais de nossa democracia. Podemos falar sobre democracia para a defesa da “[...] pluralidade, tolerância, direitos humanos, justiça, processos eleitorais etc.” (FARJEAT, 2012), entretanto, sob quais condições estamos vivendo em termos de efetiva democracia?

1 BREVE ANÁLISE DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

Primeiramente, conforme discorre Boaventura de Sousa Santos (2006), nossa democracia não está preparada para reconhecer a diversidade cultural, para lutar eficazmente contra o racismo, o colonialismo, sexismo e as discriminações em que eles se traduzem. Vivemos em uma sociedade plural, e, por outra via, não estamos acompanhando esta evolução e lidando com tal pluralidade, ao passo que somos incapazes de reconhecer e lidar com a multiplicidade das demandas desse povo, e da defesa de seus interesses. Impera ainda, tanto na sociedade civil quanto nas instâncias representativas, grande dificuldade na defesa dos interesses dos diversos grupos sociais existentes no país, e, por vezes, verificamos a intolerância e o despreparo no enfrentamento dessas questões da sociedade.

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Com relação à participação democrática dos/as cidadãos/as, ainda cito o referido autor quanto às condições necessárias para que haja o exercício desta participação:

[...] ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que se alimentar e alimentar a sua família tem prioridades mais altas que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa. Pode-se dizer com segurança que a promoção da democracia não ocorreu de par com a promoção das condições de participação democrática. (SANTOS, 2006)

Em se tratando de democracia e constitucionalismo, verifica-se uma tensão no que concerne a mudanças e estabilidade. José Luiz Quadros de Magalhães (2014) ressalta que a democracia constitucional passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança, risco minimamente previsível e mudança com permanência. Ainda baseado em seu pensamento, tendo em vista esta tensão, a Constituição visa à busca da segurança, entretanto, limitando mudanças ou reagindo às não permitidas. Tendo em vista esta situação, a Constituição não pode mudar tanto no sentido que comprometa a segurança jurídica, porém, ela também precisa acompanhar as mudanças da sociedade, de modo que as próprias mudanças não comprometam a permanência da Constituição. Em consequência, verificamos então que “[...] a sociedade democrática mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de acompanhar.” (MAGALHAES, 2014, [p. 10]). Assim,

Neste momento a constituição se tornará ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A

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teoria da constituição apresenta uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário, soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico [...]. Este é o momento de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica democrática constitucional esta ruptura só será legítima se radicalmente democrática. (MAGALHÃES, 2014, [p. 10]).

2 APONTAMENTOS HISTÓRICOS SOBRE A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1987/88

A Constituição de 1988 consistiu num significativo avanço político no período pós-ditadura. Após anos de terror, finalmente construímos uma Constituição que garantisse a liberdade, avanços sociais, melhorias à classe trabalhadora dentre outros. Todavia, apesar de todos os avanços proporcionados por ela, existiam ainda limitações que necessitavam de superação.

Uma das questões que possibilitou as mencionadas limitações foi o fato de a Assembleia Constituinte de 1987/88 não ter sido exclusiva. Os mesmos deputados que estavam em exercício no Congresso à época da Assembleia foram os deputados constituintes. Desta forma, os mesmos sujeitos que constituíam a base política da ditadura militar foram os congressistas envolvidos com a constituinte. A Assembleia contou com poucos representantes dos/as trabalhadores/as e demais grupos populares. Este fato fez com que fossem realizadas reformas pelo “alto”, e que os setores populares visualizassem num primeiro momento uma derrota. O processo da constituinte fora dirigido pelas elites, o que “[...] impediu que a Constituição também estabelecesse os instrumentos de factibilidade para concretizar esses direitos e princípios.” (DIEHL, 2014).

Apesar de todas essas dificuldades e limitações é possível se verificar no nosso texto constitucional diversos benefícios sociais. Estes benefícios não vieram em virtude dos parlamentares conservadores, mas sim da política. Vieram pela correlação de

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forças favoráveis na sociedade à época que serviu de contrapeso, ainda que parcialmente, ao reacionarismo do Congresso, disputando o campo de ação dos constituintes e viabilizando alguns avanços (TATEMOTO; VASCONCELOS, 2014).

3 A NECESSIDADE DE UMA REFORMA POLÍTICA NO BRASIL

No Brasil, durante as jornadas de junho do ano de 2013, a Presidenta da República Dilma Rousseff, em resposta às manifestações, propôs a instituição de uma constituinte para se realizar a Reforma Política. Imediatamente, a oposição se manifestou ocasionando a derrubada da proposta que perdurou por pouco mais de 16 (dezesseis) horas.

A proposta de revisão ou reformas no sistema político brasileiro não é uma novidade na Câmara dos Deputados. No ano de 2007 o deputado Flavio Dino de Castro e Costa propôs uma Emenda à Constituição (193/2007) que tinha por objetivo a realização de um plebiscito sobre a realização de uma revisão constitucional em parte do sistema político bem como na tributação e no orçamento, entretanto, o desenrolar de tal proposta foi o arquivamento. No ano de 2009, o deputado Marco Maia propôs uma Emenda Constitucional (384/2009) que tinha por objetivo a convocação de uma Assembleia Constituinte para revisar os dispositivos da Constituição Federal relativos ao regime de representação política. Seu fim também foi o arquivamento. A justificativa dos arquivamentos é fundamentada no art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados que transcrevo:

Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as:

167“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

I – com pareceres favoráveis de todas as Comissões;II – já aprovadas em turno único, em primeiro ou segundo turno;III – que tenham tramitado pelo Senado, ou dele originárias;IV – de iniciativa popular;V – de iniciativa de outro Poder ou do Procurador-Geral da República.Parágrafo único. A proposição poderá ser desarquivada mediante requerimento do Autor, ou Autores, dentro dos primeiros cento e oitenta dias da primeira sessão legislativa ordinária da legislatura subsequente, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2011)

No ano de 2013, em resposta às manifestações e ao pronunciamento de Dilma Rousseff, o deputado Leonardo Gadelha propôs uma Emenda Constitucional (276/2013) que estabeleceria os termos e condições para convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte Revisional dedicada, exclusivamente, à revisão dos dispositivos constitucionais que tratam das regras de representação política. No entanto, o futuro desta PEC não demonstra ser diferente das propostas anteriores, dado o seu atual andamento na Câmara, e o fim aproximado da atual legislatura.

Há quem defenda as atuais mudanças no sistema político por um processo diverso de uma constituinte. Entretanto esta via possui limitações e obstariam as mudanças que são necessárias no sistema na atualidade.

Analisando-se as experiências atuais na América Latina, verificamos que “[...] nenhum processo constituinte democrático limitou a liberdade ou terminou em tirania: ao contrário, todos criaram mais direitos, mais democracia, e condições mais favoráveis de vida nas sociedades onde eles ocorreram.” (DALMAU; SILVA JUNIOR, 2014).

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Na Venezuela (1999) o povo votou em favor de um processo constituinte por referendo para que fosse elaborada uma nova Norma Fundamental. Como resultado, verificamos a

[...] primeira Constituição no mundo, escrita com flexão de gênero, o que proclama a preocupação de fazer valer formal e materialmente os direitos das mulheres. Com o acréscimo de que qualquer reforma constitucional deverá passar, necessariamente, pela vontade popular. (SILVA JUNIOR, 2012).

No Equador, demonstrando-se inovações ainda maiores, o texto constitucional (2008) incorpora questões como o direito à cidade, à alimentação, à agua, a proibição da discriminação dos portadores de HIV, dentre outros. Em sua Constituição, os ecossistemas, as montanhas, florestas e animais também são sujeitos de direitos.

Na Bolívia (2009), o constitucionalismo criou o horizonte da plurinacionalidade. Foi recriado um Estado que passou a reconhecer em pé de igualdade as línguas, culturas e direitos, conforme discorrem Rúben Martinez Dalmau e Gladstone Leonel da Silva Júnior (2014). Ainda, qualquer mudança na Constituição bolivariana deve passar por referendo popular.

A experiência latino-americana em se tratando de constitucionalismo nos ensina que as mudanças não surgiram instantaneamente e da via institucional vigente. A partir da mobilização popular e da soberania do povo as mudanças vieram, possibilitando a gradual modificação nas condições de vida das pessoas. No Brasil, estamos percebendo que o exercício do voto não está sendo suficiente para que tenhamos nossos interesses defendidos ou para que sejamos representados/as. Trabalhadores/as, mulheres, negros/as, índios/as e a população LGBT representam uma minoria no Congresso Nacional, ao passo que, os/as que detêm o domínio econômico, são maioria. A disputa eleitoral por todos estes grupos sociais não está equilibrada.

169“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Enquanto convivermos com a viabilidade do financiamento privado de campanhas por “doações” realizadas por grandes grupos empresariais que logicamente possuem contrapartida, o processo continuará a ser desigual. Cada vez mais os/as eleitos/as estão aproximando de seus financiadores e se distanciando do povo. De acordo com informações da Cartilha do Plebiscito da Constituinte que contém dados retirados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no ano de 2008 as empresas doaram 86% (oitenta e seis por cento) dos recursos totais da campanha eleitoral. No ano de 2010, 91% (noventa e um por cento), e, no ano de 2012, somaram 95% (noventa e cinco por cento). Tal situação somente contribui com o agravamento da crise de representação política.

Precisamos estar empenhados em romper com esta conjuntura construindo bases para um país mais justo e igualitário. Os/As atuais congressistas, ainda que se empenhem em realizar quaisquer mudanças no sistema político atual, não aprovarão nada no sentido de limitar seus atuais benefícios e facilidades que detém. Desta forma, uma Lei de Iniciativa Popular ou Emenda Constitucional não será eficiente em viabilizar as mudanças que são necessárias. À luz da Teoria do Poder Constituinte, o Poder Constituinte Derivado não seria o melhor meio para viabilizar a Reforma Política, por ser um poder subordinado e limitado. A utilização desta via dependeria da aquiescência do presente Congresso, dado que a tramitação dos projetos ocorreria nesta instituição. Além disso, há as limitações dentro do que a Constituição estabelece.

Uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana pelo Sistema Político se faz necessária, para que alcancemos as mudanças que necessitamos. Invocaríamos então o Poder Constituinte Originário buscando-se a ruptura com a ordem jurídica vigente no que diz respeito ao sistema político, pretendendo-se “[...] superar um outro sistema que não mais corresponde às vontades democraticamente construídas, das pessoas, dos grupos sociais diversos e movimentos sociais.” (MAGALHÃES, 2014).

170II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

Logicamente, tendo em vista a ordem jurídica vigente, este poder é inconstitucional diante do que ele quer romper. Diversos/as juristas levantam teses sobre a inconstitucionalidade da Constituinte Exclusiva, sobre a sua inviabilidade jurídica, entretanto, esta visão estritamente legalista nos impede de constatar que o Poder Originário é um poder muito mais dependente de questões políticas que jurídicas. Não é necessário que tenhamos em nossa Constituição a previsão de criação de um novo processo constituinte quando o povo não tivesse mais satisfeito com a atual ordem jurídica para que seja admissível a instauração do processo. Novamente, ressalta-se que não há uma forma jurídica para convocação deste poder. Nos dizeres de José Luiz Quadros de Magalhães (2014), trata-se de uma questão política e não jurídica. O que importa para o direito democrático, e para todos nós, é o fato de que ele só será legítimo, se for popular, inequivocamente, radicalmente democrático. Lembremos que a Constituição de 1988 não se criou sozinha a partir de si mesma, e sim da conjuntura de determinadas relações sociais que ficaram conhecidas como a vontade popular (ALMEIDA; EFREM FILHO, 2014).

Outra questão a ser considerada e relevada diz respeito à soberania popular. Verificamos em diversos manuais constitucionais, em discursos e textos a soberania do povo, no entanto, temos dificuldades em tirar o termo do papel e reconhecê-lo na prática. Nos próprios discursos conservadores podemos verificar a exaltação da soberania do povo brasileiro, porém, ela é deixada de lado em diversas questões e oportunidades, até mesmo pela própria indisposição democrática característica do projeto democrático capitalista.

Ao passo que temos uma revolução popular, ou movimento social democrático que exige um novo sistema jurídico em busca da superação de um outro sistema, verificamos a legitimidade da manifestação do Poder Constituinte Originário. A invocação desse poder pode ser justificada pelo fundamento desse próprio poder, que consiste na soberania popular.

171“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

A negativa da possibilidade da Constituinte Exclusiva não pode se dar meramente pelo fato de nas nossas doutrinas de Direito Constitucional não preveem a viabilidade. Isso significa:

“[...] negar ao Direito algo que lhe é essencial: sua capacidade de se adaptar a culturas e tempos diversos, servindo como instrumento de evolução social, e não como um dogma que se encerra como fim em si mesmo.” (DAMOUS, 2014).

Não se pode negar que o processo de uma Assembleia Constituinte oferece riscos, entretanto, se os riscos não forem assumidos nada mudará. Precisamos escolher os riscos que queremos correr, pois a omissão e o medo nos tornarão sempre reféns. Para se minimizar os riscos devemos estar ativos nos debates, compreender o momento pelo qual passamos bem como as forças políticas existentes em nossa sociedade. Conforme afirma José Luiz Quadros de Magalhães (2014), para muitos meios privados não interessa uma democracia popular, onde todos possam participar efetivamente do poder e ter liberdade, dignidade, moradia, saúde, educação, transporte e qualidade de vida.

Precisamos nos manter informados, de forma que não sejamos instrumentalizados.

Por fim, cito uma pequena fala do Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF), de entrevista ao portal da web “Migalhas” sobre a Constituinte Exclusiva:

“[...] ninguém pode convocar um poder constituinte e estabelecer previamente qual é a agenda desse poder constituinte. O poder constituinte não tem agenda pré-fixada, mas às vezes a realidade derrota a teoria constitucional [...].” (BARROSO, 2013).

172II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

CONCLUSÃO

Pelas exposições buscou-se evidenciar as dificuldades e limitações que temos quanto à nossa representação no Congresso Nacional através dos nossos deputados e senadores.

Defendo uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político, sendo a invocação do Poder Originário o instrumento mais eficaz para garantir que as mudanças que são necessárias em nosso sistema politico sejam realizadas. O contexto latino-americano nos demonstra a constituinte como um primeiro passo para modificar a realidade de nossa sociedade. Acredito que o povo pode limitar o Poder Constituinte, eis que o poder originário tem fundamento no próprio povo.

A complexidade de nossa sociedade exige que tenhamos um direito atento e sensível às suas questões e demandas dessa sociedade. Por isso, devemos nos afastar um pouco mais da postura estritamente legalista para compreender o próprio Direito como instrumento viabilizador da Justiça Social e atento às lutas e transformações sociais da sociedade contemporânea.

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177“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

7 A REGULAMENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO DE CAMPANHA ELEITORAL NO BRASIL E SEUS

ENTRAVES À DEMOCRACIA

Ana Carla Pessin de Souza*

INTRODUÇÃO

O processo de alimentar a competição política e a maneira como é feito, muitas vezes, mostra-se pernicioso a valores democráticos como a igualdade dos cidadãos na decisão eleitoral e dos candidatos no pleito, a independência dos representantes de pressões externas e o seu compromisso com o bem comum. Casos de descumprimento da lei referente ao financiamento eleitoral, práticas de Caixa Dois, relação de troca de favores entre doadores e financiados e a importância cada vez maior da quantidade de recursos financeiros que um candidato detenha para sua vitória no pleito são questões a serem enfrentadas. Justamente tendo em vista a essencialidade de alimentação financeira das eleições advinda da necessidade de divulgação das propostas políticas e os gastos decorrentes disso; a constatação de que a quantidade de recursos financeiros que um candidato é detentor, hoje, ser determinante na conquista de sua vitória no pleito e a realidade, muitas vezes, da utilização do financiamento de campanha como meio para a prática de atos corruptos, tornou o estudo e aprofundamento da temática do financiamento de campanha de extrema importância no contexto nacional. O presente trabalho visou o estudo sobre as formas de regulamentação do financiamento de campanha eleitoral no Brasil ao longo da história, suas nuances e características. Também, a influência econômica que pode

* Graduanda do 4º ano de Direito da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca/SP, integrante do CEPC (Centro de Estudos e Pesquisa em Corrupção). Trabalho apresentado ao PIBIC 2013/2014. [email protected]

178II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

advir do mesmo, as consequências danosas dessa influência aos princípios democráticos brasileiros e a busca de soluções dessa problemática no sentido de pontuar as maiores dificuldades e apresentar hipóteses de meios mais eficazes na mitigação ou ainda que na redução dessas consequências. O estudo realizou-se por meio do método hipotético-dedutivo, com o levantamento bibliográfico acerca do tema, a análise de notícias e reportagens de jornais e revistas de grande circulação e, em especial, dos sites do TSE1 e Às Claras2.

1 HISTÓRICO DA REGULAMENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO ELEITORAL NO BRASIL

A legislação atinente ao financiamento de campanha no Brasil, ao longo dos anos, passou por mudanças importantes e que, assim como em outros países, geralmente ocorreram em contextos pós-escândalos de corrupção. A primeira forma de regulamentação do financiamento eleitoral surge, no Brasil, em época do fim do Estado Novo e início do processo de democratização nacional, no ano de 1945, com a Lei Agamenon (Decreto-Lei 7.586 de 1945). Nessa ocasião, estabeleceu-se a proibição de qualquer tipo de doação advinda de entidades estrangeiras.

Em 1946, surge a primeira espécie de financiamento público indireto, no Brasil: a isenção de impostos sobre os bens e serviços dos partidos políticos.

O Código Eleitoral de 1950 passou a vetar, também, aquelas contribuições provenientes de sociedades de economia mista e de concessionários de serviço público. Ainda, os recursos anônimos e de origem não definida também passaram a ser proibidos.

1 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Brasília, DF, 2014. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 2014. 2 ÀS CLARAS. São Paulo, 2012. Disponível em: <www.asclaras.org.br>. Acesso em: 2014.

179“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Foi nesse Código que se estipulou regras para os gastos de campanha no Brasil, regras essas que vigoram até os dias de hoje. Os partidos deveriam estipular as quantias máximas que os partidos e candidatos poderiam gastar com sua campanha e informar ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Com o Código Eleitoral, ainda, foi criada a principal e mais importante forma de financiamento público indireta nas eleições brasileiras: o horário eleitoral gratuito (HEG). E, com a Lei Orgânica dos Partidos Políticos3 (LOPP), todo o tipo de financiamento por empresas privadas passa a ser proibido no Brasil.

No início do período militar, também, foi instituído, pela primeira vez, o financiamento público direto de campanha no Brasil, feito por meio do Fundo Partidário ou Fundo de Assistência Financeira aos Partidos Políticos. Esse Fundo era composto por multas eleitorais e doações e distribuído, 20% igualmente entre os partidos registrados e 80%, proporcionalmente ao número de representantes dos partidos na Câmara dos Deputados. Sua efetiva implementação, porém, apesar de estar prevista desde 65, ocorreu, realmente, apenas dez anos depois.

Em 1971, a LOPP foi revisada e as doações de autarquias, empresas públicas, de entidades de classe ou sindical e de fundações instituídas em virtude de lei e para cujos recursos concorressem órgãos ou entidades governamentais, passaram a ser proibidas também.

3 BRASIL. Lei nº 4.740, de 15 de julho de 1965. Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 jul. 1965. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4740.htm>. Acesso em: 2014.

180II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

Em 19814, os recursos do Fundo Partidário sofrem uma modificação significativa em sua distribuição: passam a ser inteiramente partilhados conforme a proporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados, excluindo-se por completo aquela parcela que era distribuída igualmente dentre os partidos.

Juntamente com a redemocratização, a retomada, em 1982, do multipartidarismo, a consolidação do uso das pesquisas eleitorais e da televisão (que se popularizou no país a partir da década de 70), a difusão, a partir das eleições de 1989, dos programas pré-gravados e da utilização das técnicas de audiovisual e marketing político, surge a necessidade da obtenção cada vez maior de recursos para as campanhas eleitorais e aquelas fontes até então permitidas a doarem passam a ser insuficientes.

Neste mesmo ano, o acesso ao HEG passou a prescindir da representação e uma pequena parte do tempo foi destinada à divisão igualitária entre todos os partidos, permanecendo o restante dividido proporcionalmente à representação no Congresso.

É em 1992, com a apuração da denúncia e posterior impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, que a irrealidade da proibição das doações de empresas mostra-se escancarada. Apesar de proibidos, os recursos provenientes de empresas privadas demonstraram-se constantes e em grande monta, só que em forma de Caixa Dois. O caso Pau-Brasil, em 1993 evidenciou a mesma situação e, a partir daí, com a Lei n. 8.713, de 30 de setembro de 1993, as contribuições eleitorais de empresas privadas voltaram a ser permitidas, o que perdura até os dias de hoje.

4 BRASIL. Lei nº 6.937, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre isenção da multa prevista no art. 8º da Lei nº 4737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral, estabelece critérios para distribuição dos recursos do fundo partidário referentes aos exercícios de 1979 e 1980, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 set. 1981. Disponível em: <http://sislex.previdencia.gov.br/paginas/ 14/1965/..%5C..%5C42%5C1981%5C6937.htm>. Acesso em: 2014.

181“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Com essa mesma Lei, outras fontes de recursos foram proibidas: entidades de direito privado que recebessem contribuições compulsórias, entidades de utilidade pública, pessoa jurídica que recebesse qualquer aporte do exterior e os permissionários de serviço público.

Nesse mesmo ano, passou-se a permitir “gastos independentes”, que são despesas feitas pelos eleitores em apoio aos candidatos de sua preferência que não seriam contabilizadas nos limites das doações.

Com a Lei dos Partidos Políticos5, de 1995, o limite de doações para pessoas jurídicas passou a ser calculado sobre as dotações orçamentárias que os partidos políticos recebiam do Fundo Partidário, sendo de até 0,2% para os órgãos de direção nacional e 0,02% para as direções regionais e municipais.

Em 1995, dotações orçamentárias6 também passaram a constituir o Fundo Partidário e, com essa inclusão, o montante correspondente ao Fundo Partidário cresceu exponencialmente, porém, não representando, ainda, um aumento significativo no caixa dos partidos políticos.

Com essa lei, 1% do Fundo Partidário passou a ser distribuído igualmente e 99%, de forma proporcional ao número de votos obtidos nas últimas eleições para a Câmara pelos partidos com funcionamento parlamentar regular.

Nas eleições de 1996, os tetos de gastos a serem realizados nas eleições passaram a ser obrigatoriamente comunicados juntamente com o pedido de registro da candidatura no TSE.

5 BRASIL. Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995. Dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 17 e14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9096.htm>. Acesso em: 2014. 6 São multas, penalidades, doações e recursos destinados por lei.

182II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

As contribuições das pessoas jurídicas, em 1997, com a Lei das Eleições7 voltaram a ter como referência o limite de 2% do seu faturamento bruto e as pessoas físicas, por sua vez, passaram a ter como limite o percentual de 10%. Os recursos doados pelos próprios candidatos a sua campanha deveriam submeter-se ao valor máximo estipulado pelo seu partido.

Com a Lei das Eleições de 1997, houve a redução do horário eleitoral gratuito a 45 dias e a distribuição do tempo entre os partidos consolidou-se em 1/3, igualitariamente entre todos os partidos que tivessem candidatos registrados e representação na Câmara e 2/3, proporcionalmente à representação na Câmara, sendo proibida a transferência de tempo entre os partidos. No segundo turno, ambos os candidatos em disputa teriam tempo igualitário.

Em 20028, houve importantíssima modificação na legislação referente à prestação de contas: os dados sobre financiamento eleitoral e os gastos de campanha passaram a ser disponibilizados na internet.

Porém, essa disponibilização apenas passou a ser obrigatória aos partidos, comitês e candidatos mais tarde, em 2006, com a Lei da Minirreforma Eleitoral9. Diferentemente do que ocorria antes, que o cidadão, se quisesse, precisaria fazer consultas dos dados eleitorais in loco, junto ao TSE, Tribunais

7 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 out. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L9504.htm>. Acesso em: 2014.8 Resolução TSE n. 20.987/2002. (BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Brasília, DF, 2014. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/>. Acesso em: 2014).9 BRASIL. Lei nº 11.300, de 10 de maio de 2006. Dispõe sobre propaganda, financiamento e prestação de contas das despesas com campanhas eleitorais, alterando a Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 maio 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11300.htm>. Acesso em: 2014.

183“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Regionais e às Juntas; na internet, poderia ter acesso a todas as informações da campanha.

Nesse mesmo ano, surgiram novas vedações: todos aqueles recursos provenientes de entidades beneficentes e religiosas, entidades esportivas e ONGs que recebessem dinheiro público e organizações da sociedade civil de interesse público foram proibidos.

