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ilusão Elder Costa e A Sociedade Angélica da Lida 1

Ilusão

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"Isso é importante, não eu." Elder Costa

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Page 1: Ilusão

ilusão

Elder Costa

e A Sociedade Angélica da Lida

1

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Co-Autoria

A Sociedade Angélica da Lida

"Isso é importante, não eu."

Elder Costa

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Esse poema épico foi concebido para conter

dez cantos de noventa e nove estrofes, dos

quais cinco estão nesse primeiro tomo aqui.

O Sexto Canto já foi composto e o Sétimo já

adentrado. O Autor prevê a conclusão do

poema para antes de 2020.

Boa leitura.

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Canto Primeiro

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Aqui eu tentarei, doída a mente,

registrar essa doida historiazinha

Que me leva a mostrar a toda a gente

a razão que devendo ter não tinha.

É aqui que mergulho, doida a mente,

na história dessa gente biscainha

Que me força a tentar achar razão

na loucura da vida de irrisão.

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Nós somos todos uma gente só,

história triste de um tempo presente

Em que não pode haver quem tenha dó

de quem mal vemos mas que bem se sente.

Somos no tempo algum imenso nó

que impõe a todos que se siga em frente

Nessa corrente que é nosso caminho,

na corda bamba em que eu me sei sozinho.

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Page 6: Ilusão

Não há razão que comporte a loucura

de ser o nó de tanta solidão

O homem mau e mesmo a moça pura,

que é biscainha gente e um coração.

Que se é deixado assim a si perfura

na espada aguda que é um mundo cão,

Em que seguimos tristes com a certeza

de que não dá nadar na correnteza.

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É só razão o que comporta o mundo

e é ilusão viver na insanidade...

A vida exige ao ser: seja fecundo

mas sacrifique a sua puberdade!

Não é que ter paixão nos seja imundo,

só não se pode é ter felicidade,

Mesmo porque não é da natureza

deixar viver a vida em tal certeza.

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Page 7: Ilusão

Essa loucura de que falo aqui

é a paixão que nos assola o peito,

Que grita a mim que ainda não morri

e que essa vida não é mal sem jeito.

Não é o resumo do que eu não vivi

nem a discórdia do que em mim aceito,

É a vitória do meu sentimento

sobre a miséria desse esquecimento.

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A pouca vida que eu trago comigo

deve respeito a quanta vida haja,

E a sujeição que nos serve de abrigo

é fantasia em que a razão se traja.

Porque se a vida é não correr perigo

não vai haver no mundo alguém que aja

Quando a tensão que entornará a guerra

cuidar de cedo exterminar a Terra.

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Page 8: Ilusão

Aconteceu que um dia fui menino

e me encontrei com a minha puberdade...

Precocemente, como é do destino,

ingenuamente e em felicidade.

Anos de luta pra não ser indino

dos pais, da vida e da realidade,

Anos de dor pra não morrer de gozo

nas mãos do imigo que não quis esposo.

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Aconteceu que então eu quis ser homem

e falo que escolhi ser de mulheres,

Porque as lembranças disso não me somem

e ainda falo de infantis prazeres

Que agora homem já não me consomem,

à força desses tantos afazeres

Que a vida impõe a quem é de mulher

e não conhece o que ela pensa e quer.

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Page 9: Ilusão

É bem verdade que homem ser não sei,

mesmo estudando muito, o que mal sinto...

Por culpa disso, por não sei que lei

que fez galinha a proteger o pinto

Esse ser homem que só quer ser grei,

pra ver crianças, em um mundo tinto

De tanto sangue, horror e sofrimento,

na fé da morte poder ter alento.

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O que acontece é que eu não sei contar

de modo simples o que eu sei da vida...

Forte razão para ir tão devagar

na evolução da que nem quer ser lida,

História má que não vai perdoar

nenhuma falta, até despercebida,

Da insanidade de uma tal promessa

a vigorar proeza como essa.

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Page 10: Ilusão

Mas acontece que contar eu vou,

determinado a não cair em erro...

Demore anos, seja marcha ou vôo

que não termine em degredo ou desterro.

A luta é dura e eu nem sei quem sou

mas sei que a Terra é uma bola de ferro,

Que a confusão impera e tem razão

e que ninguém no mundo é todo são.

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Portanto simples não será a história

mas forma rica e cheia de detalhe,

A gente que se inclua é toda a escória

que a vida não deixará que se espalhe.

Aqueles que vencerem terão glória

e no fim talvez quem os agasalhe

Do frio horrível que nos gelará,

da morte certa que haverá por lá.

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Page 11: Ilusão

Era uma aldeia da nação caeté

onde vivia a gente mais cordata,

Uma itaúna imensa é a seu pé

e iluminada à tarde é bem pacata.

O povo alegre e manso de Deus é

nos seus riachos, montes e na mata

Que lhes provê a toda gostosura

da paz serena que é franca fartura.

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A alegria mais vem das crianças,

como há de ser em quase algum lugar,

Das brincadeiras, jogos e das danças,

fazendo adultos rir e até chorar.

Não há lugar pra não ter esperanças

da morte vir mansinha e devagar,

Como tem sido desde muitas eras

quando aprendeu-se a respeitar as feras.

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Page 12: Ilusão

O fim da paz chega com os brasileiros,

a cruel gente que avança de longe,

Cujas campanhas são como vespeiros

e dentre os quais não há sequer um monge.

Que bem não sabem nem ser desordeiros

e violar terra santa, de Ronje,

Uma menina, mas tão importante

que não há velho que ela não encante.

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Triste o final da pequenina aldeia,

igual ao da grande nação caeté...

Que sobrevive em sangue, que incendeia

os corações do povo patulé,

A biscainha escória, feito areia,

tão ignorante sem saber quem é,

Que sobrevive em cada um de nós

e na razão de nos sentirmos sós.

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Page 13: Ilusão

Como é possível eu sentir a tanta

saudade a um tempo que só existe em sonho?

Lembrar de rios, de caça de anta,

se brasileiro eu sou e tão bisonho?

Nem sei à faca tirar carne em manta,

adoecido de um siso medonho!

Como é que pode ser possível isso

se eu nem sei como é que me lembro disso?

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A nossa aldeia hoje é um triste fato,

resta só a itaúna na cidade...

Tornou-se esgoto cada seu regato,

e como prova de tanta maldade

A favela nos morros é o retrato,

do que acontece quando a paz se invade

Da vida simples de um povo e nação,

cuja lembrança é só um esforço vão.

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Page 14: Ilusão

Nossa cidade é só um aglomerado,

de gentes, povos, tribos e nações...

Que não tem lei, juiz nem advogado

a dar um jeito em tais situações.

De um convívio tão duro e tão forçado,

de uma existência de tantos senões,

Da maldição de haver sido invadida

de um lugarejo a paz que hoje é perdida.

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Lamentar pouco adianta e isso é claro,

a passo firme o tempo não volteia...

Qualquer resgate fica muito caro

e os nossos dias não vêm sem a ceia.

