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Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
NÃO É MÚSICA. É CANÇÃO.
Judson Gonçalves de Lima
Universidade Federal do Paraná
Em fins da década de 1970 os estudos sobre música popular ganharam corpo
no Brasil (SANTIAGO, 1998, pp. 11-23) e no mundo (TAGG, 2003, p.31). Tais
estudos foram direcionados tanto para a manifestação popular ligada à tradição
folclórica, quanto para aquela vinculada à indústria cultural e uma terceira que até
hoje não se mostrou passiva a rótulo, embora Música Popular Brasileira tenha sido o
mais duradouro.
Música popular no Brasil é praticamente sinônimo de canção; e um problema
é facilmente detectado em suas análises: realizam-se geralmente de maneira muito
parcial, enfatizando unicamente as letras ou as músicas, omitindo pensar seus
parâmetros em complemento e considerando suas especificidades.
Aqui busca-se questionar o que é, de fato, a canção brasileira, bem como
apontar sua presença na nossa sociedade justificando seu estudo.
A relação entre texto e música.
A canção é forma musical e literária das mais antigas. Para Aristóteles não
havia diferença entre poesia e canto, já que o meio de reprodução daquela se fazia
através deste. Até os séculos finais da Idade Média, cantar e declamar uma poesia não
significavam coisas muito distintas.
Paul Zumthor em seu livro A letra e a voz (2001, p. 37) mostra como, na
Idade Média, canção e poesia, ou canto e récita, existem completamente implicados
um no outro. O medievalista encontra em prólogos e epílogos de peças analisadas,
termos auto-referenciais que remetem à leitura e ao canto. O próprio termo canção, de
grande utilização, refere-se ao canto tanto quanto à evocação do gênero poético, que
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não é necessariamente cantado. Até o fim da Idade Média, por exemplo, se dizia, ao
chamar a atenção para a “récita” de um poema, que ia-se escutar uma canção: “or
commence chanson, orrés chanson (vocês vão escutar uma canção)” (p. 37).
A música instrumental produzida até a Baixa Idade Média praticamente
limitava-se ao acompanhamento do canto e da dança. Diz um trecho de Grout &
Palisca (2001, p. 91):
Na verdade, as estampidas [um tipo de dança da época] são os mais antigos
exemplos conhecidos de um repertório instrumental que, sem dúvida, remonta a
uma época muito anterior ao século XIII. É pouco provável que na alta Idade
Média houvesse alguma música instrumental além da que se associava ao canto
ou à dança, mas seria completamente incorrecto pensar-se que a música deste
período era exclusivamente vocal.
Dizer que “muito antes do século XIII” já havia música instrumental, significa
que provavelmente não é “muito antes” do século X, pois senão isso teria sido dito, o
que leva a crer que até a Baixa Idade Média, a música esteve essencialmente aliada ao
texto. Mas a evolução da escrita e a invenção da imprensa, o surgimento das religiões
protestantes e a perda de influência da Igreja Católica, foram fatos que permitiram
que as artes se tornassem independentes de algumas regras, por exemplo, a de compor
música com texto para louvar e elevar o espírito a Deus; ou a utilização da música
como instrumento mnemônico e meio de divulgação para a obra de poetas, como os
trovadores.
Mas apesar de essas práticas terem desenvolvido novas formas de produções
individuais – como a sinfonia e o romance – ainda hoje, é muito intensa a relação
entre as duas, e talvez seja melhor configurada na canção popular.
Muitos são os estudos que se dedicam ao estudo dessa prática artística. Um
problema, porém, é a parcialidade dessas análises: ou se dedicam somente ao texto ou
somente à música. Mas a canção precisa ser considerada em sua formação básica,
textual e musicalmente. Este texto busca chamar a atenção para o fato de que chamar
a canção de música faz com que ela seja sempre posta em um rol de obras e a submete
a um rol de análises que não lhes são adequadas, mas sim à música instrumental. Por
isso dizemos: Não é música. É canção!
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Porque estudar “canção brasileira”?
No Brasil, artisticamente o século XX foi o da consolidação da canção popular
como manifestação que pode guardar complexidades e potencialidades estéticas
dignas da “alta literatura” e “alta música”1.
