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"Isso é importante, não eu." Elder Costa
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ilusão
Elder Costa
e A Sociedade Angélica da Lida
1
Co-Autoria
A Sociedade Angélica da Lida
"Isso é importante, não eu."
Elder Costa
2
Esse poema épico foi concebido para conter
dez cantos de noventa e nove estrofes, dos
quais cinco estão nesse primeiro tomo aqui.
O Sexto Canto já foi composto e o Sétimo já
adentrado. O Autor prevê a conclusão do
poema para antes de 2020.
Boa leitura.
3
Canto Primeiro
1
4
Aqui eu tentarei, doída a mente,
registrar essa doida historiazinha
Que me leva a mostrar a toda a gente
a razão que devendo ter não tinha.
É aqui que mergulho, doida a mente,
na história dessa gente biscainha
Que me força a tentar achar razão
na loucura da vida de irrisão.
2
Nós somos todos uma gente só,
história triste de um tempo presente
Em que não pode haver quem tenha dó
de quem mal vemos mas que bem se sente.
Somos no tempo algum imenso nó
que impõe a todos que se siga em frente
Nessa corrente que é nosso caminho,
na corda bamba em que eu me sei sozinho.
3
5
Não há razão que comporte a loucura
de ser o nó de tanta solidão
O homem mau e mesmo a moça pura,
que é biscainha gente e um coração.
Que se é deixado assim a si perfura
na espada aguda que é um mundo cão,
Em que seguimos tristes com a certeza
de que não dá nadar na correnteza.
4
É só razão o que comporta o mundo
e é ilusão viver na insanidade...
A vida exige ao ser: seja fecundo
mas sacrifique a sua puberdade!
Não é que ter paixão nos seja imundo,
só não se pode é ter felicidade,
Mesmo porque não é da natureza
deixar viver a vida em tal certeza.
5
6
Essa loucura de que falo aqui
é a paixão que nos assola o peito,
Que grita a mim que ainda não morri
e que essa vida não é mal sem jeito.
Não é o resumo do que eu não vivi
nem a discórdia do que em mim aceito,
É a vitória do meu sentimento
sobre a miséria desse esquecimento.
6
A pouca vida que eu trago comigo
deve respeito a quanta vida haja,
E a sujeição que nos serve de abrigo
é fantasia em que a razão se traja.
Porque se a vida é não correr perigo
não vai haver no mundo alguém que aja
Quando a tensão que entornará a guerra
cuidar de cedo exterminar a Terra.
7
7
Aconteceu que um dia fui menino
e me encontrei com a minha puberdade...
Precocemente, como é do destino,
ingenuamente e em felicidade.
Anos de luta pra não ser indino
dos pais, da vida e da realidade,
Anos de dor pra não morrer de gozo
nas mãos do imigo que não quis esposo.
8
Aconteceu que então eu quis ser homem
e falo que escolhi ser de mulheres,
Porque as lembranças disso não me somem
e ainda falo de infantis prazeres
Que agora homem já não me consomem,
à força desses tantos afazeres
Que a vida impõe a quem é de mulher
e não conhece o que ela pensa e quer.
9
8
É bem verdade que homem ser não sei,
mesmo estudando muito, o que mal sinto...
Por culpa disso, por não sei que lei
que fez galinha a proteger o pinto
Esse ser homem que só quer ser grei,
pra ver crianças, em um mundo tinto
De tanto sangue, horror e sofrimento,
na fé da morte poder ter alento.
10
O que acontece é que eu não sei contar
de modo simples o que eu sei da vida...
Forte razão para ir tão devagar
na evolução da que nem quer ser lida,
História má que não vai perdoar
nenhuma falta, até despercebida,
Da insanidade de uma tal promessa
a vigorar proeza como essa.
11
9
Mas acontece que contar eu vou,
determinado a não cair em erro...
Demore anos, seja marcha ou vôo
que não termine em degredo ou desterro.
A luta é dura e eu nem sei quem sou
mas sei que a Terra é uma bola de ferro,
Que a confusão impera e tem razão
e que ninguém no mundo é todo são.
12
Portanto simples não será a história
mas forma rica e cheia de detalhe,
A gente que se inclua é toda a escória
que a vida não deixará que se espalhe.
Aqueles que vencerem terão glória
e no fim talvez quem os agasalhe
Do frio horrível que nos gelará,
da morte certa que haverá por lá.
13
10
Era uma aldeia da nação caeté
onde vivia a gente mais cordata,
Uma itaúna imensa é a seu pé
e iluminada à tarde é bem pacata.
O povo alegre e manso de Deus é
nos seus riachos, montes e na mata
Que lhes provê a toda gostosura
da paz serena que é franca fartura.
14
A alegria mais vem das crianças,
como há de ser em quase algum lugar,
Das brincadeiras, jogos e das danças,
fazendo adultos rir e até chorar.
Não há lugar pra não ter esperanças
da morte vir mansinha e devagar,
Como tem sido desde muitas eras
quando aprendeu-se a respeitar as feras.
15
11
O fim da paz chega com os brasileiros,
a cruel gente que avança de longe,
Cujas campanhas são como vespeiros
e dentre os quais não há sequer um monge.
Que bem não sabem nem ser desordeiros
e violar terra santa, de Ronje,
Uma menina, mas tão importante
que não há velho que ela não encante.
16
Triste o final da pequenina aldeia,
igual ao da grande nação caeté...
Que sobrevive em sangue, que incendeia
os corações do povo patulé,
A biscainha escória, feito areia,
tão ignorante sem saber quem é,
Que sobrevive em cada um de nós
e na razão de nos sentirmos sós.
17
12
Como é possível eu sentir a tanta
saudade a um tempo que só existe em sonho?
Lembrar de rios, de caça de anta,
se brasileiro eu sou e tão bisonho?
Nem sei à faca tirar carne em manta,
adoecido de um siso medonho!
Como é que pode ser possível isso
se eu nem sei como é que me lembro disso?
18
A nossa aldeia hoje é um triste fato,
resta só a itaúna na cidade...
Tornou-se esgoto cada seu regato,
e como prova de tanta maldade
A favela nos morros é o retrato,
do que acontece quando a paz se invade
Da vida simples de um povo e nação,
cuja lembrança é só um esforço vão.
19
13
Nossa cidade é só um aglomerado,
de gentes, povos, tribos e nações...
Que não tem lei, juiz nem advogado
a dar um jeito em tais situações.
De um convívio tão duro e tão forçado,
de uma existência de tantos senões,
Da maldição de haver sido invadida
de um lugarejo a paz que hoje é perdida.
20
Lamentar pouco adianta e isso é claro,
a passo firme o tempo não volteia...
Qualquer resgate fica muito caro
e os nossos dias não vêm sem a ceia.
Somos famintos de um pão que é tão raro
que em nossa vida é só mais uma peia,
Pois nessa guerra, toda desrazão,
recuperá-lo é só doida ilusão.
21
14
Por isso eu disse que há de ser doído
qualquer um sonho em que possamos ter
A tão sonhada paz de um tempo ido
e a esperança vã de não morrer,
Restando só o tão desinsofrido
acreditar num sublime poder
Que encante a gente com uma paz mais pura
e torne um canto essa triste loucura.
22
É na esperança de um mundo melhor
que encontro a paz para poder viver,
Se isso é loucura ou a razão maior
não cabe a mim sabê-lo ou escolher.
Porquanto fazê-lo, isso eu sei de cór,
transtorna a vida em grande desprazer,
E a paz querida é tão maravilhosa
nos permitindo ver no espinho a rosa...
23
15
Mas que esperança em mundo tão maluco
se é um fio o que nos liga à paz querida?
O mundo é velho e já está tão caduco
que a esperança está envelhecida!
E o seu renovo, é isso o que cutuco,
tem que juntar-se à fé adormecida
Por tanto tempo e já desesperada
se decidirmos pôr os pés na estrada.
24
É com amor que a fé traz esperança
e isso é sabido desde Jesus Cristo,
Que no deserto pregou, fala mansa,
pra que hoje enfim eu descobrisse isto.
E a nossa paz querida só me alcança
quando eu me lembro que preciso disto,
Pra não morrer desesperado e louco
por só querer saber do amor bem pouco.
25
16
O Brasil de hoje é um país ruim
num mundo complexo e ainda pior,
Não tinha dois anos e ouvi o clarim
de um golpe armado no estado maior.
Por vinte anos tudo foi assim,
torturas, mortes que fossem melhor
Que a vida então levada no país,
seguindo idéias de nobres e vis.
26
Pelo ideal da nobre ditadura,
persegue a malta toda a geração...
Jovens que tinham a alma mais pura,
a fim de erguer essa grande nação,
Onde o que vinga é assalto e usura
e astutos mil nos passando sermão,
Doidos de rir dessa grita de crise,
no infernal mundo que só quer reprise.
27
17
O Holocausto está aí pra ser modelo
de uma guerra não mais fria mas morna...
Jovens de hoje só pintam o cabelo
sem saber que o caldo do horror já entorna
No mundo em que vivem sem poder vê-lo,
cuidando a vida porque não retorna.
Todos são jovens nesse mundo velho,
quem foi chamado que meta o bedelho.
28
Bem claro pra mim está o que é o amor
e sua importância para essa terra...
Não poderia sem ele compor
esse poema que aqui não se encerra,
Mas continua porque quer propor
uma vereda a quem nele não erra,
Um só caminho, largo como o bem,
em que não caiba só quem é ninguém.
29
18
O amor que digo é todo um compromisso
que quem assume deve ter com a vida,
Seja ela próxima ou distante, viço,
toda a que há e nos parece bandida.
O amor é puro e devem caber nisso
o fraco imigo e a mamãe querida,
Porque de todos a vida depende,
mesmo daqueles que ninguém entende.
30
Amar é bom mas tanto sofrimento
a que se dá quem ama e é amado...
Instiga a mente a questionar do vento
se não é bem melhor ser odiado.
O entendimento às vezes vem bem lento
e o aprendizado dói como o pecado,
Por isso havemos de ter paciência
com cada ser, tratando-o com clemência.
31
19
Com as crianças é que me encasqueto,
são os diamantes dessa roda viva...
Seu abandono não me deixa quieto,
elas que tornam nossa vida altiva.
Não cabe em mim deixar um filho, um neto,
sem ter na vida alguma perspectiva
De um dia amar e ser demais amado,
não ser na guerra só mais um soldado.
32
A infância é tudo o que a pessoa tem
pra vida dela ter algum sentido,
Se pra criança tudo corre bem
dificilmente será só bandido.
Mas se ao contrário não amar ninguém
o seu espírito estará perdido,
e Deus que é bom vai resgatá-lo a si
solucionando o que ocorreu aqui.
33
20
É nesse espírito que a vida cresce
e se entendemos isso é bom pra nós...
Deixar de lado e ver o que acontece
é só cinismo e faz que seja algoz
Da vida alguém que só reza essa prece,
que nos separa de maneira atroz
Em bandos feros, sem merecimento
de amor, razão ou qualquer sentimento.
34
Se não houvesse a conjunção carnal
não haveria mundo e nem piás,
Para crescerem nesse carnaval
que é todo errado mas é nossa paz.
Condenar toda uma ação sexual
é a doença que esse mundo traz,
Desesperado de não ter prazer
numa explosão que só quer conceber.
35
21
A Santa Igreja prega a camisinha
para evitar a progressão do mal...
Finge não ver que o mundo só caminha
nesse pecado, que é só o atual
Modo da vida não ser tão sozinha,
e transformar-se em derradeiro mal
Porque é bisonha, não quer ser feliz
e nem se lembra onde tem o nariz.
36
Sorte é que a vida não se presta a doma
e sabe conseguir o que ela quer,
Ninguém rebaixa o plano em que ela assoma,
ninguém separa o homem da mulher.
Nem com o poder que só se deu em Roma
haverá isso, haja o quanto houver,
Portanto saibam que é hipocrisia
chamar de neutra a santa mãe Maria.
37
22
Cuidar da infância é resgatar pessoas
que somos nós se um dia eram crianças...
Parecem ser ruins mas são bem boas
porque são nós nas nossas esperanças.
Se alguma fé merecem essas loas
é porque as vidas delas não são mansas,
E deveriam ser, serão felizes
se bem cuidarmos dessas cicatrizes.
38
Cuidar da infância é ver a menininha
e toda a dor que está no seu folguedo,
Já que qualquer que seja está sozinha
tal qual nós mesmos em nosso segredo.
Peleja boa, se for sua e minha
e respeitar todo o nosso brinquedo,
Porque brincando juntos, nós e ela,
vamos abrir a mais linda janela.
39
23
Essa paisagem que se descortina,
maravilhosa, liga-nos à sorte...
E está ligada mesmo à nossa sina,
que é ver a vida, a dor, o amor e a morte.
Se a nossa sorte é sempre tão franzina
devemos então dar-lhe um reto norte,
A força e fé de rir da solidão
que irá dormir no nosso coração.
40
Eu vi crianças sós cheirando cola,
fumando craque, cigarro e maconha,
Vendendo bala e pedindo esmola
com a coragem tamanha e sem vergonha.
Nesse país que tinha campo e bola
hoje há só drogas e o piá não sonha,
E se sonhar que sonhos pode ter
que não lutar pra matar ou morrer?
41
24
É o que digo quando me incomodo
com a reação da tal sociedade,
Contraditória na raiz do lodo
de onde sai droga, que prega a igualdade...
Avessa a tudo o que não tem denodo,
maliciosa e sem sinceridade,
Não há por quê não encarar de frente
um problema que atinge toda a gente!
42
E a adolescente de só treze anos
com a bolsa exposta, enorme, de seis meses?
A camisinha protegeu-lhe o ânus
mas da vagina riu algumas vezes.
E o filho morto, envolvido nuns panos,
como podia ser com algumas reses?
Nem morto estava mas viveu dois dias
no hospitalar Inferno desses dias...
43
25
Trago uma alma amargurada e aflita
por não saber o que fazer de nada,
Do que me sei culpado e dessa grita
que deixa a consciência encurralada.
A alma nubla o sonho e a carne agita
o pensamento que vira a enxurrada
De acusações, com tão grande tristeza
que nem sei como ter a chama acesa.
44
São as crianças que me deixam triste
porque sou uma delas nessa vida...
Talvez na outra, que eu nem sei se existe,
possa alegrar-me em história tão sofrida.
O passarinho já não quer o alpiste,
só quer morrer, a alma decidida
a inexistir, por conta da amargura
que apaga a chama da vida em clausura.
45
26
Por isso eu rezo, pra não ser assim,
pra ser doidice do meu pensamento
Essa maldade que não quer ter fim
e na historinha não tem cabimento.
No fundo eu sei que só compete a mim
desenvolver o que eu aqui só tento,
Pensar o enigma da realidade,
essa parcelazinha da verdade.
46
Mas o que importa é o nosso sentimento,
que coordena a nossa ação na Terra,
Ele é que dá sentido a isso que tento
aqui fazer, pra minorar a guerra.
Revela a mim que devo estar atento
a quem na vida em solidão se ferra,
Enquanto houver cadeia e um só bandido
não valerá a pena haver vivido.
47
27
Prisão é pena que ave alguma quer
e violenta o canto a qualquer um,
Principalmente se o preso é mulher
e entende bem o que cantou Naum.
Ninguém na vida devia querer
ver preso a ferros pássaro nenhum,
Porque bandidos somos todos nós
se a lei quiser ser realmente algoz.
48
O que sentimos muda todo dia
e isso importa muito a toda a vida,
Não sinto mais agora o que sentia
quando odiava o crime e a bandida.
Eu não sabia mas o que me ardia
era o desejo de ver mais perdida
Quem como eu vivia sem destino
num mundo torpe e de horror tão ladino.
49
28
Diversas vezes vi em hospitais
gentes indinas em nua verdade,
Sofrendo dores e outros males mais,
perdendo a vida, sem a liberdade
De escolha outra que ser animais
nas mãos da gente em que há seriedade
Talvez de menos com uma vida alheia,
escravos todos de uma mesma teia.
50
Os hospitais que tem esse sistema,
que tem prisões, escolas, tudo em rede,
Tem como norma firme, como lema,
dessedentar às gotas quem tem sede.
Não há saída dessa má pustema
se já no conceito isso é feito adrede,
Não há saída desse malefício
se arquitetado bem no seu início.
51
29
Indinas gentes amadas são dinas,
e somos nós nessa verdade um todo...
Porque as tenções de todos são malinas,
e estamos todos chafurdando em lodo.
Impedir uns de executar rapinas
é se esquecer dos que vivem do engodo...
Indinas gentes amadas são sonhos,
desdenhadas, pesadelos medonhos.
52
Como é possível haver um malefício
que atente em quase tudo nessa vida,
Haver na origem um tão forte vício
a tornar a punição merecida?
Nosso falecido avô Aparício,
nossa Senhora desaparecida,
Quem vai no mundo deter tanto engano
se o pó de mim eu mesmo não espano?
53
30
O original pecado não explica
o fim de tudo isso acontecer...
Se não mudar então como é que fica
a fé de um dia tudo enternecer?
Nossa esperança se torna mais rica
se a dor demais jamais menos doer?
Não há sentido na condenação
se o que tivemos foi só coração.
54
Um coração rebelde, é bem verdade,
mas é loucura imaginar só isso...
O que acontece na realidade
é mais que a quebra de algum compromisso.
Se a nossa pena é toda a eternidade,
o amor termina perdendo seu viço,
E a fé de todos, suas esperanças,
serão somente histórias pra crianças.
55
31
É com o perdão da má palavra escrita
que me dirijo a corte tão divina,
Que não suporta ouvir mais uma grita
porque não é e nunca foi indina.
De majestade tanta que me excita
a bem cumprir a minha triste sina,
De ser no mundo só um pecador
que está cansado de esperar o amor.
56
Diferente em tudo, estou bem no meio
de um povo igual em suas diferenças...
Ser igual a todos, isso é o que anseio,
crendo em tantas e tão diversas crenças.
Nessa volúpia a alma não tem freio
e presa fica nas ondas mais densas,
Que aparam quedas com o rigor da lei
sob a vontade de quem eu não sei.
57
32
Peço licença pra continuar,
da minha vida, tão triste relato...
Que comecei e quero terminar,
expondo a vós o cada vero fato.
É bem difícil se eu nem sei amar
e guincho versos como fosse um rato,
Mas acredito haver uma canção
nesses escombros que é meu coração.
58
Quando criança também fui à escola
mas foi em casa que aprendi a ler,
O que gostava era de jogar bola
e me bastava ouvir para aprender.
Me perseguiram, xingando o boiola,
e me cercavam para me bater...
Não houve um dia no qual fosse amado,
nenhum carinho, nem ser respeitado.
59
33
Hoje já sei que a todo bom menino
há uma lição pra não ser esquecida,
Que o marque como magrelo ou suíno
para ajudá-lo a entender a vida.
Mas não é só isso o que aqui me ensino,
nossa lição não deve ser doída...
Mesmo que doida, com o olhar atento,
e sem torcer por seu esquecimento.
60
Para que houvesse alguma gratidão
era preciso haver algum carinho,
Não basta a mim alguém passar sermão
para eu sentir que não estou sozinho.