Somos famintos de um pão que é tão raro

que em nossa vida é só mais uma peia,

Pois nessa guerra, toda desrazão,

recuperá-lo é só doida ilusão.

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Page 15: Ilusão

Por isso eu disse que há de ser doído

qualquer um sonho em que possamos ter

A tão sonhada paz de um tempo ido

e a esperança vã de não morrer,

Restando só o tão desinsofrido

acreditar num sublime poder

Que encante a gente com uma paz mais pura

e torne um canto essa triste loucura.

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É na esperança de um mundo melhor

que encontro a paz para poder viver,

Se isso é loucura ou a razão maior

não cabe a mim sabê-lo ou escolher.

Porquanto fazê-lo, isso eu sei de cór,

transtorna a vida em grande desprazer,

E a paz querida é tão maravilhosa

nos permitindo ver no espinho a rosa...

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Page 16: Ilusão

Mas que esperança em mundo tão maluco

se é um fio o que nos liga à paz querida?

O mundo é velho e já está tão caduco

que a esperança está envelhecida!

E o seu renovo, é isso o que cutuco,

tem que juntar-se à fé adormecida

Por tanto tempo e já desesperada

se decidirmos pôr os pés na estrada.

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É com amor que a fé traz esperança

e isso é sabido desde Jesus Cristo,

Que no deserto pregou, fala mansa,

pra que hoje enfim eu descobrisse isto.

E a nossa paz querida só me alcança

quando eu me lembro que preciso disto,

Pra não morrer desesperado e louco

por só querer saber do amor bem pouco.

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Page 17: Ilusão

O Brasil de hoje é um país ruim

num mundo complexo e ainda pior,

Não tinha dois anos e ouvi o clarim

de um golpe armado no estado maior.

Por vinte anos tudo foi assim,

torturas, mortes que fossem melhor

Que a vida então levada no país,

seguindo idéias de nobres e vis.

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Pelo ideal da nobre ditadura,

persegue a malta toda a geração...

Jovens que tinham a alma mais pura,

a fim de erguer essa grande nação,

Onde o que vinga é assalto e usura

e astutos mil nos passando sermão,

Doidos de rir dessa grita de crise,

no infernal mundo que só quer reprise.

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Page 18: Ilusão

O Holocausto está aí pra ser modelo

de uma guerra não mais fria mas morna...

Jovens de hoje só pintam o cabelo

sem saber que o caldo do horror já entorna

No mundo em que vivem sem poder vê-lo,

cuidando a vida porque não retorna.

Todos são jovens nesse mundo velho,

quem foi chamado que meta o bedelho.

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Bem claro pra mim está o que é o amor

e sua importância para essa terra...

Não poderia sem ele compor

esse poema que aqui não se encerra,

Mas continua porque quer propor

uma vereda a quem nele não erra,

Um só caminho, largo como o bem,

em que não caiba só quem é ninguém.

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Page 19: Ilusão

O amor que digo é todo um compromisso

que quem assume deve ter com a vida,

Seja ela próxima ou distante, viço,

toda a que há e nos parece bandida.

O amor é puro e devem caber nisso

o fraco imigo e a mamãe querida,

Porque de todos a vida depende,

mesmo daqueles que ninguém entende.

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Amar é bom mas tanto sofrimento

a que se dá quem ama e é amado...

Instiga a mente a questionar do vento

se não é bem melhor ser odiado.

O entendimento às vezes vem bem lento

e o aprendizado dói como o pecado,

Por isso havemos de ter paciência

com cada ser, tratando-o com clemência.

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Page 20: Ilusão

Com as crianças é que me encasqueto,

são os diamantes dessa roda viva...

Seu abandono não me deixa quieto,

elas que tornam nossa vida altiva.

Não cabe em mim deixar um filho, um neto,

sem ter na vida alguma perspectiva

De um dia amar e ser demais amado,

não ser na guerra só mais um soldado.

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A infância é tudo o que a pessoa tem

pra vida dela ter algum sentido,

Se pra criança tudo corre bem

dificilmente será só bandido.

Mas se ao contrário não amar ninguém

o seu espírito estará perdido,

e Deus que é bom vai resgatá-lo a si

solucionando o que ocorreu aqui.

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Page 21: Ilusão

É nesse espírito que a vida cresce

e se entendemos isso é bom pra nós...

Deixar de lado e ver o que acontece

é só cinismo e faz que seja algoz

Da vida alguém que só reza essa prece,

que nos separa de maneira atroz

Em bandos feros, sem merecimento

de amor, razão ou qualquer sentimento.

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Se não houvesse a conjunção carnal

não haveria mundo e nem piás,

Para crescerem nesse carnaval

que é todo errado mas é nossa paz.

Condenar toda uma ação sexual

é a doença que esse mundo traz,

Desesperado de não ter prazer

numa explosão que só quer conceber.

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Page 22: Ilusão

A Santa Igreja prega a camisinha

para evitar a progressão do mal...

Finge não ver que o mundo só caminha

nesse pecado, que é só o atual

Modo da vida não ser tão sozinha,

e transformar-se em derradeiro mal

Porque é bisonha, não quer ser feliz

e nem se lembra onde tem o nariz.

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Sorte é que a vida não se presta a doma

e sabe conseguir o que ela quer,

Ninguém rebaixa o plano em que ela assoma,

ninguém separa o homem da mulher.

Nem com o poder que só se deu em Roma

haverá isso, haja o quanto houver,

Portanto saibam que é hipocrisia

chamar de neutra a santa mãe Maria.

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Page 23: Ilusão

Cuidar da infância é resgatar pessoas

que somos nós se um dia eram crianças...

Parecem ser ruins mas são bem boas

porque são nós nas nossas esperanças.

Se alguma fé merecem essas loas

é porque as vidas delas não são mansas,

E deveriam ser, serão felizes

se bem cuidarmos dessas cicatrizes.

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Cuidar da infância é ver a menininha

e toda a dor que está no seu folguedo,

Já que qualquer que seja está sozinha

tal qual nós mesmos em nosso segredo.

Peleja boa, se for sua e minha

e respeitar todo o nosso brinquedo,

Porque brincando juntos, nós e ela,

vamos abrir a mais linda janela.

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Page 24: Ilusão

Essa paisagem que se descortina,

maravilhosa, liga-nos à sorte...

E está ligada mesmo à nossa sina,

que é ver a vida, a dor, o amor e a morte.

Se a nossa sorte é sempre tão franzina

devemos então dar-lhe um reto norte,

A força e fé de rir da solidão

que irá dormir no nosso coração.

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Eu vi crianças sós cheirando cola,

fumando craque, cigarro e maconha,

Vendendo bala e pedindo esmola

com a coragem tamanha e sem vergonha.

Nesse país que tinha campo e bola

hoje há só drogas e o piá não sonha,

E se sonhar que sonhos pode ter

que não lutar pra matar ou morrer?

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Page 25: Ilusão

É o que digo quando me incomodo

com a reação da tal sociedade,

Contraditória na raiz do lodo

de onde sai droga, que prega a igualdade...

Avessa a tudo o que não tem denodo,

maliciosa e sem sinceridade,

Não há por quê não encarar de frente

um problema que atinge toda a gente!