Estabeleceu-se que caberia à lei fixar limites de gastos nas campanhas eleitorais aos candidatos e partidos políticos até o dia 10 de junho de cada ano eleitoral. Somente caso a lei silenciasse sobre os limites é que os partidos deveriam se auto impor tetos de gastos e aos seus candidatos. De fato, a prática tem sido a lei do silêncio.10

Com o fim da cláusula de barreira no ano de 2006, a Lei nº 11.459, de 21 de março de 2007, alterou a razão da distribuição do FP para 5% e 95%, igualitários e proporcionais, respectivamente.

Em 2009, com a Lei da Reforma Eleitoral11, expande-se a proibição de doações advindas de entidades esportivas a todas elas, não apenas àquelas que recebiam recursos públicos como preconizava a Lei da Minirreforma Eleitoral, em 2006.

Esta mesma Lei prevê a possibilidade de as cooperativas fazerem doações às campanhas, desde que não haja entre os

10 SOUZA, Cíntia Pinheiro Ribeiro de. A evolução da regulação do financiamento de campanha no Brasil (1945-2006). 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. 11 BRASIL. Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009. Altera as Leis nos 9.096, de 19 de setembro de 1995 - Lei dos Partidos Políticos, 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, e 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 30 set, 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _ato2007-2010/2009/lei/l12034.htm>. Acesso em: 2014.

184II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

cooperados concessionários e permissionários de serviços públicos e que não recebam recursos públicos.

2 O FINANCIAMENTO DE CAMPANHA HOJE

O financiamento de campanha, hoje, no Brasil, assim como em toda a sua história, tem caráter misto, ou seja, permite o recebimento de recursos privados e públicos. Inclui-se nesse rol o autofinanciamento e o realizado entre candidatos, comitês e partidos políticos. O art. 28 da Resolução do TSE nº 23.406/2014 enumera as fontes de doação proibidas.

O financiamento privado prevê doações tanto de pessoas físicas quanto jurídicas. Também, aquelas feitas por candidatos e partidos as suas próprias campanhas ou às de outros candidatos. O público advém de duas fontes: o financiamento direto (Fundo Partidário) e o indireto (isenções tributárias, cessão de prédios públicos e o horário eleitoral gratuito).

O Fundo Partidário (Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos) é constituído de multas e penalidades, recursos financeiros que lhe forem destinados por Lei, doações de pessoas físicas ou jurídicas12 e dotações orçamentárias da União em valor nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por 0,35 centavos em valores de agosto de 9513.

Esses recursos públicos são repassados aos partidos políticos respeitando a seguinte proporção: 5% distribuídos igualmente a todos os partidos que tenham o Estatuto registrado no TSE e 95%, proporcionalmente ao número de votos obtidos na última eleição para a Câmara dos Deputados. Esses valores do Fundo Partidário podem ser repassados às diversas campanhas eleitorais.

12 Incluem-se órgãos de direção nacional, estadual ou municipal. 13 Art. 38 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos).

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O acesso gratuito à televisão e rádio é a principal e mais importante forma de financiamento público indireto que, como observado, revolucionou a realidade das campanhas eleitorais no Brasil. Em relação a esse tempo disponibilizado, o Poder Púbico dá compensação fiscal às emissoras de rádio e televisão.

Sua distribuição se dá da seguinte forma: 2/3 do período é concedido proporcionalmente ao número de representantes que o partido ou coligação possui na Câmara dos Deputados, do restante, 1/3 é disponibilizado igualitariamente entre os partidos e 2/3, proporcionalmente ao número de representantes eleitos no pleito anterior à Câmara dos Deputados.

Os recursos de origem não identificada não podem ser utilizados e devem ser devolvidos ao Tesouro Nacional em até cinco dias do trânsito em julgado da análise das contas de campanha.

As doações advindas de pessoas físicas são limitadas em 10% dos rendimentos brutos no ano anterior. Quanto às doações estimáveis em dinheiro relativas à utilização de bens móveis e imóveis de propriedade do doador ou da prestação de serviços próprios, não podem ultrapassar o valor de R$ 50.000,00.

As pessoas jurídicas doam até o montante máximo de 2% do faturamento bruto do ano anterior. São vedadas de realizar doações aquelas que tenham iniciado ou retomado suas atividades no exato ano eleitoral, tendo em vista a impossibilidade de se calcular seus limites máximos de doação.

O próprio candidato pode realizar doações a sua campanha ou até a de outros candidatos: a) Caso a doação tenha como objetivo sua campanha, o limite será calculado tendo como parâmetro os valores máximos de gastos eleitorais estipulados pelo seu partido político ou 50% de seu patrimônio informado à Receita Federal no ano anterior; b) Se a doação for dirigida a outra campanha que não a sua, o candidato submete-se aos limites ordinários das pessoas físicas14 e c) Se doar como candidato, tendo

14 2% do faturamento bruto do ano anterior

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seus recursos saindo de sua própria conta de campanha, sujeita-se aos mesmo limites de gastos definidos pelo seu partido político.

Frisa-se que esses limites são todos em relação às doações feitas diretamente aos candidatos, existindo uma lacuna na legislação no que se refere às receitas doadas aos Partidos Políticos e Comitês Financeiros. Portanto, na prática, esses tetos de doações não vigoram, tendo em vista que os partidos políticos podem repassar seus recursos para os seus candidatos sem que tenham nenhuma espécie de limitação que não a que propriamente estipulam sobre os gastos de campanha.

Referente aos gastos de campanha estipula-se que lei definirá até uma data limite (determinada em cada eleição15) qual será o montante máximo que poderá ser atingido. Caso contrário, os partidos, por si mesmos, deverão elaborar esses limites para seus candidatos por cargo eletivo e informar ao TSE. Os gastos dos suplentes e vices já devem ser incluídos no limite do titular e respondem solidariamente caso esse teto seja desrespeitado.

3 A PROBLEMÁTICA DO FINANCIAMENTO ELEITORAL VIGENTE

“‘[…] the corrupting influence of money is the scourge of democracy’. (Przeworski, 2011: 17).” 16

Grande parte dos problemas, hoje, consequentes do financiamento de campanha no Brasil advém da forte presença dos entes privados nas eleições. A dependência econômica gerada pelo elevado e proporcionalmente esmagador montante

15 para 2014: 10 de junho. 16 MANCUSO, Wagner Pralon. Investimento eleitoral no Brasil: balanço da literatura e agenda de pesquisa. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 8., 2012, Gramado. Anais.... Gramado: ABCP, 2012. p. 1.

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de recursos privados doados em relação aos públicos gera um desequilíbrio, muitas vezes, perigoso.

Observa-se que a grande maioria dos candidatos acaba recebendo de um número muito pequeno de fontes uma quantidade muito alta de recursos chegando ao ponto de um único financiador concentrar cerca de 20% do total de recursos de uma campanha.

Essa realidade demonstra, além da questão da prevalência dos recursos privados, uma tendência ainda maior de os candidatos dependerem de um ou outro doador e pode gerar uma relação de cobrança de contrapartidas e troca de favores entre doador e candidato. Neste caso, o agente corruptor pode ser tanto a empresa que exige um retorno de sua doação quanto o candidato que demanda o “pagamento” por vantagem concedida em anos anteriores às eleições.

O risco vem se mostrando, principalmente, em virtude das doações de pessoas jurídicas, empresas que no geral representam em quantidade (total de doadores) e montante, números consideravelmente maiores que as pessoas físicas. Em média, as doações de pessoas jurídicas representam um percentual de 86,15% em relação às doações de pessoas físicas nas eleições17.

Existem muitas denúncias e casos de corrupção que envolvem grandes empresas financiadoras de campanhas eleitorais e contratos com o poder público. As licitações são o alvo mais atingido desse tipo de relação perniciosa. Segundo Abramo, a vida política passa a ser diretamente afetada, uma vez que a definição do vencedor de determinada licitação passa a significar nada mais nada menos que capital para o político, utilizando-se disso para obter financiamento para sua campanha:

Se é eleito, usa o “capital” para pagar a dívida com seus financiadores, isto é, dirige para estes as licitações que promove. Por isso, grandes fornecedores (como também outros grandes

17 Percentual retirado de média feita da análise dos gráficos contidos no site Às Claras das eleições de 2002 a 2012.

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interessados, como associações de bancos) muitas vezes financiam simultaneamente todos os candidatos a cargos executivos que concorrem numa mesma eleição. Decerto não o fazem por convicção ideológica... 18

O Caixa 2 também é um problema recorrente na política brasileira. São aqueles recursos não contabilizados, não apresentados na prestação de contas como forma de camuflagem de atos ilícitos. Geralmente possuem origem ilícita (proveniente do crime organizado ou de fontes vetadas por lei, por exemplo), destino ilícito (como a compra de votos e gastos com cabos eleitorais) ou motivação ilícita (no intuito de obter favores e a compra de influência).

Não como uma forma de Caixa 2, mas uma forma de burla e esquivo da legislação no intuito de camuflar doadores, possíveis práticas ilícitas como a troca de favores e extrapolação dos limites de doações da lei, os partidos e candidatos se aproveitam da legislação frágil brasileira em relação aos repasses feitos dos partidos e comitês financeiros aos candidatos para realizarem doações indiretas. Essas doações são transferências de recursos que, se fossem doados diretamente aos candidatos poderiam estourar seu limite.

Existem tetos para as doações feitas aos candidatos, porém, não em relação àquelas feitas aos partidos políticos. Mais que isso, as partidos são liberados para fazerem qualquer tipo de repasse aos candidatos em época de eleição tendo como únicos limites aqueles estipulados pelos próprios partidos políticos em

18 ABRAMO, Cláudio Weber (Coord.). Contratações de obras e serviços (licitações). In: SPECK, Bruno Wilhelm. (Org.). Caminhos da transparência. Campinas: Ed. Universidade Estadual de Campinas, 2002. [p. 46]).

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relação ao teto de gastos de campanha19 (que geralmente resulta em valores superestimados para evitarem o pagamento de multas), portanto, perfeitamente adaptáveis a essas necessidades.

Além disso, os recursos doados aos partidos e comitês financeiros não são amplamente divulgados como aqueles referentes aos candidatos20. Assim, com a intenção de evitar suspeitas sobre relacionamentos desvirtuosos entre doadores e candidatos e manterem-se fora da prestação de contas dos candidatos, muitas das grandes empresas optam por fazerem doações aos partidos (que posteriormente são repassados aos candidatos) e fugirem do crivo da população.

Para ilustrar, nas eleições de 2010, compreendendo os níveis tanto federal quanto estadual, dentre os 50 maiores doadores dos Diretórios e Comitês, apenas 3 são pessoas físicas. Mais interessante que esses dados é a comparação feita entre os maiores doadores21 dos candidatos e aqueles dos comitês e diretórios: exatamente metade são os mesmos, porém, confirmando ainda mais a suspeita da existência dessas doações indiretas, o montante doado aos comitês e diretórios são sempre maiores.

Outro ponto a ser levantado é a ameaça ao princípio democrático do “um homem um voto”, que garante o mesmo peso de voto e igualdade entre os cidadãos. Se um eleitor possui

19 Como já dito anteriormente neste trabalho, os limites apenas são estipulados pelos Partidos Políticos se a Justiça Eleitora não fazê-lo até data pré-definida, porém, na história brasileira, essa determinação nunca foi feita pelos órgãos eleitorais e, portando, sempre ficando a cargo dos próprios partidos. 20 As doações partidárias e dos comitês não constam dos arquivos online do TSE como as demais doações, existindo apenas em papel, nos arquivos do TSE e dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), porém, no site do Às Claras, a totalidade dos recursos dos Diretórios Partidários e Comitês Financeiros repassados aos candidatos estão discriminados, apontando uma massiva quantidade de doações advindas de grandes empresas. 21 Aqui compara-se com os 10 maiores doadores dos candidatos e dos comitês e diretórios.

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maiores condições de doar recursos que outro, pode-se questionar o ideal equânime em dois sentidos: se o candidato coloca os interesses dos financiadores em detrimento dos que não puderam contribuir e se apenas os candidatos que representam interesses do estrato mais poderoso do país passam a ter condições de vencer o pleito, uma vez que disporiam de quantidade maior de recursos doados, representando uma influência econômica indevida nas eleições. “Se o sistema eleitoral representa a sociedade na sua estratificação econômica e não os cidadãos iguais, estamos diante a corrupção do sistema eleitoral.”22

Deve-se levar em conta, também, a vantagem existente daqueles candidatos à reeleição, tendo em vista a sua visibilidade por ser ocupante de cargos públicos. Nesse sentido, aqueles candidatos “desafiantes” já possuem, naturalmente, certa desvantagem no pleito. Porém, a real problemática surge quando o candidato à reeleição passa a usar indevidamente a máquina pública com o intuito de promover-se e fazer propaganda eleitoral. Essa situação, justamente por ser de difícil comprovação e punição, é extremamente recorrente dentro da política brasileira.

Por último, tratar-se-á dos, cada vez mais elevados, custos das campanhas eleitorais. Como mencionado anteriormente, com o advento da propaganda eleitoral gratuita (que passou a exigir pesados investimentos dos partidos políticos para a elaboração dos videotapes), a utilização de recursos mais sofisticados e a contratação de pessoas especializadas em marketing, o custo das campanhas subiu de forma exponencial e, juntamente com essa elevação, os gastos passaram a ser decisivos na definição dos candidatos eleitos.

22 SPECK, Bruno Wilhelm. A integridade do financiamento de partidos e campanhas eleitorais: levantamento sobre problemas enfrentados e sistemas regulatórios. Relatório para Transparency International. São Paulo, jun. 2003. Disponível em: <http://docplayer.com.br/18688076-Levantamento-sobre-problemas-enfrentados-e-sistemas-regulatorios-1.html>. Acesso em: 2014. [p. 2].

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De acordo com dados coletados por Bruno Speck, proporcionalmente, os candidatos eleitos gastaram valores explicitamente maiores que todos os outros candidatos. Constata-se, ainda, que há uma relação muito próxima entre as possibilidades de vitória e a quantidade gasta na campanha. Não significa que o financiamento seja condição suficiente para que um candidato possa ser eleito, porém, é determinante. Inclusive, observa-se a existência de um patamar mínimo de arrecadação para que se pleiteie uma possível vitória eleitoral.

Em contrapartida, Bruno Speck afirma não ver tanto problema nessa elevação dos gastos de campanha, comparando-se aos gastos que geralmente ocorrem em campanhas realizadas dentro do setor privado. Considera que as críticas referentes a esse montante cada vez maior são em certa medida exageradas e que a realidade é que as campanhas e a divulgação de ideias requer dinheiro e gastos que são naturais e inerentes à prática da democracia. O problema surge na disparidade dos recursos, ou seja, quando um candidato detém de grande montante de capital e outro, muito pouco. A partir daí sim, que surgem as disparidades perniciosas ao processo democrático23.

4 A BUSCA DE SOLUÇÕES PARA OS ENTRAVES DECORRENTES DO FINANCIAMENTO DE CAMPANHA

Muitas são as especulações e estudos, hoje, a respeito da busca de meios que possam solucionar os problemas advindos do financiamento de campanha hoje vigente ou, ao menos, amenizar suas consequências danosas à democracia. Dentre tantas propostas, destacar-se-ão algumas tidas como mais pertinentes, mais tratadas e que possuem uma maior adesão na literatura.

23 Palestra de Bruno Wilhelm Speck no III Seminário Não Aceito Corrupção, realizado pelo MPD, no dia 12/08/2014, na cidade de São Paulo.

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Segundo Daniel Zovatto, todo processo de reforma relacionada ao financiamento político deveria ater-se aos seguintes objetivos gerais:

1. Garantir uma efetiva competição eleitoral e promover a eqüidade política; 2. Incrementar a transparência mediante o fortalecimento dos mecanismos de prestação de contas e de divulgação; 3. Reduzir a necessidade de dinheiro, controlando os disparadores do gasto eleitoral; 4. Combater frontalmente o tráfico de influências, a corrupção política e a entrada de dinheiro ilícito nas finanças partidárias; 5. Melhorar o uso dos fundos públicos, investindo no fortalecimento de partidos democráticos; 6. Consolidar o Estado de Direito e fortalecer a capacidade de fazer cumprir as normas e 7. Incorporar o enfoque de gênero nas discussões e regulamentações sobre o financiamento dos partidos políticos.24

Assim como já discutido anteriormente, no Brasil, existem tetos de doações aos candidatos baseados na renda dos doadores apenas. Segundo Speck, os limites em função da renda dos financiadores como são definidos hoje servem mais para proteger os doadores dos candidatos do que os candidatos dos doadores25, portanto, seguem uma lógica invertida.

Proposta que é feita é a da estipulação de limites para o recebimento de doações para cada candidato, ou seja, a limitação não ocorreria em razão, apenas, do doador, mas também, do beneficiado. Essa forma impediria que um único ente financiador tivesse maioria sobre os outros, evitando a dependência do

24 ZOVATTO, Daniel. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais na América Latina: uma análise comparada. Opinião Pública, Campinas, v. 11, n. 2, p. 331, out. 2005. 25 SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento político no Brasil: normas e práticas vigentes. Relatório de pesquisa para projeto comparativo da OEA/IDEA. São Paulo, 2003.

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candidato em relação a um doador individualmente. Mais que isso, incentivaria a busca de diversificação das fontes de financiamento.

Outra forma que se propõe é uma definição de tetos de doações bem baixos e acessíveis, o que, assim como a proposta anterior, obrigaria os candidatos a terem um maior contato com uma diversidade do eleitorado na busca de um número maior de doadores e, consequentemente, de recursos. Inclusive, tetos bem inferiores evitariam, tornando quase que impossível, que grandes empresas se utilizassem de vários doadores “laranjas” para, na soma, alcançarem um valor elevado de capital doado na tentativa de manterem a sua hegemonia em relação às doações e “driblarem” a legislação.

Para que seja facilitada a fiscalização frente a esses limites de doação fala-se, também, da estipulação de tetos nominais e não percentuais, isto é, estabelecer-se um valor exato máximo de doação fixo para todos os doadores ou para categorias deles. Assim, o doador que possui maiores recursos financeiros não leva vantagem sobre outro em relação à quantia que pode doar.

Melhor definindo isso, o teto percentual leva em conta a quantidade total de recursos que o doador possui, portanto, para aquele que detém maior renda, o mesmo percentual equivalerá a um valor real bem maior que aquele que possui renda baixa. No caso da estipulação de um valor nominal fixo, mil reais, por exemplo, seria mil reais tanto para o doador mais rico quanto para aquele que possui menor renda.

Para além disso, também é proposta a proibição de algumas fontes de doação como a das pessoas jurídicas no geral ou apenas das empresas empreiteiras. Tem-se como argumento o fato de essas doações acabarem por servir como “investimentos” e “aplicações financeiras” e não verdadeiro apoio ideológico. Isso fica estampado na percepção de que a maioria das grandes empresas, num pleito, fazem doações para todos os candidatos que disputam entre si e possuem propostas antagônicas. Ainda, tendo em vista que a finalidade primária de uma empresa é a obtenção

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de lucro, não há lógica em pensar numa intenção diversa dessa nas doações feitas a campanhas eleitorais.

A resistência crescente que se criou frente às doações de entes privados gerou, ao mesmo tempo, grande apelo em relação à instituição de um financiamento exclusivamente público. Dentre as principais consequências que poderiam advir da implementação do financiamento exclusivamente público estão: a maior igualdade entre os cidadãos que participam apenas por meio do voto, corte do vínculo, muitas vezes existente, entre dinheiro e representação, maior facilidade de fiscalização pelos órgãos da Justiça Eleitoral e a possibilidade de utilizar-se dessa dependência de recursos públicos para a punição de irregularidades eleitorais.

Por outro lado, esse tipo de financiamento não exclui as possibilidades da existência do Caixa 2, uma vez que, se houver ofertas ou demandas reprimidas que o justifiquem no atual sistema de financiamento, não há porque não continuarem com a alteração da forma de financiamento para o exclusivamente público. Também, o financiamento público exclusivo poderia tornar os agentes políticos dependentes do Estado, gerar a burocratização e ossificação dos partidos políticos com a conseguinte perda de contato com a sociedade.

Lemos, Marcelino e Pederiva, ainda, avisam que o financiamento exclusivamente público não garantiria, necessariamente, maior pluralidade e igualdade entre os partidos, dependendo muito da forma como são definidos os critérios de distribuição dos recursos entre eles26.

Em virtude da forte relação, já comprovada, existente entre os gastos de campanha e as chances de sucesso eleitoral, a estipulação de tetos para as despesas de campanha é uma necessidade real no intuito de evitar as distorções em favor do

26 LEMOS, Leany Barreiro; PEDERIVA, João Henrique; MARCELINO, Daniel. Porque dinheiro importa: a dinâmica das contribuições eleitorais para o Congresso Nacional em 2002 e 2006. Opinião Pública, Campinas, v. 16, n. 2, p. 366-393, nov. 2010.

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poder econômico. A definição desses limites esbarra na dificuldade de se encontrar esse valor razoável e da criação de instâncias de controle competentes.

Por outro lado, salienta Speck, que, tendo em vista que o dinheiro para aqueles candidatos “desafiantes” é muito mais importante do que para os que já ocupam cargos, a estipulação de tetos de gastos pode representar uma desvantagem aos desafiantes, limitando sua capacidade de competição e gerando maior dificuldade e diminuindo as possibilidades de alternância no poder.

Uma das medidas que é apresentada caracteriza-se na regulamentação de um menor tempo de duração das campanhas partindo-se do pressuposto de que campanhas mais curtas tendem a gerar menos gastos. Bourdoukan, porém, chama a atenção para o fato de que a estipulação de limites para os gastos tende a beneficiar os candidatos e partidos mais conhecidos ao público ou que já estão no poder, uma vez que candidaturas, propostas e sua divulgação têm um custo.27

A punição para a violação das leis eleitorais também deve ser mais severa, assim como o fortalecimento do controle. Além disso, é importante que a criação de novas leis eleitorais e até o aprimoramento das já existentes tenha como preocupação básica sua praticabilidade. Essa necessidade chama a atenção na realidade de existência de leis, hoje, que apresentam tantas dificuldades de serem implantadas ou até compreendidas.

Chegou-se à conclusão de que, dentre todas as propostas de mudança na forma como ocorre o financiamento das campanhas eleitorais e de tentativa de amenização nos efeitos destrutivos da influência do poder econômico na política, além da busca da ideal ou a mais adequada regulamentação, é de suma importância

27 BOURDOUKAN, Adla Youssef. O bolso e a urna: financiamento político em perspectiva comparada. 2009. Tese (Doutorado em Ciências Políticas) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

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que exista efetiva e rígida fiscalização para a garantia do correto cumprimento dessa regulamentação.

De forma a sintetizar e retomar as propostas aqui tratadas no que tange à busca de soluções atinentes à temática do financiamento de campanha, enumeram-se: I) estabelecimento de limites de doações em relação aos doadores e também aos beneficiados; II) tetos baixos de doações; III) tetos nominais de doações para a facilitação da fiscalização; IV) proibição das doações advindas de pessoas jurídicas; V) financiamento exclusivamente público; VI) redução do período de duração das campanhas eleitorais; VII) estipulação de tetos mais rígidos e menores para os gastos eleitorais; VIII) fortalecimento dos mecanismos de prestação de contas e divulgação das informações de campanha; IX) maior transparência dos dados eleitorais; X) criação de leis eleitorais que tenham sempre como principal escopo a praticabilidade; XI) punições mais severas para o descumprimento das normas eleitorais; XII) participação ativa e intensa do cidadão na política em todos os seus âmbitos.

CONCLUSÃO

Desde 1945, o Brasil vem regulamentando o financiamento de campanhas de forma a, cada vez mais, garantir a lisura eleitoral e evitar a prática da corrupção. No decorrer do tempo, a legislação eleitoral foi sendo desenvolvida com base em análises da realidade fática e contornando suas nuances, definindo novas regras na medida em que as práticas de corrupção figuravam-se.

O caminho quase que unanimemente apoiado pelos especialistas no sentido de minimizar e extirpar os efeitos danosos decorrentes da influência econômica advinda do financiamento eleitoral, antes de qualquer solução referente à mudança na espécie de financiamento escolhida, se exclusivamente público, privado ou misto, é a fortificação dos mecanismos de prestação

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de contas, a plena transparência e o “accountability”; tudo isso, juntamente com uma participação popular atuante e fortificada.

Independente das fontes de financiamento eleitoral adotadas em um país, para que as regras sejam cumpridas, primeiramente, são necessários o seu conhecimento, sua compreensão e aplicabilidade, pois, uma Democracia é enfraquecida quando não se sabe qual a regra que existe ou não se compreende a mesma.

