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5 Física na Escola, v. 4, n. 1, 2003 N este ano comemoram-se os 50 anos da identificação da estrutura de dupla hélice do DNA. Tal acontecimento teve um enorme impacto sobre a ciência e trouxe importantes conseqüências científicas, tecnológicas, econômicas e sociais para a humanidade. A ima- gem da dupla hélice tornou-se um ícone da ciência moderna. Na Nature de 25 de abril de 1953 James Watson e Francis Crick publi- caram A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid. No mesmo número saí- ram os artigos de Maurice Wilkins, Alexander Stokes e Herbert Wilson e de Rosalind Franklin e Raymond Gos- ling, nos quais mostrava-se que o modelo da dupla hélice era compatível com os resultados experimentais por difração de raios-X. Em maio de 53, Watson e Crick analisaram as impli- cações genéticas da estrutura do DNA e sugeriram o meca- nismo da replicação. O Prêmio Nobel de 1962 seria conce- dido a Crick, Watson e Wilkins. Rosalind Franklin, uma per- sonagem também central nesta histó- ria, já havia falecido em 1958. Publicamos aqui a tradução do arti- go original de Watson e Crick. É um artigo curto que pode ser discutido em sala de aula, de forma interdisciplinar, em um trabalho conjunto de profes- sores de Biologia, Física, Química e História. Em particular, queremos destacar a importância que a Física - tanto teórica como experimental - e vários físicos tiveram na caminhada complexa que conduziu à dupla hé- lice. Entre os quatro cientistas com participação direta e decisiva no pro- cesso final, Crick e Wilkins eram físi- cos, Rosalind Franklin tinha formação em Química e Física e Watson era for- mado em Biologia e fizera seu douto- ramento sobre bacteriófagos desati- vados por incidência de raios-X. Da Física viriam também contribuições importantes, nos anos seguintes, para o deciframento do código genético. Muitas foram as linhas de pesqui- sa que conduziram à estrutura do DNA. A primeira surgiu, na genética clássica, com os trabalhos de Mendel, em 1865 (redescobertos em 1900). No início do século XX, biólogos cons- truíram a teoria cromossômica da hereditariedade; surgiu o conceito de gene e o de mapeamento gené- tico. Naquela épo- ca, técnicas vindas da Física - o uso da radioatividade e dos raios-X - co- meçaram a ser uti- lizadas nas inves- tigações biológicas. Em 1922, Her- mann Müller analisou as mutações genéticas ocasionadas por raios-X. Entre os anos 1930 e 1950 predomi- nou a idéia de que o material genético era constituído por proteínas em Ildeu de Castro Moreira Instituto de Física - UFRJ Em comemoração aos 50 anos da proposta da dupla hélice, publicamos a tradução do artigo original de Watson e Crick onde os pesquisa- dores apresentam sua proposta para a estru- tura do DNA. A tradução é de Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani. Muitas linhas de pesquisa conduziram à estrutura do DNA: a genética clássica de Mendel, em 1865; a teoria cromossômica da here- ditariedade no início do século XX; as mutações genéticas analisadas por Müller em 1922 e finalmente a idéia de que o material genético era constituído por proteínas (a partir dos anos 1930) Os 50 Anos da Dupla Hélice

Ildeu de Castro Moreira Instituto de Física - UFRJ · James Watson e Francis Crick publi-caram A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid. No mesmo número saí-ram os artigos de Maurice

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Page 1: Ildeu de Castro Moreira Instituto de Física - UFRJ · James Watson e Francis Crick publi-caram A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid. No mesmo número saí-ram os artigos de Maurice

5Física na Escola, v. 4, n. 1, 2003

Neste ano comemoram-se os50 anos da identificação daestrutura de dupla hélice do

DNA. Tal acontecimento teve umenorme impacto sobre a ciência etrouxe importantes conseqüênciascientíficas, tecnológicas, econômicase sociais para a humanidade. A ima-gem da dupla hélice tornou-se umícone da ciência moderna.

Na Nature de 25 de abril de 1953James Watson e Francis Crick publi-caram A Structure for DeoxyriboseNucleic Acid. No mesmo número saí-ram os artigos de Maurice Wilkins,Alexander Stokes e Herbert Wilson ede Rosalind Franklin e Raymond Gos-ling, nos quais mostrava-se que omodelo da dupla hélice era compatívelcom os resultados experimentais pordifração de raios-X. Em maio de 53,Watson e Crick analisaram as impli-cações genéticas daestrutura do DNA esugeriram o meca-nismo da replicação.O Prêmio Nobel de1962 seria conce-dido a Crick, Watsone Wilkins. RosalindFranklin, uma per-sonagem tambémcentral nesta histó-ria, já havia falecidoem 1958.