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E a adolescente de só treze anos

com a bolsa exposta, enorme, de seis meses?

A camisinha protegeu-lhe o ânus

mas da vagina riu algumas vezes.

E o filho morto, envolvido nuns panos,

como podia ser com algumas reses?

Nem morto estava mas viveu dois dias

no hospitalar Inferno desses dias...

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Page 26: Ilusão

Trago uma alma amargurada e aflita

por não saber o que fazer de nada,

Do que me sei culpado e dessa grita

que deixa a consciência encurralada.

A alma nubla o sonho e a carne agita

o pensamento que vira a enxurrada

De acusações, com tão grande tristeza

que nem sei como ter a chama acesa.

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São as crianças que me deixam triste

porque sou uma delas nessa vida...

Talvez na outra, que eu nem sei se existe,

possa alegrar-me em história tão sofrida.

O passarinho já não quer o alpiste,

só quer morrer, a alma decidida

a inexistir, por conta da amargura

que apaga a chama da vida em clausura.

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Page 27: Ilusão

Por isso eu rezo, pra não ser assim,

pra ser doidice do meu pensamento

Essa maldade que não quer ter fim

e na historinha não tem cabimento.

No fundo eu sei que só compete a mim

desenvolver o que eu aqui só tento,

Pensar o enigma da realidade,

essa parcelazinha da verdade.

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Mas o que importa é o nosso sentimento,

que coordena a nossa ação na Terra,

Ele é que dá sentido a isso que tento

aqui fazer, pra minorar a guerra.

Revela a mim que devo estar atento

a quem na vida em solidão se ferra,

Enquanto houver cadeia e um só bandido

não valerá a pena haver vivido.

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Page 28: Ilusão

Prisão é pena que ave alguma quer

e violenta o canto a qualquer um,

Principalmente se o preso é mulher

e entende bem o que cantou Naum.

Ninguém na vida devia querer

ver preso a ferros pássaro nenhum,

Porque bandidos somos todos nós

se a lei quiser ser realmente algoz.

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O que sentimos muda todo dia

e isso importa muito a toda a vida,

Não sinto mais agora o que sentia

quando odiava o crime e a bandida.

Eu não sabia mas o que me ardia

era o desejo de ver mais perdida

Quem como eu vivia sem destino

num mundo torpe e de horror tão ladino.

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Page 29: Ilusão

Diversas vezes vi em hospitais

gentes indinas em nua verdade,

Sofrendo dores e outros males mais,

perdendo a vida, sem a liberdade

De escolha outra que ser animais

nas mãos da gente em que há seriedade

Talvez de menos com uma vida alheia,

escravos todos de uma mesma teia.

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Os hospitais que tem esse sistema,

que tem prisões, escolas, tudo em rede,

Tem como norma firme, como lema,

dessedentar às gotas quem tem sede.

Não há saída dessa má pustema

se já no conceito isso é feito adrede,

Não há saída desse malefício

se arquitetado bem no seu início.

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Page 30: Ilusão

Indinas gentes amadas são dinas,

e somos nós nessa verdade um todo...

Porque as tenções de todos são malinas,

e estamos todos chafurdando em lodo.

Impedir uns de executar rapinas

é se esquecer dos que vivem do engodo...

Indinas gentes amadas são sonhos,

desdenhadas, pesadelos medonhos.

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Como é possível haver um malefício

que atente em quase tudo nessa vida,

Haver na origem um tão forte vício

a tornar a punição merecida?

Nosso falecido avô Aparício,

nossa Senhora desaparecida,

Quem vai no mundo deter tanto engano

se o pó de mim eu mesmo não espano?

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Page 31: Ilusão

O original pecado não explica

o fim de tudo isso acontecer...

Se não mudar então como é que fica

a fé de um dia tudo enternecer?

Nossa esperança se torna mais rica

se a dor demais jamais menos doer?

Não há sentido na condenação

se o que tivemos foi só coração.

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Um coração rebelde, é bem verdade,

mas é loucura imaginar só isso...

O que acontece na realidade

é mais que a quebra de algum compromisso.

Se a nossa pena é toda a eternidade,

o amor termina perdendo seu viço,

E a fé de todos, suas esperanças,

serão somente histórias pra crianças.

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Page 32: Ilusão

É com o perdão da má palavra escrita

que me dirijo a corte tão divina,

Que não suporta ouvir mais uma grita

porque não é e nunca foi indina.

De majestade tanta que me excita

a bem cumprir a minha triste sina,

De ser no mundo só um pecador

que está cansado de esperar o amor.

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Diferente em tudo, estou bem no meio

de um povo igual em suas diferenças...

Ser igual a todos, isso é o que anseio,

crendo em tantas e tão diversas crenças.

Nessa volúpia a alma não tem freio

e presa fica nas ondas mais densas,

Que aparam quedas com o rigor da lei

sob a vontade de quem eu não sei.

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Page 33: Ilusão

Peço licença pra continuar,

da minha vida, tão triste relato...

Que comecei e quero terminar,

expondo a vós o cada vero fato.

É bem difícil se eu nem sei amar

e guincho versos como fosse um rato,

Mas acredito haver uma canção

nesses escombros que é meu coração.

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Quando criança também fui à escola

mas foi em casa que aprendi a ler,

O que gostava era de jogar bola

e me bastava ouvir para aprender.

Me perseguiram, xingando o boiola,

e me cercavam para me bater...

Não houve um dia no qual fosse amado,

nenhum carinho, nem ser respeitado.

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Page 34: Ilusão

Hoje já sei que a todo bom menino

há uma lição pra não ser esquecida,

Que o marque como magrelo ou suíno

para ajudá-lo a entender a vida.

Mas não é só isso o que aqui me ensino,

nossa lição não deve ser doída...

Mesmo que doida, com o olhar atento,

e sem torcer por seu esquecimento.

60

Para que houvesse alguma gratidão

era preciso haver algum carinho,

Não basta a mim alguém passar sermão

para eu sentir que não estou sozinho.

O tempo passa e as gentes ficarão

mas infelizes como um passarinho,

Que abandonado já não quer viver

por nessa vida só ter desprazer.

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Page 35: Ilusão

Eu também vim conviver com a doença,

na minha já defunta avó Izoralda.

Diabética, cardíaca, hipertensa,

não teve a vida escrita numa lauda.

Só teve a vida de quem muito pensa,

nisso é que a sua história se respalda...

Tiranizada, sempre foi leal,

e à beira-morte persistiu igual.

62

Ainda criança vi a tirania

do avô perverso em sua autoridade,

Sem saber bem, decerto, o que fazia,

desavisados nós dessa maldade.

Era inocente mas o mal ardia

e ultimou cedo em sua insanidade,

A de ver a mulher adoecida

e não saber o que fazer da vida.

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Page 36: Ilusão

A avó não pôde esperar viuvez

e faleceu três anos antes dele...

Demenciado o avô ficou num mês,

só um cadáver debaixo da pele.