Para além disso, o respeito às regras e seu adequado cumprimento depende, primordialmente, de uma prestação de contas adequada, rígida e séria. A plena divulgação dos valores totais recebidos em uma campanha, suas fontes, as formas de gastos e as atividades desenvolvidas pelos partidos e candidatos é de extrema importância na fiscalização do cumprimento da legislação. Isso porque, de nada adianta a existência de uma legislação sem o mínimo controle de seu cumprimento, transformando-se em uma legislação írrita, ou seja, sem eficácia.

Com a plena prestação de contas e divulgação das mesmas para acesso tanto dos órgãos reguladores quanto do cidadão torna-se imprescindível o controle e a fiscalização ativa desses entes.

E, por fim e de mais relevante importância, a participação popular cada vez mais presente, ativa e atuante é requisito imprescindível para o aprimoramento da democracia, dos institutos a ela pertencentes e para a busca de erradicação das práticas de corrupção.

Detentores da soberania nacional, os cidadãos brasileiros ainda precisam se dar conta de seu protagonismo dentro do processo democrático brasileiro para, então, apoderarem-se e ocuparem seu lugar, determinante na transformação do sistema eleitoral brasileiro e, enfim, da política nacional.

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REFERÊNCIAS

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SPECK, Bruno Wilhelm. A integridade do financiamento de partidos e campanhas eleitorais: levantamento sobre problemas enfrentados e sistemas regulatórios. Relatório para Transparency International. São Paulo, jun. 2003. Disponível em: <http://docplayer.com.br/18688076-Levantamento-sobre-problemas-enfrentados-e-sistemas-regulatorios-1.html>. Acesso em: 2014.

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202II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

203“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

8 REFORMA POLÍTICA NO FINANCIAMENTO DE CAMPANHA

Jackeline Ferreira da Costa*

INTRODUÇÃO

Partidos políticos trazem a ideia de que diferentes setores na população têm o direito de serem representados no poder. Durante o Regime Militar, foi instalado o bipartidarismo no Brasil, nos períodos de 1966 a 1979, através do Ato Institucional nº 2 (AI-2), que colocou várias exigências para a formação de um partido e que colaborou para que o bipartidarismo se instalasse. Os partidos que ocupavam as pontas dessa disputa eram o Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O ARENA era o partido do regime militar, enquanto o MDB fazia seu trabalho de “oposição consentida”.

Com o fim do regime militar, o Brasil viveu um período de redemocratização, no qual foi instaurado o pluripartidarismo. Hoje, são 32 partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral.

Para fazer suas campanhas eleitorais e, eventualmente, conquistar um lugar no poder, os partidos políticos e os candidatos a eles filiados necessitam de recursos, ou seja, de financiamento. No Brasil, a modalidade de financiamento de campanha para as eleições brasileiras é mista, isto é, usa-se tanto de financiamento público quanto de financiamento privado. O financiamento privado advém de recursos do próprio candidato, do próprio partido que o candidato é filiado, de pessoas físicas ou de pessoas jurídicas. Já o financiamento público pode ser direto, na forma do Fundo Partidário, que dá recursos aos partidos, ou indireto, através, por exemplo, da propaganda eleitoral gratuita.

* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP/FCHS E-mail: [email protected].

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Com a adoção do financiamento misto, o sistema eleitoral brasileiro herdou os prós e os contras de cada um dos financiamentos citados. Em decorrência das críticas referentes a esses tipos de financiamento, foram apresentados alguns projetos de reforma política. Essas propostas se dão por meio de projetos de emendas constitucionais e de lei infraconstitucional, como revisão da lei eleitoral.

A autora do presente trabalho teve seu interesse pelo assunto desperto através do Centro de Estudos e Pesquisa sobre Corrupção (CEPC), grupo de qual é membro e cujo trabalho é voltado para o estudo da construção e das problemáticas do sistema político brasileiro. Além disso, com análise de campanhas eleitorais, foi possível notar as diferenças entre candidatos de partidos e sua relação com o financiamento dessas, tendo gerado inquietação e curiosidade sobre o tema.

A respeito da Reforma Política, no âmbito do financiamento de campanha, ela justifica-se pela tentativa de sanar problemas existentes no atual sistema partidário brasileiro. O financiamento de campanha tem direta ligação na corrupção. Além disso, é possível perceber uma discrepância entre campanhas que tiveram mais recursos e outras que os tiveram mais modestamente. Esse problema na conjuntura, aliás, reflete-se na urna, levando a crer que o candidato com uma campanha mais cara terá mais chances de se eleger.

Para tentar sanar esses problemas, é de entendimento da autoria a indiscutível necessidade da análise detalhada das várias propostas de Reforma Política, bem como da atual modalidade de financiamento de campanha para que seja possível uma posição a respeito do tema.

Com o devido estudo do atual financiamento de campanha eleitoral e de partidos políticos no Brasil e a análise das propostas de reforma política sobre o tema, o presente trabalho tem como objetivo o aprofundamento da temática, através da comparação das vantagens e desvantagens do sistema misto de financiamento

205“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

de campanha adotado no país. Ademais, tem por objetivo discorrer sobre a proposta de reforma política de financiamento exclusivamente público de campanha, expondo também os prós e contras da adoção dessa.

Por meio dessas análises, pretende-se auxiliar na busca de um financiamento que seja mais adequado à realidade nacional, a fim de combater a corrupção e a desigualdade, ainda que prezando pelas liberdades de cada partido.

A análise das propostas foi realizada por meio do método hipotético-dedutivo,

“[...] que se inicia pela percepção de uma lacuna nos conhecimentos acerca da qual formula hipóteses e, pelo processo de inferência dedutiva, testa a predição da ocorrência de fenômenos abrangidos pela hipótese.”1

O presente trabalho baseou-se ainda no estudo de recortes de jornais, além de visita a sites relacionados ao tema da política, como o do Tribunal Superior Eleitoral e outros órgão que realizam o trabalho de fiscalização dos órgãos políticos.

1 FINANCIAMENTO DE CAMPANHA ELEITORAL E DE PARTIDOS POLÍTICOS

No Brasil, são realizadas eleições diretas para os membros dos poderes Executivo e Legislativo. O financiamento eleitoral é o conjunto de normas e práticas a fim de se conseguir recursos para competir nas eleições e, assim, conquistar o poder. A modalidade de financiamento utilizado na política brasileira é o financiamento misto. É proibido o financiamento proveniente do estrangeiro e de recursos públicos, como órgãos públicos e fundações.

1 LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2001. p. 106.

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Os partidos políticos são legislados pelo artigo 17 da Constituição Federal:

Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:I – caráter nacional;II – proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes;III – prestação de contas à Justiça Eleitoral;IV – funcionamento parlamentar de acordo com a lei.§ 1º - É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.§ 2º - Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.§ 3º - Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.2

§ 4º - É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar.

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

207“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Diz ainda o artigo 20 da Lei nº 9.504/973, também conhecida como Lei das Eleições, a respeito do financiamento de campanha:

Art. 20. O candidato a cargo eletivo fará, diretamente ou por intermédio de pessoa por ele designada, a administração financeira de sua campanha, usando recursos repassados pelo comitê, inclusive os relativos à cota do Fundo Partidário, recursos próprios ou doações de pessoas físicas ou jurídicas, na forma estabelecida nesta Lei.

1.1 Financiamento Público

O financiamento público, no Brasil, pode ser dado de forma direta ou indireta. O Financiamento Direto ocorre na forma do Fundo Partidário, que é um Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos. Ele é constituído por dotações orçamentárias da União, multas, penalidades, doações e outros recursos financeiros que lhes forem atribuídos por lei. Os valores repassados aos partidos políticos através desse Fundo são referentes aos duodécimos e multas, discriminados por partido e relativos ao mês de distribuição. Tais valores são publicados mensalmente no Diário da Justiça Eletrônico, que pode ser acessado pelo site do Tribunal Superior Eleitoral4. Somente os partidos com estatuto cadastrado no TSE e prestação de contas regular junto à Justiça Eleitoral podem usufruir

3 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 out. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L9504.htm>. Acesso em: 2014.4 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Fundo partidário. Brasília, DF, 2014a. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/partidos/fundo-partidario>. Acesso em: 2014.

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do Fundo Partidário. A distribuição do Fundo Partidário se dá de acordo com o art. 41-A da Lei nº 9.096/955:

Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:I – 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; eII – 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II, serão desconsideradas as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto no § 6º do art. 29.

Por sua vez, o Financiamento Indireto se dá pela transferência de recursos não-financeiros do Estado para os partidos. No Brasil, o financiamento indireto é dado através de subsídios tributários, de disponibilização de prédios para as sedes dos partidos políticos, de impressão de cédulas eleitorais e de tempo na mídia gratuito, como propaganda eleitoral gratuita na televisão e no rádio.

Há argumentos contra e a favor do Financiamento Público. Alguns argumentos favoráveis são que, com ele, há menor peso dos interesses econômicos nas eleições, contribuindo assim para a diminuição da corrupção, uma vez que cortaria a dependência entre financiador e financiado. Além disso, se os critérios alocativos fossem igualitários, alegam os defensores desse financiamento, a competição eleitoral seria também mais igualitária e, portanto, justa.

5 BRASIL. Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995. Dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 17 e14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9096.htm>. Acesso em: 2014.

209“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Argumentos contrários ao Financiamento Público são, primeiramente, que, se tal modalidade fosse exclusiva, ocorreria uma “estatização” dos partidos políticos, uma vez que o Estado poderia interferir em sua autonomia. Outro argumento contra é que partidos com maior representação no Congresso levariam certa vantagem na distribuição dos recursos, pois seria o Congresso quem estipularia os critérios alocativos. Ademais, é de se questionar se seria justa a transferência dos custos de campanha para os cidadãos.

1.2 Financiamento Privado

No financiamento privado são englobados os recursos do próprio candidato, do partido a que ele está filiado, de pessoas físicas e de pessoas jurídicas. Essa modalidade de financiamento é a que mais tem peso nas eleições, sendo o maior número de recursos vindos de pessoas jurídicas.

No entanto, há limites para as doações de recursos advindos de financiamento privado. As doações provenientes do próprio candidato, por exemplo, não podem ultrapassar o valor máximo estabelecido pelo partido. Já as doações provenientes de pessoas físicas e jurídicas são legisladas pelo artigo 23 da Lei nº 9.504/97:

Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei.§ 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas:I – no caso de pessoa física, a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição;II – no caso em que o candidato utilize recursos próprios, ao valor máximo de gastos estabelecido pelo seu partido, na forma desta Lei.[...].

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Ainda, no artigo 81 da mesma Lei:Art. 81. As doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou coligações.§ 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.[...].

A maior vantagem, talvez, de um Financiamento de Campanha Privado seja a liberdade do candidato e do benfeitor. Através dessa modalidade, o financiador pode expressar suas preferências políticas, além de garantir uma liberdade política dos partidos. Ademais, esse financiamento ajudaria os partidos a estreitar suas pontes de contato com a sociedade, visto que os membros dela podem doar diretamente esses recursos.

Em contrapartida, a desvantagem desse tipo de financiamento é a tão falada corrupção. Ao contrário do que a frase anterior pode implicar, no Financiamento Público não há a garantia de fim da corrupção. No entanto, o Financiamento Privado mostra um terreno mais propício para os atos corruptos. Além da presença de “caixa 2” e da origem suspeita do dinheiro, a maior desvantagem que se pode apontar é a troca de favores que fica implícita quando há Financiamento Privado, principalmente se decorrente de pessoas jurídicas.

1.3 Financiamento Misto

No Brasil, como já dito, utiliza-se o Financiamento Misto, em que se usa dos dois tipos de financiamento dissertados. A título

211“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

de curiosidade, essa modalidade de financiamento é utilizada na maioria dos países, como Estados Unidos, Canadá e Alemanha.

2 PRESTAÇÃO DE CONTAS

É previsto no artigo 17 da Constituição Federal a prestação de contas dos partidos à Justiça Eleitoral. A obrigatoriedade de prestação de contas é exigida anualmente dos partidos políticos e encontra-se disciplinada no Capítulo I do Título III da Lei nº 9.096/95, a Lei dos Partidos Políticos. Para a elaboração e a entrega da prestação de contas anuais dos partidos políticos, a regulamentação está disciplinada na Resolução-TSE nº 21.841, de 22 de junho de 2004. A Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa/TSE) é a unidade responsável pela análise das contas partidárias.6

3 FINANCIAMENTO NAS ELEIÇÕES DE 2014

Nas Eleições de 2014, o assunto Financiamento Privado de Campanha veio à tona, impulsionado pelas manifestações do ano passado e pelas várias propostas de Reforma Política. No entanto, enquanto a maioria dos candidatos se coloca contra esse tipo de financiamento, nessas eleições uns usufruem massivamente dele, enquanto outros o negam.

O candidato presidenciável do Partido Verde (PV), por exemplo, declarou pelos meios de comunicação que não utilizou do Financiamento Privado nessas eleições. Em contrapartida, os partidos dos ditos “principais presidenciáveis” compartilharam financiadores. Segundo notícia do Estadão publicada em 15/09/2014, o maior financiador até então, o Grupo JBS, havia doado R$113 milhões em prol de financiamento. O Grupo Ambev,

6 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Contas partidárias. Brasília, DF, 2014b. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/partidos/contas-partidarias>. Acesso em: 2014.

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por sua vez, doou cerca de R$41,5 milhões, dando suas maiores fatias ao PMDB (R$ 12 milhões), PT (R$ 11 milhões) e PSDB (R$ 8 milhões).

Segunda colocada no ranking dos maiores contribuintes com os políticos, a Construtora OAS acumula R$ 66,8 milhões em doações. O PT ficou com quase metade desse dinheiro, ou R$ 32 milhões. O restante foi dividido entre PMDB, PSDB e PSB, entre outras legendas.A Andrade Gutierrez doou R$ 33 milhões, divididos quase que exclusivamente entre PT (R$ 16 milhões) e PSDB (R$ 13 milhões). A UTC deu R$ 29 milhões (R$ 13 milhões para petistas), a Queiroz Galvão doou R$ 25 milhões (PMDB recebeu R$ 7 milhões), e o grupo Odebrecht, R$ 23 milhões, principalmente para PT, PSDB e DEM.7

Vale frisar ainda que sete das maiores doadoras de campanha em 2010 são suspeitas de corrupção, são elas: Construção e Comércio Camargo Correa S.A., Construtora Andrade Gutierrez S.A., JBS S.A., Construtora Queiroz Galvão S.A., Construtora OAS S.A., Banco BMG e Galvão Engenharia S.A.8 9

7 TOLEDO, José Roberto de; BURGARELLI, Rodrigo; BRAMATTI, Daniel. Doações de campanha somam R$ 1 bi, das quais metade vem de 19 empresas. Estadão, São Paulo, 15 set. 2014. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,doacoes-de-campanha-somam-r-1-bi-das-quais-metade-vem-de-19-empresas-imp-,1560289>. Acesso em: 2014.8 PRAZERES, Leandro. Sete dos dez maiores doadores de campanha são suspeitos de corrupção. São Paulo, 28 jul. 2014. Disponível em: <http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/07/28/sete-dos-dez-maiores-doadores-de-campanha-sao-suspeitos-de-corrupcao.htm>. Acesso em: 2014.9 SUSPEITAS entre gigantes da economia envolvem desvio de verbas e propinas. São Paulo, 28 jul. 2014. Disponível em: <http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/07/28/gigantes-da-economia-brasileira-sao-suspeitas-de-corrupcao.htm>. Acesso em: 2014.

213“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Embora as doações pareçam exacerbadas, mostra-se vantajoso a uma empresa gastar milhões em uma campanha eleitoral e, assim, faturar bilhões tendo, por exemplo, o apoio dentro do parlamento brasileiro para a aprovação de licitações. Esse “investimento” nos partidos e seus candidatos é um bom negócio, visto que os maiores financiados são, normalmente, os candidatos eleitos. No entanto, tais financiamentos prejudicam a pluralidade de partidos no poder e, principalmente, de representações.

Nas eleições desse ano, dos candidatos eleitos para governador em 1º turno, 4 são filiados ao PMDB, 3 ao PT e 2 ao PSDB. No 2º turno, além dos presidenciáveis do PT e do PSDB, para o governo dos estados, disputaram 8 candidatos do PMDB, 6 do PSDB e 4 do PT.

4 PROPOSTAS DE REFORMA POLÍTICA

As propostas de Reforma Política surgem em um cenário de insatisfação com o atual sistema eleitoral brasileiro. Existem várias propostas de Reforma Política, dentre elas o financiamento exclusivo público; o financiamento público exclusivo apenas nas eleições do Executivo; o financiamento público aliado a doações de empresas indiretas, que seriam depositadas em um “Fundo Nacional” controlado pelo TSE; e o financiamento misto com proibição de doações vindas de empresas privadas e teto para as doações de pessoas físicas.

Nesse trabalho, entretanto, irá se focar na proposta de financiamento exclusivamente público ou PLS nº 268/201110.

10 SARNEY, José et al. Projeto de lei nº 268/2011. Dispõe sobre o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais e dá outras providências. Diário do Senado Federal. Brasília, DF, 19 maio 2011. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/100307>. Acesso em: 2014.

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4.1 Financiamento público exclusivo – PLS nº 268/2011

O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 268/2011 dispõe sobre o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais. De autoria dos senadores José Sarney e Francisco Dornelles, tal projeto foi apresentado no dia 18 de maio de 2014, como conclusão dos trabalhos da Comissão de Reforma Política do Senado Federal11. A justificativa do projeto se dá que:

[...] a proposta do financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais inspira-se na necessidade de redução dos gastos nessas campanhas, que vêm crescendo exponencialmente no país, bem como na necessidade de pôr fim à utilização de recursos não contabilizados, oriundos do chamado “caixa 2”.

“Inicialmente, o projeto foi rejeitado. No entanto, após pedido de vista coletiva e acirrada discussão, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou, por dez votos a nove, o financiamento público de campanha.”12 O projeto, porém, não seguiu para a Câmara dos Deputados, pois houve recurso para apreciação do projeto em plenário.

Foi aberta, então, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF, em que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil questiona dispositivos da atual legislação que disciplina o financiamento de campanha e

11 ORZARI, Octavio. O financiamento público exclusivo de campanhas e listas partidárias preordenadas: o projeto de lei do senado nº 268/2011 e a PEC nº 43/2011. Revista Eletrônica EJE, Brasília, DF, ano 2, n. 5. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/institucional/escola-judiciaria-eleitoral/revistas-da-eje/artigos/ revista-eletronica-ano-ii-no-5/o-financiamento-publico-exclusivo-de-campanhas-e-listas-partidarias-preordenadas-2013-o-projeto-de-lei-do-senado-no-268-2011-e-a-pec-no-43-2011>. Acesso em: 2014.12 Ibid.

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de partidos políticos. Notícia veiculada no site da Conjur em 02/04/2014 diz:

Até o momento, a maioria dos ministros do Supremo se posicionou contra as doações eleitorais. Ao retomar o julgamento, os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski alinharam-se à corrente defendida pelo relator, Luiz Fux, o presidente da corte, Joaquim Barbosa, e os ministros Luis Roberto Barroso e Dias Toffoli, formando uma maioria de 6 votos. Único a votar pela validade das doações de empresas, o ministro Teori Zavascki apresentou seu voto-vista também nesta quarta-feira e abriu a divergência.O julgamento foi novamente suspenso após um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, que na sessão do ano passado mostrou-se favorável ao financiamento empresarial. Assim, o resultado final será conhecido apenas posteriormente, pois ainda faltam quatro votos: Gilmar Mendes, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Celso de Mello. A corte ainda terá de decidir a partir de quando a proibição ficará valendo.13

Como já dito em tópico anterior, as desvantagens de um Financiamento Público Exclusivo seriam a possibilidade de uma “estatização” dos partidos políticos e a interferência estatal em sua autonomia. Além disso, haveria desigualdade na distribuição dos recursos dependendo de seus critérios alocativos. Outra questão seria a da justiça em se transferir os custos de campanha para os cidadãos.

A respeito dos critérios alocativos, é de opinião da autoria desse artigo que o assunto deve ser legislado visando a igualdade dos partidos, sem deixar margem para interferência de assuntos

13 BEZERRA, Elton. Maioria no STF é contra doações eleitorais de empresa. Consultor Jurídico, São Paulo, 2 abr. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-abr-02/supremo-acaba-doacoes-empresas-partidos-politicos>. Acesso em: 2014.

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que possam beneficiar os políticos envolvidos. Segundo o PLS nº 268/2011, os critérios alocativos seriam os já estabelecidos em legislação, nos termos no art. 41-A da Lei nº 9.096/95, os quais devem ser discutidos com maior profundidade em outro momento se são justos ou não.

Já em questão à transferência dos custos de campanha para os cidadãos, fica mais que evidente o papel que os políticos realizam na vida em sociedade. Os candidatos aos cargos políticos públicos são representantes do povo, ideia respaldada no parágrafo único do artigo 1º, que diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Portanto, transferir o financiamento de campanha para a responsabilidade do representado seria uma forma de aumentar essa representatividade, além de destacar à população a importância desse assunto com ela no papel de credora.

De resto, a respeito dos argumentos favoráveis a esse tipo de financiamento, fica o destaque no combate à corrupção e, principalmente a procura da igualdade de oportunidades aos candidatos.

Entretanto, o PLS n 268/2011 não acaba com as chances de corrupção como parece fazê-lo. O projeto propõe a alteração de alguns artigos da Lei nº 9.096/95. No art. 7º do projeto, se diz:

Art. 7º. O § 5º do art. 39 da Lei nº 9.096, de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação:Art. 39. [...] § 5º Nos anos em que se realizarem eleições, é vedado o recebimento de doações de que trata este artigo.

As doações tratadas no art. 39 referidas são as provenientes de pessoas físicas e jurídicas. Ou seja, durante o ano eleitoral, não seria permitido o tipo de financiamento privado advindo de pessoas físicas ou jurídicas. No entanto, nos outros anos, essa doação seria aceita. Esse projeto de lei do Senado,

217“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

portanto, se mostra contra-eficiente, uma vez que as empresas teriam ainda a liberdade de “investir” nos partidos nos anos anteriores às eleições, e ainda assim garantir apoio deles.

Ademais, fica o questionamento se tal projeto foi feito com realmente a intenção de erradicar a corrupção proveniente de financiamento eleitoral, ou se foi somente uma “fachada” para passar a imagem de políticos preocupados em atender essa necessidade de Reforma Política requerida pela população.

CONCLUSÃO

O financiamento de campanha e de partidos políticos atualmente vigente no sistema eleitoral brasileiro é misto, angariando os defeitos e as qualidades tanto do financiamento privado quanto do público. No entanto, o atual modelo encontra-se defasado, principalmente devido aos inúmeros escândalos de corrupção, o que gera descontentamento da população. Com a observação da atual modalidade de arrecadação de recursos, contando ainda com dados das eleições de 2014, foi possível perceber que os candidatos com mais recursos são os eleitos para assumir os cargos do Executivo aqui analisados. Ademais, foi notada a importância de saber a origem do dinheiro que financia a campanha, a fim de evitar a chamada “troca de favores” entre financiador e financiado.

Com a análise da PLS nº 268/2011, foi possível notar que o assunto deva ser tratado com cautela, uma vez que um novo tipo de financiamento não significa necessariamente fim da corrupção. Além disso, deve sempre ser resguardada a proteção dos direitos individuais dos candidatos. No entanto, foi notado no trabalho o quanto é prejudicial o financiamento privado e como é necessário que ele seja abolido, pelo menos em partes. Por fim, o projeto de lei que sugere o financiamento público exclusivo se mostra ainda insuficiente e ineficaz, sendo mais necessário do que

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nunca uma conscientização da população de que eleição é assunto de interesse público e assim deve ser tratado.

REFERÊNCIAS

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221“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

9 A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS E A AFIRMAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CÁRCERE

Bruna Martins Federici*Fernanda Cristina Barros Marcondes**

Isabela Risso da Silva***

INTRODUÇÃO

Os objetivos declarados das penas, e mais especificamente das penas de prisão, são a correção dos indivíduos infratores e a prevenção da criminalidade. No entanto, o crescimento desproporcional da população carcerária no Brasil, o aumento do nível de reincidência e o de construção de presídios manifestam que as funções do cárcere não coincidem com as proclamadas. Entende-se que a função social do cárcere é, na verdade, absorver a parcela da população vista como “expurgo social”, e que esse papel é exercido por meio da justiça penal. Desse modo, a privatização dos presídios seria um fator intensificador dessa função social não declarada, no sentido de que o objetivo das instituições privadas é o lucro (seguindo a lógica de que ‘quanto mais encarceramento, mais lucro”), e não a propiciação de mecanismos sociais que visam a materialização de uma justiça penal condizente com os direitos e garantias proferidos pela Constituição.

