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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
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TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E MERCADO DE TRABALHO:
MUITO ALÉM DA PROSTITUIÇÃO
Thiago Clemente do Amaral1
1) Considerações Iniciais
Travestis e transexuais têm sido objeto de diversos estudos no Brasil desde há pelo menos
vinte anos (BARBOSA, 2010; BENEDETTI, 2005; BENTO, 2008; DUQUE, 2005 e 2011;
GARCIA, 2007; KULICK, 2008; LEITE JR, 2011; MISKOLCI, 2009 e 2012, PELÚCIO, 2009;
TERTO JR, 1989; VENTURA, 2010; dentre outros). Diversos foram os temas tratados no que tange
a esta questão. Discutiu-se a violência, as DST´s, a prostituição, a relação destas pessoas com o
binarismo de gênero em voga em nossa sociedade, etc. Dentre os trabalhos analisados por mim,
poucos buscaram apontar, de forma aprofundada, as razões da inter-relação entre estes sujeitos e os
temas mencionados2.
Não defendo, no que tange à prostituição, por exemplo, que a realidade das travestis seja
universal e imbuída de fatalismos. Por óbvio, a realidade individual de cada uma das pessoas que
vive neste tipo de situação é única e específica, sendo bastante temerária uma tentativa de
generalizar motivos que as levam a esta situação, sem uma análise que parta de uma pesquisa mais
aprofundada do que a presente.
No entanto, não se pode deixar de apontar questões que tocam a um número considerável de
travestis e transexuais em suas histórias de vida: a dificuldade de fazer-se respeitar em seu processo
de questionamento factual ao binarismo de gênero; a expulsão de casa e a falta de apoio da família;
a evasão escolar, devido à falta de preparo do Estado, por meio de seus professores, para lidar com a
1 Graduando do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Email: [email protected]
2 Não me refiro aqui a supostas causas biológicas ou psicológicas que condicionariam tais sujeitos a viverem estas
realidades, mas sim a causas sociais que levaram estas pessoas a viverem em situações de extrema dificuldade não só
financeira, mas também educacional, política, e mesmo no âmbito de direitos humanos dos mais básicos, tais como
moradia, saúde, educação, além do reconhecimento de uma identidade que lhes tem sido negadas ainda quase 25 anos
após a promulgação da chamada “Constituição cidadã”.
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situação da transgeneridade; a falta de acesso à saúde pública, e de dinheiro para recorrer à saúde
privada, que faz com que muitas travestis e transexuais interfiram em seu corpo tomando hormônios
e colocando próteses de silicone industrial sem nenhum acompanhamento médico, por vezes
correndo-se sérios riscos que podem levar à morte3; e, por fim, a dificuldade na obtenção de um
emprego fora do mercado da prostituição, seja devido à falta de conclusão dos estudos, seja devido
à falta de passaportes básicos para sua inserção social, tais como documentação que indique seu
nome social de maneira coerente com sua forma de apresentação enquanto gênero distinto daquele
imposto em seu nascimento.
Os estudos que se debruçaram sobre tais questões partiram muitas vezes de uma realidade
vista estereotipicamente como dada: a intersecção necessária da vida das travestis com a violência,
doenças, degradação e prostituição. A partir desta visão, estuda-se como funciona a realidade, sem
se buscar as causas sociais que criam estes estereótipos. A propósito, cabe questionar se este tipo de
abordagem não vem a reforçar ainda mais tais estereótipos, uma vez que traz o debate para o campo
meramente descritivo, deixando-se diversos fatores sociais mais aprofundados de lado.
Outra forma de abordagem é aquela que se preocupa em encontrar as causas para tal
intersecção de temas. No entanto, muitas vezes as razões são buscadas em realidades muito
individualizadas, separadas de um contexto social mais amplo, evitando-se determinadas
discussões, como o papel da quebra do binarismo de gênero na conformação de tais realidades.
Neste tipo de abordagem, buscam-se apenas as causas psicológicas e individualizadas para a
discriminação, tornando-se o debate incompleto e enviesado.
Por fim, encontrei abordagens que buscaram fazer uma discussão mais aprofundada sobre as
razões sociais que levam grande parte das pessoas a apontarem as travestis como uma espécie
escória social; nestas abordagens, percebi uma preocupação bastante grande em relação aos motivos
sociais que contribuem para que as travestis sejam excluídas da escola, da família, do mundo do
trabalho, do atendimento à saúde, levando-as muitas vezes a terem que trabalhar com a prostituição.