Na diarréia chegou sua vez,

desassistência a que esse mal compele,

Seu sofrimento foi como o da avó,

dois infelizes numa vida só.

64

Existe um Céu e eu posso ver daqui

que nos separa do vazio espaço,

Os meteoros caem por aí

sem nos prejudicar nenhum pedaço.

A Terra então se protege por si

de ser varrida por cada estilhaço,

Com sua casca em que mesmo o incréu

pode no ar do dia ver um Céu.

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36

Page 37: Ilusão

Então há um Céu e eu posso senti-lo

no coração a proteger-me a vida...

Será que eu posso querer destruí-lo

se ele é que impede à alma ser varrida,

Por estilhaços mil que são aquilo

que fazem ser a vida assim sofrida?

Não, eu preciso que esse Céu exista

pra perseguir uma vida de artista.

66

No Céu que sinto há os meus santos avós,

saudosos pais que eu já não vejo há tanto...

Saudade sinto de ouvir sua voz

e ela é tamanha que me corre em pranto.

No Céu que sei que existe não são sós

mas reunidos, como por encanto,

De suas rusgas de casal, com anjos,

numa assistência de grandes arranjos.

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Page 38: Ilusão

Pra mim, o Céu está bem definido,

uma loucura da esperança nossa...

Onde não pode haver nenhum sentido

em expressões quais uma triste choça.

Pode ser doido mas sem ser doído

porque de um sonho ninguém não se apossa,

E haver sentido em pirações humanas

já torna tristes choças em cabanas.

68

É lá que um dia todos vamos ser,

uns para os outros, merecidamente,

Dinos em tudo, mesmo no prazer,

e cada um terá do que bem sente.

Se essa loucura não tem nada a ver

com o que raciocinamos bem na mente,

Não vale a pena desejar mais nada

e a nossa vida estará toda errada.

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Page 39: Ilusão

Demonstrações podem ser bem ruins

mas essa aqui não vai passar em branco,

Porque não usa os meios para os fins

e é desse coração que eu a arranco.

Pode ser lida até nos maus festins,

na solidão de um trem em solavanco

Ou na Igreja, toda a gente boa

verá que a correção não foi à toa.

70

Mas é essa Terra o nosso problema,

que se resolve por haver um Céu...

Preciso enfrentar esse meu dilema

pra solução não vir chegando ao léu.

Em poucos anos morro de enfisema

e antes a Lei deve chamar-me réu,

Por destruir o seu engenho caro

sem dar-lhe chance de propor reparo.

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Page 40: Ilusão

A Terra é viva, aspira a um Céu eterno

e é com amor que pode chegar nisso...

Não fica bem esperarmos o Inferno

só por muito estar o povo enfermiço.

Nas condições desse mundo moderno,

temos que ver o quanto é passadiço

O coração do Mal, que ainda engana

mas não impede a aspiração humana.

72

Um novo engenho, simples e preciso,

deve ser concebido a qualquer preço...

Que não afronte a razão e o siso,

nem torne o bem comum no seu avesso.

Que possa o doido ter o seu sorriso,

e eu que não sou, aquilo que mereço...

Uma engenhoca urdida com o amor

que leva a gente à vida se transpor.

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Page 41: Ilusão

Falo de algo que inexiste ainda

mas vai surgir por força e precisão,

Maravilhoso e de aparência linda

como uma rosa ainda em seu botão.

Sua presença será tão benvinda

que ninguém pensará que é ilusão

Acreditar no amor, que é tão divino

que deixará ninguém não ser indino.

74

Ninguém que se deixar maravilhar

por esse sonho de sarar o mundo,

E que por Deus vier a cooperar,

irá deixar de se sentir bem fundo.

Ninguém será deixado ao seu azar

e amar demais não vai ser algo imundo,

A correção será tanta e tamanha

que apenas haverá quem sempre ganha.

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Page 42: Ilusão

Na natureza assim nada se perde

e é razoável ver que assim será,

A vida humana hoje ainda verde

transcolorida amanhã ficará.

Talvez com fundo musical de Verdi,

Satie, Beethoven e quem sabe Bach...

A engenhoca tem funcionamento

pra corrigir isso que aqui assento.

76

Hoje é um dia, outro é amanhã,

assim a vida passa, lentamente...

Talvez possa comer linda romã

ou entender o que ela dentro sente,

Fazer as pazes com a minha irmã

e o seu filhinho ninar docemente...

Não sei o que dará esse novo dia

mas sei que espero mais uma alegria.

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Page 43: Ilusão

Futuro sempre terá seu mistério

e perde a graça se não for assim,

Pensar agora é algo muito sério

e não precisa ser nada ruim.

Eu tenho aqui esse bom ministério

de encontrar nesse desespero o fim,

E despertar a fé num bom futuro

porque o presente tem sido bem duro.

78

Espero contemplar a maravilha

que a cada um de nós eu vaticino,

Reencontrar meus filhos, minha filha,

e ver mudada a sorte em meu destino.

Não quero persistir só, numa ilha

que perpetua esse eterno menino,

Que brinca em mim como grande escritor

sem ter a quem chorar a sua dor.

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Page 44: Ilusão

Inocência e culpa: um tão vão dilema

no lago das humanas ilusões...

Equivocado, se o barqueiro rema

ao largo das freqüentes frustrações.

Parado o barco, retorna o problema

desse homem repleto de indecisões.

Ele é culpado da vida viver

ou inocente de sentir prazer?

80

Não há culpados nessa vida cão,

nem inocentes de viver aqui...

Que culpa tenho se perdi a mão

e rascunhei bem mais do que escrevi?

Sou inocente por não ter senão

desconfiança do que não pari?

As duas coisas vivem num abraço

e desatá-las só gera cansaço.

81

44

Page 45: Ilusão

Somos humanos, essa é a verdade,

e o que fazemos é problema nosso...

Há solução pro caos dessa cidade,

mas não jogando a ela mais um osso.

Se nos sentirmos, com serenidade,

desfaremos esse angu de caroço,

Mas é preciso revisar conceitos

já que são hoje apenas preconceitos.

82

Loucura e sanidade: o que é o quê,

não serão mais irmãos do que inimigos?

Sinceramente, o que é que você vê,

não deveremos todos ser amigos?

Nossos conceitos, você que me lê,

ultrapassados são, bastante antigos:

Razão é ser provável no que é certo,

loucura é coisa de quem é esperto.

83

45

Page 46: Ilusão

Há certas coisas que indizíveis são

e essa é uma: sanidade, o que é...

Mas não é bom dizer um palavrão

pra intimidar alguém que tenha fé.

O que é preciso é termos compaixão

de uns e outros, todos patulé,

E nós no meio, também somos gentes,

conquanto às vezes meio diferentes.

84

Humanidade é isso, nos amar,

buscando um dia o ser angelical...

Amar a vida e bem se apaixonar,

sem preocupar-se só com ser normal.

Às vezes é preciso delirar

pra ver tudo voltar a ser igual,

Mesmo sofrendo, e isso é importante,

porque ninguém de nós não é gigante.

85

46

Page 47: Ilusão

A minha vida penso não ser minha

mas se será me responsabilizo...