É comum apontar Noel Rosa como um dos primeiros criativos inventores do
cancioneiro brasileiro. Assim como é comum atribuir à Bossa Nova a abertura da
música popular a outras manifestações musicais estrangeiras e/ou eruditas,
contribuindo para romper com algumas características “românticas” e operísticas
fortemente presentes na música brasileira até então (BRITO, in CAMPOS, 1993, pp.
17-50). Além da contribuição no que tange ao modo de cantar, a bossa nova realizou
uma renovação da linguagem harmônica e reorganização rítmica da música brasileira.
Também foi consolidada nesse momento a presença do poeta do livro na
canção popular através da figura carismática de Vinicius de Moraes. Independente do
grau de profundidade e inventividade poética nas suas letras, o fato de um poeta,
publicado e reconhecido como tal, ter se “rendido” aos encantos da música popular,
contribuiu para que houvesse maior respaldo a esta prática. A partir de então a canção
brasileira continuou na trilha da criatividade e conquistou o respeito de intelectuais e
consumidores do Brasil e do exterior.
No século XX, apesar da influência depreciadora da crítica poderosa (e mal
lida?2) de Adorno, que se difundia desde meados da década de 1920, a canção
brasileira, sob a marca de “MPB”, ganha status junto à “alta música” e “alta
literatura”. O aval por parte dos intelectuais tem como referência o livro O balanço da
bossa e outras bossas (1968), assinado por referências tanto da esfera literária
(Augusto de Campos) quanto musical (Gilberto Mendes). São destacados no livro os
1 É o que nos diz Luiz Tatit. "Se o século XX tivesse proporcionado ao Brasil apenas a configuração de sua canção popular poderia talvez ser criticado por sovinice, mas nunca por mediocridade." TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. 2 NAPOLITANO, Marcos. História e música. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002. O autor relê brevemente a crítica de um dos pilares da escola de Frankfurt e diz que ela não pode ser aplicada inteiramente à realidade da música brasileira Também Wisnik o faz em WISNIK, J. M. O minuto e o milênio ou Por favor, Professor, uma década de cada vez. São Paulo: Publifolha, 2004, p.176
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movimentos Bossa Nova e Tropicália e a inventividade de João Gilberto, Caetano
Veloso e Gilberto Gil, além da mestria de Chico Buarque (as categorias poundianas
difundidas pelos poetas concretos).
Ao final da década de 1970 a universidade direciona parte da produção crítica
para a MPB. Segundo S. Santiago (1998, pp. 11-23), foi “através da intervenção dum
professor de Letras é que a crítica cultural brasileira começa a ser despertada para a
complexidade espantosa do fenômeno da música popular”. Tal “intervenção” é um
texto de 1979 do professor José Miguel Wisnik, que hoje acumula uma produção
textual fundamental para a compreensão da canção brasileira. Na década de 80 a
produção se adensa. Vale destacar o músico e linguista semioticista Luiz Tatit, que
tem dedicado duas décadas de estudo à canção brasileira. Há outros tantos com
interesses os mais diversos: historiadores, utilizando as canções para compreender a
constituição de nossa república; músicos que desenvolvem pesquisas sobre a
realização musical das canções e literatos que analisam letras - há inúmeras tentativas
de comparações com poesias de livro, buscando, inclusive, aproximá-las de
movimentos literários; pesquisas sociológicas, educacionais etc.
Canção e cancionistas ganharam prestígio. Lançamentos editoriais confirmam
e contribuem para esse processo. O fato de uma editora do porte da Cia das Letras
lançar a compilação das letras das canções de C. Buarque, C. Veloso e G. Gil, revela
que elas alcançaram representatividade no livro (além de ser produto de apelo
comercial).
Além disso são inúmeras as obras biográficas sobre compositores (músicos
e/ou letristas) e intérpretes da MPB. Em Música Popular Brasileira Hoje (2002) há
resenhas de 99 personalidades ou grupos da música brasileira, atribuindo também a
figuras que atuam apenas como letristas (A. Blanc, P. C. Pinheiro) o papel de
cancionista. Em contrapartida, há no livro Leitura de Poesia (1996) um artigo de J.