3 Discorri sobre o tema do silicone industrial e sua inter-relação com o mundo jurídico em artigo apresentado para o X
ENUDS, em novembro de 2012. Infelizmente, os Anais deste encontro ainda não foram publicados.
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Pretendo, neste trabalho, trazer algumas considerações para este debate, fazendo algumas
perguntas que vão em sentido complementar a este último tipo de abordagem apontada acima: por
que algumas travestis e transexuais estão inseridas no mercado de trabalho formal, fora do mercado
de prostituição, enquanto outras encontram apenas esta como alternativa? Quais fatores as levaram
a enveredar por um caminho diverso daquele apontado pela maior parte dos trabalhos que se
propuseram a estudar estas pessoas?
Baseado em entrevistas e leituras que tenho realizado para minha pesquisa de conclusão de
curso, busco apontar hipóteses que ajudariam a responder tais questões. Como já dito, por se tratar
de uma pesquisa qualitativa (conversei apenas com cinco travestis/transexuais que estão ou
estiveram inseridas recentemente no mercado de trabalho), não poderia ter a pretensão de dar
respostas completamente precisas e acabadas sobre o tema.
Minha intenção neste trabalho é apontar elementos que encontrei em comum nas cinco
experiências a mim relatadas, e propor assim linhas gerais que possam ser utilizadas em pesquisas
ulteriores sobre o tema.
Aponto, no primeiro item deste trabalho, a quebra do binarismo de gênero como o principal
fator de exclusão social de travestis e transexuais. Discuto que esta relação acontece devido à
dificuldade (por vezes relativa, conforme apontado por DUQUE:2011) destas pessoas em se
utilizarem do mecanismo do armário para enfrentar determinados problemas sociais. Diante desta
dificuldade, faço uma breve digressão sobre a impertinência de subsumir o termo “transfobia” ao
termo “homofobia”, tal como propõe determinados setores do movimento LGBT.
Em seguida, busco entender quais fatores contrabalanceiam esta pressão relacionada à
quebra do binarismo de gênero, possibilitando a algumas travestis e transexuais o término de seus
estudos e a inserção no mercado de trabalho, enquanto que para outras tais portas são fechadas
desde muito cedo.
Por fim, discuto, a partir destas questões, as diferenciações acionadas pelas minhas
entrevistadas para referir-se aos termos “travesti” e “transexual”, ligados muitas vezes não à
diferenciação médico-institucional referente à suposta aversão ao órgão genital, mas sim devido à
construção social dos termos e seus respectivos estigmas. Aponto que o termo “transexual”, mais
asséptico (ainda mais por ter sido criado “em laboratório” e ser utilizado por profissionais de saúde
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e das áreas psi) muitas vezes serve de substituto para o termo “travesti” justamente para pessoas que
visam se livrar do estigma criado por este último, consolidando assim seu papel de relativa inserção
social.
2) A quebra do binarismo de gênero4 e a impossibilidade do armário como principais
fatores para a exclusão social de travestis e transexuais
Ocorre com as pessoas que iniciam o processo transgênero não apenas uma mera opressão
referente à orientação sexual, mas também uma opressão de gênero.
A discriminação contra transexuais e travestis femininas é mais marcada do que a dos
homens gays, uma vez que a realidade que se impõe em nossa sociedade é não só heterocentrada,
mas também machocentrada. Assim sendo, o processo de feminilização destas pessoas é encarado,
muitas vezes, como uma afronta dupla: ao binarismo de gênero e à supremacia do sexo masculino,
cuja negação acaba por ser bastante execrada5.
Miskolci afirma, neste sentido, ao se referir a usuários de internet gays estudados por ele,
que a atração por pessoas do mesmo sexo os leva necessariamente a confrontar a ordem social,
perdendo o privilégio do gênero masculino, o que, de certa forma, os exporia a serem humilhados e
(mal)tratados como mulheres” (MISKOLCI, 2009:187).
Sendo assim, é extremamente problemático o entendimento (corrente em setores do
movimento LGBT) de que as questões referentes à transfobia devem estar subsumidas às questões
4 Entenda-se por binarismo de gênero, em linhas muito gerais, a necessidade imposta socialmente às pessoas
para que elas sejam enquadradas no gênero masculino e feminino, sendo que o primeiro é mais valorizado
socialmente do que o segundo. Por esta perspectiva, qualquer “desvio” que aponte para uma espécie de “confusão”
entre os gêneros embaralha este sistema, evidenciando que tal divisão possui forte caráter social, ao invés da visão
biologizante que impera nos últimos séculos.