Se ultrapassei o que não me convinha,

sei que por essa não passo de liso.

Enquanto penso, a morte se avizinha

e não vai me encontrar no meu sorriso...

É possível até que a boca entorte,

se a minha vida prima pela morte.

86

Acreditar que a Deus ela pertença,

convém a mim que não sei quase nada...

E acreditar eu posso, com licença

da má palavra, antes perdoada.

Isso não é somente uma sentença,

porque a tal conseqüência é bem pesada,

É um desvario que à razão perpassa

na esperança de achar alguma graça.

87

47

Page 48: Ilusão

Se é toda divina essa nossa vida

e o que nos cabe é ter amor por ela,

Não vai a morte encontrá-la perdida

porque de algum modo ela é sempre bela.

Será a morte triste despedida

de tanto horror e toda má querela,

Seguida de um belo e novo destino

onde eu aprendo aquilo que me ensino.

88

Hoje é um dia especial pra mim

porque está nele a minha vida inteira,

Duvidar disso é fazê-lo ruim

pois do amanhã ele é a sementeira.

Eu sei que nunca isso terá um fim

mas vou senti-lo de qualquer maneira,

O especial que tem a vida toda

é poder ser vivida como boda.

89

48

Page 49: Ilusão

Se foi ruim o dia já passado,

de ontem mesmo ou minha inteira vida,

Não devo achar, um tanto apressurado,

que a nossa esperança já está perdida.

O amanhã traz deveras novo fado

e mostrará que há sempre uma saída,

De qualquer cela em que estivermos presos,

mantendo os nossos corações acesos.

90

Meu amanhã será um novo dia,

será passado aquilo que é presente...

A sorte irá ficar-me em companhia

e do que sofro não estarei doente.

Basta que eu cante hoje com alegria

o fato de hoje eu ser uma semente,

Que irá tornar-se a árvore frondosa

que a alma sonha ser quando é bondosa.

91

49

Page 50: Ilusão

Eu sou talvez uma grande pessoa,

e sou decerto bastante pequeno...

Se bem estimado é uma coisa boa,

sabendo disso vivo mais sereno.

É grande a messe que o poema atroa,

anula as faltas do nosso veneno...

Pequenos somos adiante do povo,

nos omitindo desse seu renovo.

92

Pequeno ou grande, eu quero ser alguém

que quis na vida agir no próprio nome...

Leve ou pesado, eu só desejo o bem

de quem sumido está, de quem não some.

Desse destino atroz eu sou refém

porque esse corpo a Terra vem e come,

Só me liberto disso se consigo

ter amizades sem ser inimigo.

93

50

Page 51: Ilusão

Meu espírito clama e eu atendo,

destino de pessoa é ser assim...

O que ele quer é só me ver fazendo

algo de bom que não seja ruim.

Assim sou grande até pequeno sendo,

posso esperar alguém além do fim...

Se sou eu mesmo já está muito bom,

porque deixei-me a vida ser um dom.

94

A carne reclama os grandes prazeres

que às mais belas coisas são inerentes...

Levamos à boca grandes colheres

da sopa da vida nas nossas mentes.

Enchemo-nos de tantos afazeres,

a fim de sentir nossas almas quentes,

Que assamos a carne com sensações

que ao fim de tudo são só ilusões.

95

51

Page 52: Ilusão

Nós somos carentes de ilusões dessas,

queremos prazer das coisas mais belas.

Se acreditarmos em loucas promessas,

que paz teremos nos vendo sem elas?

Parece um joguete e somos as peças,

vis parafusos querendo arruelas...

Se abrirmos a carne e dermos à luz

a insana vontade, veremos pus.

96

Pois supusemos merecer prazer,

se das mais belas coisas ele vinha...

Não atinamos nisso não poder

nos saciar, porque não nos convinha.

O que importa a nós é saber viver

o que convém à nossa pobre alminha...

A carne morre, a alma fica, eis tudo,

querendo amar tenho que estar desnudo.

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52

Page 53: Ilusão

A pulsação que me agita os sentidos

merece uma atenção especial,

Eu sou um homem dos pés aos ouvidos

e todos dizem que não sou normal.

Por dentro eu tenho meus caldos fluídos

por tantos canais que padeço um mal,

O pulso me rebate e eu sofro isso

que já me atinge e me deixa sem viço.

98

Estou doente do corpo querer

bem mais que suportava e isso é ruim...

Sei que inexiste infinito prazer,

se o gozo que sinto é todo pra mim.

Há bens maiores mas devem doer

e eu tenho medo disso não ter fim,

Por isso agito a mente e o corpo vai

buscar de novo mais um duro ai.

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53

Page 54: Ilusão

Para eu sarar preciso estar comigo

e refrear as fortes pulsações...

Que do meu coração, o seu abrigo,

irradiando vão as sensações

Que me avassalam, levando consigo

a esperança dessas perversões

Abandonarem o imo da alma,

deixando vir uma vida mais calma.

54

Page 55: Ilusão

Canto Segundo

1

55

Page 56: Ilusão

A noite é um mar de encanto, brando e leve,

mas eu sonho acordado, tão tranqüilo

Que o verbo flui maduro e me descreve

como uma nova lua, ou só um grilo

Cantando o seu encanto, canto breve,

enquanto eu de prazer quase cochilo,

E a noite vai passando, carinhosa,

temendo me assustar a alma medrosa.

2

Agasalhado estou mas sinto o frio

bem fino e que me envolve docemente,

Na mente apenas mais um desvario

de quem já está cansado e nem se sente.

A noite agora passa como um rio

que lambe as nossas beiras feito gente,

Tentando me levar no seu feitiço

dizendo que não tem nada com isso.

3

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Page 57: Ilusão

À noite eu penso muito em orações

que me fazem sofrer porque eu não sei

Rezar de coração, sem aflições,

e as poucas decoradas são a lei.

Acordo a noite toda em comichões

sabendo que de novo acordarei,

Não sei rezar porém eu acredito

em terminar a noite sem um grito.

4

A manhãzinha chega, maternal,

o ar ainda frio, mas agita

O ser que acorda duro e textual

querendo cedo impor a sua grita.

Um galo acorda nesse meu quintal

e canta o que eu não canto, a voz aflita,

Fazendo que eu levante-me da cama

que dorme só porque ninguém lhe ama.

5

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Page 58: Ilusão

Tomo café com pão e a Mãe vigia,

o quê não sei, talvez de tudo um pouco,

E quer-me bem, desejando um bom dia,

mas sem compreender o filho louco.

Comi demais à noite e tenho azia,

no banho canto até ficar bem rouco,

Ficando pronto pra sentar-me aqui,

relendo os versos que ontem escrevi.

6

A manhã passa e logo é meio-dia,

a Igreja bate o sino e avisa quando,

A tarde vindo será tão vazia

quanto esses versos que vou rascunhando.

Mais uma noite que eu não merecia

e sem dar conta disso estou rezando

Pro mês que vem já ter a fortaleza

que eu bem necessitava, com certeza.