M. Wisnik sobre a canção Cajuína, de C. Veloso, levando ao meio acadêmico e à
sujeição da análise poética uma canção popular.
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Ou seja, a canção no Brasil alçou vôo e atingiu um patamar elevado tornando-
se um "lugar" privilegiado de prática artística. Mas apesar da sua relevância na
produção artística, carece de um método que seja capaz de examiná-la
adequadamente. Não se trata de levar em consideração a “melodização” adequada da
sua “letra”, mas também a relação desta melodia com o arranjo, harmonia,
instrumentação, letra etc. Enviesada em faculdades de Letras e Música, as análises
realizadas são geralmente parciais, aderindo quer ao aspecto textual, quer ao musical
da canção.
Marcos Napolitano diz que chegamos a um ponto em que não podemos mais
reproduzir certos vícios como analisar letra separada da música, contexto separado da
obra, autor da sociedade e estética da ideologia (2002, p. 8); afirma, enfim: “não
podemos esquecer de pensá-las em conjunto e complemento” (2002, p. 96).
Não é música, é canção!
Chamar a canção simplesmente de “música” é legitimado pela tradição. É
famoso o texto de Susanne Langer (1980) que diz que a música se sobrepõe ao texto
atraindo atenção para si. A questão é que ao fazê-lo pode ser que se tenha autorizado
arrolar a canção junto com outras formas de música pura e que depositam todo o
potencial estético na realização sonora – sinfonias, sonatas, óperas etc.
Deixou-se de levar em conta aspectos particulares das canções: os lieder de
Schubert, grande referência da canção erudita, por exemplo, são em boa quantidade
obras compostas apenas para execução em piano e voz e geralmente de curta duração.
Essas características talvez diminuíssem grandemente as possibilidades de “jogo”
(“entrelaçamentos” musicais como: exposição, desenvolvimento e retomada de temas
e motivos numerosos; modulações etc) se comparadas a uma sinfonia ou ópera.
Temas e variações, desenvolvimentos, motivos e variações, citações, modulações...
Uma canção possui um “tempo” curto para tantos jogos – a modulação é um bom
exemplo, antes de realizá-la, é preciso ainda que se tenha tido tempo para afirmar uma
outra tonalidade primeiramente. Isto justifica a afirmação de Charles Rosen, segundo
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o qual a canção só alcançou seriedade na tradicão da música ocidental no romantismo
(ROSEN, 2000, p. 188).
Esses parágrafos servem apenas para tentar dar relevo ao fato de que, ao
chamar a canção de música, é possível que as especificidades tenham sido preteridas,
deixando que ela, a canção, compita com outras formas de produção musical para as
quais os métodos tradicionais de análise são apropriados, pois criados para tanto.
Seria o mesmo caso de chamar os textos das canções – as “letras de música” –
de poemas. Isso gerará, inevitavelmente, juízos de valor depreciativos, da mesma
forma que se depreciou a música da canção ao compará-la à música pura. As letras
estariam talvez (salvo poucas exceções, como em casos de poemas que foram
musicalizados, ou de uma letra de música mais arrojada, de fato) com
aproximadamente um século de atraso em relação à poesia. As letras das canções
brasileiras estão muito mais para os poetas românticos do que para Mallarmé,
Rimbaud, Eliot, Drummond, Murilo Mendes, Ferreira Gullar ou Augusto de Campos.
E olhe que esses primeiros mudaram a literatura ainda na primeira metade do século
XX!
Algumas das características utilizadas no texto cantado são hoje muito
questionáveis na estética da prática poética. Rimas e “formas fixas”3, por exemplo,
foram muito combatidos a partir do modernismo poético, mas na canção essas
características são ainda predominantes.
A vontade de que as letras de música sejam abordadas adequadamente não é
de poucos pesquisadores e críticos. Augusto de Campos (1993, p. 309) em 1972
escrevia:
estou pensando
no mistério das letras de música
tão frágeis quando escritas
3 Embora a saturação de tentativas de rompimento com a tradição por parte de muitos movimentos ditos de vanguarda, tenha culminado num movimento contrário nos momentos atuais da poesia. Ultimamente muitos poetas têm praticado e ou defendido formas fixas sem deixar de lado a originalidade. Tenha-se em vista o trabalho de Paulo Henriques Britto, por exemplo. Veja-se também, o DVD “Festival de Poesia de Goyaz. DVD. 2006”.