5 Alguns autores, como Miskolci (2009; 2012), apontam para uma espécie de valorização da masculinidade, em
geral associada a heterossexuais, entre uma grande parcela de gays. Esta valorização costuma vir acompanhada de
uma desvalorização de tudo o que possa ser ligado à feminilidade. Sob este viés, reforça-se não só a discriminação
contra gays afeminados, que dão pinta, mas também a discriminação contra travestis e transexuais, que são vistas
muitas vezes como pessoas que abdicaram de sua masculinidade.
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referentes à homofobia de maneira geral6. Não há dúvida de que a questão da orientação sexual
refere-se a um marcador social diferente do referente à questão de gênero, embora haja pontos
claros de intersecção entre ambos.
Além da já mencionada questão da quebra do binarismo de gênero, cabe ressaltar o papel do
armário para melhor diferenciar aspectos específicos da transfobia de aspectos mais genéricos da
homofobia.
Enquanto no caso dos homens gays, por exemplo, sempre irá existir, em menor ou maior
grau, a possibilidade de esconder-se no armário, em relação às travestis e transexuais, devido à
marcação de diferença de gênero (costumeiramente mais acentuada do que a marcação referente à
orientação sexual) o armário é, quase sempre, impossível de ser usado com a mesma destreza.
Segdwick, ao analisar a questão do armário em seu clássico estudo sobre assunto, aponta
que até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário
com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas.
(SEDGWICK, 1993:22)
Ao comparar a situação de discriminação do gay com outras modalidades de opressão,
Sedgwick aponta que o racismo (…) baseia-se num estigma que é visível, salvo em alguns casos
excepcionais (…). O mesmo vale para as opressões fundadas em gênero, idade, tamanho,
deficiência física. (ibidem)
Ao trazer a questão do armário para a realidade brasileira contemporânea, em especial no
que diz respeito às sociabilidades via internet, Miskolci aponta que a valorização da capacidade de
“desaparecer” discretamente na sociedade oblitera o fato de que em busca de proteção se reforça a
mesma ordem simbólica que historicamente oprimiu e relegou às margens (“ao meio”) as
sexualidades em desacordo com as normas dominantes (MISKOLCI, 2009:177). O que ocorre no
caso das travestis e transexuais é que, em grande parte das vezes, não existe esta possibilidade de
desaparecimento / permanência no armário descrita por Miskolci.
Este estar (necessariamente) fora do armário7 pode ser apontado como um dos motivos que
aumentam o estigma da população trans, uma vez que a permanente exposição de elementos de 6 Discorrerei melhor sobre este tema em tópico próprio.
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transgeneridade faz com que os riscos de agressão corridos por estas pessoas seja maior do que o de
setores do movimento LGBT que podem encontrar guarida dentro deste mecanismo.
Vistas as duas questões apontadas no título deste tópico, as quais estão completamente
imbricadas com a transfobia, irei agora apontar alguns elementos que podem servir de contraponto a
tais dificuldades. Discorro a seguir sobre dois deles: a não-ruptura dos laços familiares e o início
relativamente tardio do processo de transformação de gênero.
3) A não-ruptura dos laços familiares e o início relativamente tardio do processo de
transexualização
Kulick, em seu clássico trabalho escrito nos anos 1990, já apontava a ruptura com a família
como um momento crucial no percurso que leva algumas travestis à prostituição: à medida que que
tais modificações [corporais] vão se tornando mais aparentes, os meninos quase sempre são
expulsos de casa ou a abandonam por livre iniciativa (KULICK, 2008:65).
Em que pese ser questionável este abandono por livre iniciativa8, é importante ressaltar a
importância deste momento de ruptura com a família, ponto crucial do percurso que leva (ainda
hoje) ao mercado do sexo grande parcela de travestis e transexuais.
Entre as pessoas que entrevistei, todas afirmam que possuem relações boas com suas
famílias, em que pesem algumas diferenças. Geanne9 não mora com seus pais, mas os visita com
frequência e relata apoio da família quando iniciou seu processo de transexualização; Thayná mora
com seus pais e afirma não ter nenhum problema com eles no que diz respeito à sua
transexualidade; Josiane afirma que também mora com sua mãe, mas não teve apoio em sua
7 Tiago Duque (2011) relativiza esta questão em sua análise sobre travestis adolescentes da cidade de Campinas, ao
propor que tais sujeitos utilizam-se das montagens e desmontagens de forma estratégica, a depender de situações, locais
e interesses distintos existentes em diferentes contextos.