Publicamos aquia tradução do arti-go original de Watson e Crick. É umartigo curto que pode ser discutido emsala de aula, de forma interdisciplinar,em um trabalho conjunto de profes-sores de Biologia, Física, Química e

História. Em particular, queremosdestacar a importância que a Física -tanto teórica como experimental - evários físicos tiveram na caminhadacomplexa que conduziu à dupla hé-lice. Entre os quatro cientistas comparticipação direta e decisiva no pro-cesso final, Crick e Wilkins eram físi-cos, Rosalind Franklin tinha formaçãoem Química e Física e Watson era for-mado em Biologia e fizera seu douto-ramento sobre bacteriófagos desati-vados por incidência de raios-X. DaFísica viriam também contribuiçõesimportantes, nos anos seguintes, parao deciframento do código genético.

Muitas foram as linhas de pesqui-sa que conduziram à estrutura doDNA. A primeira surgiu, na genéticaclássica, com os trabalhos de Mendel,em 1865 (redescobertos em 1900).No início do século XX, biólogos cons-

truíram a teoriacromossômica dahereditariedade;surgiu o conceitode gene e o demapeamento gené-tico. Naquela épo-ca, técnicas vindasda Física - o uso daradioatividade edos raios-X - co-meçaram a ser uti-lizadas nas inves-tigações biológicas.Em 1922, Her-

mann Müller analisou as mutaçõesgenéticas ocasionadas por raios-X.Entre os anos 1930 e 1950 predomi-nou a idéia de que o material genéticoera constituído por proteínas em

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Ildeu de Castro MoreiraInstituto de Física - UFRJ

Em comemoração aos 50 anos da proposta dadupla hélice, publicamos a tradução do artigooriginal de Watson e Crick onde os pesquisa-dores apresentam sua proposta para a estru-tura do DNA. A tradução é de Ildeu de CastroMoreira e Luisa Massarani.

Muitas linhas de pesquisaconduziram à estrutura do

DNA: a genética clássica deMendel, em 1865; a teoria

cromossômica da here-ditariedade no início doséculo XX; as mutações

genéticas analisadas porMüller em 1922 e

finalmente a idéia de que omaterial genético era

constituído por proteínas (apartir dos anos 1930)

Os 50 Anos da Dupla Hélice

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6 Física na Escola, v. 4, n. 1, 2003

Gostaríamos de sugerir umaestrutura para o sal de ácidodesoxirribonucléico (D.N.A.).

Essa estrutura tem característicasinusitadas que são de interesse bioló-gico considerável.

Uma estrutura para o ácido nu-cléico já foi proposta por Pauling e Co-rey (1953). Eles gentilmente permi-tiram que tivéssemos acesso a seumanuscrito antes da sua publicação.O modelo que eles propõem consistede três cadeias entrelaçadas com osfosfatos próximos do eixo do filamen-to e as bases localizadas na parte exter-

Uma Estrutura para o Ácido Desoxirribonucléico

J.D. Watson e F.H.C. CrickLaboratório Cavendish, Cambridge

Nature v. 171, n. 4356, 1953 p. 737-738

na. Em nossa opinião, essa estrutura éinsatisfatória por duas razões: (1)Acreditamos que o material que for-nece os diagramas de raios-X é o sal,não o ácido livre. Sem os átomos ací-dicos de hidrogênio não é claro queforças manteriam a estrutura unida,especialmente porque os fosfatos nega-tivamente carregados que estão pertodo eixo se repelirão uns aos outros. (2)Algumas das distâncias de Van derWaals parecem ser muito pequenas.

Outra estrutura com três cadeiasfoi também sugerida por Fraser (noprelo). Nesse modelo, os fosfatos estão

função de sua complexidade molecu-lar. O DNA foi estudado em sua com-posição química, mas era julgadomuito simples para ser o portador dainformação genética. Com a FísicaQuântica e as novas técnicas para oestudo da matéria, iniciou-se a buscadas estruturas mo-leculares. Destaca-ram-se HermannStaudinger, com oconceito de macro-molécula e os estu-dos de viscosime-tria, e WilliamAstbury que, apoi-ado nos recursos daindústria têxtil inglesa, analisou asfibras vegetais e o DNA pela difraçãode raios-X. Nas pesquisas que busca-vam a construção de modelos tridi-mensionais moleculares, o químicoLinus Pauling se tornou o cientistamais influente, tendo elaborado omodelo da alfa-hélice para as proteí-nas, em 1950.

