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Diálogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1. p. 221-225, 2001 NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. Rivail Carvalho Rolim * Neste trabalho, Gizlene Neder centra suas atenções na história das idéias políticas e do poder na constituição do mundo moderno, tendo como referência a Península Ibérica. Procurando empreender uma análise que contemple a compreensão histórica e não uma explicação evolucionária, se propõe a deslindar uma série de aspectos que envolvem a trajetória histórica luso-brasileira. Numa perspectiva dinamista de compreender o processo histórico, problematiza a modernidade trilhada pelos lusitanos, logo não fica presa à idéia de que as sociedades ibéricas são atrasadas ou inferiores em relação aos povos além-Pireneus. Aliás, para a autora, devemos é olhar a “escolha política” desses povos e, a partir daí, compreender os aspectos econômicos, sociais e jurídicos e suas possíveis implicações na contemporaneidade. O momento escolhido é a segunda metade dos oitocentos, circunstância segundo a autora, em que o império luso-brasileiro foi arquitetado e encaminhado. A escolha desse período não teve a intenção de demonstrar o “momento” de passagem para uma outra ordem social, mas a de explorar aspectos de ruptura e continuidade na trajetória para a modernidade ocorrida na sociedade portuguesa e suas influências no Brasil. Com o objetivo de explorar as rupturas e as continuidades ocorridas na sociedade portuguesa no caminho para a modernidade, argumenta que não devemos considerar que as permanências tradicionais sejam meros entulhos da sociedade tradicional a serem removidos pela “civilização”, mas componentes que imprimem suas especificidades na estrutura social luso-brasileira. Aliás, para a autora, “mais que ‘permanência’ de uma ordem tradicional, essa presença faz-se ativa nas formações inconscientes e seu raio de ação é muito maior e desconhecido do que imaginamos à primeira vista”. A partir dessa questão mais ampla de passagem à modernidade, Neder abre uma seara na relação entre a história e o direito ao colocar em evidência o conteúdo das ideologias jurídicas. Neste ponto, vai realçar que a reforma pombalina, no que tange à formação jurídica, implicou um esforço de ruptura com a orientação aristotélico-tomista presente no direito romano e canônico, na medida em que introduziu o método compendado e sintético. Contudo, a * Professor do Departamento de História da UEM-PR e Doutorando em História Social na UFF-RJ.

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Dilogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1. p. 221-225, 2001 NEDER, Gizlene. Iluminismo jurdico-penal luso-brasileiro: obedincia e submisso. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. Rivail Carvalho Rolim* Nestetrabalho,GizleneNedercentrasuasatenesnahistriadas idiaspolticasedopodernaconstituiodomundomoderno,tendocomo refernciaaPennsulaIbrica.Procurandoempreenderumaanliseque contempleacompreensohistricaenoumaexplicaoevolucionria,se propeadeslindarumasriedeaspectosqueenvolvematrajetriahistrica luso-brasileira. Numaperspectivadinamistadecompreenderoprocessohistrico, problematiza a modernidade trilhada pelos lusitanos, logo no fica presa idia de que as sociedades ibricas so atrasadas ou inferiores em relao aos povos alm-Pireneus. Alis, para a autora, devemos olhar a escolha poltica desses povos e, a partir da, compreender os aspectos econmicos, sociais e jurdicos e suas possveis implicaes na contemporaneidade. Omomentoescolhidoasegundametadedosoitocentos, circunstnciasegundoaautora,emqueoimprioluso-brasileirofoi arquitetadoeencaminhado.Aescolhadesseperodonoteveaintenode demonstrar o momento de passagem para uma outra ordem social, mas a de exploraraspectosderupturaecontinuidadenatrajetriaparaamodernidade ocorrida na sociedade portuguesa e suas influncias no Brasil. Comoobjetivodeexplorarasrupturaseascontinuidadesocorridas na sociedade portuguesa no caminho para a modernidade, argumenta que no devemos considerar que as permanncias tradicionais sejam meros entulhos da sociedade tradicional a serem removidos pela civilizao, mas componentes queimprimemsuasespecificidadesnaestruturasocialluso-brasileira.Alis, paraaautora,maisquepermannciadeumaordemtradicional,essa presenafaz-seativanasformaesinconscienteseseuraiodeaomuito maior e desconhecido do que imaginamos primeira vista. A partir dessa questo mais ampla de passagem modernidade, Neder abre uma seara na relao entre a histria e o direito ao colocar em evidncia o contedodasideologiasjurdicas.Nesteponto,vairealarqueareforma pombalina, no que tange formao jurdica, implicou um esforo de ruptura com a orientao aristotlico-tomistapresente no direito romano e cannico, namedidaemqueintroduziuomtodocompendadoesinttico.Contudo,a