8 A título de exemplo, aponto a autobiografia de Fernanda Farias de Albuquerque: Era dia 8 de maio de 1982, e tudo
despencou sobre mim. Foi pela vergonha de ser descoberto, pela coragem que eu não tinha. (…) Porque à minha saia
eu não podia renunciar. Por tudo isso e por tantas outras coisas mais, naquela noite enxerguei só uma saída, a fuga. A
outra, o suicídio, na época me parecia clamorosa demais. (ALBUQUERQUE & JANELLI, 1995:51).
9 Utilizo neste trabalho os nomes sociais pelos quais minhas entrevistadas se apresentaram a mim.
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mudança corporal, sendo que até hoje é chamada por ela pelo nome de batismo; Jacqueline tem
família em Belém, que a visita com alguma frequência em São Paulo, e possui uma irmã lésbica e
um irmão gay; Daniela não mora com os pais, mas ajuda-os financeiramente e os visita com
frequência.
Em termos de ruptura/manutenção dos laços familiares, Josiane foi quem mais encontrou
dificuldades. Embora hoje more com seus pais, quando iniciou o processo de transexualização teve
de sair de casa, e acabou se prostituindo por um tempo. No entanto, mesmo neste caso mais extremo
de ruptura familiar, os laços não foram completamente desfeitos, tanto que ela voltou para a casa
dos pais, onde mora até hoje.
Acredito que esta lógica de não ruptura das relações familiares seja um dos motivos pelos
quais minhas entrevistadas conseguiram concluir pelo menos o ensino médio (sendo que duas delas
concluíram o ensino superior), com a consequente maior facilidade de inserção no mercado de
trabalho (e, não por acaso, a maior parte delas possui uma renda mensal que varia de 5 a 10 salários
mínimos).
Outro fator relevante que acredito poder explicar esta menor dificuldade na inserção destas
pessoas no mercado de trabalho diz respeito ao fato de que todas as minhas entrevistadas
começaram o processo de transexualização após os vinte anos de idade.
Esta relação ocorre, dentre outras variáveis, justamente porque pessoas que começam seu
processo de transformação de gênero ainda durante a idade escolar sofrem também de forma mais
precoce os efeitos do preconceito transfóbico.
Em tais casos, as pessoas se colocam fora do armário de maneira relativamente cedo,
enfrentando mais dificuldades do que garotos gays, que por vezes encontram formas de esconder ou
disfarçar sua sexualidade dissidente, enquanto esta é afirmada por travestis e transexuais em seu
corpo e em suas roupas, ficando mais suscetíveis a ataques justamente por se confrontarem tão
inequivocamente contra o binarismo de gênero.
Por outro lado, cabe ressaltar que o manejo do armário na idade escolar ocorre de forma
diferente entre garotos gays afeminados e aqueles que não o são, justamente por haver no primeiro
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caso uma espécie de ruptura com as concepções sociais referentes a comportamentos
masculino/feminino.
Neste sentido, ouvi de algumas de minhas entrevistadas frases como: “sempre fui bastante
afeminada na escola, apesar de ter iniciado meu processo de transexualização após a idade
escolar”, frases estas buscando justamente apontar para as dificuldades encontradas desde cedo, as
quais viriam a ser aprofundadas com o início do processo de transexualização.
Esta hostilidade durante a idade escolar que encontrei em minhas entrevistas também foi
apontada por Fernanda Farias de Albuquerque, ainda que suas primeiras experiências transexuais
tenham ocorrido no final da adolescência: Voavam bolinhas de papel, me bombardeavam com
bilhetinhos escritos em folhas amassadas. Jogavam nas minhas costas enquanto eu estava no
quadro-negro. (…) Pedia ajuda a Izael Dias [o professor]. Ele requebrava e me imitava com voz
afeminada: Fala, diga para mim, Fernandinho, o que você quer? Eu emudecia, coberto de
vergonha” (ALBUQUERQUE & JANNELLI, 1995:35)
Apesar de ter iniciado seu processo de transexualização aos 18 anos, as incessantes chacotas
não permitiram a Fernanda a oportunidade de concluir os estudos Em que pese a gravidade de tal
situação, cabe questionar se seria possível sequer a existência de Fernanda na escola e na cidade
onde cresceu nos anos 1960/1970, caso a mesma tivesse iniciado tal processo de transexualização
ainda mais cedo10
.