7

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Page 59: Ilusão

Pela janela vejo a gente igual

tal como ontem, igualzinha a mim.

Às vezes uma mulher sensual

faz-me querer que tudo tenha fim

Nessa sozinha tensão corporal

que me acompanha aqui aonde eu vim

Buscar sossego pra bem escrever

sobre o melhor jeito de ter prazer.

8

A gente igual a mim anda agitada

e não sei nada sobre suas vidas,

Só que de mim não querem saber nada,

não sou das amizades mais queridas.

Por isso enteso aqui a minha espada

e corto logo as emoções sentidas,

Não vou deixar chegar ao apogeu

algo que igual a mim não é só meu.

9

59

Page 60: Ilusão

A agitação desses corpos iguais

são como o que dardejo aqui sereno:

Desequilíbrios espirituais

purgando por aí o seu veneno.

Não interessa, eu sei que são normais

as coisas que em mim mesmo não condeno,

O que tiver que haver pro nosso bem

não há de ser exceção pra ninguém.

10

Escuto a música que a vida deu

e sinto a calma à alma retornar,

Acho que enfim o corte não doeu

quanto devia mas sem precisar.

Eu tenho fé que o erro não é meu,

que longe tudo está de se acabar.

Não é um fato tão bem resolvido

que possa agora ser mais remexido.

11

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Page 61: Ilusão

Falo de rusgas entre mim e o povo

e dos rasgões que me ficam na pele...

Se revidar apanho mais, de novo,

que eu sou um só e a desrazão é dele.

Prefiro aqui ficar e não me movo

ainda que arda a terra e o céu congele,

Mesmo porque é só isso o que acontece

com todo mundo e ninguém o merece.

12

Os passarinhos cantam seu encanto

e vibram algo dentro do meu ser,

Não se aproximam porque eu os espanto

temendo que o vibrado vá doer.

Já não sei mais se sou um louco ou santo,

só sei desse infinito desprazer

De ser continuamente atordoado

por um remédio tão duro e danado.

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Page 62: Ilusão

A pimozida é um veneno atroz

e saberá quem dele for tomado,

Ele atordoa qualquer um de nós

e como eu disse é bem duro e danado.

Pequena dose nos embarga a voz

mesmo de quem já esteja acostumado,

É um remédio que, haja valentia,

nos faz desconhecer o fim do dia.

14

Mas a maconha é cem vezes pior

porque ilude e reforça-nos o mal,

Desorganiza o esforço maior

do sistema afetivo cerebral.

Desiludindo, deixa só a dor

de se saber ser nada genial,

Um ego inflado de pequeno orgulho,

e ouvir do mar apenas o marulho.

15

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Page 63: Ilusão

Medicamentos devem ser tomados

quando indicados por pessoa certa,

Pois podem ser responsabilizados

e ser chamados quando a coisa aperta.

Não é que nos livrem dos nossos fados,

mas é possível ficar bem alerta

Se dado o tempo de se acostumar

a aceitar dessa vida o seu azar.

16

Então a vida é mesmo um grande fado,

eu folgo bastante em poder sabê-lo!

Saber que há sempre um destino danado

é fazer barba, bigode e cabelo.

Como mudar a sorte do azarado

se a sua vida toda é esse novelo?

É uma completa falta de bom senso

acreditar que seja como eu penso...

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Page 64: Ilusão

O quanto eu penso saber dessa vida

é o miserável fado que carrego,

É tomar todo dia a pimozida

com meus miolos furados a prego,

A imposição da minha mãe querida

e dos parentes todos que renego.

Resta saber se eu sobreviverei

pra bem cumprir essa bendita lei.

18

Há de haver esperança aqui pra mim,

eu sinto bem isso, sei que há de haver,

É só o maldito homem ter um fim

pro meu azar depressa fenecer.

A morte não pode ser tão ruim

quanto a loucura de tão mal viver,

E o malefício todo assim termina

com o que há de terrível nessa sina.

19

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Page 65: Ilusão

Eu era bem pequeno, cinco anos,

tão inocente quanto qualquer um,

Naquela idade ainda não tinha planos

de ser alguém, mesmo um araticum.

Foi quando eu descobri que tinha um ânus

e desejei não ter tido nenhum

Porque fui vítima de sodomia,

de negligência, curra e zombaria.

20

Foram dois anos de contínuas curras

sob ameaças de vida e de morte,

Sem ter ninguém pra me salvar, em turras,

abandonado só à própria sorte.

Depois vieram as diárias surras,

quando eu supus poder dar nisso um corte,

Mais oito anos das sovas diárias

que hoje me dizem ser imaginárias.

21

65

Page 66: Ilusão

Aos quinze me mudei pra capital,

fugi das surras e estudei bastante,

Pude viver uma vida normal,

sem confessar e sem ser protestante.

Restava a disfunção libidinal,

na adolescência isso é muito importante,

Não pude achar amigos normalmente,

não sendo a isso nada indiferente.

22

E o que interessa a alguém a minha vida

se aonde olho não vejo ninguém?

Ninguém quer saber se ela foi sofrida

se qualquer um de nós sofreu também!

Pra todos essa vida é uma bandida,

pior ficando se a gente a quer bem.

Fazemos muito em tê-la verdadeira,

pondo de lado toda a choradeira...

23

66

Page 67: Ilusão

Mas a vida de todos me interessa

porque é aí que encontro uma razão

Pro sofrimento que em ninguém não cessa

embora todos me digam que não.

Vou devagar, não há nenhuma pressa

pra socorrer o aflito coração,

Que se é bandido bem sabe esperar

o grão poema poder germinar.

24

E divagando vou, nesse passinho,

parecendo não ir a algum lugar.

As pedras que encontro pelo caminho

eu uso pro caminho bem marcar.

Vou indo, rabiscando com carinho

o que há entre o percurso e o caminhar,

Que não parece coisa de importância

mas é se a gente rememora a infância.

25

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Page 68: Ilusão

São na vida tantas delicadezas,

tantos cuidados, tantas emoções,

Que não se entende as torpes cruezas

que se pratica em todos os rincões.

Terão as gentes duas naturezas

que opõem fados de dois corações?

Será verdade sermos divididos

em lados bom e mau por dentro unidos?

26

Diz a ciência que nós somos dois

cada um, internamente ligados.

Bem e mal viriam pouco depois

de corpo e alma serem amarrados.

Mas se assim é devem também os bois

ser igualmente e são desencarnados,

Em postas, pra saciar nossa fome,

e as suas almas não têm nem um nome!

27

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Page 69: Ilusão

Saber humano é artificial,

só presta contas à própria razão,

Pra não achar consigo nenhum mal

em ocupar senhor o seu rincão,

E desossar qualquer seu animal,

porque comer a carne todos vão.

Desnaturada é a razão humana

e a quem pensar um pouco não engana.

28

Minha condição não é diferente,

como todos louca tenho a razão,

Se esqueço simples que também sou gente

e ingrato permaneço em coração.

E eu posso ser tão louco e eficiente

porque no âmago impera a ambição,

De ver a minha razão coroada

e não dever à desrazão mais nada.