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tão fortes quando cantadas
por exemplo “nenhuma dor” (é preciso ouvir)
parece banal escrita
mas é visceral cantada
a palavra cantada
não é a palavra falada
nem a palavra escrita
a altura a intensidade a duração a posição
da palavra no espaço musical
a voz e o mood mudam tudo
a palavra canto
é outra coisa.
Também Chico Buarque em entrevista ao caderno MAIS!, da Folha de São
Paulo, disse do alto de sua longa experiência em composição de canções, que as
preocupações da letra de música são diferentes daquelas da poesia. Falava o
compositor da dificuldade de se falar da parte musical da canção e criticava os críticos
por se deterem sobremaneira nas letras:
Sei que é difícil falar do disco. Até para mim é difícil. Em jornal, crítico de
música geralmente é crítico de letra. É compreensível que seja assim --a letra vai
impressa, o crítico destaca este ou aquele trecho... funciona assim. Eu cada vez
mais dou importância à música e tenho vontade de dizer: "Olha, só fiz essa letra
porque essa música pedia. Isso não é poesia, é canção". Enfim, fico um
pouquinho chateado com essas coisas, mas sei que é difícil mesmo. Como é que
vai imprimir uma partitura no jornal e explicar aos leitores? Não dá, eu sei. 4
Voltando a S. Langer, contra a sua afirmação de que a música se sobrepõe ao
texto, “outros autores afirmam” diz S. R. Oliveira (2002, p. 31), “que a principal
característica da canção encontra-se na fusão de letra e melodia, nenhuma das duas
exercendo função subalterna”. Essa questão de se algum dos fatores da canção se
sobrepõe a outro, não se aprofundará no debate que este pequeno texto propõe. Mas
acrescente-se que não só a fusão de „letra e melodia‟ são fundamentais, também o são
o arranjo, a instrumentação, a harmonização e a performance. Creio que tudo que soa
deve ser levado em conta nas análises de canção.
Chamar, portanto, a canção de Canção, é contribuir para o esclarecimento das
especificidades dessa prática artística que não reflete singularmente as características
de suas artes formantes, caso sejam: a poética e a música. Identificar algumas dessas
especificidades é um dos objetivos deste texto.
4 BUARQUE, Chico. In MAIS! Folha de São Paulo. Sítio da internet da Folha de São Paulo. Último acesso em 12/09/2006: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60177.shtml
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Sim, mas canção o quê?
Como se não bastasse a questão do tópico anterior, tem-se, para este trabalho,
um debate advindo do recorte do objeto: a chamada Música Popular Brasileira, MPB.
Esses termos consagrados referem-se quase sempre à canção popular
brasileira, já que é praticamente de canções que a MPB é constituída5. Essa
nomenclatura, porém, é por demais inadequada para dar conta da produção musical
brasileira (inclusive em função questão salientada no tópico antecedente).
Carlos Sandroni em seu artigo Adeus à MPB (2004), se dedica a mostrar essa
inadequação. O autor mostra como o termo “Música Popular Brasileira” é datado e
possui conotação extremamente política: MPB designava a música produzida no
Brasil em determinado momento da República (basicamente a segunda metade do
século XX nos anos conturbados da ditadura, 1964-1984), quando ser adepto às
tradições da nação e defender o Brasil, inclusive rejeitando algumas influências
externas, fez parte da construção do cancioneiro e era expresso também pelo gosto
musical. Era um momento de luta pela democracia e contra as forças que tentavam
suprimir as manifestações espontâneas, seja na arte, seja na vida. Fazer ou gostar de
MPB era lutar pela construção de uma nação autônoma e autêntica, culturalmente
falando. Relevante é o fato de que a concretização da expressão ideológica “MPB”
passa por uma eleição de cânone, atribuindo retroativamente tal título a autores da
primeira metade do século XX como Donga, Pixinguinha, Noel Rosa, Orestes
Barbosa, Catulo da Paixão Cearense etc, ou de antes se quiser, como Chiquinha
Gonzaga e as composições de maxixe, valsa brasileira, xote etc.