* ProfessordoDepartamentodeHistriadaUEM-PReDoutorandoemHistriaSocialna UFF-RJ. 222 Rolim renovaotrazidanesseperodonofoiummovimentoradical,detalmodo que no produziu efeitos de ruptura com o vis autoritrio e conservador do padro de obedincia e submisso, inculcado num sistema reprodutor escolar e universitrio mimtico e pouco criativo. Como Gizlene Neder trabalha com a idia de que no houve ruptura do ponto de vista ideolgico, poltico, entre Brasil e Portugal e de que, mesmo apsaemancipaopolticade1822,possvelidentificarforteslaosque estabelecem um continuum, algumas indagaes podem ser suscitadas. Ser que h algumas permanncias histrico-culturais do direito ibrico de modo geral, e do direito portugus de modo particular, nas prticas do pensamento jurdico no Brasil? Em que medida o arbtrio e as fantasias absolutistas de um controle penal-policialabsolutoquepovoamnososoperadoresdeinstituiesde controlesocialformais(polciaejustia),mastodaaformaoideolgica brasileira,tmnodireitoportugusenatradiodoabsolutismoportugus uma matriz a ser mapeada? Porisso,comaintenodeinvestigaroscaminhosquelevaram modernidade ou s modernidades, comea analisando o processo de expanso portuguesaqueseempreendeuapartirdevriasanexaesterritoriaisdeum pontodevistamilitarereligioso,talcomoasexignciasdareconquista.As possesses do ultramar passaram a ser assimiladas a Portugal como provncias ultramarinas,territriosreadquiridosdosinfiis.Essaassimilaoocorreu dentro de um vis tomista (Toms de Aquino), que reafirmou os princpios de umaordemintegrativadaspartesnotodoeumavisosocialaristocrticae rigidamente hierarquizada. Para a autora, quando as elites fizeram essa escolha no a fizeram por atraso,masporumaopoauto-referente,culturalmentefalando-se.Eesse iderionopodeserdescartadoquandotratamosdoimprioluso-brasileiro. InteressantecolocaremevidnciaquetantoemPortugalcomonoBrasilh um horror das elites aristocrticas em relao radicalidade das inovaes do mundoburgus,sobretudoemrelaoidiadecontratosocialede secularizao da sociedade. Nesseambiente,ocorreofortalecimentodopoderpessoaldo monarca,apoiadonaidiadedireitodivinoelegitimadopelopactoda nobreza,atravsdojuramentodascortes.Olongoprocessodeestruturao institucionalenvolveuaelaboraodeumamoldurajurdica,todavia,houve umaaproximaodoabsolutismoportuguscomaIgrejaatravsdo estabelecimentodaInquisioemPortugaledapenetraodasdiretivasdo Conclio de Trento. Para Neder, a partir desse momento, o Estado portugus passariaaafirmar-se,portanto,namedidaemquesefizesse,eleprprio, detentor da ortodoxia religiosa. Dilogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1. p. 221-225, 2001 Resenhas223 Nessa aproximao do Estado portugus com a Igreja, a vida cultural embrenhou-senadireodeumamentalidadeeclesisticaaoficarconfinado noslimitesdaContra-Reformaenasegundaescolstica,influenciadapor TomsdeAquino,adquirindoassimumadimensoprpriaesedistanciando dasoutrassociedadeseuropias.Afilosofianofoisubstitudapelateologia nosdebatesdoscrculosintelectualizados,logooshumanistasnose constituramemgrandesnomesdosaber,diferentementedoshomensdas cincias exatas, deveras privilegiados.Diante do processo de modernizao ocorrido na segunda metade dos oitocentos, h todo um esforo de recuperar o iderio humanista quinhentista. Na reforma da Universidade de Coimbra criada uma disciplina que deveria se dedicaraoestudodasinstituiesedahistriadoDireitodopas.Nasteses sobre a origem do direito em Portugal, Neder argumenta que se deve trabalhar tendoemcontaoprocessohistricoculturaldedifuso,emprstimoe sucessivas apropriaes entre o direito romano, o cannico e o germnico. Nestarecuperaodoquinhentismomencionadaaressurreio romana,masconsidera-sequehumacontinuidadedasconcepesjurdicas precedentes, tendo-se em vista que o humanismo no sobrevivera em Portugal porque seus seguidores seguiam sendo bartolistas referncia a Bartolo (1313-1357),importantejurisconsultoglosadordoperodomedieval.Por conseqncia, os efeitos foram muito mais de permanncia do que de ruptura com as concepes jurdicas medievais.Nocaminhopercorridopelocampododireitonesseperodo,hum