4. Homofobia não engloba transfobia
A partir das especificidades apontadas nos pontos anteriores, no que diz respeito à
transfobia, cabe trazer à discussão um ponto bastante controverso no movimento LGBT: a
afirmação por vezes feita de que o conceito de homofobia abrangeria o conceito de transfobia.
10
É importante ressalvar que não estou aqui fazendo uma defesa de que o processo de transexualização deva começar
de maneira mais precoce ou mais tardia. Por óbvio, independentemente da idade em que o mesmo se inicie, não é
justificável a interferência violenta por parte da família, de colegas de escola e de trabalho, e menos ainda de
representantes de órgãos estatais, tais como professores ou médicos. Busco aqui meramente fazer uma descrição de
situações que identifiquei como de maior potencial de discriminação em relação a sexualidades dissidentes.
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Contrapondo-se a esta visão, Daniela me fez os seguintes questionamentos: Quantos gays
vão numa farmácia comprar remédio e o farmacêutico pede pra ele o RG dele e o farmacêutico fica
achando que ele tá mentindo, quantos gays passam por isso? Quantos gays pedem pra professora
chamá-los na hora da chamada de “Maria”, quando o nome do RG dele tá “João”, e a professora
faz questão de gritar em alto e bom som: "João!". Quantos gays passam por isso? Isso é
homofobia, ou transfobia?
O Relatório do GGB (Grupo Gay da Bahia) referente ao ano de 2012 apontou que 37% da
população LGBT assassinada naquele ano foi composta de travestis e transexuais.
Tais exemplos trazem apontam para a necessidade de um tratamento diferenciado da questão
transexual dentro do movimento LGBT. Buscar subsumir o tema da transfobia ao tema da
homofobia significa nada menos do que tentar anular um sujeito político com especificidades
próprias, que sofre preconceito de maneira diferente.
Uma de minhas entrevistadas, Daniela, afirmou peremptoriamente que tal “confusão” entre
os termos “transfobia” e “homofobia” não é despropositada. Segundo ela, grupos LGBT´s, quase
sempre dirigidos e compostos majoritariamente por homens gays brancos de classe média, se
apropriam da pauta trans para inflar os dados da violência LGBT em geral, deixando de lado quase
sempre a informação de que a população trans é muito mais vulnerável à violência, pelos motivos já
expostos anteriormente, dentre outros.
5. Da diferenciação dos termos “transexual” e “travesti”
O caminho mais fácil (e, no entanto, o mais cômodo e mais perverso) para se buscar
diferenciar estes termos é o da reprodução dos saberes médico-institucionais e psicológicos
vigentes, afirmando-se que, enquanto as transexuais teriam aversão ao órgão sexual biológico, as
travestis o aceitariam sem maiores problemas.
Nesta linha de argumentação, Pelúcio afirma que as travestis são pessoas que se entendem
como homens que gostam de se relacionar sexual e afetivamente com outros homens, mas que para
tanto procuram inserir em seu corpos símbolos do que é socialmente tido como próprio do
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feminino. Não desejam porém, extirpar sua genitália, com a qual, geralmente, convivem sem
grandes conflitos. (PELÚCIO, 2009:44)
Leite Jr. traz o debate para um plano discursivo um pouco mais distante destes campos de
saberes “científicos”, afirmando que:
Como o discurso sobre a transexualidade possui uma aura mais ´higiênica´, forjado nos laboratórios e
consultórios da Europa e dos Estados Unidos e ainda pouco disseminado popularmente em suas
especificidades teóricas, pode-se afirmar que o termo ´transexual´ possui um capital linguístico mais
valorizado que o termo ´travesti´, podendo ser mais facilmente convertido em capital social e, desta forma,
sendo capaz de abrir ou fechar portas segundo a maneira como a pessoa se autoidentifica ou é identificada.
(LEITE JR., 2011:214)
Mesmo Pelúcio, em outro trecho de seu trabalho, afirma ter convivido com pessoas que se
identificavam como transexuais, mas viviam, segundo elas mesmas, como travestis que, em algum
momento da vida, desejaram tirar o pênis, e outras que jamais tinham pensado naquilo, mas que
começavam a estudar essa possibilidade mais recentemente, passando a cogitar a possibilidade de
serem transexuais (PELÚCIO, 2009:42)
Encontrei em minhas entrevistas uma visão muito mais aproximada a esta segunda
afirmação, de cunho mais sociológico, do que em relação à primeira, de cunho mais psicológico.