O tempo passa e as gentes ficarão
mas infelizes como um passarinho,
Que abandonado já não quer viver
por nessa vida só ter desprazer.
61
34
Eu também vim conviver com a doença,
na minha já defunta avó Izoralda.
Diabética, cardíaca, hipertensa,
não teve a vida escrita numa lauda.
Só teve a vida de quem muito pensa,
nisso é que a sua história se respalda...
Tiranizada, sempre foi leal,
e à beira-morte persistiu igual.
62
Ainda criança vi a tirania
do avô perverso em sua autoridade,
Sem saber bem, decerto, o que fazia,
desavisados nós dessa maldade.
Era inocente mas o mal ardia
e ultimou cedo em sua insanidade,
A de ver a mulher adoecida
e não saber o que fazer da vida.
63
35
A avó não pôde esperar viuvez
e faleceu três anos antes dele...
Demenciado o avô ficou num mês,
só um cadáver debaixo da pele.
Na diarréia chegou sua vez,
desassistência a que esse mal compele,
Seu sofrimento foi como o da avó,
dois infelizes numa vida só.
64
Existe um Céu e eu posso ver daqui
que nos separa do vazio espaço,
Os meteoros caem por aí
sem nos prejudicar nenhum pedaço.
A Terra então se protege por si
de ser varrida por cada estilhaço,
Com sua casca em que mesmo o incréu
pode no ar do dia ver um Céu.
65
36
Então há um Céu e eu posso senti-lo
no coração a proteger-me a vida...
Será que eu posso querer destruí-lo
se ele é que impede à alma ser varrida,
Por estilhaços mil que são aquilo
que fazem ser a vida assim sofrida?
Não, eu preciso que esse Céu exista
pra perseguir uma vida de artista.
66
No Céu que sinto há os meus santos avós,
saudosos pais que eu já não vejo há tanto...
Saudade sinto de ouvir sua voz
e ela é tamanha que me corre em pranto.
No Céu que sei que existe não são sós
mas reunidos, como por encanto,
De suas rusgas de casal, com anjos,
numa assistência de grandes arranjos.
67
37
Pra mim, o Céu está bem definido,
uma loucura da esperança nossa...
Onde não pode haver nenhum sentido
em expressões quais uma triste choça.
Pode ser doido mas sem ser doído
porque de um sonho ninguém não se apossa,
E haver sentido em pirações humanas
já torna tristes choças em cabanas.
68
É lá que um dia todos vamos ser,
uns para os outros, merecidamente,
Dinos em tudo, mesmo no prazer,
e cada um terá do que bem sente.
Se essa loucura não tem nada a ver
com o que raciocinamos bem na mente,
Não vale a pena desejar mais nada
e a nossa vida estará toda errada.
69
38
Demonstrações podem ser bem ruins
mas essa aqui não vai passar em branco,
Porque não usa os meios para os fins
e é desse coração que eu a arranco.
Pode ser lida até nos maus festins,
na solidão de um trem em solavanco
Ou na Igreja, toda a gente boa
verá que a correção não foi à toa.
70
Mas é essa Terra o nosso problema,
que se resolve por haver um Céu...
Preciso enfrentar esse meu dilema
pra solução não vir chegando ao léu.
Em poucos anos morro de enfisema
e antes a Lei deve chamar-me réu,
Por destruir o seu engenho caro
sem dar-lhe chance de propor reparo.
71
39
A Terra é viva, aspira a um Céu eterno
e é com amor que pode chegar nisso...
Não fica bem esperarmos o Inferno
só por muito estar o povo enfermiço.
Nas condições desse mundo moderno,
temos que ver o quanto é passadiço
O coração do Mal, que ainda engana
mas não impede a aspiração humana.
72
Um novo engenho, simples e preciso,
deve ser concebido a qualquer preço...
Que não afronte a razão e o siso,
nem torne o bem comum no seu avesso.
Que possa o doido ter o seu sorriso,
e eu que não sou, aquilo que mereço...
Uma engenhoca urdida com o amor
que leva a gente à vida se transpor.
73
40
Falo de algo que inexiste ainda
mas vai surgir por força e precisão,
Maravilhoso e de aparência linda
como uma rosa ainda em seu botão.
Sua presença será tão benvinda
que ninguém pensará que é ilusão
Acreditar no amor, que é tão divino
que deixará ninguém não ser indino.
74
Ninguém que se deixar maravilhar
por esse sonho de sarar o mundo,
E que por Deus vier a cooperar,
irá deixar de se sentir bem fundo.
Ninguém será deixado ao seu azar
e amar demais não vai ser algo imundo,
A correção será tanta e tamanha
que apenas haverá quem sempre ganha.
75
41
Na natureza assim nada se perde
e é razoável ver que assim será,
A vida humana hoje ainda verde
transcolorida amanhã ficará.
Talvez com fundo musical de Verdi,
Satie, Beethoven e quem sabe Bach...
A engenhoca tem funcionamento
pra corrigir isso que aqui assento.
76
Hoje é um dia, outro é amanhã,
assim a vida passa, lentamente...
Talvez possa comer linda romã
ou entender o que ela dentro sente,
Fazer as pazes com a minha irmã
e o seu filhinho ninar docemente...
Não sei o que dará esse novo dia
mas sei que espero mais uma alegria.
77
42
Futuro sempre terá seu mistério
e perde a graça se não for assim,
Pensar agora é algo muito sério
e não precisa ser nada ruim.
Eu tenho aqui esse bom ministério
de encontrar nesse desespero o fim,
E despertar a fé num bom futuro
porque o presente tem sido bem duro.
78
Espero contemplar a maravilha
que a cada um de nós eu vaticino,
Reencontrar meus filhos, minha filha,
e ver mudada a sorte em meu destino.
Não quero persistir só, numa ilha
que perpetua esse eterno menino,
Que brinca em mim como grande escritor
sem ter a quem chorar a sua dor.
79
43
Inocência e culpa: um tão vão dilema
no lago das humanas ilusões...
Equivocado, se o barqueiro rema
ao largo das freqüentes frustrações.
Parado o barco, retorna o problema
desse homem repleto de indecisões.
Ele é culpado da vida viver
ou inocente de sentir prazer?
80
Não há culpados nessa vida cão,
nem inocentes de viver aqui...
Que culpa tenho se perdi a mão
e rascunhei bem mais do que escrevi?
Sou inocente por não ter senão
desconfiança do que não pari?
As duas coisas vivem num abraço
e desatá-las só gera cansaço.
81
44
Somos humanos, essa é a verdade,
e o que fazemos é problema nosso...
Há solução pro caos dessa cidade,
mas não jogando a ela mais um osso.
Se nos sentirmos, com serenidade,
desfaremos esse angu de caroço,
Mas é preciso revisar conceitos
já que são hoje apenas preconceitos.
82
Loucura e sanidade: o que é o quê,
não serão mais irmãos do que inimigos?
Sinceramente, o que é que você vê,
não deveremos todos ser amigos?
Nossos conceitos, você que me lê,
ultrapassados são, bastante antigos:
Razão é ser provável no que é certo,
loucura é coisa de quem é esperto.
83
45
Há certas coisas que indizíveis são
e essa é uma: sanidade, o que é...
Mas não é bom dizer um palavrão
pra intimidar alguém que tenha fé.
O que é preciso é termos compaixão
de uns e outros, todos patulé,
E nós no meio, também somos gentes,
conquanto às vezes meio diferentes.
84
Humanidade é isso, nos amar,
buscando um dia o ser angelical...
Amar a vida e bem se apaixonar,
sem preocupar-se só com ser normal.
Às vezes é preciso delirar
pra ver tudo voltar a ser igual,
Mesmo sofrendo, e isso é importante,
porque ninguém de nós não é gigante.
85
46
A minha vida penso não ser minha
mas se será me responsabilizo...
Se ultrapassei o que não me convinha,
sei que por essa não passo de liso.
Enquanto penso, a morte se avizinha
e não vai me encontrar no meu sorriso...
É possível até que a boca entorte,
se a minha vida prima pela morte.
86
Acreditar que a Deus ela pertença,
convém a mim que não sei quase nada...
E acreditar eu posso, com licença
da má palavra, antes perdoada.
Isso não é somente uma sentença,
porque a tal conseqüência é bem pesada,
É um desvario que à razão perpassa
na esperança de achar alguma graça.
87
47
Se é toda divina essa nossa vida
e o que nos cabe é ter amor por ela,
Não vai a morte encontrá-la perdida
porque de algum modo ela é sempre bela.
Será a morte triste despedida
de tanto horror e toda má querela,
Seguida de um belo e novo destino
onde eu aprendo aquilo que me ensino.
88
Hoje é um dia especial pra mim
porque está nele a minha vida inteira,
Duvidar disso é fazê-lo ruim
pois do amanhã ele é a sementeira.
Eu sei que nunca isso terá um fim
mas vou senti-lo de qualquer maneira,
O especial que tem a vida toda
é poder ser vivida como boda.
89
48
Se foi ruim o dia já passado,
de ontem mesmo ou minha inteira vida,
Não devo achar, um tanto apressurado,
que a nossa esperança já está perdida.
O amanhã traz deveras novo fado
e mostrará que há sempre uma saída,
De qualquer cela em que estivermos presos,
mantendo os nossos corações acesos.
90
Meu amanhã será um novo dia,
será passado aquilo que é presente...
A sorte irá ficar-me em companhia
e do que sofro não estarei doente.
Basta que eu cante hoje com alegria
o fato de hoje eu ser uma semente,
Que irá tornar-se a árvore frondosa
que a alma sonha ser quando é bondosa.
91
49
Eu sou talvez uma grande pessoa,
e sou decerto bastante pequeno...
Se bem estimado é uma coisa boa,
sabendo disso vivo mais sereno.
É grande a messe que o poema atroa,
anula as faltas do nosso veneno...
Pequenos somos adiante do povo,
nos omitindo desse seu renovo.
92
Pequeno ou grande, eu quero ser alguém
que quis na vida agir no próprio nome...
Leve ou pesado, eu só desejo o bem
de quem sumido está, de quem não some.
Desse destino atroz eu sou refém
porque esse corpo a Terra vem e come,
Só me liberto disso se consigo
ter amizades sem ser inimigo.
93
50
Meu espírito clama e eu atendo,
destino de pessoa é ser assim...
O que ele quer é só me ver fazendo
algo de bom que não seja ruim.
Assim sou grande até pequeno sendo,
posso esperar alguém além do fim...
Se sou eu mesmo já está muito bom,
porque deixei-me a vida ser um dom.
94
A carne reclama os grandes prazeres
que às mais belas coisas são inerentes...
Levamos à boca grandes colheres
da sopa da vida nas nossas mentes.
Enchemo-nos de tantos afazeres,
a fim de sentir nossas almas quentes,
Que assamos a carne com sensações
que ao fim de tudo são só ilusões.
95
51
Nós somos carentes de ilusões dessas,
queremos prazer das coisas mais belas.
Se acreditarmos em loucas promessas,
que paz teremos nos vendo sem elas?
Parece um joguete e somos as peças,
vis parafusos querendo arruelas...
Se abrirmos a carne e dermos à luz
a insana vontade, veremos pus.
96
Pois supusemos merecer prazer,
se das mais belas coisas ele vinha...
Não atinamos nisso não poder
nos saciar, porque não nos convinha.
O que importa a nós é saber viver
o que convém à nossa pobre alminha...
A carne morre, a alma fica, eis tudo,
querendo amar tenho que estar desnudo.
97
52
A pulsação que me agita os sentidos
merece uma atenção especial,
Eu sou um homem dos pés aos ouvidos
e todos dizem que não sou normal.
Por dentro eu tenho meus caldos fluídos
por tantos canais que padeço um mal,
O pulso me rebate e eu sofro isso
que já me atinge e me deixa sem viço.
98
Estou doente do corpo querer
bem mais que suportava e isso é ruim...
Sei que inexiste infinito prazer,
se o gozo que sinto é todo pra mim.
Há bens maiores mas devem doer
e eu tenho medo disso não ter fim,
Por isso agito a mente e o corpo vai
buscar de novo mais um duro ai.
99
53
Para eu sarar preciso estar comigo
e refrear as fortes pulsações...
Que do meu coração, o seu abrigo,
irradiando vão as sensações
Que me avassalam, levando consigo
a esperança dessas perversões
Abandonarem o imo da alma,
deixando vir uma vida mais calma.
54
Canto Segundo
1
55
A noite é um mar de encanto, brando e leve,
mas eu sonho acordado, tão tranqüilo
Que o verbo flui maduro e me descreve
como uma nova lua, ou só um grilo
Cantando o seu encanto, canto breve,
enquanto eu de prazer quase cochilo,
E a noite vai passando, carinhosa,
temendo me assustar a alma medrosa.
2
Agasalhado estou mas sinto o frio
bem fino e que me envolve docemente,
Na mente apenas mais um desvario
de quem já está cansado e nem se sente.
A noite agora passa como um rio
que lambe as nossas beiras feito gente,
Tentando me levar no seu feitiço
dizendo que não tem nada com isso.
3
56
À noite eu penso muito em orações
que me fazem sofrer porque eu não sei
Rezar de coração, sem aflições,
e as poucas decoradas são a lei.
Acordo a noite toda em comichões
sabendo que de novo acordarei,
Não sei rezar porém eu acredito
em terminar a noite sem um grito.
4
A manhãzinha chega, maternal,
o ar ainda frio, mas agita
O ser que acorda duro e textual
querendo cedo impor a sua grita.
Um galo acorda nesse meu quintal
e canta o que eu não canto, a voz aflita,
Fazendo que eu levante-me da cama
que dorme só porque ninguém lhe ama.
5
57
Tomo café com pão e a Mãe vigia,
o quê não sei, talvez de tudo um pouco,
E quer-me bem, desejando um bom dia,
mas sem compreender o filho louco.
Comi demais à noite e tenho azia,
no banho canto até ficar bem rouco,
Ficando pronto pra sentar-me aqui,
relendo os versos que ontem escrevi.
6
A manhã passa e logo é meio-dia,
a Igreja bate o sino e avisa quando,
A tarde vindo será tão vazia
quanto esses versos que vou rascunhando.
Mais uma noite que eu não merecia
e sem dar conta disso estou rezando
Pro mês que vem já ter a fortaleza
que eu bem necessitava, com certeza.
7
58
Pela janela vejo a gente igual
tal como ontem, igualzinha a mim.
Às vezes uma mulher sensual
faz-me querer que tudo tenha fim
Nessa sozinha tensão corporal
que me acompanha aqui aonde eu vim
Buscar sossego pra bem escrever
sobre o melhor jeito de ter prazer.
8
A gente igual a mim anda agitada
e não sei nada sobre suas vidas,
Só que de mim não querem saber nada,
não sou das amizades mais queridas.
Por isso enteso aqui a minha espada
e corto logo as emoções sentidas,
Não vou deixar chegar ao apogeu
algo que igual a mim não é só meu.
9
59
A agitação desses corpos iguais
são como o que dardejo aqui sereno:
Desequilíbrios espirituais
purgando por aí o seu veneno.
Não interessa, eu sei que são normais
as coisas que em mim mesmo não condeno,
O que tiver que haver pro nosso bem
não há de ser exceção pra ninguém.
10
Escuto a música que a vida deu
e sinto a calma à alma retornar,
Acho que enfim o corte não doeu
quanto devia mas sem precisar.
Eu tenho fé que o erro não é meu,
que longe tudo está de se acabar.
Não é um fato tão bem resolvido
que possa agora ser mais remexido.
11
60
Falo de rusgas entre mim e o povo
e dos rasgões que me ficam na pele...
Se revidar apanho mais, de novo,
que eu sou um só e a desrazão é dele.
Prefiro aqui ficar e não me movo
ainda que arda a terra e o céu congele,
Mesmo porque é só isso o que acontece
com todo mundo e ninguém o merece.
12
Os passarinhos cantam seu encanto
e vibram algo dentro do meu ser,
Não se aproximam porque eu os espanto
temendo que o vibrado vá doer.
Já não sei mais se sou um louco ou santo,
só sei desse infinito desprazer
De ser continuamente atordoado
por um remédio tão duro e danado.
13
61
A pimozida é um veneno atroz
e saberá quem dele for tomado,
Ele atordoa qualquer um de nós
e como eu disse é bem duro e danado.
Pequena dose nos embarga a voz
mesmo de quem já esteja acostumado,
É um remédio que, haja valentia,
nos faz desconhecer o fim do dia.
14
Mas a maconha é cem vezes pior
porque ilude e reforça-nos o mal,
Desorganiza o esforço maior
do sistema afetivo cerebral.
Desiludindo, deixa só a dor
de se saber ser nada genial,
Um ego inflado de pequeno orgulho,
e ouvir do mar apenas o marulho.
15
62
Medicamentos devem ser tomados
quando indicados por pessoa certa,
Pois podem ser responsabilizados
e ser chamados quando a coisa aperta.
Não é que nos livrem dos nossos fados,
mas é possível ficar bem alerta
Se dado o tempo de se acostumar
a aceitar dessa vida o seu azar.
16
Então a vida é mesmo um grande fado,
eu folgo bastante em poder sabê-lo!
Saber que há sempre um destino danado
é fazer barba, bigode e cabelo.
Como mudar a sorte do azarado
se a sua vida toda é esse novelo?
É uma completa falta de bom senso
acreditar que seja como eu penso...
17
63
O quanto eu penso saber dessa vida
é o miserável fado que carrego,
É tomar todo dia a pimozida
com meus miolos furados a prego,
A imposição da minha mãe querida
e dos parentes todos que renego.
Resta saber se eu sobreviverei
pra bem cumprir essa bendita lei.
18
Há de haver esperança aqui pra mim,
eu sinto bem isso, sei que há de haver,
É só o maldito homem ter um fim
pro meu azar depressa fenecer.
A morte não pode ser tão ruim
quanto a loucura de tão mal viver,
E o malefício todo assim termina
com o que há de terrível nessa sina.
19
64
Eu era bem pequeno, cinco anos,
tão inocente quanto qualquer um,
Naquela idade ainda não tinha planos
de ser alguém, mesmo um araticum.
Foi quando eu descobri que tinha um ânus
e desejei não ter tido nenhum
Porque fui vítima de sodomia,
de negligência, curra e zombaria.
20
Foram dois anos de contínuas curras
sob ameaças de vida e de morte,
Sem ter ninguém pra me salvar, em turras,
abandonado só à própria sorte.
Depois vieram as diárias surras,
quando eu supus poder dar nisso um corte,
Mais oito anos das sovas diárias
que hoje me dizem ser imaginárias.
21
65
Aos quinze me mudei pra capital,
fugi das surras e estudei bastante,
Pude viver uma vida normal,
sem confessar e sem ser protestante.
Restava a disfunção libidinal,
na adolescência isso é muito importante,
Não pude achar amigos normalmente,
não sendo a isso nada indiferente.
22
E o que interessa a alguém a minha vida
se aonde olho não vejo ninguém?
Ninguém quer saber se ela foi sofrida
se qualquer um de nós sofreu também!
Pra todos essa vida é uma bandida,
pior ficando se a gente a quer bem.
Fazemos muito em tê-la verdadeira,
pondo de lado toda a choradeira...