A justificativa desse trabalho consiste que em janeiro de 2013 foi inaugurado o primeiro complexo penitenciário que foi construído e é administrado pela parceria público-privada do país, localizado em Ribeirão das Neves em Minas Gerais. Esse

* Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Contato: [email protected]. ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Contato: [email protected]. *** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Contato: [email protected].

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Complexo Prisional Público Privado (CPPP) foi uma influência notável para outros estados começarem a discutir a possibilidade de implantação de presídios nesse modelo, colocando em voga o colapso das instituições públicas estatais e a mercantilização do sofrimento e do poder de polícia do estado.

O objetivo da pesquisa é compreender quais são os efeitos da privatização dos presídios brasileiros - contrabalanceando os possíveis benefícios da privatização dos presídios em detrimento de todos os fatores negativos - por meio da análise dos presídios privatizados no País e de outros nos Estados Unidos.

Visando, então, alcançar os objetivos dessa pesquisa, utilizaremos o método comparativo, partindo da análise dos aspectos da privatização de presídios em diversos sistemas penais e aplicando as possíveis consequências no caso do Brasil. O método de análise crítica da realidade abordada pelo tema se faz com a pesquisa documental amparada em bibliografia especializada, como livros, além de artigos publicados em jornais e revistas.

1 AS FUNÇÕES DECLARADAS DA PENA EM SUAS DIVERSAS TEORIAS

Antes de mais nada, fala-se aqui em função da pena, mas o que se pretende é deixar expostas as funções do cárcere, já que este é o tipo de penalização mais comum no mundo moderno. Assim, se a aplicação da pena possui uma determinada função, ou objetivo, é através do cárcere que se buscará a materialização desta finalidade.

Dado isso, vale observar a existência de teorias legitimadoras da pena e das deslegitimadoras. Aquelas, de acordo com a tradição, consideram legítima a intervenção estatal na liberdade dos cidadãos, mesmo que isso se dê penalmente. Estas, por sua vez, consideram tal intervenção dispensável (QUEIROZ, 2001, p. 45).

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Dentre as teorias que legitimam a pena, as mais relevantes, aos menos ao nosso presente estudo, são as teorias absolutas ou retributivas, as relativas ou preventivas e as ecléticas. As primeiras baseiam-se na ideia de justiça, há punição apenas em face da prática de um crime. Kant e Hegel são dois grandes representantes desta teoria (NORONHA, 2004, p. 28).

Tais teorias retributivas ganharam força dentro do Estado Absolutista, o qual tem como maior característica a união entre Estado e Igreja, de modo que o cometimento de um crime significava um desrespeito direto a Deus. Assim, a aplicação da pena castigava o criminoso pecador.

Acontece que os Estados Modernos já não possuem mais conceitos totais que podem transpor qualquer barreira do plausível, como acontecia no absolutismo. Pelo contrário, a barreira imposta pelos direitos constitucionais, humanos, restringe, ou deveria restringir, o poder do Estado contra o sujeito que cometeu um crime. O Direito Penal não tem um fim metafísico.

Além do mais, não se percebe nestas teorias a preocupação com a justiça interna ao próprio sistema penal, apenas com aquela relacionada à retribuição individual à uma má ação (QUEIROZ, 2001, p. 47-48). Muito menos condiz com o Estado Democrático de Direito na medida em que, muitas vezes, está aquém da proteção dos bens jurídicos da sociedade (DIAS, 1999, p. 94).

As teorias relativas ou preventivas, por sua vez, trazem para a concepção de pena uma finalidade prática: a de prevenção geral ou especial. Assim, a causa da pena, para estas teorias, não é o próprio crime, mas necessidade social de prevenção (NORONHA, 2004, p. 29).

A prevenção geral fica em pauta principalmente no contexto do Iluminismo, num momento de “libertação” do Estado Absolutista. Aqui tem início o discurso do Direito Natural, do livre-arbítrio, que dava ao homem a possibilidade de medir vantagens e as desvantagens do cometimento dos delitos.

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Nesse sentido, a pena é vista como um instrumento com o fim de conseguir um efeito psíquico sobre todos os membros da comunidade desencorajando a prática de delitos por eles, vez que estes passam a enxergar a aplicabilidade das penas como uma realidade que pode ameaçá-los caso eles descumpram as leis (DIAS, 1999, p. 99).

As teorias unitárias, de outro modo, são as que dominam na atualidade. Estas procuram unificar as diversas teorias anteriores, combinando-as, por isso são também chamadas de ecléticas. Livres das purezas e dos monismos que dominam as teorias absolutas e relativas, as teorias ecléticas pretendem explicar o fenômeno punitivo de uma forma mais dinâmica (QUEIROZ, 2001, p. 57). Para estas teorias, a pena depende tanto da justiça de seus preceitos quanto da necessidade de sua aplicação para a garantia da ordem pública e da vida em sociedade.

No caminho inverso dessas teorias apresentadas, apontam as teorias deslegitimadoras da pena, as quais são representadas, basicamente, pelo abolicionismo penal, de Hulsman e outros, e pelo minimalismo radical, de Zaffaroni, Baratta e outros.

Através delas apresenta-se a crítica à própria existência do Direito Penal, isso porque o Estado não pode ter a legitimidade de exercer qualquer poder punitivo, e não só por uma questão ideológica, mas porque, de fato, o Direito Penal cria mais problemas do que os que pretende resolver (QUEIROZ, 2001, p. 60).

Hulsman, por exemplo, acreditava que a ideia de crime era uma ideia criada pela lei e, portanto, a criminalidade é uma construção social e não um produto natural (HULSMAN, QUEIROZ, 2001, p. 61). Zaffaroni fala de uma diferença de setores na sociedade, sustentada pelo controle social, e mantida pelo violento sistema penal (PIRANGELI; ZAFFARONI, 2010, p. 72).

Conforme o discurso destes autores, o sistema penal é seletivo, elege criminosos nas classes mais marginalizadas. E também, pode-se auferir que se, como diz Zaffaroni, a própria

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lei cria a ideia de crime, não seria ela capaz de desencoraja-lo, ou nem mesmo seria este de fato seu anseio.

1.1 As Funções não Declaradas da Pena

Nas palavras de Hulsman e Celis (1993, p. 86), “[...] questionar o direito de punir dado ao Estado não significa necessariamente rejeitar qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir totalmente a noção de responsabilidade pessoal.” Assim, quando se fala em “pena” neste trabalho refere-se àquela aplicada atualmente pelo sistema penal de nosso país.

Os sistemas penais ao redor do mundo valem-se de uma estrutura composta pela seletividade, pela reprodução da violência, pela criação de condições para condutas ainda mais lesivas, pela concentração do poder e corrupção institucionalizada, e pela verticalização social (ZAFFARONI, 1991, p. 14). Afirma sabiamente Zaffaroni que tais elementos não são apenas características conjunturais.

Nesse cenário a aplicação da pena significa a própria manutenção deste sistema que busca manter sua legitimidade como estrutura soberana de poder punitivo. A pena de prisão traz a concepção de que existe uma “causa da delinquência” ou verdadeira distinção nos sujeitos presos. Esse é um dos maiores sintomas do sistema prisional atual, a promoção da incapacidade de reconhecer no outro seus conflitos e questionamentos comuns, sem esquecer da humanidade que se compartilha. É apenas a prisão que difere a pessoa presa daquela não presa.

A função da pena de prisão, então, é a manutenção da segregação e da ideia de delinquente, de perigo e de medo. Esses

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juízos, em si mesmos, naturalmente fomentam o crescimento da punibilidade e a manutenção da desigualdade.

2 CAUSAS DAS PRIVATIZAÇÕES DOS PRESÍDIOS

Depois da explanação acima sobre as funções declaradas e não declaradas da pena, vale atentar-se para a aplicação das penas no Brasil sabendo de todos os seus malefícios. Assim, no Brasil há três tipos de penas: as privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa, segundo o artigo 32 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que institui o Código Penal. E ainda segundo o artigo 33 do mesma Lei, as Penas Privativas de Liberdade (PPL) se dividem em reclusão e detenção. Aquela deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto, já esta deve ser cumprida em regime semiaberto ou aberto. O regime aberto pode ser realizado em casa de albergado ou estabelecimento adequado, os semiaberto em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, já o regime fechado deve ser executado em estabelecimento de segurança máxima ou média. O regime fechado pode ser feito em instituições tanto de caráter público como privado.

O sistema prisional privado é a minoria no País e só existe porque no Brasil o sistema jurídico-econômico é de livre iniciativa e o Estado é neoliberal. Tal estado pauta-se na intervenção mínima na economia e em políticas públicas, acreditando que esse seja o melhor modelo para o desenvolvimento econômico e social do país. Assim há o fenômeno da privatização ou desestatização dos serviços públicos básicos de assistência a coletividade. Ou seja, da educação fundamental à pós-graduação, o controle das estradas e rodovias, a responsabilidade pela disponibilização de água e tantos outros serviços de poder estatal podem ser concedidos à iniciativa privada.

227“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Um dos grandes motivos que leva o Estado a fazer concessões no oferecimento de serviços básicos é a questão financeira, como bem assinalado a seguir por Alves (1998, p. 78).

Como o sistema é de livre empresa, capitalista, a primeira grande questão é saber como pode haver equilíbrio e proporcionalidade entre a captação de recursos pelo Estado, mediante a arrecadação de tributos e cobranças de tarifas públicas, objetivando responder às demandas sociais, e as necessidades de acumulação do capital que produz os bens de mercado e o excedente econômico, no âmbito da sociedade civil. Por outro lado, diante da crise fiscal do Estado, com a desproporção entre a demanda da tutela estatal e a capacidade de ingressos financeiros para provê-la, não há recursos suficientes para a implantação de infra-estruturas ou para a prestação de serviços públicos, apelando-se ao capital privado para atender a investimentos públicos mediante a adequada oferta de estímulos e incentivos.

O Estado, então, motivado por questões econômicas concede o serviço público - dentre eles o controle de presídios - para as empresas privadas as quais passam a ter o controle dessa atividade.

Nesse processo, acaba-se entrando em um ciclo vicioso, pois o Estado afirma privatizar os presídios por questões econômicas pautadas na redução de custo e na tentativa de otimização dos serviços. O fenômeno de privatização dos presídios, portanto, também é decorrente da lógica do mercado a que o Estado está submetido, pois, à medida que este se ausenta da frente econômica e social, problemas estruturais como o desemprego e a violência tendem a se alastrar. O Estado abstém-se de combater a desigualdade social e a pobreza em massa, e como consequência disso desenvolve-se a violência criminal.

Outro argumento que busca sustentar a existência dos presídios privatizados é a suposta alternativa ao caos prisional, com o discurso de que solucionará as urgências do sistema

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prisional. Prometendo resolver complicações como a superlotação, as condições sub-humanas a que a população carcerária está submetida, e o gasto do dinheiro público com a manutenção desse sistema, apresenta-se como a solução por ser capaz de administrar as prisões por meio de uma gestão moderna e eficaz.

Substitui-se, então, a discussão acerca dos limites da privação de direitos dos condenados no processo punitivo pela discussão da relação custo/eficácia. Dessa forma, estando o sistema penal a serviço do mercado, aniquilam-se os direitos fundamentais proferidos na Constituição.

Em suma, a privatização dos presídios é algo catastrófico para a sociedade, pois um dos argumentos que o sustentam deve-se à uma política neoliberal do Estado de buscar intervir cada vez menos tanto no âmbito do mercado quanto no social. No entanto ao fazer isso, os problemas sociais decorrentes da política neoliberal como a desigualdade social e a pobreza promovem a violência. Esta, por sua vez, não é resolvida, fazendo que o Estado precise de cada vez mais cadeias. E por conta dessa política neoliberal, haverá consequentemente cada vez mais cadeias privatizadas que trarão inúmeras consequências negativas que não resolverão os problemas sociais. Tal problema será tratado no próximo capítulo.

2.1 Consequências Sociais das Privatizações de Presídios

A privatização dos presídios promove a mercantilização da gestão da violência, ou seja, as penas privativas de liberdade convertem-se em negócio, o que abre espaço para o soerguimento de um mercado promissor: o mercado prisional.

A insegurança decorrente da violência criminal no Brasil é utilizada como fator impulsionador da indústria de combate à criminalidade. À miséria deveria dar-se um tratamento social, desenvolvido a longo prazo, visando a justiça social; contudo, a ela aplica-se um tratamento penal, caracterizado por seu caráter

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imediatista, manipulado pela máquina midiática, por meio da repressão. Essa medida, entretanto, não desacelera a criminalidade.

O que acontece, então, é que a função social do cárcere e a repressão seletiva são reafirmadas. Ele absorve a parcela pobre da população, demonstrando como a lei penal é um instrumento para a classe dominante exercer a justiça penal de acordo com seus interesses. Dessa forma, utilizando-se da população carcerária, o controle social é exercido. Percebe-se assim, que essa população, descartada da ordem econômica, e o encarceramento em massa são necessários para o cumprimento da função social do cárcere e para a manutenção do sistema capitalista.

Sobre isso, desenvolve Marx uma análise a respeito da função do crime dentro do sistema capitalista

Um filósofo produz ideias, um poeta poemas, um pastor sermões, um professor tratados etc. Um criminoso produz crimes[...] O criminoso não produz somente crimes, ele produz também o Direito Penal e, em consequência, também o professor que produz cursos de Direito Penal e, além disso, o inevitável tratado no qual este mesmo professor lança no mercado geral suas aulas como “mercadorias”. [...] O criminoso produz, além disso, toda a polícia e toda a justiça penal, os beleguins, juízes, carrascos, jurados etc. [...] Enquanto o crime retira uma parte da população supérflua do mercado de trabalho e assim reduz a competição entre os trabalhadores [...] a luta contra o crime absorve outra parcela dessa mesma população [...] O crime, pelos meios sempre renovados de ataque à propriedade, dá origem a métodos sempre renovados de defendê-la e, de imediato, sua influência na produção de máquinas é tão produtiva quanto as greves. (Marx, 1979, pp.191-192 apud MINHOTO, 2002, p.146).

Diante do exposto, é visível como a privatização dos presídios intensificaria esse processo de mercantilização,

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constituindo uma suposta solução a curto prazo de problemas estruturais ocasionados pelo tratamento que o Estado neoliberal oferece a questões como a miséria, o desemprego e a criminalidade.

3 AS PRIVATIZAÇÕES COMO UM NEGÓCIO BILIONÁRIO: CASOS SOBRE O BRASIL E OS EUA

Uma das desvantagens dos serviços públicos serem executados por instituições privadas é que há um afastamento do envolvimento do Estado na intervenção nas questões socio-econômicas. Assim, quando uma atividade pública é concedida a um ente privado - no caso dos presídios - não haverá uma preocupação com a ressocialização dos presos, e sim com os gastos mínimos e o lucro máximo. E uma das maneiras de atingir esse objetivo é aumentado a repressão policial e fortalecendo o endurecimento das penas. Os apontamentos a seguir elucidarão essas assertivas.

3.1 Caso EUA

A ideia da privatização dos presídios norte-americanos remonta ao empresário Thomas Beasley, incentivado pela falta de vagas nas cadeias. Depois disso, o presidente norte-americano Ronald Reagan, na década de 1980, apresentou a mesma proposta em razão da escassez dos recursos públicos. A primeira-ministra britânica Margareth Tatcher também difundiu essa proposta.

Hoje os Estados Unidos são um exemplo de lobby fortíssimo para o enrijecimento das penas, aumentando o número de presos e o tempo de permanência nos presídios a fim de beneficiar os lucros dos presídios privados. As penitenciárias privadas nos Estados Unidos, que hoje atendem a 7% da população carcerária, são, portanto, um negócio bilionário que em apenas 2005 gerou aproximadamente 37 bilhões de dólares segundo Sacchetta (2014). Além disso, pontua-se também o problema do

231“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

encarceramento em massa, que persistiu nos Estados Unidos, contabilizando 2,3 milhões de encarcerados.

Outra promessa feita pela proposta da privatização é a melhoria no que tange às condições físicas e morais dentro dos presídios, porém não obteve êxito, pois nos EUA as denúncias a respeito de casos de tortura e maus-tratos nas prisões privatizadas continuaram acontecendo.

Além do que, os EUA promovem feiras e congressos para fomentar o mercado das prisões por meio da divulgação de novos produtos e serviços, cujo público alvo são os "industriais do encarceramento”. Analisando a conjuntura do sistema penitenciário em países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e França, infere-se que o mercado de administração das prisões apresenta um enorme potencial de expansão.

Outra complicada questão relacionada às privatizações é o fato de várias empresas administradoras de prisões nos países centrais recusarem-se a administrar prisões de segurança máxima, preferindo as prisões de segurança mínima, nas quais os encarcerados estão em final de cumprimento de pena (MINHOTO, 2000, p. 17).

3.2 Caso Brasil

No Brasil foi implantado recentemente em janeiro de 2013 em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte o primeiro presídio público-privado (PPP). No País existem 22 prisões terceirizadas que receberam capital privado depois de serem construídas, mas a diferença entre elas e o Presídio das Neves é que este foi o primeiro presídio já construído e administrado pela iniciativa privada. De tal modo que o poder jurisdicional do Estado brasileiro é indelegável, a proposta de privatização é para que haja uma parceria público-privada, na qual o Estado administra a pena, sob o ponto de vista jurídico, enquanto as empresas administram os serviços de gestão da

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instituição. Nesse modelo adotado em Minas Gerais, cujo contrato tem prazo de 27 anos (dois para a construção e 25 para a operação do presídio), o consórcio Gestores Prisionais Associados (GPA), ganhador da licitação, deve cumprir 380 indicadores de desempenho estabelecidos pelo governo do estado.

Na penitência de Ribeirão das Neves a busca pelo lucro também é visível como afirma Sacchetta (2014). Estipula-se que um preso custa aproximadamente R$1.300,00 reais à R$1.700,00 por mês, mas a PPP da região metropolitana de Belo Horizonte recebe do governo estadual R$ 2.700,00 por preso ao mês. Além do que, há inúmeros cortes em gastos básicos: os presos da PPP da Neves possuem apenas míseros 3 minutos para tomar banho, os que trabalham tem 3 minutos e meio, além disso há relatos de que a água dentro das celas chega a ser cortada durante algumas horas do dia.

Assim quando a iniciativa privada busca nos presos uma maneira de arquitetar grandes negócios bilionários, tornando-os fonte de rentáveis lucros do sistema capitalista, acabam denegrindo o sujeito em detrimento do objeto, ocorrendo uma objetificação do ser humano.

4 O PROBLEMA ÉTICO NA CONSECUÇÃO DE TRABALHO EM PRESÍDIOS PRIVADOS

Além da objetificação dos presos na busca incessante pelo lucro, há outros problemas envolvidos na questão das privatizações dos presídios. Um desses problemas são as questões éticas envolvidas na consecução de trabalhos dentro das prisões como bem lembrado por Faria (2000, p. 16-17).

Numa penitenciária pri va ti za da, por exemplo, em que o preso é convertido em mão-de-obra compulsória, de que modo enquadrar seus deveres, como condenado judicial, com seus direitos trabalhistas, enquanto operário? De que maneira enquadrar esses direitos e deveres previstos em

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lei com as normas internas de segurança impostas pelas firmas de vigilância e voltadas para os ganhos de produtividade? Qual o interesse dessas firmas, cujas ‘fábricas’ podem enfrentar problemas de flutuação de mão-de-obra, em ressocializar os presos que se revelarem excelentes trabalhadores em suas linhas de montagem?

Os trabalhos na prisão executados pelos presos deveriam ter a finalidade de ressocialização, de melhora na autoestima e da confiança. E, embora no Brasil o trabalho nas prisões não se dê de forma compulsória, é inegável que é um trabalho extremamente precarizado, no qual a exploração dos apenados se dá de forma mais intensa do que a do mercado de trabalho convencional, pois eles são privados de seus direitos.

CONCLUSÃO

Considera-se, em derradeira análise, que a temática abordada requer urgente e profunda análise por parte dos órgãos públicos competentes por se tratar de fundamental arma para a promoção da desigualdade social e da miséria penal, no sentido de apenas dissimular, na capa de um “bom” contrato de parceria público-privado, a manutenção de um sistema falido.

Assim, constitui, pois, auxílio de fundamental importância aprofundamento teórico e a análise de casos práticos, das situações atuais dos presídios privados e dos reflexos que estes vem causando em suas sociedades. Ao abranger a realidade do objeto de crítica deste trabalho, as críticas aqui formuladas serão de fácil análise, visto que a disparidade entre o que é abertamente proposto e as consequências reais do sistema penal não são de pouca monta.

Por fim, através da análise feita na presente comunicação, é bastante possível estabelecer que, na luta contra o sistema penal burguês e desinteressado, o avanço reside exatamente na

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possibilidade de caminhada para um sistema penal mais justo, alternativo e igualitário, muito distante do atualmente proposto.

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236II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

237“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

PARTE III

PAINÉIS TEMÁTICOS PÓS-GRADUAÇÃO

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1 A ENCRUZILHADA DO STF: A SENTENÇA DA CORTE-IDH NO CASO GOMES LUND E

OUTROS VS. BRASIL COMO OPORTUNIDADE DE SUPERAÇÃO DO RANÇO NACIONALISTA-AUTORITÁRIO EXPRESSO PELO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL

Júlia Lenzi Silva*Vinícius Fernandes Ormelesi**

INTRODUÇÃO

Em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte-IDH) proferiu sentença condenatória contra o Brasil no caso Gomes Lund e outros (“Caso Guerrilha do Araguaia”), atestando a inconvencionalidade material da Lei n. 6.683/79 no que tange à interpretação que assegura anistia aos agentes da repressão (civis e militares) responsáveis por graves violações aos direitos humanos cometidas durante o regime militar. No bojo da sentença condenatória, a Corte-IDH estabeleceu a obrigação de o Estado brasileiro proceder à investigação, persecução e eventual punição penal dos referidos agentes por crimes como de tortura, desaparecimento forçado e execução extrajudicial.

Ocorre que tal condenação no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos estabelece um conflito aparente com a decisão proferida em abril de 2010 pelo Supremo * Bacharela (2010) e Mestra em Direito (2013) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Professora de Direito Internacional, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais na Faculdade São Luís - FESL. [email protected]** Bacharel (2010) e Mestre em Direito (2013) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Professor de Filosofia e Introdução ao Estudo do Direito na Faculdade São Luís - FESL. [email protected]

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Tribunal Federal (STF)1 na ADPF n. 153. Na ocasião, o STF declarou que a interpretação dada ao parágrafo único do art. 1º da Lei n. 6.683/79 (BRASIL, 1979), que concede anistia aos agentes da repressão pelos crimes cometidos contra opositores políticos da ditadura militar brasileira, está em conformidade com a Constituição Federal de 1988, tendo sido por ela recepcionada.

A partir deste panorama, o presente trabalho busca demonstrar que o conflito entre as decisões das distintas ordens jurídicas (internacional e de direito interno) não é insolúvel e, ademais, que sua superação pode representar uma oportunidade histórica para que o STF livre-se do ranço “nacionalista-autoritário” de sua jurisprudência em matéria de direito internacional, inaugurando, assim, uma nova era, calcada no respeito aos compromissos internacionais assumidos em matéria de direitos humanos e no diálogo de Cortes.

Nesse sentido, como premissa teórica estrutural, é estabelecido um diálogo com os ensinamentos do jurista austríaco Hans Kelsen acerca do conceito de Ordenamento Jurídico e sua relação com a normatividade internacional. Tal esforço teórico tem como objetivo demonstrar que o posicionamento adotado pelo STF no âmbito da ADPF n. 153 não dialoga sequer com as bases do positivismo jurídico de matriz kelseniana, reeditando uma postura nacionalista calcada em um conceito roto de soberania estatal, que, ademais, destoa por completo da postura adotada por outros estados latino-americanos que também enfrentaram julgamentos acerca de suas leis de anistia (caso Barrios Altos x Peru; caso Almonacid Arellano x Chile).

Em um segundo momento, como proposta de superação do conflito aparente entre as distintas decisões, apresenta-se a teoria do duplo controle ou crivo dos Direitos Humanos, que destaca a necessidade de atuação em separado do controle de constitucionalidade (STF e juízos nacionais) e do controle de convencionalidade de matriz externa (Corte-IDH e demais órgãos

1 Brasil (2016).

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internacionais judiciais ou quase-judiciais em matéria de direitos humanos), com o intuito de combater o que André de Carvalho Ramos tem chamado de “truque de ilusionista”, que consiste, basicamente, no comportamento estatal de firmar compromisso perante o Direito Internacional, violar repetidamente suas normas e protestar, em sua defesa, que as estaria cumprindo “sob sua ótica peculiar” (RAMOS, 2005, p. 53-63).