processodeideologizao,quelevareificaodasuperioridadeeperfeio dosaberjurdicoemrelaoaosoutroscamposdesaber;perfeioestaque levaaoentendimentodequeomalnoestarianasinstituies,massimnos homens.NaopiniodeJoodeBarros,umdestacadoquinhentista,a constituiohumanacorrompiaaaplicaodajustia.Emsuma,paraesses pensadoresdoSc.XVI,odireitocontinuavaseroqueera,isto,uma evoluonaturaldoqueestavaconsolidadonapocamedievale,portanto, incorporado na atividade dos juizes, advogados, tabelies e funcionrios Podemosinferirque,emborativessemexistidovriospensadoresno perodoquinhentistaqueprocuraramadotardiretrizesnovasnoensinodo direito,elessedepararamcomacensuraeaexistnciadeumambientede hostilidades. Eram fortes as resistncias em relao a idias que propugnavam um estudo que se servisse de outras cincias para explicar o direito das idias, de que seria importante saber qual o sentido da norma e no o que dela diriam os intrpretes, de que o conhecimento humanista deveria ser contemplado, de que a verdade deveria ser alcanada atravs da reviso crtica, e a disciplina da lei e do direito devia ser buscada no mago da filosofia. Dilogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1, p. 221-225, 2001 224 Rolim Na segundaparte dotrabalhoas atenes se voltam paraopoder, as idias jurdicas e a cultura, no momento em que a sociedade lusitana vai passar porprofundastransformaesdevidomodernizaoempreendidapelo governo de Pombal. Os estrangeirados, que ficaram no ostracismo durante os reinadosanteriores,passaramatercontrolesobreaspolticas;maisainda, possuamumprogramadegovernoquevisavaeliminartodasasformasde contestao a um estado em vias de secularizao.OprogramacolocadoemprticaporPombalvisavaaaumentaro podereaeficinciadoEstadoesuprimirapresenahegemnicadaIgreja, pormnotocavanaestruturadasociedade.Dopontodevistaideolgico, poltico e social implicou numa insero econmica no mercado mundial, mas namanutenodeumpadrodecontrolesocialrgidoehierarquizado, distante do iderio das Luzes, ou seja, excludente e bem afastado dos regimes burgueses modernos.Aselitesadotaramoracionalismo,outilitarismoeorealismo,mas mantiveramaconcepodepoderabsolutonosmoldesautocrticose personalistasdoabsolutismodosculoXVII.Porsuavez,osreligiosos, atravsdosoratorianosseconcentraramsobretudonossetoreseducacionale cultural,ecomissonoocorreuumabrandamentodoscontrolesexercidos pela Igreja. Nesse contexto em que a poltica iluminista faz uma ampla reforma na justiaparasetornarmaiseficaz,PascoaldeMelloFreirefoioidelogodas reformaspombalinasnocampojurdicoedestacadojurisconsulto.Tinhaum concepoiluministaemodernizadora,principalmentenocampododireito criminal.Contudo,suasobrasapresentavamformasdepensamentoainda ligadas ao passado, na medida em que apresentava uma viso de realeza sendo piaegenerosa.Umdosseustrabalhosfoiescritoemlatim,possuauma idia de infalibilidade e de perfeio do direito e das leis, formulaes estas que podem ser encontradas no segundo escolasticismo e na viso tomista. Esse iderio se reproduziu no Brasil, seja atravs da presena de vrios juristas brasileiros que se formaram em Coimbra e foram alunos de Pascoal de MelloFreiresejaatravsdaexistnciadeinmerosjuristasportugueses trabalhandonoterritriobrasileiroatmeadosdoSc.XIX.Portanto,a compreensodoabsolutismoportuguseseusdesdobramentosnaprtica socialeideolgicabrasileiradesumaimportnciaparaentendermosas formas de disciplinamento e controle social realizadas em territrio brasileiro.SealgunsautorescolocamoCdigoCriminalde1830comoum marcodemodernidade,aautoraargumentaquedevemosrelativizaressa afirmao,namedidaemquefoiinspiradonoprojetodeMelloFreireeos bacharisaquematribuamaconstruodaordemeramexpoentesdeuma classe que se sustentou na base do aoite. E no quadro de valores escravistas, a Dilogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1. p. 221-225, 2001 Resenhas225 noodeordemsobrepunha-sedejustia,comaexpectativadeobedincia passiva.Em suma, para Gizlene Neder o vis ilustrado dessa elite assentava em umaposturapragmtica,poisseafinavacomospressupostostericose ideolgicosdamodernidadedocentrohegemnicomundial,masjamaisse dispunha a abrir mo, em nome das Luzes, de sua posio aristocrtica. Para finalizar, cabe refletirmos sobre a existncia da idia de um mundo imutvel na sua essncia e rigidamente hierarquizado, que parece rondar a sociedade luso-brasileira como o fantasma de Hamlet. Dilogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1, p. 221-225, 2001