23
66
Mas a vida de todos me interessa
porque é aí que encontro uma razão
Pro sofrimento que em ninguém não cessa
embora todos me digam que não.
Vou devagar, não há nenhuma pressa
pra socorrer o aflito coração,
Que se é bandido bem sabe esperar
o grão poema poder germinar.
24
E divagando vou, nesse passinho,
parecendo não ir a algum lugar.
As pedras que encontro pelo caminho
eu uso pro caminho bem marcar.
Vou indo, rabiscando com carinho
o que há entre o percurso e o caminhar,
Que não parece coisa de importância
mas é se a gente rememora a infância.
25
67
São na vida tantas delicadezas,
tantos cuidados, tantas emoções,
Que não se entende as torpes cruezas
que se pratica em todos os rincões.
Terão as gentes duas naturezas
que opõem fados de dois corações?
Será verdade sermos divididos
em lados bom e mau por dentro unidos?
26
Diz a ciência que nós somos dois
cada um, internamente ligados.
Bem e mal viriam pouco depois
de corpo e alma serem amarrados.
Mas se assim é devem também os bois
ser igualmente e são desencarnados,
Em postas, pra saciar nossa fome,
e as suas almas não têm nem um nome!
27
68
Saber humano é artificial,
só presta contas à própria razão,
Pra não achar consigo nenhum mal
em ocupar senhor o seu rincão,
E desossar qualquer seu animal,
porque comer a carne todos vão.
Desnaturada é a razão humana
e a quem pensar um pouco não engana.
28
Minha condição não é diferente,
como todos louca tenho a razão,
Se esqueço simples que também sou gente
e ingrato permaneço em coração.
E eu posso ser tão louco e eficiente
porque no âmago impera a ambição,
De ver a minha razão coroada
e não dever à desrazão mais nada.
29
69
A vida assim parece muito injusta
mas não o é pois existe a Justiça,
Que a qualquer um de nós bastante assusta
porque é maldosa, ainda que enfermiça.
O que acontece é que bastante custa
desafiar uma tão dura liça,
E é a vida desigual batalha
entre quem luta e quem jamais trabalha.
30
Há um só sentido em tudo quanto há
de exasperante na existência humana,
Não pense alguém que o Pai manda pra cá
a pobre gente pra comer banana,
Que essa injustiça eterna existirá
e que o Mistério não seja bacana.
A lei divina é bem misteriosa
mas só assusta a alma criminosa.
31
70
Temos que olhar bem para ver que existe
uma justiça que não é só nossa,
Olhar nos olhos de quem não desiste
e está sofrendo em favela ou na roça.
E ver que uma esperança ali insiste
em não morrer de uma crueza grossa,
Como seria se só existisse
uma justiça que a ninguém servisse.
32
Justiça há mas é preciso espera
pra ver no fim um limpo resultado,
Seja pra quem for, canalha ou megera,
que contrarie o já ajuizado.
Também pra quem fez o que propusera
quando se viu perto do fim do fado,
E pra quem sempre confiou em tudo
não sendo tolo, preguiçoso ou rudo.
33
71
A vida existe só pra ser vivida,
não pra esperar justiça ou justiceiro,
Senão seria toda corroída
por ódios vis, sem amor verdadeiro.
Por quê querer tão só mais uma lida
se dessa o seu presente vem primeiro?
Mais vale deixar isso tudo a Deus
que sabe bem o que fazer com os seus.
34
Nosso sonho parece que faliu
porque não temos mais com o que sonhar,
Mas esquecemos de esperanças mil
que estão aí para se acreditar,
Em tudo quanto há e não se viu
porque não temos olhos para olhar,
O quanto há de bom em torno de nós
e persistimos em ficar bem sós.
35
72
O que acontece quando a gente morre
é o que é preciso a gente compreender.
Será que existe alguém que nos socorre
quando estamos entre a morte e o morrer?
Verdade é que o que a todos nos ocorre
é o sofrimento que tememos ter,
Em punição àquilo que fizemos
por não ter feito aquilo que quisemos.
36
Morrer é um mistério bem complicado
mas temos que pensar nisso algum dia.
Será o desfecho desse nosso fado
ou transição ao que antes não se via?
Não nos importa o que estiver errado,
as convicções da morte a gente cria!
Pensar no assunto não é tão insosso
se o interesse nele é todo nosso.
37
73
Morrer é sempre lento e natural,
embora às vezes súbito pareça.
Pra todos diferente, é sempre igual,
por mais que a nossa vida se conheça.
De frente pro morrer, temor geral,
grudamos ao que se nos ofereça...
O Espírito é verdade nessa hora
conquanto de matéria eu seja agora.
38
O corpo de matéria vai morrendo
aos poucos após ter sido atestada
A morte cerebral, ainda vivendo
na sua nova e tão longa jornada.
Aos poucos vai seguir menos sofrendo
caminhos de que não sabemos nada.
É triste e solitária essa partida,
mas é o que nos reserva a santa vida.
39
74
Por isso temos que nos preparar
enquanto um quê de tempo ainda nos resta,
Buscando aqui no mundo enfim criar
a fantasia que a isso se presta.
É bem preciso muito acreditar
naquilo que se cria e pô-lo à testa,
Para ao morrermos tê-lo bem lembrado
e não ter o caminho transviado.
40
A minha fantasia é toda linda,
evoca até uma passagem suave
Do corpo, quando não está morto ainda,
pra um outro corpo, feito uma astronave.
E o espírito desperta e diz – Benvinda,
recebendo a mim sem nenhum entrave,
Feliz de estar em minha companhia,
embora o conhecesse nesse dia.
41
75
É assim que a idéia de morrer suporto,
com essa coragem de que necessito,
Se for logo amanhã eu não me importo,
se o meu passamento aí for bendito.
Se esmagam o velho corpo eu não entorto,
persisto vivo e muito mais bonito,
Ninguém me impede de pensar assim
e tenho que pensar algo no fim.
42
Portanto é muito bom ter fantasia
pra viver só no mundo em desrazão,
Batendo essa ilusão que nele havia
a fim de não morrermos em paixão.
Podemos trabalhar enquanto é dia
e à noite não morremos de ilusão,
Vazia não terá sido essa vida
se está presente à nossa despedida.
43
76
Todas as minhas perdas, meus fracassos,
minhas quedas doídas, minha vida,
São ausências de beijos e abraços,
que perdi, nessa imensa despedida
Da canção desvairada e sem compassos,
nessa doida viagem, só de ida,
Em que eu fiquei sozinho e sem bagagem,
mudo e com medo de qualquer bobagem.
44
Estou maluco e só, e não há remédio
para esse mal que aflige só a mim!
Doido de pedra, de raiva, de tédio,
querendo apenas que isso chegue ao fim.
Penso em jogar-me do alto de um prédio
mas minha vida não termina assim,
Pus na privada a minha vida inteira,
não posso ir-me de qualquer maneira.
45
77
Uma fantasia é minha esperança
de ter a vida um pouco resgatada,
Dessa maluquice que a todos cansa
e me atenua a vida dilatada,
Canção em que ninguém comigo dança
e me compõe a solidão da estrada,
Essa saudade dói como o capeta
que há de ser feio e ter a alma preta.
46
A saudade que sinto é dura e má
de tanta gente que perdi na vida,
Por minha culpa, e tudo quanto há
serviu pra que fosse sempre perdida.
Talvez no mundo do lado de lá
encontre a gente que hoje é tão querida,
Mas que me evita ainda, sem dar chance
a mim, que nesse mundo um dia a alcance.
47
78
Espero ter a vida toda honesta
pra merecer uma chance segunda,
Numa existência tão diversa desta
quanto a fé da descrença mais profunda.
A fantasia é tudo o que me resta
e sobrevive nessa selva imunda,
Demente sendo, pura e natural,
felicidade em qualquer animal.
48
Sou animado de pouca alegria
e não sei que fazer pra mudar isso,
Faço o que posso e o que não devia
para apagar o fogo que eu atiço.
Quem eu amava muito nunca ria,
como se preso num feio feitiço,
Que se de mim partiu nunca foi nada
pois minha alma é bem pouco animada.
49
79
Sei que mais alegria vou achar
lavrando a fantasia que padeço,
Levando a alma a se reanimar
mesmo sabendo que isso eu não mereço.
Só vai custar esforço, e me cansar
é para mim um bem pequeno preço,
Se sei que a alegria achar eu vou
e assim poder mais alto alçar o vôo.
50
Sentido existe em tudo quanto falo
e escutando se ouve bem o que digo,
Não dá pra ler no sino o seu badalo
e repicá-lo é só mais um perigo.
Sentido não se encontra num estalo,
não me acusem que nisso eu não me ligo,
Segredo é coisa bem codificada,
a chave não pode ficar trancada.
51
80
As emoções humanas devem ser
sentidas pra vibrar o seu sentido,
E revelar esse enorme prazer
que só sente o leitor quando é bem lido.
Às vezes é preciso se doer
pra ver-se que o castigo é merecido,
E então vem o veraz merecimento
que é onde eu ponho rijo o meu assento.
52
Assento palavras como um pedreiro
assenta seus tijolos, uma a uma,
Dando em paredes de prumo certeiro
que sem cimento o tempo desapruma.
Por isso o encaixe deve ser inteiro,
prevendo essas brechas que o tempo arruma...
Como o pedreiro eu faço o meu melhor
para o salário não ser tão pior.
53
81
Que um outro cante o seu melhor – que possa,
deixando aqui esse triste lamento,
Se eu imitá-lo a solidão me coça
e eu perco todo o meu assentamento.
Sei que sou alvo de galhofa e troça
mas tudo bem enquanto eu não rebento,
Quero seguir dessa parede o prumo
fantasiando que daqui não sumo.
54
Se sou melhor que isso não me mexo,
de nada me vale alguma honraria,
Não faço idéia do meu grão desfecho
mas não quero ser santa porcaria.
E se estaciono num bendito trecho
não sei o que ruim de mim seria,
Sou só um homem tentando acertar
na vida, num poema, o seu lugar.
55
82
Ao descobrir a força de um amor
Venéreo, compulsório e sensual,
Deixei tudo pra trás, só por supor
à vida nada poder fazer mal.
Tive esses dias, depois veio a dor
De me ver tão pobre, feio e banal,
De novo abandonado à própria sorte
mas sem ainda desejar a morte.
56
O amor queimou-me com essa sua chama,
me fez provar do seu doce veneno,
Quando fez ver com outro a minha dama
e revelar o quanto era pequeno.
Desmoronei, meu amor não reclama
ciúmes, ódio... Até que fui sereno,
Desiludido do meu próprio ego
que não sabia ser assim tão cego.
57
83
O amor é essa força cega e bruta
que se instalou suave no meu ser,
Talvez nascido de uma prostituta
mas sem o qual não há como viver.
Ainda corro atrás do amor batuta
que me ilumine e me faça crescer,
O amor sincero de uma tal mulher
que aceite em mim aquilo que eu tiver.
58
O amor se instala assim dentro da gente
e nos constrange a conviver com ele,
Conflagra a vida e isso que se sente
é que nos força a depender mais dele.
Quando caímos em nós, de repente
sentimo-lo completo, à flor da pele,
Assim fiquei eterno prisioneiro
de ambicionar esse amor verdadeiro.
59
84
Se não existe é coisa que cogito,
mas se cogito é porque existe sim,
Não interessa o que eu não acredito,
tem que existir se ele existe pra mim.
E se ele existe tem que ser bonito
e aparecer-me no meio ou no fim,
Não posso crer que seja insanidade
acreditar na minha humanidade.
60
A humanidade quer amar demais
mas sem sofrer por esse desvario,
Então se esquece que somos iguais
e ao mesmo tempo entram todos no cio.
Não há sossego para mães e pais
e os bebês vêm é de um amor vadio,
É esse o mundo no qual nós vivemos,
pra confirmar basta que nos pensemos.
61
85
Olhando a vida só em seu resumo
eu compreendo o que tão mal entendo.
Isso que eu sei é pouco, não assumo
as imposturas do que vou vivendo.
Precisa haver na vida um certo rumo
pra se compreender o que estou dizendo,
Por isso digo às gerações futuras
que há conseqüências às eternas juras.
62
Só bem pensar e bem amar não basta,
é imperativo também bem agir,
E quem desse preceito não se afasta
verá um dia a sua dor sumir.
Essa lição com o nosso aqui contrasta
mas sei que um belo dia ela há de vir
Recompensar quem agir afinado
com o que sentiu nesse bem duro fado.
63
86
E um suave amor é o que recompensa
a alma aflita que só faz o bem,
Não interessa qual a sua crença
se o que fez mal fez por amor também.
Morrendo, a vida não será tão tensa
se amor perfeito tiver por alguém.
Vivendo, a morte não será ruim
porque o precioso bem é assim.
64
Não há lugar no mundo em que se esconda
o tesouro que queremos achar,
Não adianta essa perpétua ronda
Buscando a nossa sorte ao frio azar.
Alguém na vida com poder nos sonda
e pode até a todos perdoar,
Busquemos entender o que queremos
pois isso é o que nos diz a que viemos.
65
87
Contentes por saber o que buscamos,
felizes se sabemos o porquê,
Nós somos tudo aquilo que pensamos
e não importa se ninguém o vê.
Essa alegria naqueles que amamos
e a alegria que alguém mais me dê,
É isso o que penso ser um tesouro
mais valioso que um monte de ouro.
66
Mas não é fácil achar a alegria,
porque depende do mundo mudar...
E essa mudança nunca ocorreria
por si, aqui ou em qualquer lugar.
É uma esperança que será vazia
enquanto não tratarmos de gostar
De tudo quanto está à nossa volta,
nos libertando de toda revolta.
67
88
Com tristes saudades eu rememoro
os grandes dias dos meus casamentos,
As mulheres e filhos que eu adoro,
os meus mais expressivos sentimentos.
Lembrando o que foram, às vezes córo
porque passaram por mim desatentos,
E não sei bem onde foi que eu errei,
se por excesso ou porque lhes faltei.
68
Grandes famílias pude construir
com muito amor e a esperança toda,
Pensando sempre em nunca desistir
de fazer ver que o nosso mundo roda.
Nunca pensei que pudesse falir
com tanto amor, como se fosse moda
Pensar unir família e construção,
e eu também não tivesse um coração.
69
89
Família e construção estão falidos
como esperanças de se bem viver,
Não se consegue mantê-los unidos
ficando-se do azar ao bel-prazer.
Os alicerces estão corroídos
e a casa cai mesmo sem merecer,
Porque impera uma lei de falsidade
e é impossível viver de verdade.
70
Não posso deduzir do meu fracasso
que o povo todo tenha o seu igual,
Nem se eu tivesse um cérebro de aço
pra tirar diferenças do total.
Em todos os lugares onde passo
uma multiplicidade é geral,
Mas nunca conheci alguém feliz
e essa raridade muito me diz.
71
90
Eu mesmo era feliz e não sabia
e era só mais um pobre deslumbrado,
Que não sabia por quê só sofria
enquanto hoje é só pobre coitado.
Com qualquer um maluco parecia
mas era muito diferenciado,
Então difícil fica essa questão
travestida de mera opinião.
72
Difícil nessa vida é ter o encanto
igual ao que ela joga sobre nós,
E essa é a razão desse grande canto
que aprisiona essa tola minha voz.
Não se admire ninguém do meu espanto
ao descobrir que estamos todos sós,
Foi só agora que ela me mostrou
que eu sou ruim daquilo que não dou.
73
91
Deus nos deu um ninho de puro amor
que envolve sempre cada um de nós,
E mesmo que cheio de extrema dor
faz com que não estejamos todos sós.
Qualquer de nós que queira se transpor
pode encontrar em si alguma voz,
E expor a dor que tem no coração
para o vizinho ou para a multidão.
74
O ninho é feito de coisas miúdas,
o ar, a roupa, o tempo, o corpo, o chão...
Cada uma delas pequeninas mudas
a vicejar em torno ao coração,
Formando a mata de árvores graúdas
cá onde estamos em vã solidão,
Porque abrigados com mais tanta gente
que sofre como nós ou diferente.
75
92
Ficar tocado pela descoberta
de uma esperança tão boa e raçuda
É a maneira de manter aberta
a porta de um céu que o tempo não muda,
Poder torná-la tão líquida e certa
que sirva como a necessária ajuda
Ao bem viver, em paz e coletivo,
e tirar todos desse grande crivo.
76
O medo, às vezes, é uma grande fera
que assusta nosso coração menino,
E dentro dele é que ela nos espera,
nos espreitando, com o humor canino.
A expectativa que um tal medo gera
nos faz vagar sós feito um beduíno,
Que fora do grupo, em grande deserto,
sabe que a fera sempre está por perto.
77
93
Há outras coisas mais com que eu me assusto
e estão dentro de mim, com o fero medo,
Como a surpresa de me erguerem busto
a ser pichado em meio ao arvoredo,
Que eu sou apenas um simples arbusto
e como tal nem que eu queira me arredo,
Por não haver quem de fato conheça
a lei que rege o imo da promessa.
78
Há uma ilusão naquilo que profiro
mas não o faço sem qualquer razão,
Se estou com medo, quero logo um tiro
que atinja alguém dentro do coração.
Se sou contrariado não retiro
o proferido sob acusação,
Iludo ainda, porém quiet0 e mudo,
Porque sou humano acima de tudo.
79
94
Há esse novelo que se desenrola,
é o pensamento de que não desisto,
O fio se desprende dessa bola
e eu o vou seguindo, porém não insisto.
Eu sei que essa é uma idéia bem tola
mas é nesse novelo que eu existo,
A poesia é ir sempre no novelo
e não no emaranhado do cabelo.
80
Idéias assim, tolas como esta,
seguindo atrás do invisível fio,
São como arbustos, presos na floresta,
sem nunca poder se achegar ao rio...
E tudo aquilo a que a mente se presta
sem fantasia é um pranto vazio,
Porque o arbusto quer mesmo é chorar
e cria asas pra poder voar.
81
95
Há esse novelo, cujo fio eu sigo,
porque acredito em nunca desistir,
Bem como agora, correndo o perigo
de não voltar porque não pude ir.
Que existe em mim e em tudo que eu persigo,
não sou capaz de só parar e rir,
E esse novelo é só o meu pensamento,
eterno agora, durante um momento.
82
Mas meu pensamento é forte e já voa
no firmamento, além desse arvoredo,
E esse seu fio é uma coisinha à toa
que em se perdendo não me gera medo,
Feito uma nau singrando o céu, só soa
seu vaticínio, que me atinge cedo
A multidão dos todos sentimentos,
que já não querem ser os meus lamentos.
83
96
E se o que eu sinto vem-me em multidão
já adivinho o que será de mim,
Um louco a mais a se perder no chão,
na imensa terra do tupiniquim
Descaroçado pela cruel mão
dessa gente que teima em ser ruim,
Porque não quer e não pode admitir
que algum de nós tenha direito a rir.
84
Eu penso é assim, não o posso evitar,
quero pousar nos fundos de um quintal,
Pra descobrir carinho em outro lar
porque no meu tudo foi muito mal.
Talvez querendo desrealizar
minha miséria, plena e atual,
Pra descobrir sozinho, ao fim de tudo,
que continuo cego, louco e mudo.