Além disso, MPB é controvertido também pelo “popular”. A princípio esse
termo faz referência ao que vêm do povo, configurando uma manifestação artística na
5 Claro que há música instrumental e grandes músicos na “música popular brasileira”. Mas ao mesmo tempo, parte do repertório instrumental são arranjos de canções, assim como muitas canções são músicas instrumentais que foram “letradas” e somente depois disso alcançaram o público. (Mas justiça seja feita a grandes compositores do choro e outros compositores como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Guinga e muitos e muitos outros).
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qual suas raízes estariam afixadas na cultura brasileira, sendo uma reorganização e/ou
reaproveitamento das criações populares, quando não a própria.
Isso seria verdade se o “popular” em questão não tivesse sido ideologizado6,
como se destacou acima. Na realidade, esse termo foi utilizado com esse sentido até
meados do século XX. Mario de Andrade e Oneyda Alvarenga se referiram a ele
praticamente como sinônimo de folclórico... Mas essa acepção não faz jus à canção
brasileira produzida a partir da década de 1950. Daí, em vez da cunhagem de um
termo novo, ressignificaram este aproveitando seu cunho nacionalista.
E ainda foram somados outros debates ao “P” da MPB. Na década de 1920, o
filósofo alemão Theodor Adorno iniciou uma dura crítica à crescente indústria
cultural e à cultura de massa. Grosso modo, para o principal pilar da escola de
Frankfurt, não havia possibilidade de experiência estética naquela produção cultural
da qual se apropriara a indústria (ADORNO, 1999, pp. 65-108). As críticas se
dirigiram desde as canções folclóricas utilizadas como propaganda nazista
(NAPOLITANO, 2002, p. 21), até a música jazz, que Adorno viu florescer junto à
indústria cultural, em função de seu exílio nos EUA nos anos de 1940.
Ou seja, a música urbana (“local”) não erudita (“universalista”)7, foi tomada
como fruto da indústria cultural e tida de antemão como incapaz de produzir arte e
experiência estética, visto que era refém de uma fórmula de produção que
determinava, por exemplo, a existência de refrões, categoricamente condenados por
Adorno. A música era consumida, segundo o filósofo, como qualquer outro produto
6 “Por volta de 1965, houve uma redefinição do que se entendia como Música Popular Brasileira, aglutinado uma série de tendências e estilos musicais que tinham em comum a vontade de “atualizar” a expressão musical do país, fundindo elementos tradicionais a técnicas e estilos inspirados na bossa nova, surgida em 1959.” NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 12. 7 Essa distinção entre local e universal é de QUINTERO-RIVERO, Mareia. A cor e o som da nação: a idéia de mestiçagem na crítica musical do caribe e do Brasil (1928-1948). São Paulo: FAPESP/ANNABLUME, 2000. A música folclórica seria “rural”, enquanto a erudita “universalista” (págs. 95-98.); para efeito de uma terceira dimensão que englobe a dita música popular (no sentido em que se usa na MPB), chamamo-la aqui de urbana e “local”. Não à toa, entretanto, diz Wisnik: “A fisionomia musical do Brasil moderno se formou no Rio de Janeiro. Ali é que uma ponta desse enorme substrato de música rural espalhada pelas regiões tomou uma configuração urbana” (1992, p. 118).
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da indústria; as pessoas estariam em busca de uma mercadoria qualquer e não de arte,
a escuta havia regredido; em suma, o consumo de música estava fetichizado, como
uma calça “de marca”.
Ocorre que ao termo popular inúmeros epítetos atrelados à canção urbana não
erudita a punham para baixo na escala da hierarquia do valor da arte: vulgar,
folclórico, urbano, de massa, industrial, gastronômica, kitsch8 e às vezes como
categoria na qual convivem o autêntico e o vulgar.