Seguindo essa linha argumentativa, sustenta-se que não é suficiente que o Estado assine e incorpore formalmente Tratados Internacionais de Direitos Humanos - ainda que defenda possuírem eles status normativo diferenciado: supralegal ou mesmo constitucional para aqueles aprovados pelo procedimento especial previsto no art. 5º, §3º da CF, como definiu e sustenta o próprio Supremo no julgamento de caso envolvendo a prisão civil do depositário infiel2 - se, no que tange a sua interpretação, os Poderes estatais continuam a adotar uma postura nacionalista.

Como proposta de solução de tal contradição, apresenta-se o diálogo de Cortes como instrumental jurídico a ser utilizado previamente pelos tribunais nacionais. Todavia, quando já não for possível se valer deste porque o conflito aparente encontra-se, de fato, instaurado, propõe-se a adoção da teoria do duplo controle ou crivo dos direitos humanos, segundo a qual todo ato interno não deve guardar conformidade apenas com a Constituição (controle de constitucionalidade), se não também com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado (controle de convencionalidade). No caso da Lei de Anistia brasileira, destaca-se que ela sobreviveu intacta ao primeiro filtro,

2 “O fato, Senhores Ministros, é que, independentemente da orientação que se venha a adotar (supralegalidade ou natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos), a conclusão será, sempre, uma só: a de que não mais subsiste, em nosso sistema de direito positivo interno, o instrumento da prisão civil nas hipóteses de infidelidade depositária, cuide-se de depósito voluntário (convencional) ou trate-se, como na espécie, de depósito judicial, que é modalidade de depósito necessário.” (BRASIL, 2008).

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mas foi rechaçada no âmbito do controle de convencionalidade de matriz externa, o que, segundo a referida teoria, impediria sua aplicação em âmbito interno e determinaria, como consequência, o cumprimento da sentença da Corte-IDH pelo Brasil.

Tais propostas têm como intuito primevo fortalecer o sistema interamericano de direitos humanos e contribuir para o debate acerca da necessidade de transformação da postura isolacionista dos tribunais brasileiros, que seguem interpretando e decidindo com pouquíssima atenção à jurisprudência internacional, valendo-se da mística em torno do discurso “encantatório” (SÁNCHEZ RUBIO, 2011) dos direitos humanos e agravando sua crise de efetividade.

1 NACIONALISMO JURÍDICO BRASILEIRO E O DESAFIO DA TEORIA MONISTA DE KELSEN

A teoria de Kelsen3, conhecida como monismo jurídico, estriba-se em alguns pressupostos essenciais que devem ser extraídos de sua teoria do ordenamento jurídico ou dinâmica jurídica, em suas palavras (KELSEN, 2006). Ao contrário da análise estática do ordenamento jurídico, a qual estuda a norma isoladamente, o exame da dinâmica jurídica exige uma investigação inserida num contexto, que recebe o nome de ordenamento. Portanto, não é possível conceber a norma de forma independente. É segundo este pensamento que Kelsen constrói sua teoria relacional da validade jurídica 4, ou seja, uma cadeia lógico-sequencial na qual uma norma imputa

3 A obra de Kelsen é muito comentada, razão pela qual seria impossível nomear todos os estudiosos que se ocuparam de seu pensamento. Ver por todos Dias (2010). Para uma breve nota biográfica e da importância do pensamento kelseniano, consultar Ferraz Júnior (1981, p. 133-138).4 Tercio Sampaio Ferraz Junior classifica a teoria de Kelsen acerca da validade jurídica como sendo uma concepção sintática, numa analogia ao papel da sintaxe na linguística (FERRAZ JUNIOR, 2010)

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validade a outra e que conduz à ideia de dependência linear, já que uma norma só possui validade em virtude de existir outra norma anterior e hierarquicamente superior que a valida. Este raciocínio leva à necessidade de se estabelecer uma norma inicial que valide todas as demais. Esta norma-origem Kelsen chama de norma hipotética fundamental. 5

O monismo jurídico, compreendido como uma concepção unitária do ordenamento, é explicado, assim, pelo recurso à existência de apenas uma norma hipotética fundamental. Esta norma não se confunde com a constituição. Aquela é pressuposta, ao passo que esta é posta. A norma hipotética fundamental é um pré-requisito teorético e gnosiológico do sistema jurídico 6, sendo vazia de conteúdo, servindo apenas como um corolário lógico do Direito, entendido como um sistema racional de ordenação. Deste modo, qualquer que seja a ordem jurídica vigente, ela sempre se sustentaria na pressuposição deste princípio lógico. Essa é a perspectiva a partir da qual este estudo inicia a análise do problema proposto.

Kelsen foi um estudioso do direito internacional, sobretudo, durante o período em que viveu nos Estados Unidos da América. A defesa de um ordenamento jurídico uno

5 Para tanto, é preciso que se saliente que Kelsen entende o ordenamento de forma a possuir níveis, motivo pelo qual se considera a sua teoria uma teoria do escalonamento da ordem jurídica. Bobbio ressalta que a existência da norma fundamental vem a resplandecer a necessidade de união e coesão do ordenamento (BOBBIO, 1997).6 “A norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição da validade jurídica objetiva, fundamenta, porém, a validade de qualquer ordem jurídica positiva, quer dizer, de toda ordem coercitiva globalmente eficaz estabelecida por atos humanos. [De tal sorte que] a norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas a condição lógico-transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer função ético-política mas tão-só uma função teorético-gnoseológica.” (KELSEN, 2006, p. 242-243, grifo nosso).

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representa, na teoria kelseniana, uma opção teórica muito clara na obra do jurista austríaco, qual seja, a relação de simbiose entre Direito e Estado. 7 Um dos pressupostos fundamentais da teoria pura é o direito positivo. Kelsen não só afirma que a ciência jurídica deve se ocupar do direito positivo como estabelece que todo direito é positivo e, por isso, apenas é direito aquilo que provém da vontade do Estado. Ora, se o direito internacional surge justamente da vontade dos Estados, para Kelsen 8, não há sentido algum em se submeter as normas internacionais ao império do direito interno. Tudo é direito positivo, do que se conclui que provém da pressuposição da

7 Ao formular sua teoria, pode-se dizer que Kelsen se estriba em alguns pressupostos kantianos, a saber: a ciência é que define seu objeto de estudo; há uma autonomia entre a ciência jurídica e a unidade do direito; existe um método unívoco; há uma separação entre dois mundos, um da natureza ou do ser e outro do espírito ou do dever-ser (sein e sollen); existem princípios distintos para as ciências naturais e as ciências do espírito; há diferença entre validade (própria do dever-ser) e eficácia (própria do ser); é necessária uma aplicação da lógica; a ciência jurídica deve responder o como e o porquê do direito; e há a necessidade de um pressuposto uniformizador e auto-reprodutor do sistema (norma fundamental). Do mesmo modo, ele pretende uma união entre o kantismo e o positivismo, daí destacarem-se em sua obra a presença das seguintes premissas positivistas: todo direito é positivo, ou seja, obra de homens para homens; para se observar o direito, deve-se partir dos eixos: uma ordem coercitiva que em termos gerais seja efetiva; e a diferenciação ente o direito e o poder, entre o jurídico e o político (MORENO, 2009).8 "[...] somos levados de volta à norma geral que obriga os Estados a se conduzir de acordo com os tratados por eles firmados, uma norma comumente manifestada pela expressão pacta sunt servanda. [...] A norma fundamental do Direito internacional, portanto, deve ser uma norma que aprova o costume como fato criador de normas e que poderia ser formulada da seguinte maneira: 'os Estados devem se conduzir como têm se conduzido de costume'." (KELSEN, 2000, p. 525, grifo do autor).

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mesma norma hipotética fundamental, que valida toda a ordem jurídica seja interna ou externa.

Neste sentido, pode-se apontar que Kelsen era partidário de uma prevalência do direito internacional sobre o direito interno. Ele desenvolve uma argumentação no sentido de comprovar que o direito nacional e o internacional fazem parte de um mesmo sistema. Ele defende que uma norma de direito interno possa ser considerada inválida por contrariar uma norma de direito externo, contudo permanece no ordenamento e continua aplicável até que seja invalidada pelo órgão competente, da mesma forma como ocorre com uma norma inconstitucional. Portanto, a existência de conflito entre o direito nacional e o internacional não é suficiente para se afirmar um dualismo jurídico como querem alguns teóricos (KELSEN, 2000, p. 529).

Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que ele mesmo, embora expressasse a preferência por uma concepção unitária do Direito, não descuidava de lembrar a possibilidade de existirem mecanismos de internalização das normas internacionais no direito nacional, inclusive podendo a ordem estatal estabelecer uma hierarquia entre as fontes internas e as externas no ordenamento. Kelsen enfatiza que, neste caso, deve-se sempre recorrer ao que dispõe o direito positivo. Conforme a explicação do jurista austríaco, o direito positivo do Estado pode prever que, em caso de contradição entre o direito nacional e o internacional, o primeiro tenha prioridade ou o segundo, assim como pode prever que o direito internacional deva se transformar em direito interno antes de ser aplicado internamente. Ora, não é a natureza interna ou externa do direito, como querem os pluralistas, que determina qual postura a ser adotada, mas sim o conteúdo do direito positivo do Estado (KELSEN, 2000, p. 537-539).

Enfim, o próprio Kelsen, mesmo sendo defensor de um direito unitário, não desconhecia a realidade do direito

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internacional, marcada pela baixa coercibilidade de suas normas. No entanto, também era sabedor que a escolha entre a primazia do direito internacional sobre o nacional e vice-versa não é uma tarefa que possa ser alcançada pela ciência jurídica. Competiria à ciência descrever as duas situações e ajudar o jurista a identificar e a compreender os motivos da escolha feita pela opção política veiculada através do direito positivo (KELSEN, 2000, p. 543, 551). Assim, Kelsen evita indicar qual forma de monismo seria melhor, pois cairia num juízo de valor, o que sua teoria pura veda.

Avançando nessa ideia, a doutrina têm classificado a referida escolha como sistemas monistas ou dualistas e ponderando-os conforme sejam radicais ou moderados. Segundo Binenbojm (2000, p. 194), o critério de distinção entre uma posição monista e outra dualista está em serem o direito interno e o internacional interdependentes e relacionados (monismo) ou totalmente isolados e distintos (dualismo). Disto decorre que, num sistema dualista, existe a necessidade de as normas internacionais serem revalidadas por mecanismos do direito interno para poderem ter vigência internamente, o que não seria necessário num sistema monista. Em igual medida, esses dois sistemas comportam especificações.

Um sistema monista ainda pode ser radical, quando num eventual conflito de normas o direito internacional prevalece sobre o interno, ou moderado, quando existe uma equiparação hierárquica entre o tratado e a lei ordinária. Também, um sistema dualista pode ser extremado, quando há a necessidade de edição de lei para a incorporação das normas internacionais na ordem interna, ou moderado quando for possível prescindir da lei desde que o procedimento legal de incorporação seja respeitado (no Brasil seria a aprovação pelo Congresso Nacional com sanção presidencial) (BINENBJOM, 2000).

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Pelo que se percebe da análise do sistema brasileiro, identifica-se um sistema misto. Dualista na forma de incorporação das normas internacionais e monista na forma de resolver as controvérsias normativas. Esse hibridismo do direito pátrio levou parte da doutrina a classificar o direito brasileiro como sendo um "monismo nacionalista", nas palavras de Rezek (2005, p. 5). Todavia, parte considerável da doutrina é solene ao condenar essa opção, postulando muitas vezes pela primazia do direito internacional. 9

A crítica que aqui se endereça a essa sistemática adotada pelo Brasil reside na manutenção de uma postura refratária às transformações globais e às mais recentes teorias acerca da relação entre o direito interno e o direito internacional. O Supremo

9 Esta análise da doutrina é feita por Lupi. "Boa parte da doutrina, porém, observa com pesar a adoção que identifica como dualismo ou monismo nacionalista na jurisprudência brasileira, defendendo a mudança para o monismo com primazia o Direito Internacional." (2009, p. 31). Nesse sentido, pondera André de Carvalho Ramos que “Futuramente, é possível que, com a ratificação e incorporação interna em 2009 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, o STF seja influenciado pelo seu art. 27, que dispõe que nenhum Estado pode invocar dispositivos internos para não cumprir os comandos de um tratado, o que modificaria a paridade hoje existente entre tratados e leis ordinárias (RAMOS, 2014, p. 382)

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Tribunal Federal teve recentemente 10 oportunidade para analisar novamente a questão, porém, optou por manter o posicionamento tradicional da necessidade de incorporação e da submissão dos tratados à Constituição Federal. 11 Do que foi exposto, infere-se inclusive que, em termos de teoria jurídica, a visão da suprema corte brasileira não alcançou nem as diretrizes kelsenianas, formuladas no primeiro quartel do século passado. Isso sem nem

10 “Apesar dos ventos da redemocratização e do apelo da Constituição de 1988 à cooperação internacional (art. 4º,IX), não houve mudança da orientação do STF quanto à hierarquia normativa dos tratados em geral. A antiga orientação, consagrada no RE 80.004, de 1977, foi seguida e atualmente (2012) os tratados internacionais comuns incorporados internamente são equivalentes a lei ordinária federal. Consequentemente, não há prevalência automática dos atos internacionais em face da lei ordinária, já que a ocorrência de conflito entre essas normas deveria ser resolvida pela aplicação do critério cronológico (a normatividade posterior prevalece – later in time) ou pela aplicação do critério de especialidade.” (RAMOS, 2014, p. 382)11 "É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro.[...] No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro - não obstante o polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) -, está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional." (BRASIL, 1997).

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mencionar o tamanho atraso diante de teorias como o controle de convencionalidade. 12

A renitência em superar o modelo misto nacionalista-autoritário se faz mais dolorosa em matérias de interesse geral e de defesa da humanidade como são os direitos humanos. Mesmo melhorando o status das normas sobre direitos humanos na ordem nacional brasileira (supralegal ou emendas constitucionais), ainda assim a parcela dualista do sistema misto vigente exige a aprovação pelo Congresso, ou seja, não descarta a necessidade de meios de internalização dos dispositivos internacionais. Essa defesa absoluta da soberania

12 Nas palavras de Mazzuoli "A medida que os tratados de direitos humanos ou são materialmente constitucionais (art. 5°, § 2°) ou material e formalmente constitucionais (art. 5°, § 3°), é lícito entender que, para além do clássico 'controle de constitucionalidade', deve ainda existir (doravante) um 'controle de convencionalidade' das leis, que é a compatibilização da produção normativa doméstica com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país." (2009, p. 334, grifo do autor). Este também o entendimento esposado por Flávia Piovesan, a partir do conceito de bloco de constitucionalidade desenvolvido por J. J. Gomes Canotilho: “A Constituição de 1988 recepciona os direitos enunciados em tratados internacionais de que o Brasil é parte, conferindo-os natureza de norma constitucional. Isto é, os direitos constantes nos tratados internacionais integram e complementam o catálogo de direitos constitucionalmente previsto, o que justifica estender a esses direitos o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais [...] Os direitos internacionais, integrariam, assim, o chamado “bloco de constitucionalidade”, densificando a regra constitucional positivada no §2º do art. 5º, caracterizada como cláusula constitucional aberta.” (PIOVESAN, 2011, 107-110).

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estatal não condiz mais com os novos rumos das sociedades abertas pregadas pelos movimentos neoconstitucionalistas. 13

Ademais, como se verá na sequência, o obtuso nacionalismo brasileiro tem ainda ares de “cinismo institucionalizado”, pois mesmo quando tratados internacionais de direitos humanos vencem todos os obstáculos formais impostos pela vertente dualista do sistema misto e incorporam-se, de fato e de direito, em nosso ordenamento jurídico, o STF tem por costume não considerar suas disposições quando conflitantes com interesses nacionais. Tal postura restou bem demonstrada no âmbito do julgamento da ADPF n. 153 em relação à Convenção Americana de Direito Humanos, assinada, ratificada e incorporada pela ordem jurídica do Brasil em 1992 e, ainda assim, sequer mencionada no âmbito do referido acordão

13 Entre elas está a de Peter Häberle. Para ele é importante, para o constitucionalismo contemporâneo, saber distinguir o Estado Constitucional “cooperativo”, pensado segundo uma sociedade aberta, do “egoísta”. Segundo ele, “O conceito ‘Estado Constitucional’ somente pode ser esboçado aqui como o Estado em que o poder público é juridicamente constituído e limitado através de princípios constitucionais materiais e formais [...] É o Estado no qual o (crescente) poder social também é limitado através da ‘política de Direitos Fundamentais’ e da separação social (por exemplo, ‘publicista’) de poderes. O Estado Constitucional é o tipo ideal de Estado da ‘sociedade aberta’ [...] O Estado Constitucional Cooperativo trata, ativamente, da questão de outros Estados, de instituições internacionais e supranacionais e dos cidadãos ‘estrangeiros’: sua ‘abertura ao meio’ é uma ‘abertura ao mundo’ [...] O oposto típico ideal (em parte, ainda ‘típico real’) ao Estado Constitucional Cooperativo, é, dentro do espectro do tipo Estado Constitucional – o Estado Constitucional ‘egoísta’, individualista e, para fora, ‘agressivo’; extremamente a esse espectro, o Estado Totalitário com ‘sociedade fechada’ (ex. União Soviética) e/ou o Estado ‘selvagem’ (países em desenvolvimento como Uganda).” (HÄBERLE, 2007, p. 6-7, grifo do autor).

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que considerou recepcionada, na sua integralidade, a Lei de Anistia brasileira.

2 O DIÁLOGO DE CORTES COMO MECANISMO DE PREVENÇÃO E O “IMPOSSÍVEL RETORNO” NO CASO DA ADPF N. 153

O professor André de Carvalho Ramos destaca que, em função da descentralidade da ordem jurídica internacional - em que os próprios Estados são os produtores destinatários e aplicadores da norma internacional – no âmbito do dilema cumprir ou não cumprir os compromissos internacionais assumidos, os entes estatais acabam criando uma terceira possibilidade: descumpri-los, mas sustentar, perante o público interno e externo, que os cumpre “sob uma ótica particular”. Semelhante postura é designada de truque de ilusionista e, ainda segundo o professor, o principal mecanismo para revelá-lo e combatê-lo é a criação de mecanismos jurisdicionais de fiscalização e controle, nos quais as condutas dos entes estatais são avaliadas por juízes imparciais, que verificam se o Estado cumpre as obrigações previamente acordadas (RAMOS, 2005, p. 53).

Todavia, é sabido que os tribunais internacionais, para a doutrina majoritária, não possuem jurisdição obrigatória, ou seja, para atuarem, dependem da aceitação prévia e expressa por parte dos Estados. Esse é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme disposto no art. 62.1 da CADH, que trata da cláusula facultativa de jurisdição compulsória. Contudo, no que se refere ao Brasil, o pré-requisito formal para a atuação da Corte-IDH encontra-se preenchido desde 1998, uma vez que, em conformidade com o exposto no art. 7º do ADCT, o Estado

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brasileiro reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte por meio do Decreto Legislativo n. 89/90 em 03 de dezembro de 199814.

Tal reconhecimento é de suma importância para a dinâmica do controle de convencionalidade, que nada mais é que “[...] a análise da compatibilidade dos atos internos (comissivos e omissivos) em face das normas internacionais.” (RAMOS, 2014, p. 401). Nesse sentido, a partir do reconhecimento da jurisdição compulsória da Corte-IDH, para além do controle de constitucionalidade, as normas de direito interno no Brasil devem ser submetidas ao controle de convencionalidade de matriz interna, realizado pelos próprios tribunais nacionais, e, sobretudo, ao controle de convencionalidade de matriz externa, também designado de controle autêntico, que é atribuído aos órgãos criados pelos tratados internacionais e compostos por juízes imparciais para, exatamente, evitar que os próprios Estados sejam, ao mesmo tempo, ficais e fiscalizadores (RAMOS, 2014, p. 404). Nesse sentido, a própria Corte-IDH salienta que:

Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que lhe obrigada a zelar que os efeitos dos dispositivos da Convenção não sejam mitigados pela aplicação de leis contrárias a seu objeto, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos [...] o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de “controle de convencionalidade

14 Existe controvérsia doutrinária no tocante a data de início da jurisdição obrigatória da Corte-IDH sobre o Brasil pois, embora o decreto legislativo seja de 1998, curiosamente, ele só foi promulgado pelo Poder Executivo em 2002. Nesse sentido, este trabalho adota o entendimento de que a partir da data do decreto legislativo (ato de ratificação do tratado), já vigora o compromisso em âmbito internacional, sendo que o decreto presidencial de promulgação tem importância, segundo a atual jurisprudência do STF, apenas no âmbito da validade interna. Por isso, sustenta-se que, desde 1998, a Corte-IDH exerce jurisdição sobre o Brasil.

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das leis” entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana (CORTE-IDH, 2006, grifo nosso).

Da afirmação de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos é a intérprete última da CADH, constata-se que, se às cortes constitucionais internas ou aos tribunais superiores incumbe o controle de constitucionalidade e a última palavra judicial no âmbito interno dos Estados, à Corte-IDH cabe o controle de convencionalidade de matriz externa e a última palavra quando o tema encerre debate sobre os Direitos Humanos. É o que decorre do reconhecimento formal da competência jurisdicional da Corte por um Estado, como fez o Brasil, segundo o entendimento de Roberto Caldas, juiz ad hoc nomeado pelo Brasil para o julgamento do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

Ocorre que, no que tange ao julgamento da ADPF n. 153, ao declarar a recepção integral da Lei de Anistia pela Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal desconsiderou por completo suas obrigações internacionalmente assumidas. Nesse sentido, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, o Brasil violou o artigo 8.1 da CADH, e também o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento. Pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, o Brasil descumpriu também o artigo 1.1 da Convenção (CORTE-IDH, 2010, p. 64). Em virtude disso, o Estado brasileiro acabou condenado no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que refutou o principal argumento utilizado pelo STF para declarar que a interpretação dada ao parágrafo único do art. 1º da Lei n. 6.683/79 está em conformidade com a Constituição

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Federal de 1988, qual seja, a de que se trata de lei que tem como origem em um “pacto político-social” 15.

Tal quadro nos conduz a situação da existência de uma decisão, em âmbito interno, da mais alta corte jurisdicional atestando a validade da interpretação da Lei n. 6.683/79 que concede anistia aos agentes da repressão pelos crimes cometidos contra opositores políticos da ditadura militar brasileira, enquanto que, na seara internacional, subsiste condenação ao Estado brasileiro pela Corte-IDH determinando que a Lei n. 6.683/79 não continue a ser um obstáculo para a persecução penal das graves violações de direitos humanos perpetradas pelos agentes da repressão contra os opositores políticos, o que configura, pois, um conflito aparente.

Destaca-se que tal conflito aparente poderia ter sido evitado caso o Supremo Tribunal Federal houvesse se desincumbido da tarefa de proceder ao controle de convencionalidade de matriz interna, que restaria, ademais, facilitado pela adoção do método do diálogo de Cortes (RAMOS, 2009), o qual se caracteriza pela fertilização cruzada e pelo uso interconectado de fundamentos entre os diferentes órgãos que tutelam os compromissos em matéria de direitos humanos. Segundo André de Carvalho Ramos,

15 “Quanto à alegação das partes a respeito de que se tratou de uma anistia, uma auto-anistia ou um “acordo político”, a Corte observa, [...] que a incompatibilidade em relação à Convenção inclui as anistias de graves violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas “autoanistias”. Além disso, como foi destacado anteriormente, o Tribunal, mais que ao processo de adoção e à autoridade que emitiu a Lei de Anistia, se atém à sua ratio legis: deixar impunes graves violações ao direito internacional cometidas pelo regime militar. A incompatibilidade das leis de anistia com a Convenção Americana nos casos de graves violações de direitos humanos não deriva de uma questão formal, como sua origem, mas sim do aspecto material na medida em que violam direitos consagrados nos artigos 8 e 25, em relação com os artigos 1.1. e 2 da Convenção”. (CORTE-IDH, 2010, p. 65, grifo nosso).

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para que se determine a existência de um “diálogo” efetivo é necessário que haja: (1) menção a existência de dispositivos internacionais convencionais ou extra-convencionais de direitos humanos vinculantes ao Brasil sobre o tema, (2) a menção à existência de caso internacional contra o Brasil sobre o objeto da lide e consequências disso reconhecidas pelo Tribunal; (3) a menção à jurisprudência anterior sobre o objeto da lide de órgãos internacionais de direitos humanos aptos a emitir decisões vinculantes ao Brasil; (4) o peso dado aos dispositivos de direitos humanos e à jurisprudência internacional.