85
97
Estou descobrindo que muito pouco
sei daquilo que pensava saber,
E que esse pouco está fazendo um louco
o visionário que eu pensava ser.
Posso saber que o meu ouvido é mouco
que não se dá um bom ouvido eu ter,
O que acontece é sempre diferente
daquilo que eu sonhava e tinha em mente.
86
Ouvindo pouco, o louco não aprende
a ver o razoável com razão,
Porque do muito que ele não entende
não fixa nada que não seja vão.
No fim o que ele faz não surpreende
pois sua vida é feita de paixão,
E o razoável fica constrangido
a procurar um outro por marido.
87
98
Do casamento tão sonhado, nada
resta senão o sonho de ter sido
Algo importante, na longa jornada
que se soubesse teria vivido.
A vida assim lhe resta atrapalhada
por pouco dela ter sido sabido,
E tanta vida a ele ainda resta
que dela só pode fazer mais festa.
88
Esse é o louco que cavuca um buraco
pra nele pôr os tolos sentimentos,
Ficando só e se sentindo um caco
entre outros tantos, que lhes são nojentos.
E essas tolices que eu aqui ataco
trazem deveres, de que estão isentos
Os cacos da taça que se partiu,
no pandemônio chamado Brasil.
89
99
O buraco é meu, diz esse maluco,
sequer sabendo que o buraco é ele...
Eu que sou doido também me cavuco,
restando nada debaixo da pele.
Sobrevivendo num mundo caduco,
fico sozinho e há quem o assele,
Sem nada dever a tal solidão
que construí feliz com a minha mão.
90
Resta saber se há nesgas de verdade
em tudo quanto eu disse até aqui...
Que pelo menos não me desagrade
a comoção daquilo que não vi.
E se restar uma qualquer saudade,
naturalmente das que eu não sofri,
Espero tê-la com muito carinho
porque a verdade me deixou sozinho.
91
100
O que acontecerá depois da morte
à alma da pessoa que morreu?
É isso que me bate muito forte
no coco e sei que não é só no meu.
Eu penso haver algum tipo de corte
separando em duas partes o eu,
Uma que fica, em corpo falecido,
outra que vai, rumo ao desconhecido.
92
E será que isso exige alguma escolha
que deve ser tomada em hora exata?
Será que fico preso numa bolha
que bóia viva debaixo da nata?
Eu sei que a minha idéia é tão zarolha
que ninguém a tem por boa e a acata,
Mas pode ser pensada, como tantas,
pra também ficar presa nas gargantas.
93
101
Será que sou alguém se já morri
e vago preso sem nenhum lugar,
Estará nisso o quanto descobri
depois de tanta vida sem amar?
Seja o que for estou ainda aqui
e aqui pretendo muito ainda estar,
Deixando pasmo para o amanhã
a descoberta da doce maçã.
94
Doce maçã que foi nosso pecado
tão curioso quanto original,
Discriminante de certo e de errado,
cientificante do bem e do mal.
Nós carregamos fardo tão pesado
que nunca sabemos o que é real,
No pesadelo que é essa nossa vida
que é tão pequena e às vezes tão comprida.
95
102
Provar dos frutos do discernimento
é justamente o que eu não vou fazer,
Não sou covarde mas o atrevimento
não é decerto o meu maior prazer.
Não rezo tanto quanto o que eu assento
nesse poema pra melhor viver,
Só cuido estar fazendo o que é melhor
porque essa justa me inspira pavor.
96
E grande temeridade seria
desafiar decreto tão antigo,
Deixar passar da vida um belo dia
e sujeitar-me ao eterno castigo.
Sei que ninguém de tal poder riria
se acreditasse vir de um inimigo,
Se compreendesse a extensão dos fados
e a lei que rege os fardos mais pesados.
97
103
Por ora é o que eu desejava ter dito,
embora saiba que vá dizer mais...
Sigo sozinho mas menos aflito
por ter alimentado os animais.
Não vou me desculpar porque repito
o dito pelos grandes e outros tais,
Vou acender a luz e ir-me embora
que a noite cai de novo e não demora.
98
A tarde cai mansinha e sem razão
e não precisa disso pra existir,
Sua presença é a doce ilusão
que me desfralda as velas pra partir.
Na despedida, só aceno a mão
e lanço ao mar esse novo elixir,
Que alguém decerto um dia encontrará
e vai bebê-lo transformado em chá.
99
104
Agora fica mais uma saudade
doendo o peito desse trovador,
Que segue a vida em sua insanidade
de jamais amar sem sentir o amor...
Mas fica mais bonita essa cidade
sem ter quem ouse por ela compor,
A roda viva de desesperança
da angustiada vida de criança.
105
Canto Terceiro
1
106
Torno-me realmente um ser humano
quando aprendo a transmitir o que penso,
E se ao tentá-lo passo a ser insano
é o pensamento que está muito denso.
Porque não posso embrulhá-lo num pano,
queimá-lo e depois cheirar-lhe o incenso,
É que condeno-me a humano ser,
abrindo mão do irracional poder.
2
Tornando humano a mim transformo alguém
a fim de que se torne como eu...
Nesse momento ainda não sei bem
o que fazer com o dom que Deus me deu.
Como é escolha e eu não sei a quem
transtorno fácil no meu apogeu,
Aceito a companhia que vier
contanto que seja bela e mulher.
3
107
Porque se humano fui e Deus o quis
não foi pra viver só e atrapalhado,
Mas pra deitar razão e ser feliz
inda que insano e mal acompanhado.
Porque da humanidade uma raiz
é a primitiva noção de um Estado,
Que represente o que eu penso e desejo
e é já criado no primeiro ensejo.
4
Humanidade em mim não representa
apenas ser humano, num espaço...
É algo que no tempo movimenta
mil carnavais, com todo o estardalhaço.
Sabendo o que o humano não agüenta
jamais abusa desse seu cansaço,
Humanidade é ver a semelhança
no semelhante e convidá-lo à dança.
5
108
Tenho três filhos e dois são meninas,
qualquer um deles humano comigo...
Vivem distantes, porque pequeninas
assombrações vivem no meu umbigo.
Serão humanas quantas nossas sinas
no coração tomarem seu abrigo...
Somos iguais, com toda a diferença
com que a humanidade inda nos compensa.
6
Se sou um homem com o poder de sê-lo
e se encantado venho aqui cantar,
Vou desfiar inteiro este novelo
pra minha alma apenas alegrar.
Não adiantando nada esse desvelo,
persisto aqui sozinho e vou chorar,
Porquanto um homem sou e isso conta
se mais humano sou que gente tonta.
7
109
Analisando friamente os fatos
não se conclui nada de interessante...
Laboratórios têm que amar os ratos
que experimentam, o que não nos garante
Que todos sofram intensos maus tratos,
porque quem ama é pouco vigilante.
É preciso calor no que se faz,
que nossas intenções não sejam más.
8
Todo laboratório tem alguém
que ama os seus ratos experimentados,
Alguém que no final não é ninguém,
não interessam seus grandes cuidados.
Os cortes frios, na razão de cem,
são os produtos que são publicados,
Sem descrever que a experiência teve
o amor de alguém a quem ela se deve.
9
110
O fato analisado friamente
depende de um olhar que tem amor,
Para ser compreendido pela gente
que aceita a experiência, se não for
Doer em nós, muito naturalmente,
se os resultados se puder expor
Pra concordarem com o que a gente quer,
porquanto os fatos têm o seu mister.
10
O que eu analiso é a humanidade
em cada ato ou gesto da pessoa,
E faço isso com tranqüilidade
porque com jeito, calmo, numa boa.
Seus gestos denunciam falsidade
na vida fácil de quem vive à toa,
Fingindo não haver uma questão
em tudo quanto dão opinião.
11
111
A conclusão que vem é bem antiga
e a muito poucos ainda interessa,
Discuti-la é chamar pra boa briga
e o resultado é uma pequena peça
Em que os atores dançam na barriga
do diretor, o qual se ri à beça,
Chocando um público que nada entende
e indo embora no final se rende.
12
A humanidade sofre seus revezes
porque as pessoas estão por aí
Digladiando por algumas reses
e completamente fora de si.
Não será dentro de alguns poucos meses
que eu vou deixar de ver o que já vi,
O egoísmo atolado à garganta
e um desespero que ninguém mais canta.
13
112
A salvação que vem é fantasia
desse resgate seletivo e tenso,
Em que eu não vou aonde bem queria
e diferente do que claro penso.
Verei as gentes que há muito não via
e imperar a beleza e o bom senso,
A alegria em grande carnaval
por não restar nada que seja mau.
14
Começa em mim essa transformação
por obra e graça do maior poder,
Continuando em grande operação
em que todos irão se refazer,
Passando por abrir o coração
para encontrar aí um novo ser,
Que já saiba encantar o seu vizinho
e nunca desejar ficar sozinho.
15
113
Talvez haja um pouquinho de terror
que é conseqüência do mundo atual,
Mas tudo se resolve com amor
singrando pelo espaço sideral.
Há cantos e luzes de toda cor
a iluminar o manso matagal,
Que atravessaremos muito felizes
embora ainda simples aprendizes.
16
Eu fantasio que o nosso planeta
singra o céu atrás do sol que rodeia,
Feliz da vida em sua pirueta,
indiferente ao povo que se odeia
Dançando, cada um sua retreta
que toca à minha fantasia alheia...
Se fantasio algo diferente
é também certo que alguém mais o sente.
17
114
Imaginando a vida como é,
não posso crer em ter desesperança,
Porque se a Terra singra há muita fé,
e alguém sozinho é uma infeliz criança.
O quanto restou da nação Caeté
não pode se furtar a essa dança,
Mesmo vivendo só no pensamento
que irreal existe quando eu agüento.
18
Eu fantasio que essa vida é bela,
serena, alegre, rica e vigorosa,
E a atmosfera é uma grande janela
que deixa a luz do sol banhar-me a prosa.
Sem fantasia, quem pinta essa tela
em que o martírio humano é bela rosa,
Em que se pode ver com a chama acesa
a alegria nascer da tristeza?
19
115
O que é então a tal realidade
senão o que podemos fazer dela?
Se inclui a fantástica humanidade,
exclui que possa um dia ser mais bela?
Pensar no assunto não é vacuidade
e pode ficar linda essa aquarela,
Se mil respostas tontas encontramos
a nos fazer lembrar que nos amamos.
20
Real é tudo quanto hoje me toca
mas muito mais que um dia tocarei,
Parecendo até haver uma troca
entre o que é e aquilo que serei.
Se é real para mim essa biboca
é porque vivo debaixo da lei
Que impõe aos homens ter nos seus sentidos
mais do que os sonhos, tão bem destruídos.
21
116
Não é realidade o que não quero,
por não ser nada de bom pra ninguém...
Se não nos serve é menos que esse zero,
inda que fosse potençado a cem.
Em contestar o nada é que me esmero
porque se nada é, não é um bem.
E se é real ter uma vida nula
o que dizer da vida que pulula?
22
Bordados sutis minha mente tece
buscando fugir ao flagrante erro,
Porque em meio às cores desaparece
tão disfarçado que eu não o desenterro.
Acompanhando o fado a alma desce
e luta bravamente, a fogo e ferro,
Expondo a manha e o desaparecido
para que o real não fique esquecido.
23
117
É humano errar, é só o que a gente aprende,
o que fazer com o erro é que são elas...
É como aprender o que não se entende,
as urdiduras verdes e amarelas.
O erro disfarçado não se rende
e prende-se entre portas e aduelas,
Nas dobradiças de dentro da mente
que não quer entender que está doente.
24
Urdido o erro a alma vem à luta
e para expô-lo expõe a si também...
É grande o risco, a mente é muito arguta
e fere a alma se isso lhe convém.
Precisa haver uma boa permuta
para entender que o erro é de ninguém,
Livrando a gente desse descaminho
que no princípio parece um carinho.
25
118
Dessa minha vida só entendo eu
e não consinto em outro vir querendo
Desconcertá-la com algum himeneu
porque pra mim isso seria horrendo.
Exatamente o que me aconteceu
e agora sigo sozinho vivendo
A vida que outro não me consentiu
viver nas margens do nosso Brasil.
26
Um ódio pulsa com força total
e é impotente pra resolver isso
Porque é cego, tolo e até marginal,
não tem veneno pra enfrentar feitiço.
E o casamento, simples, natural,
entre o desejo e esse meu compromisso,
Torna esse ódio só resignação
porque não pôde dizer sim nem não.
27
119
Só mesmo eu para entender a vida
que Deus me deu, para vivê-la dura,
Sem transformá-la em coisa decidida,
fazendo dela uma eterna procura.
Se uma outra vida tenta, intrometida,
direcioná-la, na rota mais pura,
Jamais consegue porque não consinto,
só vejo o mundo do meu sangue tinto.
28
Não há uma vida sem limitações,
o próprio ser é algo limitado...
Se nós podemos imitar leões
seremos só micróbios desse Estado.
É o que acontece nas rebeliões,
quando o poeta torna-se soldado
De uma guerrilha fadada ao fracasso
porque está presa no tempo e no espaço.
29
120
Um ideal jamais se realiza
sem nicho próprio nesse vil planeta...
E a sua ocupação escandaliza,
só deixa nicho aberto na mutreta.
Se não quiser da guerra uma juíza,
um homem deve tocar a trombeta,
Em si achando um ninho, num tufão
que sorve todo e qualquer coração.
30
Um homem que em si mesmo acha o seu ninho
e aceita o seu espaço natural
Pode idealizar não ser sozinho
e achar perto de si mulher igual.
Mas longo, muito longo é esse caminho
que leva o sonho a se tornar real,
E no tufão da vida o seu sucesso
é intransponível com ou sem excesso.
31
121
Minha primeira e linda namorada,
a adolescente, tornou-se a mulher
Que hoje vive tão longe e está casada
com quem não sabe ao certo se lhe quer.
Do meu passado vem, por uma estrada
que a traz a mim do jeito que estiver,
E ainda bagunça um coração sombrio
que é esse meu e que só sente frio.
32
O meu passado está sempre presente
como uma névoa a pairar sobre mim,
E às vezes cai pondo-se à minha frente
sem eu saber se isso é bom ou ruim.
Decerto isso acontece a toda a gente
e nada há que fazer se é assim,
Talvez fazendo parte do futuro
pra que não seja todo frio e escuro.
33
122
O tempo espraia-se sobre a cabeça
e devagar ao coração se achega,
Nesse processo nada há que o impeça
de tornar a pessoa bruta e cega.
A fantasia é impedir que desça
levando-nos ao diabo que o carrega,
Porque esse tempo teme a fantasia
que o desintegra à sua revelia.
34
Mas há um tempo que hoje é nosso amigo
quando podemos nos achar em graça,
Guardados dentro de todo perigo,
livres de toda e qualquer ameaça.
Esse é o tempo que nos serve de abrigo
em quanta guerra o nosso mundo faça,
Quando com o coração pensamos bem
e dentro estamos repletos de alguém.
35
123
O tempo amigo ajuda a ver mais claro
e a se encontrar tranqüilo no que seja,
E se a princípio nos parece raro
deixa com tempo e treino que se veja,
Mais amiúde como um bem tão caro
que nada mais na vida há que não reja,
Impondo a paz tão bem dentro da gente
que o mundo todo fica diferente.
36
A graça está em se encontrar tranqüilo,
em paz com o mundo, no meio da guerra...
Às vezes encolhido como um grilo
pra saltar alto sobre uma outra terra,
Por outras esquecendo tudo aquilo
que acreditamos e que a vida encerra,
Mas sempre em paz com quem sempre nos ama
e com palavras isso nos declama.
37
124
Minhas palavras representam rosas
no deserto imenso de uma ilusão...
Pode ser visto como são cheirosas
e são reais nessa comparação.
Mas as palavras podem ser teimosas
e ninguém pode lhes dizer quem são,
Além da beleza têm seus espinhos
e as espetadas são os seus carinhos.
38
Palavras róem como a dura fome,
podem matar se mal alimentadas...
Selvagens feras que não têm nem nome
se compreendidas viram boas fadas.
O que se escreve e bem se lê não some
porque as palavras são tão variadas
Que podem preencher qualquer deserto
e ainda deixar um bom caminho aberto.
39
125
É nessa palavra que está a poesia
e os versos são seus meigos borbotões,
Trazendo chuva aonde só havia
poeira, pedras, duras ilusões.
A chuva forma um lago em calmaria
por onde se navega esses sertões,
E eu remo um barco rumo a outras terras
onde não haja mais tão duras guerras.
40
Sonhei com um mundo lindo e mais feliz,
não era um sonho, pode ser verdade...
Alguns portavam sua cicatriz,
mas bem felizes, na realidade.
No sonho eu era o meu próprio juiz,
no coração não havia maldade...
Acho que um sonho assim já foi sonhado
e alguns talvez fizeram dele um fado.
41
126
O que eu sonhei não pode ser descrito
mas pode ser talvez comunicado,
Sei que era bom e num lugar bonito
e não se via a presença do Estado.
Mas tinha gente que eu inda acredito
estar à espera de algum resultado,
Do que fazemos pelas nossas vidas
e por aquelas que nos são queridas.
42
Sonhar um pouco deixa a gente quieto
e eu não me sinto assim tão constrangido
Que aqui não possa ser assim direto
e desenhá-lo, firme e decidido.
Filho não digo mas talvez um neto
possa compartilhar o aqui urdido,
E ver mais cedo que o mundo do sonho
pode ser tudo, sem nos ser medonho.
43
127
Sonhar é bom e talvez solução
pro sofrimento, sempre complicado...
A vida em sonho ganha direção
e pode até pôr alguém do seu lado.
A vida onírica é uma criação
que a gente teme ser o bem errado,
Mas é à gente que ela se apresenta
e nada impõe, apenas alimenta.
44
Alimentados pelo que sonhamos,
fortalecidos somos para a vida,
Os ódios que sufocam enterramos
e essa existência fica mais florida.
Às vezes inimigos perdoamos
reconhecendo uma luta bandida,
E quase nada temos a perder
vivendo para o sonho não morrer.
45
128
Não há nenhuma vida sem sonhar
e é uma ilusão deixar de ver o fato,
Não custa nada a gente imaginar
que o sonho mostra um mundo mais exato.
Porque sonhando podemos amar
e ficar mais bonitos no retrato,
Enquanto sem sonhar a vida míngua
e então de nada serve a própria língua.
46
O que fazemos estando acordados
em nossos sonhos tem seus fundamentos,
E estar pra isso tão despreparados
implica em frustração de movimentos.
Agitamos os nossos vários lados
depois de hesitar por alguns momentos,
Deixando vir à tona o que queremos
no lago raso do que nós fazemos.
47
129
O que fazemos acordados é
muito simplesmente o que bem sonhamos,
E sermos tolos como um jacaré
que na lagoa esconde-se entre os ramos,
Renunciando à nossa clara fé
fazendo à vida o que dela encontramos,
Não nos ajuda a agir na vigília
nem ser felizes em qualquer partilha.
48
Não somos como os outros animais
que não sabem muito raciocinar,
Com seus cérebros pequenos demais
pros dons da vida virem encontrar.
Nós somos sonhadores e algo mais,
o que não deixa-nos sofrer o azar
Sem antes refletirmos nossa sina
no espelho dessa vida tão menina.