29

69

Page 70: Ilusão

A vida assim parece muito injusta

mas não o é pois existe a Justiça,

Que a qualquer um de nós bastante assusta

porque é maldosa, ainda que enfermiça.

O que acontece é que bastante custa

desafiar uma tão dura liça,

E é a vida desigual batalha

entre quem luta e quem jamais trabalha.

30

Há um só sentido em tudo quanto há

de exasperante na existência humana,

Não pense alguém que o Pai manda pra cá

a pobre gente pra comer banana,

Que essa injustiça eterna existirá

e que o Mistério não seja bacana.

A lei divina é bem misteriosa

mas só assusta a alma criminosa.

31

70

Page 71: Ilusão

Temos que olhar bem para ver que existe

uma justiça que não é só nossa,

Olhar nos olhos de quem não desiste

e está sofrendo em favela ou na roça.

E ver que uma esperança ali insiste

em não morrer de uma crueza grossa,

Como seria se só existisse

uma justiça que a ninguém servisse.

32

Justiça há mas é preciso espera

pra ver no fim um limpo resultado,

Seja pra quem for, canalha ou megera,

que contrarie o já ajuizado.

Também pra quem fez o que propusera

quando se viu perto do fim do fado,

E pra quem sempre confiou em tudo

não sendo tolo, preguiçoso ou rudo.

33

71

Page 72: Ilusão

A vida existe só pra ser vivida,

não pra esperar justiça ou justiceiro,

Senão seria toda corroída

por ódios vis, sem amor verdadeiro.

Por quê querer tão só mais uma lida

se dessa o seu presente vem primeiro?

Mais vale deixar isso tudo a Deus

que sabe bem o que fazer com os seus.

34

Nosso sonho parece que faliu

porque não temos mais com o que sonhar,

Mas esquecemos de esperanças mil

que estão aí para se acreditar,

Em tudo quanto há e não se viu

porque não temos olhos para olhar,

O quanto há de bom em torno de nós

e persistimos em ficar bem sós.

35

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Page 73: Ilusão

O que acontece quando a gente morre

é o que é preciso a gente compreender.

Será que existe alguém que nos socorre

quando estamos entre a morte e o morrer?

Verdade é que o que a todos nos ocorre

é o sofrimento que tememos ter,

Em punição àquilo que fizemos

por não ter feito aquilo que quisemos.

36

Morrer é um mistério bem complicado

mas temos que pensar nisso algum dia.

Será o desfecho desse nosso fado

ou transição ao que antes não se via?

Não nos importa o que estiver errado,

as convicções da morte a gente cria!

Pensar no assunto não é tão insosso

se o interesse nele é todo nosso.

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73

Page 74: Ilusão

Morrer é sempre lento e natural,

embora às vezes súbito pareça.

Pra todos diferente, é sempre igual,

por mais que a nossa vida se conheça.

De frente pro morrer, temor geral,

grudamos ao que se nos ofereça...

O Espírito é verdade nessa hora

conquanto de matéria eu seja agora.

38

O corpo de matéria vai morrendo

aos poucos após ter sido atestada

A morte cerebral, ainda vivendo

na sua nova e tão longa jornada.

Aos poucos vai seguir menos sofrendo

caminhos de que não sabemos nada.

É triste e solitária essa partida,

mas é o que nos reserva a santa vida.

39

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Page 75: Ilusão

Por isso temos que nos preparar

enquanto um quê de tempo ainda nos resta,

Buscando aqui no mundo enfim criar

a fantasia que a isso se presta.

É bem preciso muito acreditar

naquilo que se cria e pô-lo à testa,

Para ao morrermos tê-lo bem lembrado

e não ter o caminho transviado.

40

A minha fantasia é toda linda,

evoca até uma passagem suave

Do corpo, quando não está morto ainda,

pra um outro corpo, feito uma astronave.

E o espírito desperta e diz – Benvinda,

recebendo a mim sem nenhum entrave,

Feliz de estar em minha companhia,

embora o conhecesse nesse dia.

41

75

Page 76: Ilusão

É assim que a idéia de morrer suporto,

com essa coragem de que necessito,

Se for logo amanhã eu não me importo,

se o meu passamento aí for bendito.

Se esmagam o velho corpo eu não entorto,

persisto vivo e muito mais bonito,

Ninguém me impede de pensar assim

e tenho que pensar algo no fim.

42

Portanto é muito bom ter fantasia

pra viver só no mundo em desrazão,

Batendo essa ilusão que nele havia

a fim de não morrermos em paixão.

Podemos trabalhar enquanto é dia

e à noite não morremos de ilusão,

Vazia não terá sido essa vida

se está presente à nossa despedida.

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Page 77: Ilusão

Todas as minhas perdas, meus fracassos,

minhas quedas doídas, minha vida,

São ausências de beijos e abraços,

que perdi, nessa imensa despedida

Da canção desvairada e sem compassos,

nessa doida viagem, só de ida,

Em que eu fiquei sozinho e sem bagagem,

mudo e com medo de qualquer bobagem.

44

Estou maluco e só, e não há remédio

para esse mal que aflige só a mim!

Doido de pedra, de raiva, de tédio,

querendo apenas que isso chegue ao fim.

Penso em jogar-me do alto de um prédio

mas minha vida não termina assim,

Pus na privada a minha vida inteira,

não posso ir-me de qualquer maneira.

45

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Page 78: Ilusão

Uma fantasia é minha esperança

de ter a vida um pouco resgatada,

Dessa maluquice que a todos cansa

e me atenua a vida dilatada,

Canção em que ninguém comigo dança

e me compõe a solidão da estrada,

Essa saudade dói como o capeta

que há de ser feio e ter a alma preta.

46

A saudade que sinto é dura e má

de tanta gente que perdi na vida,

Por minha culpa, e tudo quanto há

serviu pra que fosse sempre perdida.

Talvez no mundo do lado de lá

encontre a gente que hoje é tão querida,

Mas que me evita ainda, sem dar chance

a mim, que nesse mundo um dia a alcance.

47

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Page 79: Ilusão

Espero ter a vida toda honesta

pra merecer uma chance segunda,

Numa existência tão diversa desta

quanto a fé da descrença mais profunda.

A fantasia é tudo o que me resta

e sobrevive nessa selva imunda,

Demente sendo, pura e natural,

felicidade em qualquer animal.

48

Sou animado de pouca alegria

e não sei que fazer pra mudar isso,

Faço o que posso e o que não devia

para apagar o fogo que eu atiço.

Quem eu amava muito nunca ria,

como se preso num feio feitiço,

Que se de mim partiu nunca foi nada

pois minha alma é bem pouco animada.

49

79

Page 80: Ilusão

Sei que mais alegria vou achar

lavrando a fantasia que padeço,

Levando a alma a se reanimar

mesmo sabendo que isso eu não mereço.

Só vai custar esforço, e me cansar

é para mim um bem pequeno preço,

Se sei que a alegria achar eu vou

e assim poder mais alto alçar o vôo.