O estudo das transformações embactérias possibilitou uma mudançade paradigma: a molécula que contémas informações genéticas passa a ser

o DNA. Nos anos 1940 surge o grupoFago - capitaneado por Max Delbrück,aluno de Bohr, e Salvador Luria(orientador de Watson) – que, estu-dando os bacteriófagos, explorava asligações entre Física, Genética e o con-ceito de informação. Em 1944, Schrö-

dinger publicou seulivro What is Life?no qual sugeria queas informações ge-néticas estão arma-zenadas em umaestrutura molecularestável (um “cristalaperiódico”). A in-fluência deste livro

no pensamento científico da época foimuito grande, tendo sido expli-citamente reconhecida por Wilkins,Crick, Luria e Watson.

No início dos anos 1950, com oaprimoramento dos experimentos dedifração, em especial por Wilkins eFranklin, sedimentou-se a base parao trabalho de Watson e Crick; eles uti-lizaram também o trabalho de ErwinChargaff sobre as proporções molaresdas bases no DNA. Para construir omodelo de dupla hélice, eles contaram

com muita intuição e ousadia mastambém com a herança provenientede diversas correntes de pensamentoe tradições experimentais.

É interessante ressaltar que, emmuitos artigos que têm rememoradoa emergência da dupla hélice, umaausência constante é a referência a di-versas técnicas, provenientes daFísica e da Química, que possibili-taram que tais avanços ocorressem.Entre as principais, podemos mencio-nar o uso dos raios-X e da radioati-vidade. Além deles, tiveram destaquea invenção da ultracentrífuga, porSvedberg nos anos 1920; o uso dafotografia por absorção de ultra-violeta; a microscopia eletrônica; osmétodos aprimorados de croma-tografia e de viscosimetria e métodosmatemáticos: uso das séries e dastransformadas de Fourier na inter-pretação das figuras de difração porraios-X.

A identificação da estrutura doDNA é um bom exemplo de como aciência moderna progride de forma in-terdisciplinar, colhendo contribuiçõesde várias áreas do conhecimento etambém do avanço tecnológico.

situados na parte externa e as basesna parte de dentro, mantidas juntaspor ligações de hidrogênio. A estru-tura tal como descrita é mal definida,e por essa razão não a comentaremos.

Queremos propor uma estruturaradicalmente diferente para o sal deácido desoxirribonucléico. Essa estru-tura tem duas cadeias helicoidais, cadauma delas enrolada em torno do mes-mo eixo (veja o diagrama). Fizemosas suposições químicas usuais, ou se-ja, que cada cadeia consiste de gruposfosfato diester que ligam resíduos deb-D-desoxirribofuranose com

Os 50 Anos da Dupla Hélice

É interessante ressaltar que,em muitos artigos que têmrememorado a emergência

da dupla hélice, umaausência constante é areferência a técnicas,

provenientes da Física e daQuímica

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7Física na Escola, v. 4, n. 1, 2003 Os 50 Anos da Dupla Hélice

ligações 3’, 5’. As duas cadeias (masnão suas bases) estão ligadas por umpar (díade) perpendicular ao eixo dafibra. Ambas as cadeias seguemhélices que giram no sentido dextró-giro, mas, por causa do par, asseqüências dos átomos nas duascadeias vão em direções opostas. Cadacadeia assemelha-se vagamente aomodelo n. 1 proposto por Furberg(1952), isto é, as bases estão do ladode dentro da hélice e os fosfatos naparte externa. A configuração doaçúcar e dos átomos perto dele é simi-lar à “configuração padrão” deFurberg, o açúcar sendo aproxima-damente perpendicular à base ligada.Há um resíduo em cada cadeia a cada3,4 Å na direção z. Fizemos a suposi-ção de um ângulo de 36o entre resí-duos adjacentes na mesma cadeia, demodo que a estrutura se repete depoisde 10 resíduos em cada cadeia, isto é,após 34 Å. A distância de um átomode fósforo do eixo do filamento é de10 Å. Como os fosfatos estão na parteexterna, cátions têm acesso fácil a eles.

A estrutura é aberta, e seu teor deágua é bastante alto. Com conteúdode água mais baixo esperaríamos queas bases se inclinassem de modo que

a estrutura poderia se tornar maiscompacta.