49
130
O que faço é simplesmente o que vivo
e existe uma angústia que aí começa,
Porque do mundo sei que sou cativo
e no quebra-cabeças só uma peça.
Talvez eu seja por demais altivo
pra perceber que a vida é boa à beça,
Porque se a vida é feita do que faço
não é preciso grande estardalhaço.
50
Mas acontece que isso não foi dito
e ainda hoje é uma especulação,
Ninguém ousou enfrentar esse atrito
que me angustia por fazê-lo não.
Pode-se ler o que está aqui escrito
sem sobrecarregar o coração,
E eu digo isso porque bem me sinto
não vendo o mundo do meu sangue tinto.
51
131
O que aqui tinjo é só um colorido,
de amarelo, azul, preto, verde, rosa,
Na tela branca de um amor bandido
que se afigura em meio à minha prosa.
Não acredito que faça alarido
ou que atinja a tal massa escandalosa,
Da gente toda que faz como eu
e vive a vida como Deus lhe deu.
52
O que ora faço é contar uma história
que atravesse esse tempo e o julgamento
Dessa atualidade tão inglória
que é incapaz de ver o seu momento,
De um povo tolo, todo feito escória,
que há de ser base da pedra que assento,
O testemunho vivo dessa idade
contra o escárnio da iniqüidade.
53
132
Eu vi o povo todo ensandecido,
inebriado da maldade dela...
A aleivosia do dever cumprido
a corromper, porque ninguém assela
A exatidão do mal já cometido
sob esse nosso céu, que é uma janela
Tornada espelho, a refletir a Terra
sem o pudor de lhe esconder a guerra.
54
Todo valor humano aprisionado
pela invencível força que o assola,
Em qualquer canto e em tudo quanto é lado,
insaciável, e ninguém dá bola.
Aqui o próprio Estado escravizado
pelo infernal azar que longe rola,
Além a mesma coisa, de outro jeito,
porque em todo lugar ele é aceito.
55
133
Fazendo isso faço o que me toca
e sem preocupar-me em fazer bem feito,
O encontro é verdadeira pororoca
a borbulhar as águas no meu peito.
Quando o que eu faço com o dever se choca,
borbulha o dito mais dino e escorreito,
Assim se dando uma fina poesia,
a ardente lâmina de faca fria.
56
Sendo o que faço, sou um bom poeta,
a dissecar ardentemente a vida...
Não faço mais porque essa faca é reta
e a fina arte é sempre bem sofrida.
Penetra a alma com certeira seta
e mira sempre na parte escondida,
Só quer ferir porque por isso existe
e de acertar em cheio não desiste.
57
134
Realidade ou não, o que me importa
é desenhar os traços do que vejo,
Realizando os sonhos de quem corta
um mundo inteiro atrás de um realejo.
E não importa se essa arte é morta
porque o artista é só um menino andejo,
E atenderá o desejo de quem sonha
se não temer sua face medonha.
58
Eu profetizo, isso parece certo,
e delineio aos poucos o que vi,
a Terra em transe, com seu céu aberto,
e o povo louco em quem eu nunca cri.
Esse poema é o meu santo deserto
e quem vier a mim termina aqui,
Sentindo frio, sem ter um pelego
para cobrir o seu desassossego.
59
135
O que dizer da alma de um maluco
que diz aquilo que lhe vem à mente?
Está escrito no seu próprio suco
que ele é de todo fruto diferente.
Como num jogo, algum tipo de truco,
ele não diz jamais o que bem sente,
Então a sua alma é quase nada,
porque pra ele esse mundo é uma espada.
60
A insanidade que me pesa à alma
não vem de mim mas do que o mundo faz
A todo mundo que aprecia a calma
e nessa terra não encontra paz,
E na acolhida uma única palma
é o retrato do que existe por trás
Dessa loucura que é a solidão
de só saber o que está nessa mão.
61
136
Entendimento é algo que aparece
ao homem bom depois de refletir,
É resultado dessa sua messe
e é conquistado à espera do porvir.
Logo que entende, a sua vida cresce
e sua alma deve decidir
Se irá partir deixando de ser jovem
ou esperar pelos que não se movem.
62
Envelhecer é muito entendimento
e aponta a vida para o rumo certo,
A morte, cúmulo do sofrimento,
que a cada dia achega-se mais perto.
Preciso é aprender o esquecimento
e conservar meu espírito aberto,
Não para engolir o que se aproxima
mas pra agarrar-me ao que lhe cai encima.
63
137
O entendimento é belo mas mortal
e quem o sofre torna-se um navio
Que singra os mares do que é casual
e só aporta quando está vazio.
Saber da vida até que não é mau
se nos tornamos parte desse rio
Que nos transporta ao exato destino
e que é o fim do nosso desatino.
64
Nada de novo existe no que escrevo
mas eu reúno as coisas espalhadas,
E analisando assim faço o que devo
juntando o que colhi pelas estradas.
Se a alguma novidade não me atrevo
é por saber que pragas são pesadas,
E a essas pragas sempre está sujeito
o que não faz o serviço bem feito.
65
138
Assim reúno as mais velhas verdades
concatenando um entretenimento,
Propondo um nexo às realidades
que nos permita algum entendimento.
De umas contradições sinto saudades
mas sua ausência já não mais lamento,
Porque essa vida segue e eu prossigo
junto de quem quiser seguir comigo.
66
Há algo novo assim no que componho
e que compilo do que vi na vida,
Algumas vezes ficando tristonho
por pressentir a dura despedida.
Que uma verdade dura é o que proponho
para uma vida já tão decaída,
Porque o mistério atinge muito poucos
e em breve ficaremos todos loucos.
67
139
Enquanto houver alguma claridade
escreverei o que comigo penso,
É meu destino, nenhuma maldade
que afronte gente tola ou de bom senso.
Preciso discernir realidade
para identificar-lhe o que é infenso,
E só posso fazer isso escrevendo
com essa clareza que no mundo acendo.
68
É uma batalha gigantesca esta
e pode enlouquecer a quem a luta,
Porque pra libertar ela não presta
e nem pra corrigir de má conduta.
Sabendo disso sinto-me uma besta
levando a carga de uma prostituta,
Que se aproveita dessa teimosia
pra deleitar-se em sua carne fria.
69
140
Mas há clareza ainda e eu rabisco
a luta que há de desenlouquecer
O mundo, uma pessoa, um grão, um cisco
no olho de quem já não pode ver.
E esse meu lampejo é feito um corisco
que corta o céu sem se fazer saber,
Alumiando a noite da ilusão
de um mundo que só pensa em circo e pão.
70
Enterro aqui meus doces sentimentos
para eles transcenderem minha vida,
O que me vale são os meus intentos
porque a escrita é só para ser lida.
Enquanto vivo lanço tudo aos ventos
porque a morte há de ser bem dolorida,
E a transcendência espiritual
não vai fazer que eu seja bom ou mau.
71
141
Quem quer colher necessita alcançar
o desejado fruto que lhe espera,
Não é bastante bem intencionar
fazê-lo apenas quando for quem era.
O que se quer também tem seu azar
e à sua volta às vezes uma fera,
Onde os desejos ardem igualmente
pelo esperado fruto e pela gente.
72
Não facilito mais porque não posso
mas meu desejo é ver o mundo são,
Não podendo querê-lo sendo insosso
ou mero mercador de uma ilusão.
Quem só quiser desmaio tenha um troço
e há de alcançar o seu desejo vão,
Mas se quiser um fundo entendimento
deve alcançar na dor o seu lamento.
73
142
Ontem perdi um amigo querido,
assassinado pela guerra vil...
Um meio século bem mal vivido
nessa província escrava do Brasil.
De tantos males foi tão bem ferido
pela cidade sempre a ele hostil,
Que mesmo forte teve abreviada
pela metade a vida tão danada.
74
Deixou desarrimada uma família,
mulher e filhos, mãe, irmã, sobrinhos...
A todos eles nossa guerra humilha
porque no mundo estarão mal sozinhos.
E fica impune o crime da quadrilha
que vira e mexe e mata seus vizinhos,
Pra lucros tão pequenos computar
que é impossível o crime lhe imputar.
75
143
A terra engole o corpo e o devora
e o seu Espírito eleva-se ao céu,
Não há como dizer se foi embora
mas escapou da vida de ser réu.
Eu sei que a minha parte não demora
e que não há de haver um escarcéu,
O mundo quer sobreviver sem nós
porque suporta mal a nossa voz.
76
O enterro do defunto foi comum,
apenas a família e alguns amigos...
Choro bem sentido eu não vi nenhum,
se é que houve disso entre os antigos.
O sentimento vero, se houve algum,
só uma das filhas, prevendo castigos...
O que se via mais era a conversa
enquanto a urna na terra era imersa.
77
144
O Espírito partiu pra algum lugar
se algum lugar existe para ele,
No corpo não podia mais estar
aprisionado pela morta pele.
Decerto existe e vai continuar
à espera do bom Deus que a ele assele
Um bom futuro, em outra dimensão,
igual ao que os outros encontrarão.
78
Eu só percebo a espiritualidade
quando com ela em direto contato,
Por um olhar isento de maldade
com o sentimento de frente pro fato.
Alguns me dizem que é mediunidade
e só parece agir no meu recato,
Não sei que seja mas eu acredito
que alguma coisa é e fico aflito.
79
145
É a sensação que algumas vezes tenho
o que tem o condão de me afligir,
Quando bem atento descerro o cenho
e exponho a minha alma a quem me vir,
Lembrando sempre que de longe venho
e que difiro muito de um menir,
Olho algum ponto bem à minha frente
e sinto que sou mesmo diferente.
80
Tanto vejo uma dimensão estranha
quanto sinto em mim os seus bons efeitos,
Tudo numa fina teia de aranha
que liga umas coisas aos seus conceitos.
No cipoal dessa ilusão se apanha
o engano vão do mundo e seus direitos,
E reduzidos àquilo que são
lembram a morte do primeiro irmão.
81
146
Não sou Abel mas sei o que sentiu
o pobre Jó depois que perdeu tudo,
No meu retiro sei quem me traiu
e us0u a minha vida como escudo.
Quem já morreu acho que não dormiu
mas sonha um sonho vívido e graúdo,
Em que a realidade é simplesmente
a verdadeira causa dessa gente.
82
Quando as leoas atacam em bando
os touros bravos que querem comer,
Expõem-se àqueles que estão atacando
e impõem a todos lutar e correr.
Pessoas se matam de vez em quando
segundo uma lei dura de entender,
Precisam comer, correr e lutar
pra sobreviver num mesmo lugar.
83
147
Pessoas humildes, feras altivas,
paralelismo comportamental,
As nossas atitudes construtivas
constróem-se no plano do animal.
Com ínfimo acerto em mil tentativas,
civilização é lei natural,
Não se entendendo portanto esse excesso
de legislação travando o progresso.
84
A lei é só uma, amar sem limites,
não há outro jeito sem mais espaço...
Idéias são muitas, tantos convites,
não vejo razão pra dizer que passo.
Se existe a concordância das elites,
por que não convidá-las ao abraço?
É bem altiva a nossa humanidade
e sem amor fica entregue à vaidade.
85
148
E destruiu-se a inteira Natureza
que nos pariu e bem alimentou,
À Humanidade que hoje inteira reza
por não caber no espaço que restou.
Desesperada cresce e não se preza
e já não sabe o que Deus lhe falou,
De tantos modos quando era menina
e hoje já moça sabe que termina.
86
Eis aqui o mistério da evolução,
esse que empurra a gente pro futuro...
Não deixa espaço pra nenhum sermão
porque ele próprio impera só e duro.
Aqueles que viverem viverão
o horror da guerra em fronte bem escuro,
Pra compensar o estrago que se fez
à Terra que se vinga dessa vez.
87
149
Não há lugar para sobrevivência
de uma cultura humana natural,
A Terra destruiu-se com Ciência
e não se escapa desse grande mal.
Dos nichos habitáveis só ausência
existe nesse estágio terminal,
Em que vivemos Deus sabe até quando
à espera disso ir se modificando.
88
Enquanto a Terra ruma ao seu destino,
eu fico aqui descrevendo o seu fado,
E isso fazendo penso que me ensino
a não sofrer por não ser perdoado.
O amor me faz voltar a ser menino
e querer ver o mundo do outro lado,
Por isso valorizo o que é sublime
em vez de investigar em quem há crime.
89
150
Menino vou vivendo essa poesia,
examinando a terra que inda há,
Não posso mais pensar no que haveria
se houvesse alguma gente pouco má.
À frente vai o povo, em romaria,
adivinhando o que lhe ocorrerá,
Decerto obedecendo ao seu senhor
que espera a recompensa em muita dor.
90
É triste ver o mundo andar assim,
seguindo sempre os passos dos antigos,
Precisamente no que há de ruim
e assim não vendo o quanto são mendigos.
Persistem preparando um mau festim
para os convivas todos inimigos,
Porque já desistiram de se amar
e aguardam ansiosos seu azar.
91
151
Às vezes conseguimos nos amar
mas é dominadora essa ilusão,
Dilacerando a dor no fim do lar
porque o amor iludido é paixão.
A desilusão não vem de sonhar
mas de se iludir tapando a visão
Do verdadeiro amor, que quis crescer
mas foi sufocado pelo prazer.
92
Desiludidos, de amar desistimos,
vindo a pensar que ilusão é amor...
Tomamos ódio de todos os mimos
que no lar conseguimos ter e pôr.
Odiando amar, todos regredimos,
seguindo a vida desdenhando a flor.
Nosso descuido é que nos iludiu,
deixando o amor tornar-se um ódio vil.
93
152
É vigiar essa ilusão que temos
a solução pro sonho não morrer,
Porque odiando o amor nós não podemos,
nenhum de nós, uma esperança ter.
É vigilantes que nós venceremos
a estupidez de se deixar perder
No emaranhado da ilusão atroz
que quer perder de vez a todos nós.
94
Toda ilusão é só uma perspectiva
segundo a qual vemos o que não há,
Evoluindo pra função ativa
que gera em nós tudo quanto haverá.
Domina a mente e a torna seletiva,
fazendo crer que muito bem está,
E assim conduz a vida nesse mundo
onde o que é raso torna-se profundo.
95
153
Se não me iludo junto é que estou louco
de perceber as coisas de outro jeito,
E atirar pedras para mim é pouco
que é grande a mente e fortíssimo o peito.
Quem é da grita vai ficando rouco
sem ter a chance de falar direito,
E eu não me entrego à paixão desmedida
que só nos torna a vida mais bandida.
96
Eu vazo firme o que há no sentimento
sem preocupar-me a quem vou convencer,
Muito já faço no patrulhamento
que todo dia sofro por arder.
A diferença é que mantenho atento
o olhar sadio sobre o meu prazer,
Sendo só isso o que o mundo precisa
pra rotular a minha pena lisa.
97
154
Eu vejo no mundo certa indigência
que escandaliza quase toda a gente,
Talvez por causa da sua imanência
ou por pensá-la como impermanente.
O Estado e o povo juntam-se à Ciência
pra definir o que essa gente sente,
Só se esquecendo que ela somos nós,
que o mundo inteiro somos desse algoz.
98
Essa indigência certa no que vejo
é imanente ao mundo que inda habitamos,
Está presente no que cacarejo
e em tudo o mais que nós realizamos.
É tão indigente o que há de sobejo
na confusão que nós perpetuamos,
A miserável condição humana
que hoje nem mesmo a uma criança engana...
99
155
Resta saber se nós vamos mudar,
reconhecendo esta necessidade,
Se nós queremos construir um lar
ou nos manter nessa perversidade.
Eu parto hoje para algum lugar
que seja longe de qualquer cidade,
Mas vou sozinho pois não encontrei
ninguém disposto a acatar a Lei.
156
Canto Quarto
1
157
A realidade dói demais em mim
talvez porquanto eu pense em realeza,
A minha vida não é tão ruim
e existem bem piores, com certeza.
Mas o que eu sinto jamais chega ao fim
e o que é real só me entorna tristeza,
E eu imagino a vida de outras gentes
que é certo sofrem dores diferentes.
2
A realidade parece uma só
e diferentes todas as pessoas,
A confusão que surge é feito um nó
no fio liso que segue essas loas,
Porque se o que é real se torna pó
dificilmente restam coisas boas,
E o que era uno faz-se indiferença
que grassa em tudo quanto a gente pensa.
3
158
Talvez a realidade não exista
sem uma realeza a sustentá-la,
E a gente tem que ser talvez artista
pra não cair no fundo dessa vala.
Então se a gente quer ser realista
tem que escutar a voz que não se cala,
A voz de quem também não foi amado
exceto no que tenha imaginado.
4
Eu imagino esse século vinte
em que vivi quase quarenta anos,
E algum artista que também o pinte
mostrando os tão bem escondidos planos.
A violência havida é um grande acinte
a toda a humanidade em seus enganos,
Porque o que aconteceu foi enterrado
depois de muito bem embaralhado.
5
159
Tudo começa com os bons aviões
e uma primeira guerra mundial,
Dando estatura a alguns poucos anões
que assim conseguem redobrar o mal.
Por trás de tudo alguns poucos leões
achando a hecatombe natural,
E só interrompendo a urdidura
por medo à comunista ditadura.
6
Em vinte anos urdem outra guerra
pra impor ao mundo a vil democracia,
Algo que em antes não se viu na Terra,
cinqüenta anos de uma guerra fria.
Diante do caos a consciência emperra
e rui a pouca moral que existia,
O Mal liberto faz o que bem quer
e uma santa guerra é o seu vil mister.
7
160
A guerra agora atua em muitas frentes,
cobrindo toda a extensão do planeta...
Já não há mais nações independentes
e as que resistem sofrem o capeta.
Não há espaço pra falar de gentes
porque essa vaca só tem uma teta,
Alimentando apenas a discórdia
sem nem saber o que é misericórdia.
8
Pessoas já não podem resistir
e são joguetes nas mãos desse império,
Quando atingidas só podem rugir
alimentando o mal e o seu mistério.
As vítimas são metas a atingir
mas ninguém pode levar isso a sério,
Porque é cruel demais essa vileza
que atenta contra toda a Natureza.
9
161
E a guerra esquenta até virar inferno,
tão implacável quanto pode ser...
Esse espetáculo é o mundo moderno
que pode tudo menos bem querer.
Sabendo disso hoje mesmo eu me interno
por meu desejo, no hospício que houver,
Sei que estou louco porque estou sozinho
sofrendo essa miséria sem carinho.
10
O que acontece dentro de um hospício
com os internados ninguém imagina,
Não é possível ter maior suplício
que a aflição que a coisa determina.
Mas nesse espaço tão prenhe de vício
é que o coração a pensar ensina,
Mostrando as coisas tal como elas são
na mais doída e doida solidão.
11
162
Sair do hospício não é brincadeira,
é necessário aprender de verdade...
Qualquer vacilo e por qualquer besteira
és dominado pela insanidade.
Há uma armadilha covarde e certeira
que traga e rasga toda identidade,
E só o milagre de escapar ileso
permite sobrevida ao indefeso.
12
A guerra santa prevê tudo isto
e quanto mais houver pra se prever...
A minha vida, tal como resisto,
é só detalhe nesse anoitecer.