Nesse sentido, houvesse o Supremo se proposto a realizar o diálogo de Cortes, no âmbito do acórdão proferido em sede do julgamento da ADPF n. 153, deveria, ao menos, ter citado a existência do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil em processamento perante a Corte-IDH. Também deveria ter apontado a jurisprudência desse tribunal internacional em matéria de leis de anistia, como o caso Barrios Altos vs. Peru (2001), paradigmático por estabelecer a invalidade das leis de anistia que impliquem em impunidade de agente responsáveis por crimes de lesa-humanidade (tortura, desaparecimento forçado, execuções sumárias ou extrajudiciais, genocídio, etc.), e também o Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile (2006), que fixou o entendimento de que não basta a reparação material (indenização) e simbólica (o que a Comissões Nacionais da Verdade intentam realizar), sendo imprescindível que haja persecução penal. Por outro lado, ainda no exercício do diálogo de Cortes, o STF poderia ter mencionado que, por exemplo, Argentina e Uruguai também foram condenados a rever suas leis de anistia no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e acataram as recomendações do Primeiro Relatório, procedendo à investigação, persecução penal e punição dos agentes da ditadura pelos crimes de lesa humanidade perpetrados contra os opositores políticos, motivo pelo qual não tiveram seus casos apresentado à Corte-IDH. (CORTE-IDH, 2010, p. 55).

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Todavia, o STF optou por não realizar o diálogo de Cortes, fechando os olhos e virando as costas a toda jurisprudência internacional existente sobre a temática da anistia e cristalizando entendimento isolado, que traduz o ranço nacionalista-autoritário já esposado na primeira parte deste trabalho. O acordão da ADPF n. 153 foi publicado em abril de 2010 e, em novembro daquele mesmo ano, foi publicada a sentença condenatória da Corte-IDH no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, criando esse imbróglio jurídico aparentemente insolúvel.

“Inês é morta”. Já não há como proceder à solução preventiva do diálogo de Cortes, encontrando-se o STF em uma “encruzilha jurídica”: ou adota a teoria do duplo controle ou crivo dos direitos humanos no julgamento da ADPF n. 320, ainda pendente, ou corre sério risco de colocar o Brasil em situação de descumprimento de sentença judicial emanada da Corte-IDH, o que pode gerar a suspensão e até mesmo a expulsão do país do sistema interamericano de direitos humanos, fato impensável no âmbito da vigência de uma Constituição que caracteriza o Estado brasileiro como “Democrático de Direito”.

3 A TEORIA DO DUPLO CONTROLE OU CRIVO DOS DIREITOS HUMANOS E A OPORTUNIDADE HISTÓRICA CONCEDIDA AO STF

Após a prolação da sentença do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil pela Corte-IDH, doutrina e jurisprudência brasileiras estabeleceram verdadeiro “cavalo de batalha” em torno da possibilidade ou não de compatibilização da sentença internacional com o acordão nacional proferido em sede do julgamento da ADPF n. 153. O embate teórico persiste e, por isso, este trabalho julgou importante trazer a lume as contribuições do professor André de Carvalho Ramos acerca da teoria do duplo controle ou crivo dos direitos humanos como solução jurídica para a questão, notadamente por seu caráter “conciliatório” que, ao reconhecer a atuação em separado do controle de

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constitucionalidade (STF e juízos nacionais) e do controle de convencionalidade internacional (Corte-IDH e outros órgãos de direitos humanos do plano internacional), permite que se dê cumprimento à sentença internacional sem mácula da soberania do Estado brasileiro.

Inicialmente é preciso destacar que, ainda que o Brasil tenha expressamente aceito a cláusula facultativa de jurisdição compulsória, a atuação da Corte-IDH - bem como de qualquer outro tribunal internacional que o Brasil venha a reconhecer ou já tenha aderido - se dá de maneira subsidiária, uma vez que o dever de efetivar direitos humanos decorre, num primeiro instante, do próprio conteúdo da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, constata-se que a atuação dos mecanismos judiciais internacionais dá-se propositalmente quando o Estado falha no seu dever de proteção.

Ainda quanto à questão, é oportuno ressaltar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas decorre de um princípio básico do direito internacional afeto à responsabilidade internacional dos Estados. Segundo este princípio, os Estados devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Ademais, como já salientado pela própria Corte-IDH e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, “[...] os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais.” (CORTE-IDH, 2010, p. 66).

Vigente, pois, o processo de internacionalização do controle dos atos estatais referentes aos direitos humanos, constata-se que, para subsistir como norma válida e eficaz, a norma jurídica de direito interno deve passar por dois filtros: o de constitucionalidade, quando sua validade é confrontada com o disposto no âmbito da Constituição Federal de cada Estado; e o de convencionalidade, quando é confrontada com os compromissos convencionais internacionais assumidos pelo país em questão. No caso do Brasil, para subsistir, portanto, a norma jurídica

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interna não deve mais apenas guardar concordância com a jurisprudência do STF, órgão garantidor da supremacia e unicidade constitucional, mas também com o teor da jurisprudência dos tribunais internacionais aos quais o Brasil tenha voluntariamente se submetido. Com isso, evita-se a ruptura e estimula-se a convergência em prol dos direitos humanos (RAMOS, 2014, p. 409). Daí o professor André de Carvalho Ramos falar em duplo controle ou crivo dos direitos humanos.

No caso da anistia concedida aos agentes da ditadura civil-militar brasileira, verifica-se que, no âmbito da ADPF n. 153 houve controle de constitucionalidade, enquanto que no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil houve controle de convencionalidade. Sendo assim, conforme a teoria supramencionada, para subsistir, a anistia aos militares:

“[...] deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destroçada no controle de convencionalidade.” (RAMOS, 2012, p. 521-522).

Portanto, em resumo, pode-se afirmar que não subsiste a interpretação judicial que assegura anistia aos militares posto que é inconvencional, apesar de constitucional ou, embora constitucional, inconvencional.

Nesse sentido, a ADPF n. 32016, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que trata exatamente da inconvencionalidade da lei de anistia brasileira, bem como o recente parecer emitido pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, modificando o entendimento do Ministério Público Federal e adotando a perspectiva do duplo controle ou crivo dos direitos humanos (BRASIL, 2014), mostram-se como oportunidade histórica para que o Supremo Tribunal Federal, em sua nova composição e presidência, reveja seu posicionamento isolado no âmbito da América Latina e, de fato, reconheça a 16 Informações e acompanhamento processual por meio de Brasil (2016).

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legitimidade da atuação jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos como autêntica intérprete da CADH, já que, de direito, já houve o reconhecimento em 1998, quando da assinatura expressa da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória.

A questão controversa a respeito de uma suposta ofensa à soberania dos veredictos do STF, em razão do cumprimento da sentença condenatória emanada da Corte-IDH contra o Brasil, restou rechaçada pelo Procurador Geral da República:

Não se trata, pois, de considerar que a Corte IDH exerça papel de quarta ou quinta instância adicional ou sobreposta ao processo interno. Sua missão é distinta: zelar pela observância, por parte dos Estados que integram o sistema interamericano de direitos humanos, das obrigações assumidas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e em outras convenções regionais nesse campo. Nesse plano, todo ato estatal, normativo ou material, de qualquer de seus órgãos ou entes federativos, sujeitar-se-á ao escrutínio da jurisdição internacional, em especial sob o enfoque do controle de convencionalidade. (BRASIL, 2014, p. 65)

Contata-se, portanto, conforme defendido por este trabalho desde o princípio, que o alarde doutrinário acerca do conflito entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional na seara dos direitos humanos é não só aparente - posto cuidarem as distintas ordens de duas espécies não sobrepostas de controle (constitucionalidade e convencionalidade) -, como também político-ideológico, representando, em verdade, um posicionamento teórico retrógrado que, apegando-se a um conceito roto de soberania estatal, não reconhece os avanços na tentativa de construção de sistemas de proteção, fiscalização e controle do dever estatal de efetivação de direitos humanos. Nesse sentido, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 320 representará a tomada de posição do Poder Judiciário

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brasileiro frente aos compromissos internacionais: contribuirá para a afirmação e reafirmação dos direitos humanos como paradigma ético mínimo para atuação dos Estados americanos ou, ao contrário, referendará a tradição nacionalista, que confere à raposa as chaves do galinheiro?

CONCLUSÃO

Do que foi exposto neste trabalho, resta salientar o momento oportuno em que se encontram os julgadores do STF, uma vez que têm nas mãos a possibilidade de operar uma verdadeira virara de paradigma em sede de direito internacional dos direitos humanos. Mesmo Kelsen, fiel defensor da neutralidade da ciência jurídica, nunca condenou o papel honorário da doutrina em descrever as várias alternativas e caminhos que se pode tomar dentro do que autoriza o direito positivo. E essa descrição também opera no sentido de denunciar um problema latente, desnudando a função política da corte suprema para com a sociedade brasileira e a comunidade internacional. O direito exige uma resposta, espera-se com este estudo despertar a comunidade acadêmica para a importância dessa decisão vindoura.

Acredita-se ter ficado claro o atraso teórico que a jurisprudência do STF carrega em termos de questões relativas à aplicação do direito internacional. Do mesmo modo, demonstrou-se como tal anacronismo jurídico não mais encontra guarida em face da moderna teoria neoconstitucionalista e da urgência que a efetivação dos direitos humanos reclama. Tal assertiva se convalida ainda mais quando se compara a incipiente atuação da corte brasileira com a jurisprudência da Corte-IDH e com a postura de outros países, vizinhos do Brasil e também marcados por um passado histórico de ditadura civil-militar, que já venceram a pecha autoritária imperante no discurso jurídico nacional.

Assim, consigna-se, além das tratativas já abordadas no decorrer deste artigo, a necessidade de se repensar criticamente

261“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

todas as decisões judiciais a luz das diretrizes internacionais sobre direitos humanos, algo que a doutrina conhece por "controle de convencionalidade". Em suma, o Estado soberano, autônomo e isolacionista, deve perecer para dar lugar ao Estado cooperativo, aquele que atua, na esfera internacional, no sentido de buscar o progresso mútuo dos povos, a solução pacífica dos litígios e o respeito pelos direitos humanos e, na órbita interna, trabalha observando as resoluções internacionais e fazendo valer os tratados nos quais é signatário. A rigidez institucional interna do Estado liberal clássico já se desvaneceu perante a liquidez da pós-modernidade, está na hora de ser desmanchada externamente também.

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265“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

2 A REFORMA DO JUDICIÁRIO E A RESPONSABILIDADE DOS MAGISTRADOS

Luciana Campanelli Romeu*

INTRODUÇÃO

Há muito tempo se discute a necessidade de mudanças estruturais no Judiciário, no sentido de inseri-lo em um contexto de transparência, prestação de contas à sociedade e responsabilização dos magistrados pelos atos realizados no exercício da função.

Os juízes ainda são praticamente intocáveis, gozando de prerrogativas que nenhum outro cargo público possui. Ocorre que, parece, a princípio, inadmissível qualquer forma de intervenção na autonomia financeira, administrativa e funcional deste, bem como nas garantias de independência e imparcialidade de seus membros, pois a intromissão entre os três Poderes Republicanos pode ser perigosa e antidemocrática.

* Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito do Estado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF). Foi bolsista pela CAPES durante o mestrado. É Professora de Direito na UNIESP. Foi orientadora da Pós-graduação em Direito do Curso Luiz Flávio Gomes (LFG), Professora de Direito na Faculdade de Educação São Luís de Jaboticabal, no Centro Universitário Moura Lacerda, e, no curso preparatório para OAB da PROORDEM. Foi Conciliadora do Juizado Especial Cível. É autora de diversos artigos e capítulos de livros publicados, e, advogada. E-mail: [email protected]

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A Emenda Constitucional n. 451, conhecida como Reforma do Judiciário procurou realizar alterações no sentido de garantir maior credibilidade neste Poder, seja em relação à eficiência e eficácia da prestação de suas atividades, seja em relação à fiscalização da atuação de seus membros. Ela alterou previsões constitucionais quanto ao conteúdo a ser disciplinado pelo Estatuto da Magistratura, criou o Conselho Nacional de Justiça e previu o efeito vinculante.

O artigo aborda, pois, estas mudanças, notadamente as alterações tendentes a instituir a fiscalização e consequente responsabilização dos membros do Poder Judiciário pelos atos realizados no exercício das suas funções. A abordagem verifica a natureza da função jurisdicional, inclusive seus novos paradigmas, a legitimidade democrática dos magistrados, as garantias do Poder Judiciário, e, a Reforma do Poder Judiciário, seus objetivos, suas mudanças e o impacto das mesmas no que diz respeito à fiscalização e respectiva responsabilização dos magistrados pelos atos realizados no exercício de suas funções.

Quase dez anos depois da entrada em vigor da Emenda n. 45, diante entendimentos jurisprudenciais sobre a atuação e competência do Conselho Nacional de Justiça, notadamente, é possível fazer um balanço sobre essas mudanças.

O método de pesquisa adotado é o dedutivo. Este parte de situação geral para explicar situação particular e assim, chegar à conclusão da afirmativa pretendida.

Dessa forma, partir-se-á da análise da natureza da função jurisdicional, da legitimidade democrática dos magistrados e da necessidade da fiscalização e responsabilização dos membros do Poder Judiciário por seus atos. Abordar-se-á as garantias do Poder Judiciário e a Reforma do Poder Judiciário, seus objetivos,

1 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo, 2012. p. 10. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/artigos_2o_2012/Prof. Monica_-Reforma _do_ Judiciario _artigo_completo.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013.

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suas mudanças e o impacto das mesmas no que diz respeito à fiscalização e respectiva responsabilização dos magistrados pelos atos realizados no exercício de suas funções.

Como amparo ao método escolhido, utiliza-se o estudo dogmático jurídico. Tal processo metodológico estuda a lei, a doutrina e a jurisprudência, interpretando as normas jurídicas e investigando a sua intertextualidade com outras afins, sempre na busca de uma aplicação equitativa, sistemática, descritiva, valorativa e prática.

1 DESENVOLVIMENTO

O Poder Judiciário está previsto no artigo 2º, da atual Constituição como um Poder do Estado2, e assim o é considerado pelo Supremo Tribunal Federal:

Os antigos regimentos lusitanos se não confundem com os regimentos internos dos Tribunais; de comum eles têm apenas o nome. Aqueles eram variantes legislativas da monarquia absoluta, enquanto estes resultam do fato da elevação do Judiciário a Poder do Estado e encontram no Direito Constitucional seu fundamento e previsão expressa. O ato do julgamento é o momento culminante da ação jurisdicional do Poder Judiciário e há de ser regulado em seu regimento

2 Constituição Federal (CF), Artigo 2º “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Anexo. p. 1. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/index. shtm>. Acesso em: 2013).

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interno, com exclusão de interferência dos demais Poderes.3

Ao Poder Judiciário compete a função jurisdicional do Estado, cabendo-lhe aplicar a lei ao caso concreto. Esta função possui proximidade com a função administrativa,4 mas dela se difere na forma e no resultado da atuação “[...] aplicação da lei ao caso concreto.” O Judiciário só pode agir mediante provocação, obedecendo ao devido processo legal. Já o Executivo, via de regra, age de ofício. As decisões do Judiciário fazem coisa julgada, o que não acontece com as decisões do Executivo.

Dentro da função jurisdicional, foi conferido ao Poder Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal, a função de seu guardião da Constituição,5 ou ainda, nos dizeres de Uadi Bulos, de “oráculo da Constituição”.6

Ocorre que, a Constituição Cidadã, Constituição analítica, elaborada no pós-ditadura, com a intenção de melhor proteger os cidadãos contra as “garras do Estado”, previu extenso rol de direitos fundamentais, bem como direitos sociais. Este extenso rol aliado à indeterminação semânticas e pluralismo axiológico7 de grande parte das normas constitucionais, resultou numa aplicação direta pelo Poder Judiciário da Constituição, no

3 STF: ADI 1.105-MC, Rel. Min. Paulo Brossard, julgamento em 3-8-1994, Plenário, DJ de 27-4- 2001. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ portal/principal/principal.asp>. Acesso em: 2013.4 Eis o entendimento de: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 245-246.5 Constituição Federal, Artigo 102. “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: [...].”6 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1041.7 Inclusive é caracterizada pela previsão de muitos princípios em detrimento de regras.

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uso corriqueiro do princípio da proporcionalidade e assim, em novas técnicas de hermenêutica, ao invés da subsunção.

Houve, pois, um crescimento da importância do Poder Judiciário. Situações socialmente relevantes são decididas por magistrados, e muitas vezes, pelo Supremo Tribunal Federal com efeitos erga omnes, quando do julgamento de ações propostas por grupos políticos ou sociais, perdedores no procedimento legislativo.

Sobre sua função de guardião da Constituição, decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF):

A defesa da Constituição da República representa o encargo mais relevante do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal – que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte – não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas. O inaceitável desprezo pela Constituição não pode converter-se em prática governamental consentida. Ao menos, enquanto houver um Poder Judiciário independente e consciente de sua alta responsabilidade política, social e jurídico-institucional.8

Perante esta realidade, pode-se falar em “[...] um novo paradigma tanto na teoria jurídica quanto na prática dos

8 STF: ADI 2.010-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-9-99, Plenário, DJ de 12-4-02.

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tribunais”9 que, no Brasil, se desenvolveu com a Constituição de 1988. Eis o "neoconstitucionalismo", o qual envolve diversos fenômenos, os quais são elencados de forma sucinta por Daniel Sarmento:

(a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais freqüente a métodos ou "estilos" mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; (c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.10

Dessa forma, de simples Poder "[...] boca que pronuncia as palavras da lei", como a ele se referia Montesquieu, o Poder Judiciário passo a configurar o poder mais importante no arcabouço institucional do Estado contemporâneo.11 Inclusive, fala-se em ativismo judicial, que para Elival da Silva Ramos

Não se trata do exercício desabrido da legiferação (ou de outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias, bem delimitadas, pode vir a ser deferido pela Constituição aos órgãos superiores

9 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/sist/conteudo/lista_conteudo.asp?FIDT_ CONTEUDO=56993>. Acesso em: 14 ago. 2013.10 Ibid.11 Ibid.

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do aparelho judiciário, e sim da descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros poderes.12

A legitimidade democrática dos representantes dos Poderes está prevista na Constituição nos moldes estabelecidos pelo Poder Constituinte Originário. Ela foi designada através da escolha dos que representarão os Poderes Constituídos, havendo maior ou menor participação do povo mediante voto.

A escolha dos representantes do Poder Executivo e dos representantes do Poder Legislativo no Brasil é feita por eleições, mediante voto do povo (participação popular). Nessa disputa nas eleições, como observa Monica Caggiano, a infidelidade partidária é a regra, caracterizando verdadeira “dança das cadeiras” entre os políticos.13

Já a escolha dos componentes do Poder Judiciário é realizada mediante concurso, como vimos acima e a dos membros do Supremo Tribunal Federal é feita pelo Presidente da República e aprovada pelo Senado. Diante estes fatos, é possível questionar a legitimidade democrática do Judiciário como construtor de políticas públicas, especialmente o STF, o qual, na

12 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 116-117.13 CAGGIANO, Monica Herman Salem. A jurisprudência constitucional sobre matéria eleitoral. São Paulo, 2008. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos_2008/ Controle_de_consti_2008_processo_constitucional_publ_mackenzie.pdf>. Acesso em: 15 maio 2013..

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maioria dos casos, é responsável pela decisão final sobre assuntos constitucionais.14

Alexander Hamilton, ao discorrer sobre a organização do Poder Judiciário segundo o regime que se propunha, tece as seguintes considerações:

A liberdade não tem nada a temer tendo um Judiciário independente, mas pode perder tudo se ele tiver dependência de qualquer um dos outros ramos do poder. [...] Aceitando que os tribunais devem ser considerados baluartes de uma Constituição limitada contra as investidas do Legislativo, temos um forte argumento a favor da estabilidade nos cargos judiciais, pois nada promove mais o espírito independente dos juízes, fator esse essencial ao cumprimento de sua árdua tarefa. A independência dos juízes é também requisito da guarda da Constituição e dos direitos dos indivíduos que são ameaçados pelos efeitos de perturbações que, às vezes, se disseminam entre o povo. [...] Se ainda considerarmos os defeitos de caráter dos seres humanos, torna-se bem menor o número das pessoas que reúnem a necessária integridade e o necessário conhecimento. Essas considerações mostram que o governo não dispõe de muitas opções para o recrutamento de juízes

14 Renato Nalini defende a legitimação democrática do juiz concursado nos seguintes pilares: mérito, fundamentação das decisões e cumprimento de sua missão constitucional. (NALINI, Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millennium, 2006. p. 44-48). Alexandre de Moraes, ao mencionar Otto Bachof, afirma a legitimidade do Judiciário, já que, como ele, os demais Poderes também possuem representatividade indireta e relativa. (MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpreta e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 1319). Em sentido contrário: LEAL, Roger Stiefelmann. A judicialização da política. Revista dos Tribunais: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, ano 7, n. 29, p. 230-237, out./dez. 1999.

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capazes e como a nomeação por prazo determinado naturalmente desencorajará os que deverá deixar um lucrativo escritório de advocacia para aceitar o cargo, resultaria em entregar a administração da justiça nas mãos de pessoas menos qualificadas para exercê-la com competência e dignidade.15

Perceba que Alexander Hamilton destaca três características do judiciário que considera essencial para a democracia: independência, estabilidade e nomeação por aptidão técnica. Dieter Grimm também traça algumas linhas a respeito:

As cortes são, igualmente, especializadas em jurisdição constitucional. O Direito é a sua primeira preocupação. A autonomia e a independência dos Tribunais relativamente aos atores políticos permite que as cortes determinem o significado de determinado texto legal através de um critério profissional, que não seja afetado por programas políticos ou imperativos ditados por eleições contra outros candidatos.16

Por outro lado, Robert Dahl, ao levantar questionamento acerca da afirmada característica contra majoritária da Suprema Corte dos Estados Unidos, também infirma a relativa presunção de legitimidade que se tinha a respeito do poder judiciário até então:

Afirmar que a Corte sustenta preferenciais minoritárias contra maiorias é negar que soberania popular e igualdade política, pelo menos no sentido tradicional, existem nos Estados Unidos; e afirmar que a Corte deve agir dessa maneira é

15 DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a National Policy-Maker. Journal of Public Law, [New York], n. 6, p. 279, 1957.16 GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, ano 1, n. 4, p. 11, out./dez. 2006.

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negar que soberania popular e igualdade política devam prevalecer nesse país.17

Sobre as garantias do Poder Judiciário, é possível visualizar duas espécies, quais sejam as garantias institucionais e as garantias funcionais ou de órgãos. As primeiras têm a função de resguardar a independência deste poder e podem ser divididas em garantia de autonomia administrativa e garantia de ordem financeira. As segundas visam possibilitar a auto-organização do Poder Judiciário.

As garantias funcionais constituem prerrogativas funcionais, são irrenunciáveis, e, assim, não configuram privilégios pessoais. Elas se dividem em garantias de independência dos órgãos judiciários e as garantias de imparcialidade dos órgãos judiciários.

As primeiras são conferidas aos juízes e dizem respeito à vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos seus subsídios, conforme previsto no art. 95 da CF.

A vitaliciedade será adquirida depois dois anos de exercício aos magistrados. Ela implica no fato de que a perda do cargo só poderá acontecer por meio de sentença judicial transitada em julgado. Ela18caracteriza garantia do cidadão de que será julgado por magistrado imparcial, não sujeito a pressões,

17 DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a National Policy-Maker. Journal of Public Law, [New York], n. 6, p. 283, 1957.18 Vale observar que o ingresso na carreira por meio se concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exige do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica, obedecendo as nomeações, à ordem de classificação (art. 93, I, da CF, alterado pela EC 45/2004). Configura etapa obrigatória do processo de vitaliciamento do juiz, a freqüência em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados (art. 93, IV, da CF, alterado pela EC 45/2004).

275“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

e, não um privilégio do juiz.19 A vitaliciedade só é garantida aos magistrados, os demais servidores também podem perder o cargo também por meio de processo administrativo.

A inamovibilidade significa que o magistrado só mudará de sua sede de atuação diante remoção, promoção ou de maneira voluntária, ressalvadas as situações de interesse público, perante deliberação pela maioria absoluta dos membros do tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada a ampla defesa (art. 93, VIII, CF).

Quanto à irredutibilidade dos subsídios, vale mencionar que, atualmente, foi estendida aos servidores públicos civis e militares.