Esse combate à arte comercial não é exclusivo de Adorno, ele apenas
representa um ponto de vista que Umberto Eco chamaria de “apocalíptico”. Essa
crítica foi ouvida e também relativizada. Marcos Napolitano e José Miguel Wisnik o
fizeram. Para o primeiro:
[O] desgosto de Adorno com a música popular comercial não pode ser explicado
apenas por uma questão de idiossincrasia e gosto pessoal. A questão era que
Adorno vislumbrava a música popular como a realização mais perfeita da
ideologia do capitalismo monopolista: indústria travestida em arte. Apesar disso,
mesmo com seu azedume intelectual (e devido a ele), Adorno revelou um objeto
novo e sua abordagem permanece instigante, embora sistêmica, generalizante e
normativa. (2002, p.21)
E Wisnik disse:
Ora, no Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e
pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida na sua teia de
recados, pela sua habilidade em captar as transformações da vida urbano-
industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação
econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem estandardizada,
nem à repressão da censura que se traduz num controle das formas de expressão
política e sexual explícitas, nem às outras pressões que se traduzem nas
exigências do bom gosto acadêmico ou nas exigências de um engajamento
estreitamente concebido. (2002, 176)
Ou seja, é possível “vida inteligente” na música popular.
Parece ser adequada a consideração de Carlos Sandroni, em Adeus à MPB, que
em estadia na França para realizar seus estudos de doutoramento, ao se referir à MPB
8 “o Kitsch é resultado da tradução de um código mais amplo para um código mais reduzido – e para um auditório mais largo (...). Segue-se que a visão do kitsch como ‘pseudo-arte’ (na tradução de Anatol Rosenfeld), é uma visão das camadas superiores da cultura”. (PIGNATARI, 1981, p. 97 e 98).
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como música “popular” havia sempre uma contra-argumentação por parte dos
franceses quanto a nomeá-la de “popular”. Para eles – assim como para os europeus
em geral, já que “popular” continua sendo sinônimo de folclórico – essa canção
brasileira era “música de autor”, “música escrita”, mas não popular. Foram esses
comentários que levaram Sandroni a escrever o artigo defendendo a inadequação da
idéia de Música Popular Brasileira para designar a música/canção nacional de hoje.
Entre o aproveitamento do folclore e do erudito, entre o mercado e a intenção
artística, a canção brasileira demonstra arrojamentos dignos da arte de vanguarda ao
mesmo tempo em que se sujeita a práticas da lógica de mercado. É possível ver dois
grupos de parâmetros dessa produção: de um lado, músicas como a bossa nova com
ganhos para a estruturação harmônica e interpretação, os tropicalistas com
experimentalismos, a atual incorporação de técnicas eletroacústicas e composições
atonais etc; e de outro, a sujeição a fórmulas interiorizadas pela prática cancionista, os
jabás para que os meios de comunicação divulguem o produto como se fosse outro
qualquer, as formas de execução e distribuição de lógica comercial etc.
Mas note-se, nem toda a produção de canções do Brasil se encaixa nesses
parâmetros. Há uma produção que se encaixa apenas nos quesitos da lógica do
mercado – geralmente são os campeões de vendagem: Banda Kalipso, Zezé de
Camargo e Luciano, Leonardo, Daniel, Sandy e Júnior e muitos outros. Mas há
produções que não. O novo disco de Chico Buarque, por exemplo: a lógica de sua
distribuição é bastante parecida com a dos exemplos acima. O disco foi gravado pela
Biscoito Fino; houve divulgação nos meios de comunicação; algumas rádios
executam canções do disco; as revistas de cultura dão notícias de seu lançamento;
jornais entrevistam o cancionista etc. Entretanto, o disco traz características também
daquele primeiro grupo de parâmetros. Pode não ser música de vanguarda, mas a
harmonização do disco, suas melodias, arranjos e as letras não são “descartáveis”
como aquelas dos grupos e cantores citados anteriormente.
Sendo assim, o termo “popular” é ideologizado em um uso, sinônimo de
folclórico em outro (esse pouco usado no Brasil) e ainda produto puramente
“comercial”, de “massa” e de “consumo”, dentre os outros. Com o termo "Música
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Popular", portanto, não se consegue discernir a maior parte do repertório que figuram
nos estudos de "música popular brasileira".
Não havendo problemas graves com o B da MPB - salvo o fato de que não se
deve exigir uma naturalidade brasileira aos cancionistas do Brasil - e crendo que o
termo Canção é mais apropriado que música, talvez pensar em uma Canção Brasileira
nos permita criar modelos de análises que respeitem essa produção tão fortalecida no
no Brasil.
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