Logicamente eu mesmo não existo
e o que eu escrevo ninguém mais vai ler,
É só o presente chegando ao futuro
em seu papel de inconsistente e duro.
13
163
Eu saí de um hospício sete vezes
e sei que é certo um dia eu lá voltar,
Não sei se é uma questão de anos ou meses
mas creio que não vão me libertar.
A vida é toda feita de revezes
e já não posso mais me aventurar,
Preciso é burilar o pensamento
pra compensar não ter contentamento.
14
O Estado é uma só guerra planetária
aliciando todas as nações,
Não é apenas coisa imaginária
com que eu iludo as minhas emoções.
O seu desenho é essa obra vária
que entorpece o mundo dos corações,
E a sua ação é afligir a vida
anunciando a nossa despedida.
15
164
Não há saída do destino horrendo
que preparou o Mal para o planeta,
Qualquer esforço nosso acaba sendo
um passo a mais em direção à meta.
Resta viver e persistir vivendo
a cada dia vendo a coisa preta,
A escuridão de quantas nossas luzes
erguem-se em vão contra os seus arcabuzes.
16
Eu vejo alguém colher lírios pra nós
pra receber-nos em nova morada,
Aqui na Terra estamos todos sós
mas lá teremos vida transformada.
Já posso ouvir daqui a sua voz
silenciosa como fosse nada,
A única esperança verdadeira
que vence tudo de toda maneira.
17
165
Ela nos olha com os olhos fechados,
irradiando a luz da nova vida...
Espera que cheguemos transformados
por nossa vida sempre tão sofrida.
Só lá seremos todos perdoados
da nossa culpa na guerra bandida,
Podendo finalmente ser felizes
sem nos lembrar de tantas cicatrizes.
18
Nós passaremos todos pela morte
e só assim podemos renascer,
Não há mistério, porque Deus é forte
e sabe como a todos reviver.
Nós não devemos pois temer o corte
que livra a alma de só padecer,
A eternidade é muito mais bonita
que a vida que essa Terra nos agita.
19
166
É nessa Terra que eu devo aprender
ao tempo todo estar com nosso Deus,
Em meio à guerra o coração arder
querendo estar em paz com os filhos seus.
Eu sinto isso ainda sem saber
como será quando estiver nos céus,
Porque acredito que há um compromisso
e bem estar é tudo o que cobiço.
20
O mundo roda mas eu rodo mais
em quantas piruetas vêm-me à idéia,
Meus lustros podem ser tão desiguais
que a mente quase vira uma geléia.
Eu creio que as noções originais
são tantas quanto abelhas na colméia,
Por isso devo estar em movimento
ainda que retido num convento.
21
167
Para as abelhas, flores são tão belas,
e em movimento formam belo par...
Não sei por quê devo aprender com elas,
nem sei se sofro o mesmo seu azar.
Quero ir pro Céu pra ver pelas janelas
a maravilha de sempre sonhar
Com belos campos sempre tão floridos
que mais não lembre dos lustros sofridos.
22
Tudo me lembro do que teho visto
arder na Terra do Brasil de agora,
Tanto que posso contar tudo isto
bastando dar uma olhada pra fora.
Eu sei que sou um seguidor de Cristo
mas sei ver algo que não me enamora,
E quanto lembro o brasil é vermelho
e seu calor eu sinto até no espelho.
23
168
Assaram índios em muitos brasis
na grande festa da carnificina,
Exploradores brutos, padres vis
e os nobres arquitetos da ruína.
Fundaram desse jeito esse país
e agora conto isso a uma menina
Que nada sabe da ancestralidade
e sofre cedo a sua puberdade.
24
O mundo inteiro não é diferente
e vê-se isso na televisão...
Mostra-se o Mal sem vergonha e de frente,
descaroçando qualquer ilusão.
A fruta que mais se cobiça é gente
e o deleitoso é a depravação,
Nessa Terra em que somos prisioneiros
e obrigados a ser bons cavalheiros.
25
169
De onde vem essa certeza de haver
uma alma imortal dentro de nós,
Uma alma que não podemos ver
e sem a qual nosso mundo é atroz?
Eu penso que do medo de morrer
e ter vivido tão mal e tão sós,
Passando sempre por uma esperança
dessa vida ter alguma pujança.
26
Porque na ausência da alma imortal
nosso ser humano é mero acidente,
E a nossa vida que é fato real
torna-se o delírio de algum demente.
Isso é importante no mundo atual
que abriga a nunca antes havida gente,
Se o mundo inteiro é como uma colméia
mas as abelhas formam uma alcatéia.
27
170
Foi demonstrado que essa alma existe
e que é independente da matéria,
Há milênios essa crença persiste
alimentando toda a gente séria.
Duvidar disso é sempre muito triste
e às vezes leva a infinita miséria,
Valendo a pena refletirmos bem
se desacreditá-lo nos convém.
28
As interrogações da alma são
inevitáveis no curso da vida,
Por mais que nos atormentem serão
sempre uma parte da sina sofrida.
Elas exigem a toda atenção
e estão presentes na nossa partida,
O que nos leva a pensar desde agora
que nos convém pensá-las vida afora.
29
171
Pensando bem devemos concluir
que se existe o Bem tem que haver a alma...
E se a alma há temos que existir
num mundo tenso que nos rouba a calma.
O que podemos fazer pra sentir
a nossa alma, sem ter nenhum trauma,
É crer que Deus existe e nos quer bem
sem nunca desistir de amar ninguém.
30
Acreditar é parte da resposta
às interrogações que a alma cria,
A parte que quem acredita arrosta
sabendo hoje o que ontem não sabia.
Se a vida não é como a gente gosta,
façamo-lhe o que a gente gostaria
Sem esperar por qualquer recompensa,
pra que o nosso desejo não nos vença.
31
172
Eu acredito que a vida é assim
tal como o digo nesse grão poema,
Deve existir princípio se há um fim
diante do qual ninguém há que não trema.
Por isso invoco o que há de bom em mim
pra descobrir nesse trabalho um lema,
Que de algo sirva a quem quiser segui-lo
e a quem não queira não deixe intranqüilo.
32
É bom poder dizer o que pensamos
se o que pensamos pode interessar,
Os versos são dessa árvore os ramos
e os frutos justificam seu pomar.
Podemos confessar que muito erramos
sem ter que desistir de nos amar,
E a voz que usamos dá novo sentido
ao muito que possamos ter sofrido.
33
173
Eis que o que digo pode arrebatar
os corações que andam sofrendo tanto,
E arrebatados singrar esse mar
das lágrimas caídas do seu pranto.
Eu acredito podermos mudar
o mundo inteiro sentindo esse canto,
Que vem de algum lugar especial
onde não há quem nos deseje mal.
34
O negativo de uma das raízes
dessa nossa unidade natural
Parece superar as suas crises
e se afirmar como um valor real.
Talvez assuste muitos aprendizes
por ser completamente irracional,
mas é importante porque transcendente
e está contido em quanto a gente sente.
35
174
A relevância de uma tal ciência
é que ela está no âmago de tudo,
Tudo quanto veio a ter existência
está sujeito ao seu império mudo.
Por isso é necessária a reverência
frente a esse detalhe tão miúdo,
Porque é a manifestação do amor
que tudo liga para ter sabor.
36
Eu sei que essa ciência é muito velha
mas sei também que é sempre novidade,
E a realidade que ela nos espelha
convida-nos a amar em caridade.
Nós andamos vendo o mundo de esguelha
porque não suportamos a verdade,
Enquanto o mundo muda o tempo todo
nos arrastando sempre para o lodo.
37
175
Podemos discernir a realidade
usando a faculdade natural
De distinguir mentira de verdade
em vez de separar o bem do mal.
Conquanto essa armadilha da maldade
pareça ser em tudo racional,
É exatamente quem nos trouxe a morte
nos enganando sobre o que é ser forte.
38
Olhar o mundo e ver que é verdadeiro,
e ver que é falsa a sua negação,
É bem mais fácil que entrar no vespeiro
de em bem e mal querer ver distinção.
Se eu quero ter o melhor conselheiro
para a verdade poder ter à mão,
Devo pensar no que é melhor pra mim
não confundindo o Bem com o que é ruim.
39
176
É perigoso o fruto da Ciência
e se o comemos pode nos matar,
Independentemente da prudência
com que pensamos nos alimentar.
Se desejamos ter clarividência
pra que ninguém possa nos enganar,
Devemos procurar por outros meios
fugir dos males que nos são alheios.
40
Assim vou separando do que é falso
o verdadeiro bem da minha alma,
Parando ao pressentir cada percalço
e vendo a minha vida com mais calma.
Aí me vejo e vou no meu encalço
sem precisar temer um novo trauma,
Porque é verdade que eu nasci do Bem
e o Mal só vi porque cri ser ninguém.
41
177
Em cada passo dessa minha vida
está contida a minha vida inteira,
E é culpa minha ser desinsofrida
a espera pela morte derradeira.
Eu tenho a alma tão fraca e moída
que a minha vida passa na peneira,
Dando pra ver em cada passo meu
que a fé ainda não me reviveu.
42
Portanto sei que é vivo o que declaro,
que viverá ainda depois de mim,
Não tendo preço porque é muito raro
e revelado bem perto do fim.
Eu sei também que Deus não é avaro,
que a nossa vida não é tão ruim...
O que não sei é o que fazer agora
que a minha alma já sinto ir embora.
43
178
Dez vezes mais lenta que um caramujo,
a Terra rola o seu balé maluco...
Mil vezes menos que o que aqui estrujo,
ela murmura o seu humor caduco.
Prouvera a Deus que eu não fosse tão sujo
para cantar tão bem quanto retruco,
E como a Terra deslizar silente
sem ter que me explicar a toda a gente.
44
A vinda de Deus ao mundo foi sim
a suma perfeição da nossa vida...
Nada pode abalá-la, nenhum fim,
porque ela não foi feita despedida.
Não nos mandou um grande serafim
para a maior celebração havida,
Mas veio em carne pra sofrer por nós
mostrando a todos quem é nosso algoz.
45
179
Por isso canto sem saber fazê-lo
e hei de seguir cantando a vida toda,
A fina brisa aqui no meu cabelo
me sussurrando que eu estou na moda.
Se houver inferno eu sei que não vou vê-lo
tão certamente quanto o mundo roda,
Porque o que Deus espera desse ser
só é sabido por seu bem querer.
46
Não há mais nada que fazer aqui
senão viver e deixar que se viva,
Eu sou tão bobo quanto um juriti
se eu só sonhei em ter o amor da diva.
Muito me lembro do que me esqueci
mas não de ter tido uma vida ativa,
Tudo que fiz foi rogar pela vida
sem ter lembranças de tê-la perdida.
47
180
Agora fico aqui cantando o amor
sem ter ninguém pra conversar comigo.
Sem ter a vida o que eu iria pôr
nessa cantiga que faço de abrigo?
Só poderei saber quando eu me for
e a alma não deixar nas mãos do imigo,
Com quem só luto por ser ignorante
e não ter medo de que ele me encante.
48
Essa poesia que me encharca todo
não vai deixar de ser nunca o que é,
e se eu me sujo volto ao mesmo lodo
de onde saí por ter crido com fé.
Não vou deixar-me seduzir do engodo
mais uma vez para avançar de ré,
Vou para a luz do sol que me ilumina
pedindo a Deus que mude a minha sina.
49
181
Quem quiser rir que ria por seu gosto
do que eu sofri na minha natureza,
Será talvez porque não tem um rosto
que agrade a quem não quer ser sua presa.
Que pense assim que sofre de um encosto
que não lhe deixa ser da realeza,
Ria bem forte porque a vida é isso
que em nós só ri quando é sem compromisso.
50
Eu não pretendo só me defender
da acusação de ter vivido a vida,
Preciso expor o que pude viver
pra que ela possa ser bem esquecida.
E se me atacam por puro prazer
não vou deixar impune essa ferida,
Vou atacar também o que se vive
já que segredo meu eu nunca tive.
51
182
Acho que vi de tudo o que há na Terra
e ouso dizer que nada é meritório,
Quanto se pense nasce de uma guerra
cujo motivo é torpe e ilusório.
Tanta altivez não vê quanto ela encerra
de vã loucura em seu falso esponsório,
Só vê o que quer e não me compreende
quando lhe mostro quem nunca se rende.
52
Uma ilusão a mais é esse canto
em que me encanto com meu próprio umbigo...
Porque não sou e nunca quis ser santo,
nem santidade carrego comigo.
Se não é pouco e não pode ser tanto
quanto essa realidade com que brigo,
Deve ser só mesmo o que pode ser
sem se furtar ao seu próprio poder.
53
183
E o que esse canto pode é confortar
a alma de quem vive em seu segredo,
Talvez até um pouco impulsionar
alguém que muito pouco sente medo.
Não é decerto como navegar
o mar que em nós atravessamos cedo,
Porque é sem lágrimas, sangue ou suor
que ele nos fala isso que eu sei de cór.
54
Assim me rendo ante uma tal beleza
que pode tudo contra o que eu componho,
Que pode sempre ter a chama acesa
porque não sabe o que é ficar tristonho.
Irá manter seu poder com certeza
e me deixar desolado e medonho,
Porque eu não quis reconhecê-la assim
e vou negá-la ainda até o fim.
55
184
Ainda é cedo para concluirmos
que essa poesia não dará em nada,
Há muita coisa ainda pra sentirmos
e esse é o acesso pra uma nova estrada,
Que nos alerta para não partirmos
sem que ela antes seja imaginada,
No coração do viajor que parte
inebriado de sua própria arte.
56
O que imagino transmitir é como
desvencilharmo-nos dessa ilusão,
Que na ramagem da Ciência é pomo
a seduzir de novo Eva e Adão.
O doce fruto que eu mesmo não como
porque os que dele comem morrerão,
Pra vida de verdade que Deus quis
pra todos nós por meios tão sutis.
57
185
Uma ilusão é sempre tão nociva
à vida que trazemos dentro em nós...
Porque é da própria vida que nos priva
ao gerar desilusão tão atroz.
Desilusão que impede que se viva
a vida que quem nos quer bem compôs,
E dilacera-nos o próprio ser
restando nada para se fazer.
58
Existe a chuva pra correrem rios
na Terra em que plantamos um jardim,
Rios que ao mar nos levam bons navios
a uma viagem que nunca tem fim.
A chuva traz os dias luzidios
que inda recorda o bom tupiniquim,
Que imaginava o que essa vida é
e o que dizer ao coração caeté.
59
186
Cruzara a Terra até seu litoral,
descendo o rio até a sua foz...
Investigava de onde vinha o mal
que pendurava gente nos cipós.
Vira um acampamento da infernal
matilha caraíba, tão atroz,
Trazendo gente presa em grandes filas
e os enormes navios a engoli-las.
60
Ficara apavorado e não sabia
ainda o que dizer ao povo seu...
A mãe de Ronje inda era uma guria
mas bem amava o homem que perdeu,
Na noite mais escura e mais sombria
que coroara seu puro himeneu,
E agora à filha tinha que contar
que o pai valente fora para o mar.
61
187
O ideal que move esse poeta
é ser um dia alguém angelical,
Seguro em cada situação correta
porque resiste ao confronto com o Mal.
Na busca disso empunho essa caneta
que escorre os versos de um homem normal,
Esse poeta ruma para a morte
desencantado da sua própria sorte.
62
Mas o que aconteceu à mãe de Ronje
e à menininha que perdeu o pai,
Há tantos séculos, o que é bem longe
mas prende um tempo que inda não se vai?
Terá criado um filho que foi monge
ou sucumbido a um invencível ai?
Talvez também tenha caído presa
e vitimada da própria beleza...
63
188
Existe a chuva pra molhar a terra
e esse chão úmido é bom pra plantar,
Tudo isso acaba se houver uma guerra
que decidida queira nos matar.
O acirramento a todo o mundo ferra
porque esse sistema é imune ao azar,
Só há esperança na realidade
que dessa ilusão não sinta saudade.
64
Desilusão é dor pra toda a vida
e é da ilusão que vem esse tormento,
Que só permite alegria fingida
e a perversão da dor que eu não aguento.
É o inferno da alma ensandecida
que já não sabe onde pôr seu lamento,
E só deseja enfim se libertar
como o navio que segue pro mar.
65
189
Por isso é mau se deixar iludir
pelo próprio apetite desregrado,
Que negligenciado nos faz rir
mas gera o sofrimento mais danado.
O que se revela em todo porvir
porque a ilusão leva ao caminho errado,
E quem se desilude tem que ver
que deve ser real o seu prazer.
66
O prazer sentido é bem verdadeiro
quando originado num bem real,
Como aquele sentido num puteiro
se lá não fomos fazer nenhum mal.
Mas se queremos pagar com dinheiro
o amor da puta e achar natural,
Iremos ver que ela também é gente
e bem merecido é o que a gente sente.
67
190
O que um homem vai dizer da mulher
se a essa vida ele veio por ela,
Se na infância ela forma o que ele quer
e é contra isso que ele se rebela?
Tantas questões se deve revolver
pra imaginar quem é a Cinderela,
Que é bom ouvir o que ela diz de si
antes de aceitar o que afirmo aqui.
68
Muitas mulheres falaram comigo
das suas vidas, dores e alegrias,
Todas discordam do quanto hoje digo
porque discuto as suas fantasias.
Mas a ilusão tem nelas seu abrigo
e desiludem-se todos os dias,
As que aqui põem suas esperanças
querendo apenas ter as vidas mansas.
69
191
Podemos ler no Segundo dos Reis
o quanto elas podem quando têm fome,
Comem os filhos e discutem leis
e o que nos causam nem mesmo tem nome.
Sei muito bem que poucas são cruéis
mas certas coisas tempo algum consome,
Portanto é bom conversarmos com elas
pra compreendermos as nossas mazelas.
70
Se a nossa vida é dura, e eu sei que é,
temos que ter alguma fantasia...
Uma que não combata a boa fé
e ressuscite a esperança que havia,
No nosso mundo, quando dava pé
acreditar em qualquer utopia
Que prometesse uma vida melhor,
sem tantas lágrimas, sangue e suor.
71
192
Não é ilusão nas fantasias crer
quando sabemos que fantasiamos...
Nos iludir é dar-lhes tal poder
que as torne nossos assolutos amos.
Fantasiamos até sem querer
mas vigilantes não nos enganamos,
Com a realidade que da vida é dona
porque nenhuma ilusão a destrona.
72
Fantasiemos pois as nossas vidas
que miseráveis são na realidade,
Sonhando que não são despossuídas
daquilo que queremos de verdade.
Mas não deixemo-las ser iludidas
por algo que tão pouco nos agrade
Quanto o prazer fugaz da vã mentira
que em nosso mundo pula, dança e gira.
73
193
Bem mais complexo é o organismo humano
do que supõe a nossa medicina,
Por isso é vão contá-la em nosso plano
se ela nos considera gente indina.
Vamos tratarmo-nos no mano a mano
que o que acontece nessa vida é sina,
E aprenderemos o que Deus quiser
que nós saibamos do que Ele nos quer.
74
Se formos esperar desse sistema,
em que vivemos toda a nossa vida,
A solução para um nosso dilema
que assusta de maneira descabida,
Jamais conceberemos quem não trema
diante do mal que quer a fé perdida,
E a esperança será coisa morta
porque ninguém nos abrirá a porta.