A característica nova da estruturaé a maneira pela qual as duas cadeiassão mantidas juntas pelas bases puri-na e pirimidina. Os planos das basessão perpendiculares ao eixo do fila-mento. Elas estão unidas aos pares,sendo que uma única base de uma ca-deia está conectada, por ligação dehidrogênio, a uma única base da outracadeia, de modo que as duas jazemlado a lado com coordenadas z idên-ticas. Um dos pares deve ser umapurina e o outro uma pirimidina paraque a ligação possa ocorrer. As liga-ções de hidrogênio são feitas como sesegue: purina posição 1 para pirimi-dina posição 1; purina posição 6 parapirimidina posição 6.

Se supomos que as bases ocorremna estrutura somente nas formas tau-toméricas mais plausíveis (isto é, coma configuração ceto em vez de confi-guração enol) encontra-se que somentepares específicos de bases podem seligar. Esses pares são: adenina (purina)com timina (pirimidina), e guanina(purina) com citosina (pirimidina).

Em outras palavras, se uma ade-nina constitui o elemento de um par,em qualquer uma das cadeias, então,sob essas suposições, o outro elementodeve ser timina. O mesmo ocorre paraa guanina e a citosina. A seqüênciade bases em uma única cadeia nãoparece sofrer qualquer restrição. Noentanto, se apenas pares específicos debases puderem ser formados, segue-se que se a seqüência de bases em umacadeia for dada, a seqüência da outrafica automaticamente determinada.

Foi observado experimentalmente(Chargaff, Wyatt, 1952) que a razãoentre as quantidades de adenina e ti-mina, e a razão entre guanina e cito-sina são sempre muito próximas daunidade para o ácido desoxirribo-nucléico.

É provavelmente impossível cons-truir essa estrutura com um açúcarribose no lugar do desoxirribose, por-que o átomo extra de oxigênio levariaa um contato de Van der Waals muitopróximo.

Os dados de raios-X sobre o ácido

Referências BibliográficasPauling, L. and Corey, R.B. Nature,

171:346, 1953; Proc. U.S. Nat. Acad. Sci.39:84, 1953.

Furberg, S. Acta Chem. Scand. 6:634,1952.

Chargaff, E. Para referências veja Za-menhof, S., Brawerman, G., and Chargaff,E. Biochim et Biophys. Acta 9:402, 1952.

Wyatt, G.R. J. Gen. Physiol. 36:201, 1952.Astbury, W.T. Symp. Soc. Exp. Biol. 1,

Nucleic Acid, 66 (Cambridge Univ. Press,1947)

Wilkins, M.H.F. and Randall, J.T. Biochim.et Biophys. Acta 10:192, 1953.

desoxirribonucléico previamentepublicados (Atsbury, 1947; Wilkins eRandall, 1953) são insuficientes paraum teste rigoroso de nossa estrutura.Até onde podemos afirmar, ela é apro-ximadamente compatível com osdados experimentais, mas isso deveser considerado como não compro-vado até que tenha sido verificadocom dados mais precisos. Alguns des-ses dados experimentais serão apre-sentados nas comunicações seguintes.Não tínhamos conhecimento dosdetalhes dos resultados ali apresenta-dos quando imaginamos nossa estru-tura, que está escorada principal-mente, embora não inteiramente,sobre dados experimentais publicadose argumentos estereoquímicos.

Não escapou à nossa observaçãoque o pareamento específico que pos-tulamos sugere imediatamente umpossível mecanismo de cópia para omaterial genético.

Detalhes mais completos sobre aestrutura, incluindo as condições queforam supostas ao construí-la, juntocom um conjunto de coordenadaspara os átomos, serão publicadas emoutro local.

Agradecemos muito ao Dr. JerryDonohue pelos conselhos constantes epelos comentários críticos, especial-mente no que se refere às distânciasinter-atômicas. Fomos também esti-mulados pelo conhecimento da natu-reza geral de resultados experimentaisnão publicados e idéias do Dr. M.H.Wilkins, Dra. R.E. Franklin e seus cola-boradores no King’s College, Londres.Um de nós (J.D.W.) recebe o apoioatravés de uma bolsa da National Foun-dation for Infantile Paralysis.

Esta figura é simplesmente diagramática.As duas folhas simbolizam as duas cadeiasaçúcar-fostato e as barras horizontais ospares de bases que mantém juntas as ca-deias. A linha vertical indica o eixo dafibra.