Cito como exemplo a entrevista com Geanne, que se apresentou para mim como transexual,
e afirmou não desejar para si o processo de transgenitalização, por considerar os atuais métodos
como “castrativos”, pois o órgão criado a partir da vaginoplastia não possibilitaria nenhum tipo de
prazer sexual. Diante desta visão, Geanne afirmou que assume a identidade transexual, em
detrimento da identidade travesti, devido ao fato de esta última estar historicamente relacionada à
prostituição, crimes e drogas.
Nesta mesma linha, cito as afirmações de Daniela, para quem
apesar de existirem discursos médicos e jurídicos que faz uma distinção entre travesti e transexual, esta
diferenciação está baseada em estereótipos (…). Esta diferença é muito mais social do que qualquer outra
coisa. Por exemplo, é mentira que todas as transexuais querem se operar. Eu conheço inúmeras transexuais
que não querem fazer a transgenitalização, e é mentira que toda travesti se sente como homem e como mulher.
Existem travestis que se veem como mulher, que querem ser tratadas no feminino. e eu conheço travesti que
não tem nenhum apreço em fazer uso do seu órgão genital. Então você percebe que esta diferença é muito mais
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social. Você vê que pessoas mais excluídas e mais marginalizadas, que têm pouco estudo, pouco acesso a
informação, elas só se definem como travestis, ao passo que pessoas que estudaram mais, elas se
autodefinem com transexuais. Fora que a invenção da transexualidade é uma coisa muito recente, no sentido
da definição. (...) A diferença não existe que não seja na classe social, porque tanto travestis como transexuais
querem ser vistas como mulheres, e essa diferenciação por meio da cirurgia é tão absurdo... (...) Genitália não
define gênero, apesar do discurso médico e jurídico. Na vida real isto não existe. (…) Se você se apresenta
como travesti automaticamente as pessoas vão te ver como marginal ou como prostituta, enfim, sempre
dentro do âmbito da criminalidade. Logo, eu percebo que muitas travestis se dizem transexuais pra fugir
deste estigma. Existe uma compaixão para com a pessoa quando ela se diz transexual e uma opressão para
quando ela se diz travesti. (grifos meus)
Cabe ressaltar que algumas pessoas, como a ativista Janaína Lima, optam pelo termo
“travesti” justamente por razões políticas, dentre outros motivos para evitar a associação de sua
identidade com a visão asséptica e patologizante que muitas vezes possui o termo “transexual”.
Além de Janaína, em conversas informais com outras pessoas ao longo desta pesquisa, pude
perceber que este posicionamento encontra alguma repercussão.
Em suma, diante das divergências existentes em relação a estes dois conceitos, não há
porque prosperar uma visão médico-psicológica, que difere completamente daquela observada no
mundo real de tais sujeitos.
6. Brevíssimas considerações finais
Busquei neste trabalho apontar algumas razões que diferenciam o preconceito transfóbico do
preconceito homofóbico, visando contribuir para a desconstrução de uma visão conservadora e
politicamente nociva que coloca o primeiro termo como parte do segundo.
Busquei ainda mostrar, a partir das experiências de pessoas com quem conversei, alguns
elementos que podem levaram determinadas transexuais ou travestis a encontrarem emprego fora da
prostituição. Escolhi esta abordagem justamente para me diferenciar da enorme quantidade de
trabalhos que relacionam estes sujeitos com a prostituição.
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Por fim, debati a (im)pertinência dos saberes médicos e psicológicos acerca dos termos
“travesti” e “transexual”, mostrando que a realidade é muito mais rica do que o mero
enquadramento burocrático biologizante realizado em determinados ambientes, sob uma aura de
suposta “cientificidade”.
Referências
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na Europa escrita por um dos líderes da Brigada Vermelha. Rio de Janeiro. Nova Fronteira: 1995.
BARBOSA, Bruno César. Nomes e Diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e
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Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo: 2010.
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Garamond, 2005.
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DUQUE, Tiago. Montadas para toda a vida? O uso do silicone líquido na construção da identidade
travesti. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência para obtenção do título de
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
2006.
__________________. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis
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identidade entre travestis de baixa renda. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2007.
KULICK, Don. Travesti: prostituição, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz:
2008.
LEITE JR., Jorge. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e
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MISKOLCI, Richard. A gramática do armário: notas sobre segredos e mentiras em relações
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PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo da aids.
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SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário, in: Cadernos Pagu 28, 2007, pp. 19-54.
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