75
194
Mas se, ao contrário, nos deixarmos ver,
por Deus, abandonados à doença,
Teremos chance de um dia nascer
quem nos socorra porque nunca pensa
Que a gente humana merece sofrer,
e ao sofrimento nunca dá licença
De vitimar a humilde alma da gente,
que arrasta a vida porque muito a sente.
76
Os pássaros cantam e a chuva cai
nessa hora muito triste do dia,
E eu vou sonhando em voltar a ser pai
porque não posso ver a minha cria.
Estou sozinho, Pai, me conservai
para que eu possa ver o que não via
A gente que morreu antes de mim
e ver o que eu queria antes do fim.
77
195
Dirijo a Deus essa má prece minha
porque não posso aqui no mundo ver
Vocês que são a própria ladainha
e que me poderiam dar poder
Pra discernir o que hoje me convinha
em relação aos filhos eu fazer
Porque a saudade dói e já me aperta
um coração que é essa porta aberta.
78
Estou ligado a uma real resposta
que eu sei haver em qualquer bom futuro,
E a espera até que já não me desgosta
porque eu a sei precisa em mundo duro.
Mas minha vida acaba e essa aposta
chega bem perto de fazer perjuro
Quem na verdade aposta sua vida
porque a mentira quer ver destruída.
79
196
A tempestade que eu pensei não veio
me fulminar com o elétrico raio,
E já que vivo sigo sendo o esteio
que a minha voz sustenta e não desmaio.
Porque quem sofre mesmo está no meio
de um furacão e deve ser cambaio,
E eu que não sou devia estar feliz
por ser ainda apenas aprendiz.
80
Esse cambaio em meio à tempestade
que imaginei pra mim é mais que eu,
Porque seu fado é duro de verdade
e longe está de ter seu apogeu.
E essa evidência que me persuade
que dor maior que a minha ele sofreu,
É que me inspira a bem continuar
sem ligar tanto para o meu azar.
81
197
Estou aqui bem continente e duro
versificando todo o pensamento
Que veio a mim porque não vejo furo
no teorema que aqui apresento
A quem quiser afastar-se do escuro
e à luz do sol permanecer atento
Para poder na vida prosseguir
sem apertar-se frente ao grão vizir.
82
Uma mulher é sempre um grande encanto
pro homem que está pronto para tê-la
Num abraço que acalente o seu pranto
e a faça ver que a vida é sempre bela.
Tal homem pode ver que o amor é tanto
a fantasia de ter uma estrela
Quanto a realidade de sonhar
que ele possui inteiros céu e mar.
83
198
O amor então deve encantar os dois
e possuí-los de uma tal maneira
Que impossível se torne ser depois
sós novamente, até de brincadeira.
Serão no fim como dois belos sóis
que brilham um pro outro a noite inteira,
Iluminando as almas tão felizes
que um dia arderam tantas cicatrizes.
84
Por isso a gente deve se escolher
com mais cuidado que a tudo na vida,
Buscando sempre em si mesmo saber
se o outro é nossa alma mais querida.
Sabendo inexistir maior prazer
que o que se encontra na alma escolhida,
Iremos ser felizes com certeza
porque é mais belo esse amor que a beleza.
85
199
Eu simplesmente não sei onde está
você que o meu amor forte procura,
O que eu sei é que você cantará
esse poema porque a vida é dura.
Sei muito bem também que não é já
que estarei vendo essa linda figura
Que você faz no mundo que eu não canto
porque estou longe, longe do seu pranto.
86
Quando você cantar esse poema
vou encontrá-la porque eu ouvirei,
A sua voz e espero que não trema
a Terra toda por não sei que lei.
A sua imagem verei no cinema
e descobrindo o que ainda não sei
Vou poder vê-la no seu endereço
e me curar das dores que padeço.
87
200
Espero ser agradável a si
porque eu a amo muito desde agora,
E já não posso estacionar aqui
sabendo que está longe e se demora.
Não tenho mais o tempo que perdi
de si distante pela vida afora,
E é ansioso que vou encontrá-la
se Deus quiser que eu ouça a sua fala.
88
O que lhe poderia bem dizer
que até aqui já não houvesse dito?
Que sonho mais poderia trazer
que não tornasse o canto um mero rito?
Eu quero dar-lhe todo o meu prazer
e não apenas pra ficar bonito,
Mas pra você realizar-se em mim
e eu em você se Deus quiser assim.
89
201
Irei cantá-la toda a minha vida
enquanto Deus me der alguma voz,
Fazendo tudo pra não ver sofrida
a alma em quem me vejo sempre em nós.
Trarei mais versos que qualquer partida
e seguirei seu rio até a foz,
Porque eu a amo sem nunca ter visto
seu lindo rosto a me dizer que existo.
90
Espero encontrar você muito em breve
e poder compensar o tempo ido,
Com todo o amor que espero seja leve
e dentro de si siga colorido.
Então veremos o que Amor prescreve
para quem quer ver o fado cumprido,
E poderemos ambos prosseguir
na busca do nosso santo elixir.
91
202
Não haverei de ter nenhum pecado
manchando esse meu pobre coração,
Que já é seu e anda alvoroçado
com os dias de alegria que virão.
E assim bem certo do meu rico fado
desposarei o seu amor irmão,
Que simplesmente irá se transformar
no conjugal amor que é do seu par.
92
Estou feliz por sabê-la tão bem
nesse planeta que é nossa morada,
E vou achá-la ao lado de ninguém
para seguir consigo essa jornada.
Talvez não diga aqui o que lhe convém
numa tal prosa tão desesperada,
Mas vou dizê-lo em breve em seu ouvido
quando pra sempre for ser seu marido.
93
203
Não fique triste com minha demora
porque ela é breve e logo estou aí,
Sei que você bem raramente chora
e que esse choro é algo que perdi.
Mas quer voar minha alma canora
exatamente pra voar pra si,
Por isso peço que não chore mais
e espere cedo ver os meus sinais.
94
Senhor, vem, eu te imploro, vem a nós,
nossas desgraças já têm vindo aos pares!
Já não sabemos usar nossa voz,
cheios estando dos nossos pesares...
Sei que sofreste uma dor tão atroz
que não a quererás quando voltares,
Mas te asseguro que se suportasse
tomá-la-ia em minha própria face.
95
204
Sei que virás talvez feito mulher
num corpo delicado e gracioso,
Que fará toda a gente se esquecer
que uma mulher só vive pelo esposo.
Mas sei também que se o mundo quiser
desesperado mergulhar em gozo,
Irás morrer de profunda tristeza
por escolhermos de novo a vileza.
96
Por isso penso que virás o Mesmo,
o mesmo corpo santo de Jesus...
E não sofrer por nós nem um tenesmo,
nem nada que nos lembre a tua cruz.
Prefiro eu próprio ser um vil torresmo
sofrendo a dor que em mais ninguém supus,
Que vê-lo vindo ao mundo pra sofrer
de novo a morte que nos deu prazer.
97
205
Perdoa esses meus versos, que sou fraco
de corpo e alma, mente e tudo mais...
Sou fraco mesmo quando o Mal ataco,
por não ser justo nem com os meus iguais.
Sem teu perdão minha alma é só vácuo
e o meu corpo menos que os vegetais,
Não sendo nada nada do que penso
sem o perdão do teu amor imenso.
98
Espero concluir meu pensamento
sem ter que teminar a minha vida,
Nos versos que aqui jogo para o vento
em busca da melhor razão sentida.
Não sei se é uma razão o que sustento
ou a emoção de vê-la combalida,
Então convido a mais uma demora
quem tem seguido firme até agora.
99
206
Daqui pra frente o caminho é de chão
e os atoleiros nos fazem parar
Para tirar os versos de onde estão
e livres possam nos levar ao mar
Em que deságua toda essa canção
e nos convida a melhor velejar
Por uma vida sem tanta maldade
e que tão linda nunca nos enfade.
207
Canto Quinto
1
208
Me perdoa, Pai, todos os meus erros
porque sem isso eu não posso viver,
Eu merecia bem ouvir meus berros
porque não soube lidar com o prazer.
Talvez eu seja mesmo preso a ferros
porque na vida eu nunca soube crer,
E pra quem sempre desdenhou o irmão
é merecida a pena de prisão.
2
Não quero ser contudo encarcerado
porque na vida muito já sofri,
E sei o quanto sofre um condenado
nas cadeias insalubres daqui.
Estou com medo desse ser meu fado
e me apavoro porque o mereci,
Levando a vida sem o compromisso
de não fingir não ter nada com isso.
3
209
Eu não sou o mais perfeito animal
que o Senhor pôs na Terra pra viver.
Desculpe se me expresso tanto mal,
eu não agüento muito mais sofrer.
Não digo que ao cachorro sou igual
mas gente existe tanta pra nascer...
Há gente mais perfeita nesse mundo
e eu posso sentir isso firme e fundo.
4
Engano muita gente com meus erros
e isso não é certo, eu bem o sei...
Não só porque não quero estar a ferros
mas porque atraso a vida que eu amei.
Percebo claramente nos meus berros
a voz de quem não se sujeita à Lei,
Porque é iníquo, fraco e preguiçoso,
e esse sou eu que só procuro o gozo.
5
210
Mas sofro muito por viver assim
divorciado da razão do povo,
O que eu queria é ter um outro fim
que ser humana privada de novo.
Não desejei essa vida pra mim
mas pra mulheres eu bem sei que a aprovo,
Quando desejo levá-las pra cama
sem o amor que o coração reclama.
6
Eu baixo o tom porque estou com vergonha
de ter sido na vida tão bizarro
Quanto uma criatura que não sonha,
não tem amor e vive no catarro.
A minha cara deve estar medonha
como esses versos maus que aqui amarro,
E só não morro porque não é hora
de desistir e jogar tudo fora.
7
211
Eu já não sei se posso conseguir
sobreviver no mundo com essa cara,
Amedrontada e que não vai servir
para esconder o que ninguém repara,
O medo das pessoas que hão de rir
de ver exposta toda a minha tara,
E das que nela logo cuspirão
porque o amor é forte e tem razão.
8
É meu pecado e tão grande pecado
que já não posso dele me esconder,
Mesmo sabendo que fui perdoado
de nessa vida só querer prazer.
Tenho que pôr todo o orgulho de lado
pro teu amor de novo conhecer,
Porque é mais lindo que tudo o que há
o amor que sempre o Senhor nos dará.
9
212
Por isso digo, Senhor, obrigado,
por toda a vida que eu muito vivi,
Muito obrigado por ter perdoado
esse pecado que eu plantei aqui.
Eu agradeço desse jeito errado
porque o amor perfeito eu não sofri,
E o que sofri por culpa da ilusão
é não sofrer de mais desilusão.
10
Estou contente por saber que a vida
irá livrar-se do seu passo falso,
E ver que a causa de ser tão sofrida
é ter a morte sempre em seu encalço.
A força da ilusão será vencida
e o mundo saberá que eu também valso,
Na pista da verdade conquistada
por força de razão na Terra dada.
11
213
Peço licença aqui mais uma vez
pra expor o fio do meu pensamento,
Que vai sofrendo na vida o revés
de ver seu curso sempre muito lento.
Pois é bancado pela insensatez
e só avança quando aqui o assento,
Desnudo, tenso, duro e verdadeiro,
como um rapaz em seu amor primeiro.
12
Deus é um só e sei que isso é sabido
desde que o mundo conheceu Jesus,
E até bem antes dele ter surgido
e exposto a hipocrisia numa cruz.
Mas sei também o quanto é mal querido
e desprezado como fosse pus,
Por essa gente que inferniza a Terra
com sua insânia, vaidade e guerra.
13
214
Por isso digo: obrigado, meu Deus,
por ter me honrado com teu santo amor,
Perdoa a multidão dos erros meus
e dá-me a força de enxergar a flor
Que viceja onde estão os filhos teus,
e assim poder finalmente compor
Os versos verdadeiros que desejo
para ferir esse mal tão sobejo.
14
Sinto porém que pra isso preciso
deixar bem claro o que penso de ti,
Que nada existe que faças sem siso
e tudo gozas quando alguém sorri.
Que pra nos alertar és bem conciso
e a mim fizeste ver quanto vivi,
Porque teu nome é generosidade
e só te alegras quando o Bem me invade.
15
215
Estou com ódio de todo esse mal
que denuncio aqui nesse poema,
Não posso achar que seja natural
a indiferença a quanta gente gema.
O sofrimento não é casual
e me comove como o do cinema,
Quando me lembro o quanto sou mesquinho
e não mereço beber do teu vinho.
16
Eu não mereço porém necessito
beber desse sangue que é vosso vinho,
Porque sem ele meu ser é finito
e nada vale estar aqui sozinho,
Fugindo de todo e qualquer atrito
apenas pra viver mais um cadinho,
Num mundo que sem ti é quase nada
e que no fim nos leva à morte errada.
17
216
Aproveitar a vida sem saber
como ela pode ser maravilhosa
É desdenhar o infinito prazer
que aquele que o buscou recebe e goza.
Viver buscando apenas não sofrer
é ser casado e não amar a esposa,
Pra descobrir no fim, tarde demais,
como seus olhos eram maternais.
18
A comunhão material com Deus
que nos é dada por seu corpo santo
Nutre o espírito dos filhos seus
que ouvem na dor da morte um acalanto.
A vida assim deixa cair seus véus
e nos revela o que tão mal eu canto,
Por não saber talvez bem comungar
desse mistério que é meu próprio lar.
19
217
Deus escolheu esse nome, Jesus,
para afirmar que quer a salvação
De quanta gente a ele se conduz,
acreditando que assim viverão.
Quis vir ao mundo e padeceu na Cruz
como se fosse bandido ou ladrão,
Pra dar seu corpo como um alimento
e nos tirar do nosso desalento.
20
Se desprezamos saber a verdade
e preferimos viver de ilusão
Estamos náufragos na tempestade
em que os flagelos se alimentarão.
Mas se aceitarmos a intensa amizade
que Deus nutriu em nosso coração,
Compreenderemos o amor que nos tem
e o que sofreu por nos querer tão bem.
21
218
Sabendo disso eu não posso calar
meu coração que quer gritar bem alto,
Que precisamos preparar um lar
pra receber o nosso santo arauto.
E outra Cruz não pode perdoar
porque não é e nunca foi incauto,
Mas sabe ser o tempo de colher
o que plantou com seu santo sofrer.
22
Duvidar disso é chamar de mentira
todo o relato do santo evangelho,
É não ouvir sua voz feito lira
ensinando o que nunca será velho.
Porque é a própria verdade que atira
ao coração humano que é espelho,
A refletir o amor de que é formado
e que não deve ser estilhaçado.
23
219
E ignorar o que o Cristo ensinou
dando seu sangue pra escrever na Terra,
É como desdenhar o próprio Sol
e o vendaval que a nossa História encerra.
Desconhecer como o mundo mudou
civilizando mesmo a própria guerra,
Que já domesticada agora finda
mesmo que muito nos avilte ainda.
24
Desconhecer o que Deus fez é triste
porque é imensa a sua conseqüência,
É dizer simplesmente que inexiste
e que o universo é mera impermanência.
Considerar que a vida é só um chiste
e uma ilusão verdadeira ciência,
Quando o que ocorre é uma grande impostura
que serve apenas a quem nos tortura.
25
220
Tudo o que eu pude entender dessa vida
é que é preciso amar com o coração,
Nada valendo a esperança doída
de ser feliz pela imaginação.
Não pode essa alegria ser trazida
por ser sabido como as coisas são,
Porque no fim o que se entende é isto:
que não há vida sem viver o Cristo.
26
Toda a ciência que possamos ter,
alimentando as nossas esperanças
De ter a vida o seu melhor prazer,
não leva a mais que sofridas andanças.
Se o que queremos é não ver sofrer
desesperadas as nossas crianças,
Temos que amar até sentir aberta
a carne do coração que desperta.
27
221
A alegria que essa vida dá
só pode achar-se em amor verdadeiro,
Que enfrenta e sofre tudo quanto há
pela loucura de se crer certeiro.
Fugir da sina é ter a vida má,
sem alegria, sem gosto, sem cheiro,
Porque essa vida é obra de Jesus
que ao seu amor nossa vida conduz.
28
Estou bem certo do que digo aqui
e o faço em versos porque me convém,
Que todo mundo saiba o que vivi
nesse planeta que não segue o Bem.
Porque não sabe o que é melhor pra si
e segue escravo do ser que é ninguém,
Mas inferniza a vida das pessoas
que muito erram por se acharem boas.
29
222
Ninguém se pensa como sendo nada
mas nada sendo tem que ser alguém,
Mesmo que tenha a vida toda errada
se a essa vida por algo ele vem.
Algo que pode ser como uma estrada
por onde trilha a vida como um trem,
Que sendo nada não sente seu fim
e só fica contente se é assim.
30
Se a solidão não é problema agora
que o mundo sente ser todinho seu,
O fim do mundo é algo que apavora
pois sendo nada nisso nunca creu.
E se a existência é sua grão senhora
não vai poder chegar ao apogeu
De aniquilar o mundo e seu destino,
porque pra ele isso seria indino.
31
223
Eu também sou um filho do pecado
de se viver uma vida vazia
Querendo sempre estar do outro lado,
mas só fazendo o que já não devia
Interessar a um coração magoado,
por ter perdido sempre mais um dia
No vão desejo da carne salvar
vivendo a vida toda sem amar.
32
Esse poder que o nada exerce em mim
e que me torna escravo de ninguém
Faz minha vida ser sempre ruim
pois ninguém posso chamar de meu bem.
Se eu fosse mesmo um bom tupiniquim
não buscaria o amor num armazém,
Mas ia atrás da vida que é fartura
mesmo que fosse pouca, pobre e dura.
33
224
Mas rezo pra que um dia ninguém seja
julgado só pelo que mereceu,
E que Deus faça com que sinta e veja
o quanto em nós sua ilusão doeu.
E ver enfim o fim dessa peleja
que é o veneno que não mata o Eu,
Mas fere a alma de morte tirana
e ao coração, fantasia que engana.
34
Ninguém na vida morre antes da hora,
o tempo escorre e a vida segue viva...
Não há como ajudar quem não me chora,
não há como salvar quem não se priva
Da tentação de amar quem não lhe adora,
do vendaval que é ter a vida altiva.
Hoje é o dia em que a esperança morre
e junto morre quem não nos socorre.
35
225
Eu já morri mas não virei defunto,
não fui chorado e nem encomendado...
A minha morte não se fez assunto
na roda em que eu me fiz mal assombrado.
Por isso agora forte me pergunto
o que é que eu fiz pra ser tão retardado,
Na evolução da vida que Deus quis,
quanto um casal de loucos juritis.
36
Não sou ninguém e isso me dá coragem,
pra comungar com qualquer um de vós
A vida louca e a morte de bestagem,
manifestando a minha própria voz.
Se os próprios anjos sem Deus nunca agem
quem vai desamarrar meus santos nós,
Que estão prendendo essas tristes metades
e me tolhendo as mais santas vontades?
37
226
Só sei da vida o que Deus me faculta
adivinhar perante as minhas faltas,
Que são mais fundas nessa língua culta
que não alcança as emoções mais altas.