Já as garantias de imparcialidade dos órgãos judiciários fazem menção às situações de vedações estipuladas no artigo 95, parágrafo único, da Constituição, quais sejam: exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério; receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo; dedicar-se à atividade político-partidária; receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração - quarentena.

Vistas as garantias dos membros dos magistrados abordaremos as mudanças da Reforma do Judiciário, de modo a analisarmos o Conselho Nacional de Justiça, sua composição e competência, no sentido de fiscalizar e responsabilizar os magistrados. Vejamos.

Depois de muita discussão, foi aprovada, promulgada e publicada, em 2004, a Emenda Constitucional n. 45, conhecida como a Reforma do Poder Judiciário. A intenção desta alteração constitucional foi modernizar a máquina jurisdicional, garantindo-

19 Cf. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 463.

276II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

lhe eficiência e eficácia das suas funções, bem como, lisura no desempenho das suas atividades.

Como afirma Mônica Caggiano, [...] circunscreveu o legislador sua atuação incisões precisas sobre o Poder Judiciário, perseguindo praticamente três objetivos: (1) conferir celeridade a sua ação, como anunciado pelo atual inciso LXXVIII, do artigo 5º, com a estréia do standard da razoável duração do processo; (2) torna-lo imune à ação corrosiva, assegurando lisura na prestação jurisdicional e evitando os repetidamente denunciados desmandos; (3) blindar o Supremo Tribunal Federal, modelando-o de forma a assumir, na ordem jurídica brasileira, a postura de Corte Constitucional.20

Quanto à lisura na prestação jurisdicional, além da criação do Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B), do Conselho da Justiça Federal (art. 105, parágrafo único, II, CF) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (art. 111-A, § 2º, II, CF), o constituinte previu a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, no âmbito da Justiça comum e trabalhista. Também foi vedado o recebimento de auxílio ou contribuição por magistrado (art. 95, parágrafo único, IV, CF), bem como, instituída a quarentena para os membros da magistratura (art. 95, parágrafo único, CF).

Instituiu-se um novo requisito de aferição do merecimento dos membros do Poder Judiciário, qual seja, produtividade e presteza no exercício da jurisdição. (art. 93, II, “c”, CF.). Estabeleceu-se que não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal (art. 93, II, “e”, CF.). Também houve alteração quanto às 20 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo, 2012. p. 3. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/artigos_2o_2012/Prof. Monica_-eforma_ do_Judiciario_artigo_completo.pdf. p. 10>. Acesso em: 10 ago. 2013.

277“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

possibilidades de remoção, de aposentadoria e de disponibilidade do magistrado, por interesse público, sendo o quórum reduzido para maioria absoluta. Quando inerte o órgão de origem, outorgou-se ao Conselho Nacional de Justiça esta competência (art. 93, VIII, CF).

A Emenda n. 45 aboliu o recesso forense (art. 93, XII, CF), passou a prever a exigência de proporcionalidade do número de juízes em relação à efetiva demanda judicial e à respectiva população (Art. 93, XIII, CF), a possibilidade de delegação para atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório aos servidores (art. 93, XIV, CF), da determinação de imediata, a imediata distribuição de processos em todos os graus de jurisdição (art. 93, XV, CF).

Em relação à “blindagem do Supremo Tribunal Federal”, a Reforma do Judiciário previu o requisito de admissibilidade “repercussão geral” para o recurso extraordinário, e, o efeito vinculante das decisões nesse âmbito. A Emenda n. 45 atribuiu ainda, efeito vinculante às decisões em ações diretas de inconstitucionalidade, bem como previu a súmula vinculante21.

O aferimento de efeito vinculante às decisões do Excelso Pretório, ao mesmo tempo que contem a o ingresso de ações versando sobre situações parecidas, gera maior repercussão em relação à decisão do Tribunal, o que pode ser perigoso quando se tratar de ativismo judicial.

21 De acordo com o artigo 103-A, da Constituição Federal, “[...] o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” As súmulas do Supremo Tribunal Federal existentes antes da Emenda n. 45, só produzirão efeito vinculante após sua confirmação por 2/3 de seus integrantes e publicação na imprensa oficial (art. 8.° da EC 45/2004).

278II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

Vale observar ainda que a Emenda Constitucional n. 45/2004 também conferiu status constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros (art. 5º, § 3º, Constituição Federal). Esta previsão permite ampliação do rol de direitos a serem garantidos pelo Supremo Tribunal Federal.

Antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, a Constituição Federal previa um controle externo sobre o Poder Judiciário, realizado pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União. Competia, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas suas unidades administrativas, conforme artigo 71, IV, da Constituição Federal.

Com a previsão constitucional do Conselho Nacional de Justiça, órgão do próprio Poder Judiciário,22 pela Reforma do Judiciário, adotou-se outro controle deste Poder, mediante fiscalização dos seus atos administrativos e financeiros.

O Conselho Nacional de Justiça, órgão colegiado, é composto por quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução. Todos os seus membros são nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, a qual é chamada sabatina. Se as indicações não forem realizadas no prazo de até 30 dias antes do término do prazo para a instalação do Conselho,23 a escolha destes membros caberá ao Supremo Tribunal Federal.

Seus representantes são eleitos dentre membros da sociedade, magistrados e representantes do Ministério Público (art.

22 Assim entendeu o STF: ADIn 3.367/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, 13.04.2005.23 Este prazo é de 180 dias, contados da data da promulgação da EC 45/2004.

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103-B, CF), sendo: 3 ministros (um do STF, outro do STJ e outro do TST, todos indicados pelo respectivo tribunal); 1 desembargador de TJ, indicado pelo STF; 5 juízes (um juiz estadual, indicado pelo STF; um juiz de TRF, indicado pelo STJ; um juiz federal, indicado pelo STJ; um juiz do trabalho do TRT, indicado pelo TST e um juiz do trabalho, indicado pelo TST); 2 membros do Ministério Público (um do MP da União, indicado pelo PGR; e outro do MP Estadual, escolhido pelo PGR dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual); 2 advogados, indicados pelo Conselho Federal da OAB; 2 cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal. 24

O Conselho Nacional de Justiça é presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, o qual votará na hipótese de empate, sendo excluído da distribuição dos processos. E, junto ao Conselho oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Ao ministro do Superior Tribunal de Justiça, cabe a função de Ministro-Corregedor, também sendo excluído da distribuição de processos. Cabe-lhe, além das atribuições previstas no Estatuto da Magistratura, receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários; exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral; e requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios.

Cabe à União criar ouvidorias de justiça para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros

24 Superior Tribunal de Justiça (STJ); Tribunal Superior do Trabalho (TST); Tribunal de Justiça (TJ); Tribunal Regional Federal (TRF); Tribunal Regional do Trabalho (TRT); Ministério Público (MP); Procuradoria Geral da República (PGR); Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça.

Conforme estabeleceu o Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 649, não é viável a criação de conselho dessa natureza no âmbito dos Estados:

“É inconstitucional a criação, por Constituição estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros poderes ou entidades.”

Este entendimento está fundamentado, dentre outras razões, no fato de que a Magistratura no Brasil é nacional, sendo que as suas divisões internas possuem apenas importância para o estabelecimento de competência.

No exercício do controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabe ao Conselho Nacional de Justiça, além de outras atribuições conferidas pelo Estatuto da Magistratura, zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; zelar pela observância do artigo 37, da Constituição, e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras

281“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

sanções administrativas, assegurada a ampla defesa; representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.

Antes mesmo da publicação da Emenda n. 45, pelo Congresso Nacional, já havia entendimentos no sentido da inconstitucionalidade da criação do Conselho Nacional de Justiça, sob o fundamento de violação da cláusula pétrea da separação dos poderes. No próprio ano de 2004, foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3.367, interposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, a qual questionava, com fundamento na separação dos poderes, até que ponto o controle externo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça poderia interferir no Poder Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, resolveu o impasse ao se pronunciar nos seguintes termos:

EMENTAS: 1. AÇÃO. Condição. Interesse processual, ou de agir. Caracterização. Ação direta de inconstitucionalidade. Propositura antes da publicação oficial da Emenda Constitucional nº 45/2004. Publicação superveniente, antes do julgamento da causa. Suficiência. Carência da ação não configurada. Preliminar repelida. Inteligência do art. 267, VI, do CPC. Devendo as condições da ação coexistir à data da sentença, considera-se presente o interesse processual, ou de agir, em ação direta de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional que só foi publicada,

282II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

oficialmente, no curso do processo, mas antes da sentença. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Votos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, instituem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão administrativo do Poder Judiciário nacional. 3. PODER JUDICIÁRIO. Caráter nacional. Regime orgânico unitário. Controle administrativo, financeiro e disciplinar. Órgão interno ou externo. Conselho de Justiça. Criação por Estado membro. Inadmissibilidade. Falta de competência constitucional. Os Estados membros carecem de competência constitucional para instituir, como órgão interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao controle da atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva Justiça. 4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência

283“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controlejurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra "r", e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito. 5. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Competência. Magistratura. Magistrado vitalício. Cargo. Perda mediante decisão administrativa. Previsão em texto aprovado pela Câmara dos Deputados e constante do Projeto que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004. Supressão pelo Senado Federal. Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade. Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e promulgado (art. 103-B, § 4º, III). Expressão que, ademais, ofenderia o disposto no art. 95, I, parte final, da CF. Ofensa ao art. 60, § 2º, da CF. Não ocorrência. Argüição repelida. Precedentes. Não precisa ser reapreciada pela Câmara dos Deputados expressão suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na redação remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não perdeu sentido normativo. 25

O Supremo Tribunal Federal entendeu que o Conselho Nacional de Justiça é órgão hierarquicamente inferior ao Supremo Tribunal Federal, oportunidade em que reafirmou a sua força como órgão máximo do Poder Judiciário, entendendo pela sujeição do Conselho Nacional de Justiça a ele.26

O Supremo Tribunal Federal também decidiu que a composição híbrida (não exclusiva de magistrados) deste

25 STF: ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-2005, Plenário, DJ de 22-9-2006.26 STF: ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-2005, Plenário, DJ de 22-9-2006.

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Conselho, não viola a cláusula pétrea da separação dos poderes diante o fato de que foi resguardada a função jurisdicional típica do Judiciário e as condições materiais para o desempenho das suas funções de forma imparcial e independente. Além de que, nesta composição, os magistrados superam a maioria absoluta (9 membros, dentre os 15, com fulcro no artigo 103-B, I-XIII, da Constituição Federal, sendo ainda possível a revisão das suas decisões pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, I, “r”, da Constituição Federal.

Nota-se ainda que, o controle realizado pelo Conselho Nacional de Justiça foi caracterizado de forma equivocada como “externo”. Como este controle integra o Poder Judiciário (art. 92, I-A, CF) e possui formação híbrida a fim de evitar o corporativismo deve ser denominado como interno.

Fato que teve repercussão na mídia envolvendo o Conselho Nacional de Justiça foi quando a Ministra Eliana Calmon, Corregedora deste Conselho na época, em entrevista Associação Paulista de Jornais, afirmou que "a magistratura hoje está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga". A assertiva foi pronunciada no sentido de reivindicar para o Conselho Nacional de Justiça o poder de punir os magistrados.

Em relação à este poder, o Conselho Nacional de Justiça publicou, em 13 de julho de 2011, a Resolução 135. Esta, além de outras providências, estabelece a uniformização de normas referentes ao procedimento administrativo disciplinar que se aplica aos magistrados, bem como o rito e as penalidades. A referida resolução foi objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade (ADI) n. 4.638, ajuizada pela Associação de Magistrados Brasileiros.

O Supremo Tribunal Federal entendeu pela competência concorrente do Conselho Nacional de Justiça para instaurar processos administrativos disciplinares contra magistrados, defendendo a necessidade de motivação. 27

27 STF: ADI 4638. Relator Ministro Marco Aurélio, DJ de 01-2-2012.

285“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

Ocorre que, o Conselho Nacional de Justiça, apesar de exercer atividade disciplinar sobre os magistrados, não pode determinar a perda de cargo de juízes. Eis o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Competência. Magistratura. Magistrado vitalício. Cargo. Perda mediante decisão administrativa. Previsão em texto aprovado pela Câmara dos Deputados e constante do Projeto que resultou na EC 45/2004. Supressão pelo Senado Federal. Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade. Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e promulgado (art. 103-B, § 4º, III). Expressão que, ademais, ofenderia o disposto no art. 95, I, parte final, da CF. Ofensa ao art. 60, § 2º, da CF. Não ocorrência. Arguição repelida. Precedentes. Não precisa ser reapreciada pela Câmara dos Deputados expressão suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na redação remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não perdeu sentido normativo.28

É da competência do Conselho Nacional de Justiça, apenas determinar a remoção, aposentadoria compulsória, com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço, ou a punição administrativa de magistrados,29 podendo ainda, recomendar a perda de cargo de um juiz ao tribunal competente, o que deverá ocorrer por meio de sentença judicial transitada em julgado.

Importante destacar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu o caráter subsidiário da função disciplinar do Conselho Nacional de Justiça diante ao princípio da autonomia do Judiciário. Assim, a atuação disciplinar deste Conselho contra magistrado, só é possível em “[...] situações anômalas e excepcionais registradas 28 STF: ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-2005, Plenário, DJ de 22-9-2006.29 Nos termos do artigo. 93, VIII, da Constituição Federal.

286II Seminário de Direito do Estado da UNESP - Câmpus de Franca

no âmbito dos tribunais em geral (hipóteses de inércia, de simulação investigatória, de procrastinação indevida e/ou de incapacidade de atuação [...].”30

O controle realizado pelo Conselho Nacional de Justiça não envolve, pois, o exercício da atividade judicante pelos magistrados do Poder Judiciário, diante a imparcialidade e autonomia funcional destes. Ele visa maior transparência sob o âmbito administrativo e financeiro.

O Conselho Nacional de Justiça tem baixado diversas normas no sentido de regular a atividade dos magistrados, cuja validade é reconhecida pelo o Supremo Tribunal Federal.31

O Conselho Nacional de Justiça representou algum avanço para o Judiciário, mas a questão da fiscalização e responsabilização dos membros do Poder Judiciário ainda tem muito que ser discutida para então, ser introduzida de forma efetiva na realidade jurídica brasileira.

CONCLUSÃO

Quase dez anos após a Reforma do Judiciário é possível visualizar os rumos que a atuação e competência do Conselho Nacional de Justiça tomaram, diante entendimentos jurisprudenciais sobre o assunto.

Parece-me que a tão pretendida fiscalização da atuação do Poder Judiciário na prestação jurisdicional muito avançou com a previsão do Conselho Nacional de Justiça pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Ocorre que, diante a separação dos poderes, verdadeira cláusula pétrea, a fiscalização realizada por este Conselho e a imposição de responsabilização dela decorrente

30 STF: MS 28.801-MC / DF. Relator Ministro Celso de Melo. 02.08.2010.31 STF: MS 25.938, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 24-4-2008, Plenário, DJE de 12-9-2008 e ADC 12, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 20-8-2008, Plenário, DJE de 18-12-2009.

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restou, conforme interpretação do Supremo Tribunal Federal, muito limitada.

Apesar do Conselho Nacional de Justiça possuir competência concorrente para instaurar processos administrativos disciplinares contra magistrados, mediante motivação, ele não pode determinar a perda de cargo de juízes, mas apenas determinar a remoção, aposentadoria compulsória, com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço, ou a punição administrativa de magistrados. Assim, a fiscalização e responsabilização dos magistrados, resta ainda muito carente de previsão constitucional e infraconstitucional, principalmente, acredito, quando se trata de ativismo judicial.

Este, quando da politização da saúde, por exemplo, resulta na “[...] ultrapassagem das linhas democráticas da função jurisdicional em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa, e, até mesmo, da função de governo”32, sendo necessária a fiscalização e responsabilização sobre os efeitos desta atuação administrativa ou de governo, revestida de interpretação à Constituição.

A Reforma do Judiciário, visando o desafogamento deste Poder previu a vinculação dos efeitos da decisão nas ações diretas de inconstitucionalidade e nos recursos extraordinário, o que amplia a repercussão da decisão. Este efeito poderá ser negativo se o julgamento, a pretexto de interpretar a Constituição, conceder política pública não prevista no orçamento, por exemplo.

A função disciplinar do Conselho Nacional de Justiça, como visto, restou frágil e limitada diante ao princípio da autonomia do Judiciário e separação dos poderes, sendo necessária a instituição de controles outros no sentido de garantir

32 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 116-117.

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a responsabilização dos magistrados pelos atos praticados no exercício das suas funções.

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291“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

3 A DEMOCRATIZAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL: OS CASOS DO MINISTÉRIO DA

DESBUROCRATIZAÇAO E DO MARE

Caio César Vioto de Andrade*

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar as experiências do Ministério Extraordinário para a Desburocratização, instituído em 1979, no governo Figueiredo, ao final da ditadura militar, já com vista à redemocratização, e do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), criado em 1995, no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Hélio Beltrão, autor do Programa Nacional de Desburocratização e primeiro a ocupar a pasta do chamado Ministério da Desburocratização, ressaltava de forma recorrente alguns aspectos que seriam os grandes entraves para o desenvolvimento do Brasil e geradores de conflitos na relação entre Estado e sociedade. Entre tais fatores estariam o excesso de centralização de poder, o formalismo, a presunção de culpa, a morosidade do serviço público, entre outras. Dentre as soluções que apontava, as mais fundamentais seriam a descentralização de poder, a “humanização” do tratamento para com os usuários do serviço público, com atenção especial para os pequenos e médios empresários e a diminuição das exigências de documentos para diversas atividades públicas ou privadas. (BELTRÃO, 1984, p. 11-23)

Já em 1995, foi instituído o MARE, sob o comando do ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira. Para ele, a reforma a ser empreendida pelo Ministério respondia ao aumento do tamanho do Estado que significou sua transformação em um Estado social e ao tornar a administração pública mais eficiente, legitimou os

* Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação da UNESP-Franca. Contato: [email protected].

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grandes serviços sociais como saúde, educação, previdência, etc. De acordo com o ministro, tal reforma era uma das duas mais importantes para o Estado brasileiro. A primeira, empreendida na Era Vargas, transformara o Estado de patrimonial para burocrático, e a que seria constituída através do MARE representava a passagem do Estado burocrático para o gerencial. (BRESSER-PEREIRA, 2008, p. 145-147).

Os dois ministérios citados representam os casos mais recentes na política brasileira de propostas de reforma da administração e da gestão pública colocadas na agenda política pelo governo federal, que pretendia, mais do que uma mudança técnica ou administrativa, uma reforma de cunho político. Dessa forma, a comparação estabelecida nos permite analisar como o próprio Estado enxergava um problema gerado por sua dinâmica interna e que também deveria ser sanado pelos mesmos meios.

Dentre os objetivos, podemos ressaltar os seguintes: 1- Contextualizar cada ministério dentro das propostas principais de mudança política e institucional declaradas por seus respectivos governos; 2- Salientar o papel proativo de cada um dos ministros na elaboração e execução dos projetos pretendidos por suas instituições; 3- Comparar e traçar aspectos de semelhanças e diferenças entre os dois ministérios em suas visões sobre reforma do Estado e administração pública.

Tendo como principais fontes discursos que emanam do Estado, optamos por analisá-los de acordo com o método proposto pelo autor norte-americano Robert Higgs, que são as “flag words” ou “palavras-bandeira”, que buscam compreender o discurso e a ideologia a partir do uso e da significação dada a determinados termos. Por exemplo, a palavra “democracia”, aparece sempre positivamente, em quase a totalidade dos discursos políticos das mais variadas linhas de pensamento, enquanto a palavra “estatização” aparece de forma positiva ou negativa, dependendo da perspectiva ideológica. Desta forma, pode se classificar as “flag words” como universais ou discriminantes.

293“Novas perspectivas para Democracia Brasileira”

No estudo da ação humana, nada é mais fundamental, de acordo com Higgs, do que a consideração sobre o que os atores sociais envolvidos acreditam. Deste modo, as percepções diante de determinadas situações, pelo desconhecimento, faz com que as pessoas conduzam seus interesses numa mais ou menos densa rede de ignorâncias e incertezas. Para lidar com este contexto de incertezas, os indivíduos e grupos formam um sistema de crenças.

Desta forma, a ideologia é uma forma de entender a relação entre sociedade e Estado, pela mediação dos atores sociais, permitindo a compreensão de como os grupos de interesse agem de forma a fazer valer seus objetivos por meio do uso do aparato estatal.

Nem é preciso salientar as discussões e contra-sensos que o termo ideologia gerou nos debates em torno das ciências sociais. Assim, se faz necessário optar por uma linha de pensamento a fim de facilitar a abordagem de um determinado objeto de pesquisa a ser analisado.

De acordo com Higgs, a ideologia é uma crença mais ou menos coerente e bastante abrangente sobre as relações sociais. Por coerente, significa que determinados elementos de crença combinam entre si, de forma coesa, porém não necessariamente de maneira lógica do ponto de vista formal. A abrangência se refere a abarcar uma grande variedade de categorias e inter-relações sociais. A despeito disso, tende a girar em torno de alguns valores centrais como, por exemplo, liberdade individual, igualdade social ou glória nacional.

Durante um período de crise, o papel da ideologia se torna mais importante ou, simplesmente, mais visível, tanto na tentativa de manter a ordem, quanto de mudá-la.

Pela identificação dos imperativos ideológicos dos atores políticos (antes disso atores sociais), pode-se entender melhor suas ações. A identificação pode ser obtida por uma analise das palavras dos lideres e da elite dos grupos sociais e pelos fatos, a ação política propriamente dita, sendo assim, a ideologia é mais

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provável de ser decisiva em momentos de crise quando algumas situações de escolha social se mostram mais claramente. Da mesma forma, a linguagem e os discursos nunca são neutros, porém, sendo que a ideologia não tem um compromisso estrito com a lógica e os fatos, mas com a justificativa e o convencimento.

Expostas estas características, o autor pretende dar um caráter empírico à ideologia que, por sua vez, permitem uma análise mais rigorosa dos discursos políticos, principalmente no que se refere àqueles que procurar propor e justificar um aumento ou diminuição da intervenção do Estado na sociedade (HIGGS, 1987, p. 49-54).

Iremos expor, inicialmente, uma descrição das concepções de Hélio Beltrão sobre a reforma que deveria ser empreendida pelo Estado por meio de seu ministério, salientando suas principais ideias e interpretações sobre o problema da burocracia. Posteriormente, colocaremos uma análise sobre o MARE e sobre as concepções de Bresser-Pereira e, ao longo desta exposição, traçaremos as comparações.

1 O MINISTÉRIO EXTRAORDINÁRIO PARA A DESBUROCRATIZAÇÃO: O PROBLEMA DA BUROCRACIA GANHA DESTAQUE

Já na apresentação da obra “Descentralização e Liberdade”, de autoria de Hélio Beltrão (1984), os editores ressaltam a “intensa atividade nos setores público e privado” por parte do então ministro. Também observam que o autor procura expressar os conceitos com clareza, para que o povo possa entender sua mensagem.

Salientam também sua atuação em várias organizações privadas e governamentais, com destaque para a Petrobras, sua participação no Decreto-Lei 200, no Banco Central e na Sudene, bem como nas pastas de Ministro do Planejamento, no governo Costa e Silva, Ministro Extraordinário para a Desburocratização

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e Ministro da Previdência Social no governo Figueiredo (BELTRÃO, 1984, p. 7).

No Ministério da Desburocratização, foi responsável pela concepção e execução do Programa que “beneficiou, sobretudo as pessoas mais humildes e as pequenas empresas”. Também é observada, segundo citação do próprio autor que:

O Programa de Desburocratização representou a extensão da abertura política ao quotidiano do homem comum, para protegê-lo dos abusos da burocracia, garantindo o respeito à sua dignidade e aos seus direitos, diariamente negados na humilhação das filas, na tortura das longas esperas, na indiferença e na frieza dos balcões e dos guichês. (BELTRÃO, 1984, p. 8).

Outros aspectos observados são “seu comportamento liberal”, “[...] preocupação com a dignificação e moralização da função pública”, além do fato de ser “avesso à tecnocracia” e o fato de ter sido “[...] um dos percussores da abertura democrática.” (BELTRÃO, 1984, p. 9).

Constantemente preocupado em ressaltar o caráter político de seu intento, o ministro sempre observava em seus discursos a necessidade de adequar a máquina pública à vida real do homem comum. De acordo com ele sempre houve no Brasil uma concepção de “país imaginário”, raciocinado e planejado de maneira abstrata, a partir de centralizações e de grandes modelos importados.