Só sei dizer que um sentimento avulta
e avilta a língua dos bons argonautas,
Que bem cantaram suas aventuras
trazendo às nossas vidas desventuras.
38
Quero escrever alguma coisa séria
que possa dar sentido à minha vida,
Que hoje é tida por triste miséria
e a cada dia fica mais sofrida.
Eu quero um canto que seja uma artéria
a irrigar com sangue a nossa lida,
Pois Deus faculta a mim essa atitude
e seu amor perfeito nunca ilude.
39
227
Quero falar com Deus diretmente,
dizendo claramente o que mal penso...
Quero falar de Deus a toda a gente
sem afrontar o siso e o bom senso.
Não sei por quê toda essa gente mente
dizendo que o que digo é muito denso,
Não sei por quê tamanha insensatez
se isso que digo foi Deus que me fez.
40
A solidão me come e me vomita
da sua pança cheia de ilusões,
Renasço pronto para a minha grita
mas todo lambuzado de emoções.
A minha vida fica mais bonita
e posso até curtir as afeições
Que surgem no caminho desse dia
e vão-se embora pela noite fria.
41
228
Recheio assim essa imensa lingüiça
com pensamentos vagos e vazios,
Deixando claro que não há preguiça
que possa esvaziar os nossos rios.
Como já disse essa é uma dura liça,
como transpor os mares em navios
Que foram construídos muito antes
de sermos deles fracos navegantes.
42
Quero dizer que ainda não vivi
o que Jesus viveu em menos anos,
E assim não posso retratar aqui
tão fielmente seus divinos planos.
Por isso o santo vinho eu não bebi
e corro o risco de muitos enganos,
Como acontece enfim a toda a gente
que aqui se espreme no tempo presente.
43
229
Sou um poeta sem muita humildade
porque nasci nessas Minas Gerais,
E vivo toda a vida na cidade
não tendo comunhão com os animais.
Não sei que significa liberdade,
prisão de ventre ou outros males mais,
Sou só mais um menino maluquinho
que aguarda tonto seu primeiro vinho.
44
A minha própria estima muito erra,
e erra tanto que me deixa tonto...
Às vezes faz-me desdizer a Terra,
dizendo vírgula quando é um ponto
E vendo nisso o motivo da guerra,
que é muito mais que aquilo que lhe conto
Nesses versisnhos feitos decapodos,
que são correntes porque têm bons modos.
45
230
Eu sou escravo da soberba altiva
com que me presenteia o soberano
E preso fico nessa voz passiva,
como se fosse esse um belo plano
Para evitar morrer de morte ativa,
e ser tornado o mais lindo tuano
Que já desceu aos infernos da Terra,
só pra não ser um soldado na guerra.
46
A chuva cai e me apavora o gato
que quis ficar comigo e com seu medo,
Ficando quieto e sem seu desacato
cercando o lugar de onde não me arredo.
Olhando isso fico estupefato
com o que está tão perto e não vi mais cedo,
As coisas serem como sempre foram,
mudas aos que com elas se enamoram.
47
231
Passada a chuva o gato está mais manso,
mais moderado nos seus arrepios...
Mas eu me espanto tanto que até danço
a valsa falsa dos mais arredios.
Não valso mais porque logo me canso
e o violoncelo mexe com meus brios,
Porque não sei tanger esse instrumento
e a melodia dói como um lamento.
48
Gosto da música que a vida dá,
tenho os ouvidos prontos pro que canta...
E o corpo treme do lado de cá
sentindo a voz que há na minha garganta.
O gato, a chuva, a música, o que há
é ter uma ilusão da vida santa,
Quando o que ocorre é que não modifico
o que já me transborda do penico.
49
232
Desperto agora de um sono profundo
em que sonhei com a morte e seu azar,
Não sinto ajuda vinda desse mundo
e estou perdido em tenebroso mar.
Não devo ficar de novo iracundo
pois tenho vida ainda pra sonhar,
A vida ainda não me deu seu fruto
e o fim da morte deve ser bem bruto.
50
Se recebo ajuda espiritual
devo ser grato e lutar pra viver,
Não entregar meu corpo a tanto mal
e dar ao Mal assim maior poder.
Não devo achar que tudo é casual
e preencher a vida com prazer,
Mas lutar com bravura e mais coragem
pelas pessoas que ao mal não reagem.
51
233
Acho que disse tudo o que queria
e o fiz usando os versos que escolhi,
Podendo agora esperar pelo dia
em que bem deverei morrer por aqui.
Termino então essa prosa vazia
ainda sem saber a quem venci,
Se à ilusão que domina essa vida
ou à realidade ainda perdida.
52
Tão pouco eu sei do que o Senhor nos disse
para dizer o que penso que sei,
Que é assim como se o Senhor não visse
que eu não consigo viver pela Lei.
É como se o Senhor não me pedisse
para abrir mão do sonho de ser Rei,
Pra perdoar toda a mágoa sofrida
e compreender o que é essa nossa vida.
53
234
Depois de meses recomeço aqui,
pensando um livro grosso de verdade...
Que ensine a vida que jamais vivi,
que entorne a vida que já não me invade.
Não é bem isso tudo o que escrevi
usando tão ingênua liberdade,
porque me falta ainda ser um homem
cujas pequenas faltas não lhe somem.
54
Portanto escrevo o que não sei dizer,
por ter vivido tão erradamente...
Dizendo ser o que não sei querer,
a falta toda que transfuga a gente.
Por pouco siso, em busca de um prazer
atrapalhado em ser inconsistente,
Querendo sabe lá o que Deus quer
a um homem que não vive sem mulher.
55
235
A linha rosa na camisa dela
me faz lembrar o quanto sou feliz...
Me faz lembrar dos tempos de janela,
me faz lembrar o quanto não me quis
Essa beleza dela que me vela,
esse botão de rosa que eu não fiz
Desabrochar no seu belo jardim,
porque sorriu mas não sorriu pra mim.
56
Rubra é a cor daquele fio rosa
que quando flor era só algodão,
A vicejar nos campos dessa prosa
em que há ciúmes do meu próprio irmão.
Porque eu me vejo em paixão horrorosa
ensimesmado do meu próprio pão,
Ensimesmado dessa companhia
que regurgita essa vida tão fria.
57
236
Rubra é a cor daquele fio fino,
rubra a color daquele sangue humano...
Jogado aos pés desse grande menino
que vê tecida a sua vida em pano.
A rosa em seu botão tece seu hino
e veste a fantasia em que eu me engano,
Engalanando a vida que há em mim,
fazendo crer que é natural cetim.
58
Eu agradeço, Pai, porque me ouvistes
e clareastes teu segredo em mim...
Porque meus dias já não são tão tristes
e até me alegro em ser algum cetim.
A descobrir o amor, que tanto insistes
cultivar em nós, tão perto do fim
Da nossa raça, toda perdoada
das faltas tantas, de tanta embrulhada.
59
237
E agora que isso sei da minha vida
que posso fazer senão me obrigar
A vivê-la sem perdê-la, bandida,
sem brandir suas armas contra o lar?
Que destruído é uma viva ferida
que me ensangüenta o coração de amar,
Ferida aberta a derramar o amor
que esse poema não pode compor.
60
Me falta muito para ser feliz
e poder ser o que sonhei pra mim,
Me falta aprender a ser aprendiz
da vida rude que me quis assim.
Ensimesmado do que eu nunca fiz
por ter nascido um triste bacurim,
Não quero ser mais um triste defunto
mas céus galgar sendo mais um assunto.
61
238
É assim mesmo que eu me vejo aqui
enrodilhado nas teias do mundo,
Preso ao que há sem ter a dor em si
pois anestesiado em coma profundo.
Do qual só saio como um jabuti
que ousou ferir o mundo firme e fundo,
Que ousou dizer que era por causa dela
a sua dor cansada mas tão bela.
62
Esse tecido de onde sai o fio,
a filharada e tudo o que sou eu,
É o intestino que pára vazio
da bosta toda que já me comeu.
Por isso no calor não sinto frio,
graças à bênção do meu asmodeu,
Graças ao santo que não vive em mim
e faz que viva Eu num curumim.
63
239
Seu nome é Túlio, o elemento xis,
que na tabela é só sessenta e nove...
O curumim que em vós tem tanto anis,
e anistiado não queirais que aprove
Esses versinhos, que são jabutis
na primavera que me arrasta, e move
Os sentimentos de um pai pelo filho,
que não são nada apenas empecilho.
64
É o meu trabalho descrever aqui
de modo raso essa profundidade,
Que está na toda letra que já li
e é desafio pra qualquer idade.
É uma saudade do que eu não vivi
porque não me molhei na tempestade,
Em que apanhado foi meu filho amado
e que não sei se sabe ser amado.
65
240
Não tenho nada pra vazar agora
e é bem vazio que me sinto triste,
Mas isso é bom porque não vou embora
para um lugar qualquer que nem existe.
O que vos digo aqui não se decora
e essa maldade não se vos resiste,
Só vós sois Deus em minha confusão
e é em vós que tenho a vossa salvação.
66
Porque abundou em nós nosso pecado,
que não é vosso mas nossa irrisão...
Tendo abundado por nós vossa graça,
que não é nossa mas vosso perdão.
Porque sem vós eu me sinto exilado
fora do mundo, no meio da praça,
Sem ser senão mais um pobre coitado
a deitar suas lágrimas em vão.
67
241
Agora digo estar só nesse mundo
que me apedreja por não ser velhaco,
Embora tolo, orgulhoso, iracundo,
e quanto mais me couber nesse saco.
Por conta disso não me sinto imundo,
por conta disso não me sinto um caco,
Só sinto vossa presença ao meu lado
já me salvando de mais um pecado.
68
Agora, sem nenhuma falsidade,
o que é que venho vos trazer aqui?
O que é que posso dizer sem maldade,
o que é que prova que eu não me perdi?
A confiança que tendes em mim,
a confiança em tanta liberdade?
A sorte tida porque não caí
nem no princípio nem aqui no fim?
69
242
A sorte fala em meu favor e assim
posso falar em meu favor também,
O que me importa é verdadeiro sim
porque a mentira não salva ninguém.
Tudo o que tenho de verdade em mim
só vem de vós e muito me convém,
A poesia que derramo aqui
por vós é dada pelo que sofri.
70
Fica provado então que escrevo bem
o que o Senhor ditais no sofrimento,
E o que ditais a mim nesse lamento
é que salvais em mim também aqui.
Sei que o terreno aqui é lamacento
especialmente para quem só ri,
Dessa desgraça que só eu sofri
na busca de querer amar alguém.
71
243
Eu quero concluir esse trabalho,
eu creio que essa vida tem valor...
Ninguém vai me dizer se eu mesmo valho
só porque pude vir aqui compor.
Eu sei que valho como um espantalho
afugentando os pássaros da dor,
Mas sei melhor que tudo quanto sinto
não se resume a ter um cu no pinto.
72
Palavreado chulo às vezes rola,
só dependendo mesmo do ambiente...
Porque quem quer não ler não me dá bola,
como se eu fosse assim algum demente.
Se eu fosse um descendente quilombola
me mostraria a todos como gente,
Urrando os versos todos com mais força
para que o negro rito não se torça.
73
244
Desfio esse poema pra mim mesmo
pois ninguém há que ouça o grito rouco,
Que veja os grãos lançados fora, a esmo,
que sinta o mesmo que esse pobre louco.
Ninguém portanto sinta em seu tenesmo
saber da vida algo, muito ou pouco,
saber de si alguma coisa boa,
porque isso é falto pra qualquer pessoa.
74
Então é triste a verdade falada
e propalada assim aos quatro ventos,
Pois deixa a nu a nossa mentirada
que faz de sete mais de setecentos.
Revela a todos nossa calma irada
e expõe a face de tão maus rebentos,
Deixando às cegas quem quer ser piloto
na espaçonave desse céu imoto.
75
245
Mas não é triste se eu falo a verdade,
se bem traduzo o amor que sinto em mim...
Porque a verdade pura persuade
e a confissão aproxima do fim,
A dor da morte que não teme a idade
da mocidade morta em mau festim,
Deixando às claras quem quer navegar
na espaçonave que o céu vai singrar.
76
Se eu não sei nada então como é que escrevo,
se quem escreve escreve só por vós?
Se não há nada aqui, por quê me atrevo
a vir puxando a linha do retrós?
Terei sacado o meu amor primevo
e confundido tudo em minha voz?
Terei mordido o lábio e quis cuspir
o sangue nesse canto e resistir?
77
246
Já faz um ano que me sento aqui
para escrever o grão poema inteiro...
Será que tudo quanto persegui
era ilusão do meu amor primeiro?
Sinto que foi um ano o que vivi
em cada verso, sempre derradeiro,
Foi um projeto o que me emocionou
e conheci mais vida nesse vôo.
78
Se embolo tudo nesse termo exato,
se faço nada e tudo é ilusão,
Não há quem possa me pagar o pato
de estar vivendo só de solidão.
Se é por um nada que me sinto grato
e nada vale nesse mundo cão,
Então como é que ainda estou aqui
ludibriando a quem não conheci?
79
247
Sinto que escorro o suor como tinta
e pinto o quadro que é a minha vida,
Que pinto como ninguém mais me pinta,
pintando uma aquarela colorida.
Sinto não sentir, com quem mais se sinta
bandido ser nessa vida sentida
De tanto amor, rancor e o quanto há
de sentimento tinto aqui e lá.
80
Lá longe vão-se embora as ilusões
por que perdi a vida verdadeira,
A parte que perdi eram canções
que costuravam minha vida inteira
E a parte em que perdi os meus culhões
não era a parte minha sementeira,
Mas parte o coração do trovador
doer em si a dor com tanto amor.
81
248
Não sinto mais vontade de chorar
as lágrimas perdidas no caminho,
Não mais sinto alegria nem pesar
por ter perdido em lágrimas o ninho,
Em que sonhei poer um novo lar
em que coubesse um pouco de carinho,
Um pouco de alegria de verdade
e a busca honesta da felicidade.
82
Por isso encerro aqui esse poema
que canta alto tudo o que pensei,
Que canta solto tudo o que se esprema
da fruta doce que é bendita lei.
Vou terminar e que essa mão não trema,
não tema a morte que experimentei,
Mas seja calma, forte e corajosa
para enfrentar a fúria dessa prosa.
83
249
É terminando que posso afinal
dar arremate a tanta má costura,
Porque eu me enfrento a mim no mesmo mal
que me corrói a vida inteira e dura.
E é com repentes que entro no canal
de comunicação da gente pura,
Que ainda habita essa Terra enlutada
por uma morte tão dura e jurada.
84
Podia terminar aqui mas há
questões que querem ser correspondidas,
Por essa prosa que não vingará
o sangue derramado em tantas vidas.
Na violência que há aqui e lá,
nas pequenezas tolas destruídas,
E nas questões em que se pensa grande
o ínfimo ser que nelas não se expande.
85
250
É uma linguagem dita alexandrina
em que me esvaio todo de ilusões,
Essa linguagem tola e tão menina
que expressa aqui as minhas emoções.
Não quer dizer que seja a minha sina
desiludir-me vendo os meus porões,
Bombardeados pela língua culta
mantendo a alma ainda um tanto estulta.
86
Mas é assim que sigo esse poema
que no final apenas se inicia,
Desavisado desse meu dilema
e destroçado pela vã porfia.
Em que se mete pelo diadema
que nos promete a santa porcaria,
Que se esvazia em prevaricação
mesmo não tendo nenhum coração.
87
251
Assim reduzo a marcha da canção
que longe veio desde que partiu,
Dizendo nada novo desde então
e prometendo mais do que cumpriu.
Alguém me guarda no covo da mão
e foi por ele que a mãe me pariu,
Para poder estar aqui convosco
me burilando num poema tosco.
88
Alguma coisa nova vou dizer
que se traduza em qualquer pensamento,
Alguma coisa que vos dê prazer
ao ver concluso esse entretenimento.
Não há mais nada para se fazer
senão rezar a vós nesse momento,
Que me proteja de não ser linchado
como mereço nesse santo fado.
89
252
Espero a morte e que venha depressa
buscar meu corpo já tão aviltado,
Por tanta fúria e que ninguém me impeça
de ser no fim um biltre derrotado.
Um moço leso que creu na promessa
de transcender já salvo o seu estado,
Esperançoso de vos encontrar
num bom regaço e livre para amar.
90
A vida em si é o nosso compromisso
e desdenhá-la não nos leva a nada,
Devemos tê-la vivido com viço
e tê-la visto bonita na estrada.
Ninguém no mundo pode amar sem isso
porque por isso a vida é uma jornada,
Em que se aprende de alguma maneira
que não é bom viver de brincadeira.
91
253
Estou bem perto agora de acabar
longe do fim que imaginei pra mim,
Estou vazio e isso não vai mudar
porque já sei o que verei no fim.
Meio agarrada a esse meu azar,
a minha cama em lençol de cetim
Traz meus princípios de volta à razão,
e eu me levanto mal do coração.
92
É triste aqui sozinho no meu quarto
e eu me escrevendo em vez de estar vivendo,
Porque essa luz me veio no meu parto
quando nasceu-me a luz de ser horrendo.
Finjo ser bom e estou bastante farto
de não saber e ver acontecendo,
O que previ com tamanha amargura,
que a alma vai-se embora e cai madura.
93
254
Exilado no quinto canto estou,
e recomeço a vida bem daqui...
Para humilhar ainda mais quem sou,
vida finada em fim que não pedi.
Driblando a morte e já marcando um gol
abençoando a vida que pari,
Com tanto amor para chegar ao mundo
e me mostrar no fundo tão profundo.
94
Espero ser bem mais do que serei,
quando exumado o corpo dessa Terra
For dessa vida pranto e toda a lei
de que preciso pra findar-se a guerra.
Espero estar mais vivo e vencerei
as maldições de quem sempre me erra,
Mirando em mim o seu humor azedo
e errando sempre porque atira cedo.
95
255
Quem não quiser entender que não leia
o que escrevi com toda a honestidade,
Que não se sente à mesa nessa ceia
porque esse corpo é carne de verdade.
Porque esses fios são da minha teia
e emaranhados vão pela cidade,
Grudando em tudo o que se usou dizer
dessa ilusão vazia de poder.
96
O que não posso o tempo poderá
com sua manha, astúcia e covardia...
Sinos repicarão e isso fará
que enfim se veja toda a porcaria.
Que é ter à mão apenas uma pá
pra joeirar malícia e fantasia,
Que é ter nas mãos um fio da verdade
e se enrolar sozinho e sem vontade.
97
256
Termino então esse meu canto amaro
com uma cantiga que aprendi bem cedo,
Todo o cinismo que nos foi tão caro
não fere tanto quanto fere o medo.
Mas é o mal que eu mesmo me preparo
que atinge a minha alma assim que excedo,
As raias do bom senso e viro um rato
que rói o próprio rabo ao ser exato.
98
Não imagino o que virá adiante,
como não sei como termina o canto...
Não vejo mal, conquanto eu não me encante,
nem bom lugar para esconder meu pranto.
Só sei da vida ser seu novo amante
mas não marido que não chego a tanto,
Pois sei bem quão irrazoável sou
e à vida minto porque não me amou.
257