Diante desta preocupação, Beltrão fundamentava o Programa no objetivo de dar “[...] prioridade ao pequeno e a valorização da simplicidade”. Dizia ele: “[...] noventa por cento de tudo neste país é pequeno: o cidadão de reduzida renda, o pequeno empresário, o pequeno município carente de recursos.” (BELTRÃO, 1984, p. 12).

Assim, detectava que o grande obstáculo ao desenvolvimento econômico e social era o centralismo burocrático, combatido por ele há mais de quarenta anos. Ainda,

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atribuía tal problema ao “passado colonial”, que se desenrolou ao longo da história do país, evidenciando, dessa forma, o caráter de acúmulo de intervenções e ingerências, que faz dirimir quaisquer suspeitas acerca do caráter localizado do problema.

Também via o momento da instituição do Programa Nacional de Desburocratização como uma “fase de saturação” e que o governo, ao assumir a autoridade, também assumiu a “[...] responsabilidade por tudo que acontece de errado neste país.” Além disso, ressalta o “preço político muito alto” pelo excesso de poder concentrado no governo (BELTRÃO, 1984, p. 13).

Outro ponto fundamental na concepção de Beltrão é o fato de que todos os problemas nacionais seriam “subprodutos” do centralismo burocrático. Tal problema seria expresso nas ações governamentais muito amplas, tentando abarcar e resolver os assuntos de diversas esferas. No entanto, o ministro ressalta que não falava de nenhum governo em particular e que o “processo centralizador” seria resultado de uma longa duração, “até certo ponto inconsciente”.

Beltrão faz uma extensa citação atribuída ao Visconde do Uruguai, de 1862, em que este observa os problemas da centralização excessiva e da falta de autonomia local, como sabido, um longo debate travado nos últimos anos do Império e tema fundamental do início da República.

Ainda, segundo o ministro, tal processo se acirrou, combinando centralização, desconfiança e tutela, o que deu origem a “uma gigantesca e confusa burocracia federal”, que acabou perdendo o contato e a sensibilidade em relação aos problemas locais e cotidianos e, por natureza, diferentes uns dos outros. No entanto, o processo de burocratização criaria ainda uma “verdade central” que procurava adequar todas as peculiaridades regionais ao mesmo padrão (BELTRÃO, 1984, p. 17-18).

Além disso, teria ocorrido no Brasil não somente um tipo de centralização do poder central em face aos locais, mas também uma concentração de poder no Executivo. O efeito de tal processo

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foi a substituição do espaço político pelo poder burocrático, algo que o ministro tinha a intenção de combater (BELTRÃO, 1984, p. 19).

Outro aspecto sempre salientado por Beltrão era a necessidade de fortalecer os municípios, que seriam “a grande realidade física, social e humana da Federação”. Observa também que os municípios dependem da transferência de verbas federais e sofrem pela falta de recursos materiais e humanos para resolver seus problemas cotidianos, bem como pela participação praticamente nula na solução dos grandes problemas sociais. Ao mesmo tempo, os prefeitos municipais são aqueles que sofrem mais pressão popular, sendo que não dispõem de meios suficientes para sanar uma variada gama de assuntos (BELTRÃO, 1984, p. 23-24).

Beltrão também observa que a descentralização administrativa não se opõe a um enfoque nacional de determinados assuntos. Para ele “nacional não é sinônimo de central”, no sentido de que a existência de uma política nacional não demanda necessariamente sua execução pelo governo federal. Ainda, a descentralização aumentaria a eficácia e reduziria os custos dos programas federais (BELTRÃO, 1984, p. 25).

Outro aspecto importante no Programa e no discurso do ministro era o tema da desestatização. De acordo com Beltrão, um erro comum era associá-la apenas ao processo de “privatização”. Mesmo no campo econômico, a desestatização também se referia a assegurar uma “maior liberdade de movimentos” para a iniciativa privada, cerceada e asfixiada pelo excesso de regulamentações, com vistas a ampliar o espaço da livre empresa na esfera econômica (BELTRÃO, 1984, p. 153).

Assim, além de privatizar empresas que não deveriam permanecer sob controle estatal, o Programa buscava reduzir a “excessiva ingerência burocrática do Estado no próprio exercício da atividade empresarial, fenômeno de índole estrutural, profundamente enraizado em nossa tradição paternalista e autoritária”. O ministro ainda cita a insurgência do Barão de

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Mauá contra o excesso de leis e regulamentações em relação à indústria e ao comércio, denotando o caráter de predominância da intervenção na história do Brasil, muito antes do “Estado-empresário” (BELTRÃO, 1984, p. 154).

Beltrão ressalta que o debate em torno da estatização sempre foi “puramente técnico e abstrato”, com “estridentes guerras de palavras” que acabaram por não apontar soluções objetivas. Para ele, a discussão na década de 1970 se concentrou nos problemas gerados pela ação do “governo como empresário”, e se esqueceu da dimensão do “Governo como Governo”, responsável pela burocracia no cotidiano dos empresários e pela excessiva regulamentação da atividade econômica. De acordo com ele, este problema só veio a ser adequadamente tratado, com propostas de solução, a partir da criação do Programa Nacional de Desburocratização, em 1979 (BELTRÃO, 1984, p. 155).

O problema ainda não seria devidamente abordado enquanto se discutisse com base em “falsos dilemas” como “estatização X desnacionalização” e “empresa privada X empresa estatal”.

O primeiro deles, para o ministro, encontrava solução no “fortalecimento da empresa privada nacional”, incentivando o “controle nacional do processo de desenvolvimento”.

Vemos, assim, que neste aspecto, o ministério não procurava romper totalmente com a lógica desenvolvimentista e nacionalista do regime militar, mas redimensioná-lo para a esfera privada, dado o insucesso das tentativas de “Estado-empresário”

Beltrão também salientava que empresas privadas e empresas estatais não são excludentes, mas poderiam e deveriam coexistir no Brasil. O ministro corroborava da ideia que os “países de insuficiente capitalização privada”, como o Brasil, deveriam ter o Estado como indutor do desenvolvimento e que a presença estatal tenderia a crescer na medida em que a economia se desenvolve. No entanto, para ele, o ponto é detectar o crescimento desnecessário do Estado. Este seria precisamente o processo de

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estatização, que “[...] funciona contra os interesses e a expansão do setor privado.” (BELTRÃO, 1984, p. 156).

Além disso, o crescimento das empresas estatais para áreas já atendidas pelo setor privado acabou privilegiando as primeiras, já que estas, que contavam com estímulos oficiais, não tinham que passar pela “asfixia burocrática”. Dessa forma, muitas empresas estatais perderam sua razão de ser, com o agravante de que algumas continuavam em expansão para outros setores diferentes dos iniciais.

Com isso, a postura do Estado deveria ser a de abandonar a função de “empresário” nos setores em que as empresas privadas já fossem consistentes sem, no entanto, abandonar totalmente a atividade econômica. Beltrão, dessa forma, procurava opor-se à radicalização acerca do debate sobre a desestatização (BELTRÃO, 1984, p. 157-158).

2 O MARE: SUAS CONCEPÇÕES E ESTRATÉGIAS

A autora Ana Cláudia Niedhardt Capella (2004) coloca que a questão central para a compreensão do processo de agenda-setting, ou seja, de como um assunto é trazido para a pauta governamental e social, é o entendimento da maneira pela qual um problema é definido. Tal definição faz com que processos sociais já existentes, mas sem apelos para ação governamental, se transformem em problemas dignos de serem tratados concretamente por um governo, que recorre a um conjunto simbólico de representações. Assim, estabelece-se um mecanismo de valores e comparações que procuram expor de forma mais direta possível as visões sobre uma determinada política.

Desta forma, com problema já definido, passa-se ao tratamento específico das questões, enfatizando aspectos de uma política, tecendo uma explicação e propondo uma ação governamental. Com isso, é possível notar quais são os valores, percepções e crenças que aparecem com mais frequência no

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tratamento da administração pública no Brasil (CAPELLA, 2004, p. 66).

Em relação ao MARE, segundo a autora, Bresser define o problema central como a “crise de Estado”, análise mais ampla que vai se especificando ao longo do tratamento da questão pelo ministério, passando a ser vista como “crise da administração pública”, “crise do modelo burocrático” e, finalmente “crise do modelo burocrático instituído pela Constituição Federal de 1988”.

Inicialmente, Bresser afirma que a “crise de Estado” é a causa das crises econômica e política brasileira. O ministro também “localiza” o problema, colocando-o como “fundamental” em relação ao último quartel do século XX. Ainda, a “crise de Estado” é desmembrada em três subitens ou crises setoriais, que seriam uma crise fiscal, uma crise do modelo de intervenção do Estado na economia e uma crise da administração pública (CAPELLA, 2004, p. 67-68).

A crise da administração pública é abordada conforme um referencial teórico acercada da própria administração pública e das interações entre este e as peculiaridades do serviço público no Brasil. Segundo Capella, esta perspectiva é exposta reiteradamente nos textos publicados pelo MARE e em documentos oficiais como o Plano Diretor.

A teorização mencionada consiste no tratamento linear da administração pública, que teria três fases ou “três formas de administração pública”: administração patrimonial, administração burocrática e administração gerencial.

Tal análise é baseada nos “tipos ideais” de Max Weber sobre a administração patrimonial e a administração burocrática, culminando na administração gerencial, concebida pelo próprio Bresser (CAPELLA, 2004, p. 70).

O fato de o ministro procurar teorizar o problema e conferir-lhe “cientificidade” é um pouco destoante de como o tema da “burocracia” era tratado por Hélio Beltrão. Em nota da obra “Descentralização e Liberdade”, observa-se que:

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No Programa Nacional de Desburocratização, adotou-se deliberadamente a acepção popular ou corrente de burocracia, e não a científica ou acadêmica, segundo a qual burocracia corresponde a uma forma de organização administrativa, sem nenhuma conotação depreciativa, conceito que foi especialmente desenvolvido por MAX WEBER (1864-1920). Como o Programa se propõe a promover uma transformação cultural, sua linguagem, endereçada diretamente ao usuário e ao servidor, não pode ser a científica, que está nos livros técnicos, e sim a popular, que está na mente do povo e nos dicionários mais modernos, como o de Aurélio Buarque de Holanda, que registra para a palavra burocracia o significado de "complicação ou morosidade no desempenho do serviço público". (BELTRÃO, 1984, p. 32).

A administração patrimonial é colocada pelo ministro Bresser-Pereira como uma “excrescência inaceitável” diante da conclusão de que o mercado e a sociedade tornaram-se apartados do governo quando o “capitalismo e a democracia se tornaram dominantes”.

Com esta nova configuração, surge o modelo burocrático de administração pública, preocupado em combater, principalmente, a corrupção e o nepotismo, que impregnavam o tipo anterior.

O modelo gerencial é situado como originário da segunda metade do século XX, com o objetivo de eliminar “disfunções” do modelo burocrático, diante de um redimensionamento e da expansão das funções do Estado no contexto de globalização econômica. Tal modelo é visto como um “avanço” em relação ao anterior (CAPELLA, 2004, p. 71).

O modelo patrimonial teria sido vigente no Brasil até 1930, quando substituído pelo modelo burocrático, na Era Vargas, especificamente a partir da criação do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), em 1936, que fez importantes

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reformas como a racionalização e simplificação de procedimentos, instituição de concursos públicos, etc.

No entanto, tal modelo foi incapaz de superar alguns resquícios do modelo patrimonial. Havia também problemas inerentes ao modelo burocrático como a lentidão, o alto custo, a o fato de ser auto-centrado e pouco orientado para os cidadãos. Diante disso, foram tentadas reformas como o Decreto-Lei 200, de 1967, que expandiu a administração indireta, criando autarquias, fundações, empresas públicas, etc. Esta tentativa é vista por Bresser como um “combate à rigidez burocrática da administração direta”. Apesar disso, tal experiência teria fracasso por não ter sido concluída, contando apenas com “ilhas de excelência” (CAPELLA, 2004, p. 72-73).

Esta tentativa, juntamente com o projeto do Ministério da Desburocratização, foi interrompida, segundo o ministro, pela Constituição Federal de 1988 que, em relação à administração pública, representou um “retrocesso burocrático sem precedentes” (CAPELLA, 2004, p. 74).

Capella, partindo do aparato teórico proposto por Stone (2002), salienta que “[...] a definição de problemas consiste numa representação estratégica de situações.” (CAPELLA, 2004, p. 77). O termo representação, segundo a autora, se deve ao fato de que a concepção do problema prioriza certo ponto de vista em detrimento de outros. A questão estratégica deve-se ao fato de que é construída uma descrição, com o fim de conseguir uma determinada linha de ação governamental.

A linguagem simbólica é essencial neste processo, já que tenta construir uma argumentação que evite interpretações conflitantes. Dessa forma, desenvolve-se uma narrativa com começo, meio e fim, envolvendo “vilões” e “heróis” e aspectos de ruptura e permanência.

Trata-se, assim, conforme a metodologia proposta por Higgs, ressaltada no início deste trabalho, de uma situação de crise

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em que são necessárias escolhas diante de incertezas, suscitando o papel da ideologia, conforme definida pelo autor.

De acordo com Capella, uma das formas de proceder na definição de um problema é a construção de “narrativas causais”, que buscam causas primeiras, vistas como passíveis de um tratamento científico. A partir do estabelecimento de causas, é possível traçar planos de ação que modifiquem o problema, além de ser possível atribuir responsabilidades pelo seu surgimento (CAPELLA, 2004, p. 78).

Como exemplo, a autora coloca que Bresser procurava estabelecer uma relação entre uma “crise generalizada” no Brasil e a “crise de Estado”, com a primeira como conseqüência da segunda, que teria origem na crise fiscal, no modelo de intervenção governamental e, especialmente, no modelo burocrático de administração pública.

Assim, o chamado “modelo burocrático” é visto como a principal “gênese” da questão, o que permitiu ao MARE não só desenvolver estratégias específicas em relação à superação do problema, como também possibilitou que atribuísse responsabilidades.

Um aspecto recorrente nas análises feitas pelo ministério é de que a sociedade brasileira seria “vítima” de procedimentos inadequados, morosos e dispendiosos (CAPELLA, 2004, p. 79).

O modelo burocrático é inicialmente apresentado como uma “evolução”, uma forma de sanar problemas do modelo patrimonial. Assim, suas deficiências são atribuídas a dois fatores essenciais: contradições internas inviabilizadoras e controles excessivos sobre procedimentos administrativos.

Com o intuito de evitar, a priori, a corrupção, partia-se de uma “desconfiança prévia” nos administradores públicos e nos cidadãos. Dessa forma, a atividade do Estado passa a ser auto-referida, em detrimento de prestar serviços à sociedade (CAPELLA, 2004, p. 80-81).

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Também é ressaltado pelo MARE o anacronismo do modelo burocrático. Diante de “novos desafios” do “papel do Estado”, com a globalização e o desenvolvimento tecnológico, a eficiência administrativa tornava-se uma demanda fundamental ao fim do século XX.

Em relação às responsabilidades atribuídas, Bresser considerava o “retrocesso burocrático”, a partir da Constituição Federal de 1988. Para ele, a nova constituinte não consolidou os avanços feitos pelo Decreto-Lei 200 e pelo Ministério da Desburocratização (CAPELLA, 2004, p. 82).

Para o ministro Hélio Beltrão, referência no assunto da dinamização do aparelho de Estado desde a década de 1940 (DINIZ; CAMARGO, 1989, p. 32) haveria no Brasil um descompasso entre Estado e sociedade, aspecto salientado por vários autores que tratam desta relação no país, em especial no regime militar, como Aspásia Camargo, que observa que as mudanças que ocorreram entre o fim do regime e o inicio da redemocratização obedeciam a uma lógica “incrementalista”, mais do que uma ruptura de padrões em relação aos segmentos da elite e das organizações populares, além do fato de que o aperfeiçoamento da capacidade de organização não se traduziu automaticamente em absorção satisfatória pelo sistema político-institucional, criando um “hiato” entre Estado e sociedade, nos dois sentidos do fluxo de relações (DINIZ; CAMARGO, 1989, p.11).

A atribuição de responsabilidades, no entanto, era difusa, já que recaia sobre a “sociedade” e os “constituintes”. Com a tentativa de afastar o tom das críticas dos servidores públicos (burocratas), Bresser lançou mão de vários escritos e manifestações na imprensa para justificar as críticas feitas às atividades do serviço público (CAPELLA, 2004, p. 83).

O Ministério da Desburocratização também enfrentou oposições na sociedade. Wahrlich coloca que o tema da desestatização, ao mesmo tempo em que tinha entusiastas, enfrentava opositores abertos, que se contrapunham ideologicamente ao

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Programa, expressando o temor, principalmente, em relação ao fato de que as empresas multinacionais poderiam ser favorecidas, em detrimento das nacionais.

A desburocratização não sofria oposição aberta, já que ninguém se manifestava claramente contrário aos objetivos do empreendimento, porém, enfrentava inimigos velados, como os intermediários que se beneficiavam, pela via legal ou não, do excesso de trâmites do serviço público. Outro aspecto eram as alegações de desemprego que o Programa poderia causa, no entanto tal empecilho poderia ser solucionado com a alocação para funções mais úteis e com carência também alegada por parte de outros setores da máquina estatal (WAHRLICH, 1984, p. 83).

Diante do “retrocesso” detectado pelo MARE em relação à Constituição Federal de 1988, vista como encarecedora a responsável pela ineficiência do serviço público, a ação governamental deveria ser urgente para reverter este processo, tido como prejudicial à toda a sociedade (CAPELLA, 2004, p. 87).

Outro aspecto que ensejava um conjunto de medidas governamentais no sentido da reforma da administração pública foi o fato de que a situação do serviço público seria incompatível com o processo de estabilização macroeconômica do governo FHC e, portanto, uma ameaça a esta “conquista”.

De forma geral, para o MARE, o Plano Real havia contido a crise dos anos 1980, no entanto, se a “crise de Estado” persistisse, o perigo de uma nova crise econômica seria uma constante. A reforma da administração pública era vista como uma consolidação da transformação macroeconômica (CAPELLA, 2004, p. 88).

No caso do Ministério da Desburocratização a situação foi um pouco diversa. A reforma era vista como um primeiro passo da estabilização econômica, diante da ausência de um projeto exitoso já em curso em relação a isso. Acreditava-se que eliminando os entraves burocráticos, o excesso de controle estatal, gastos públicos, entre outros, seria criado um ambiente

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que propiciasse um desenvolvimento econômico adequado. Além disso, era recorrente a questão da “vontade política” para se fazer isso. No MARE, ao que a análise indica, a vontade política já estava dada.

Segundo Capella, Bresser também salientava que a demanda pela reforma existia, apesar de oculta. Cabia, portanto, aos formuladores de políticas públicas compartilharem o problema. O então ministro se incumbiu da tarefa de divulgar a reforma (CAPELLA, 2004, p. 89).

O autor Leonardo Queiroz Leite (2014), em análise sobre o papel “empreendedor” de Bresser-Pereira à frente do MARE, coloca que o ministro dedicou parte de sua vida acadêmica ao entendimento dos mecanismo de funcionamento do Estado no Brasil, em especial de sua burocracia. Dessa forma, era ao mesmo tempo intelectual e político e fazia do MARE uma espécie de “think tank”.

Outro aspecto ressaltado pelo autor é que, apesar do governo FHC, em seu início, ser visto como modernizador e reformista e contar com os apoios políticos necessários para isso, a questão da reforma gerencial não surgiu como uma pauta natural, por isso o papel de Bresser foi fundamental para persuadir o governo e a sociedade da necessidade da reforma, bem como para neutralizar os obstáculos e oposições ao projeto (LEITE, 2014, p. 47-48).

Ainda, segundo Wahrlich, Hélio Beltrão, criador do Programa, lançou-se numa “cruzada” pela desburocratização, através de palestras, conferências, entrevistas, debates vinculados pela impressa e demais meios de comunicação. O ministro sempre ressaltava em suas falas uma “tendência histórica” do Brasil, ao crescimento da burocracia, ao formalismo, à regulamentação e à centralização decisória, que geravam ineficiência do Estado (WAHRLICH, 1984, p. 76).

Para Beltrão, o problema da burocracia era mais explícito. De acordo com ele, o brasileiro era avesso ao formalismo e

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ao centralismo e percebia o excesso de burocratização como um de seus maiores problemas cotidianos, bem como notava o descompasso existente entre Estado e sociedade.

O MARE procurava distinguir o âmbito abrangido pela reforma. Para tal, recorria ao termo “aparelho de Estado”, que se contrapunha à ideia de “reforma do Estado”, que estaria associada a todo o aparato legislativo, ao monopólio da violência e tributos, enquanto a reforma se restringia à administração pública (CAPELLA, 2004, p. 96).

Para Beltrão, a diferenciação não era tão explícita. Ele salientava a necessidade de uma mudança de mentalidade do próprio Estado em relação a suas funções e enfatizava que não se devia fazer apenas uma reforma técnica e administrativa.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, podemos notar que o Ministério da Desburocratização foi mais “insulado” em relação ao governo Figueiredo e mais ainda em relação ao regime militar. Mesmo contando com apoio do presidente, Beltrão e sua equipe ficaram responsáveis pela divulgação e pela concepção dos projetos referentes ao ministério.

Diferentemente, apesar de ter contado com algumas resistências no início, o MARE esteve mais afinado com a proposta geral do governo FHC, de uma mudança de rumos macroeconômicos e da administração pública, sendo que as duas esferas eram tidas como interdependentes e necessitavam uma do êxito da outra para funcionarem.

O caráter empreendedor dos dois ministros é evidente, o que é um forte aspecto de semelhança entre os dois (talvez o mais fundamental). No entanto, a trajetória de Beltrão e Bresser e suas chegadas aos respectivos ministérios foram diferentes. O último era um acadêmico, que levou um projeto concebido “cientificamente” para o âmbito do governo. O ministro da

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Desburocratização, apesar de um intelectual e uma referência na questão da administração pública, com ideias renovadoras e modernizantes para a época, construiu sua vida política de forma separada da vida acadêmica, tendo suas principais experiências que o credenciaram para a pasta em instituições pública e privadas que administrou.

Pela análise feita, vemos que, apesar de algumas relutâncias no discurso e em detrimento de defender outro tipo de “desenvolvimentismo”, Hélio Beltrão era avesso ao controle econômico por parte do Estado. Implicitamente em algumas situações e mais explicitamente em outras, nota-se o caráter liberal da reforma que procurava empreender. Bresser, no entanto, procurava um redimensionamento da função do Estado na economia, principalmente resgatando seu papel regulador e se opunha a uma liberalização extremada. Conforme o próprio ministro:

Partirei da premissa de que o Estado é fundamental para promover o desenvolvimento, como afirmam os pragmáticos de todas as orientações ideológicas, bem como uma maior justiça social, como deseja a esquerda, e não apenas necessário para garantir o direito de propriedade e os contratos - ou seja, a ordem -, como quer a nova direita neoliberal. (BRESSER-PEREIRA, 1997, p. 8)

Enfim, podemos concluir dizendo que ambos os ministérios, apesar de suas diferenças e semelhanças foram importantes tentativas no sentido da busca por uma democratização do serviço público, ou seja, para o seu direcionamento em função do cidadão. Mais do que seus resultados efetivos, que são mais passíveis de questionamentos, em função de várias circunstâncias que não cabe aqui observar, já que isso não constitui o objetivo do trabalho, os dois projetos procuraram uma reflexão acerca dos motivos pela qual o descompasso entre Estado e sociedade no Brasil aparece de forma tão nítida e tão prejudicial, buscando as raízes históricas do processo de “burocratização”. Assim, as duas instituições em questão não foram somente nichos de

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desenvolvimento de políticas públicas, mas ambientes de uma análise crítica e propositiva acerca dos principais problemas nacionais.

REFERÊNCIAS

BELTRÃO, Hélio. Desburocratização e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 1984.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Os primeiros passos da Reforma Gerencial do Estado de 1995. In: D'INCAO, M. A.; MARTINS, H. (Org.). Democracia, crise e reforma: estudos sobre a era Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: Paz e Terra, 2010a.

______. A reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997. (Cadernos MARE da reforma do estado; v. 1).

CAPELLA, Ana Claudia N. O Processo de Agenda-Setting na Reforma da Administração Pública (1995-2002). 2004. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2004.

HIGGS, Robert. Crisis and Leviathan: critical episodes in the growth of American government. New York: Oxford University Press, 1987.

LEITE, Leonardo Queiroz. Um empreendedor de políticas públicas em ação: Bresser Pereira e a Reforma da Administração Pública de 1995 no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.

WAHRLICH, Beatriz. Desburocratização e desestatização: novas considerações sobre as prioridades brasileiras de reforma administrativa na década de 80. Revista de Administração Pública (RAP), São Paulo, v. 18, n. 4, p. 72-87, 1984.

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