50

Sentido existe em tudo quanto falo

e escutando se ouve bem o que digo,

Não dá pra ler no sino o seu badalo

e repicá-lo é só mais um perigo.

Sentido não se encontra num estalo,

não me acusem que nisso eu não me ligo,

Segredo é coisa bem codificada,

a chave não pode ficar trancada.

51

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Page 81: Ilusão

As emoções humanas devem ser

sentidas pra vibrar o seu sentido,

E revelar esse enorme prazer

que só sente o leitor quando é bem lido.

Às vezes é preciso se doer

pra ver-se que o castigo é merecido,

E então vem o veraz merecimento

que é onde eu ponho rijo o meu assento.

52

Assento palavras como um pedreiro

assenta seus tijolos, uma a uma,

Dando em paredes de prumo certeiro

que sem cimento o tempo desapruma.

Por isso o encaixe deve ser inteiro,

prevendo essas brechas que o tempo arruma...

Como o pedreiro eu faço o meu melhor

para o salário não ser tão pior.

53

81

Page 82: Ilusão

Que um outro cante o seu melhor – que possa,

deixando aqui esse triste lamento,

Se eu imitá-lo a solidão me coça

e eu perco todo o meu assentamento.

Sei que sou alvo de galhofa e troça

mas tudo bem enquanto eu não rebento,

Quero seguir dessa parede o prumo

fantasiando que daqui não sumo.

54

Se sou melhor que isso não me mexo,

de nada me vale alguma honraria,

Não faço idéia do meu grão desfecho

mas não quero ser santa porcaria.

E se estaciono num bendito trecho

não sei o que ruim de mim seria,

Sou só um homem tentando acertar

na vida, num poema, o seu lugar.

55

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Page 83: Ilusão

Ao descobrir a força de um amor

Venéreo, compulsório e sensual,

Deixei tudo pra trás, só por supor

à vida nada poder fazer mal.

Tive esses dias, depois veio a dor

De me ver tão pobre, feio e banal,

De novo abandonado à própria sorte

mas sem ainda desejar a morte.

56

O amor queimou-me com essa sua chama,

me fez provar do seu doce veneno,

Quando fez ver com outro a minha dama

e revelar o quanto era pequeno.

Desmoronei, meu amor não reclama

ciúmes, ódio... Até que fui sereno,

Desiludido do meu próprio ego

que não sabia ser assim tão cego.

57

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Page 84: Ilusão

O amor é essa força cega e bruta

que se instalou suave no meu ser,

Talvez nascido de uma prostituta

mas sem o qual não há como viver.

Ainda corro atrás do amor batuta

que me ilumine e me faça crescer,

O amor sincero de uma tal mulher

que aceite em mim aquilo que eu tiver.

58

O amor se instala assim dentro da gente

e nos constrange a conviver com ele,

Conflagra a vida e isso que se sente

é que nos força a depender mais dele.

Quando caímos em nós, de repente

sentimo-lo completo, à flor da pele,

Assim fiquei eterno prisioneiro

de ambicionar esse amor verdadeiro.

59

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Page 85: Ilusão

Se não existe é coisa que cogito,

mas se cogito é porque existe sim,

Não interessa o que eu não acredito,

tem que existir se ele existe pra mim.

E se ele existe tem que ser bonito

e aparecer-me no meio ou no fim,

Não posso crer que seja insanidade

acreditar na minha humanidade.

60

A humanidade quer amar demais

mas sem sofrer por esse desvario,

Então se esquece que somos iguais

e ao mesmo tempo entram todos no cio.

Não há sossego para mães e pais

e os bebês vêm é de um amor vadio,

É esse o mundo no qual nós vivemos,

pra confirmar basta que nos pensemos.

61

85

Page 86: Ilusão

Olhando a vida só em seu resumo

eu compreendo o que tão mal entendo.

Isso que eu sei é pouco, não assumo

as imposturas do que vou vivendo.

Precisa haver na vida um certo rumo

pra se compreender o que estou dizendo,

Por isso digo às gerações futuras

que há conseqüências às eternas juras.

62

Só bem pensar e bem amar não basta,

é imperativo também bem agir,

E quem desse preceito não se afasta

verá um dia a sua dor sumir.

Essa lição com o nosso aqui contrasta

mas sei que um belo dia ela há de vir

Recompensar quem agir afinado

com o que sentiu nesse bem duro fado.

63

86

Page 87: Ilusão

E um suave amor é o que recompensa

a alma aflita que só faz o bem,

Não interessa qual a sua crença

se o que fez mal fez por amor também.

Morrendo, a vida não será tão tensa

se amor perfeito tiver por alguém.

Vivendo, a morte não será ruim

porque o precioso bem é assim.

64

Não há lugar no mundo em que se esconda

o tesouro que queremos achar,

Não adianta essa perpétua ronda

Buscando a nossa sorte ao frio azar.

Alguém na vida com poder nos sonda

e pode até a todos perdoar,

Busquemos entender o que queremos

pois isso é o que nos diz a que viemos.

65

87

Page 88: Ilusão

Contentes por saber o que buscamos,

felizes se sabemos o porquê,

Nós somos tudo aquilo que pensamos

e não importa se ninguém o vê.

Essa alegria naqueles que amamos

e a alegria que alguém mais me dê,

É isso o que penso ser um tesouro

mais valioso que um monte de ouro.

66

Mas não é fácil achar a alegria,

porque depende do mundo mudar...

E essa mudança nunca ocorreria

por si, aqui ou em qualquer lugar.

É uma esperança que será vazia

enquanto não tratarmos de gostar

De tudo quanto está à nossa volta,

nos libertando de toda revolta.

67

88

Page 89: Ilusão

Com tristes saudades eu rememoro

os grandes dias dos meus casamentos,

As mulheres e filhos que eu adoro,

os meus mais expressivos sentimentos.

Lembrando o que foram, às vezes córo

porque passaram por mim desatentos,

E não sei bem onde foi que eu errei,

se por excesso ou porque lhes faltei.

68

Grandes famílias pude construir

com muito amor e a esperança toda,

Pensando sempre em nunca desistir

de fazer ver que o nosso mundo roda.

Nunca pensei que pudesse falir

com tanto amor, como se fosse moda

Pensar unir família e construção,

e eu também não tivesse um coração.

69

89

Page 90: Ilusão

Família e construção estão falidos

como esperanças de se bem viver,

Não se consegue mantê-los unidos

ficando-se do azar ao bel-prazer.

Os alicerces estão corroídos

e a casa cai mesmo sem merecer,

Porque impera uma lei de falsidade

e é impossível viver de verdade.

70

Não posso deduzir do meu fracasso

que o povo todo tenha o seu igual,

Nem se eu tivesse um cérebro de aço

pra tirar diferenças do total.

Em todos os lugares onde passo

uma multiplicidade é geral,

Mas nunca conheci alguém feliz

e essa raridade muito me diz.

71

90

Page 91: Ilusão

Eu mesmo era feliz e não sabia

e era só mais um pobre deslumbrado,

Que não sabia por quê só sofria

enquanto hoje é só pobre coitado.

Com qualquer um maluco parecia

mas era muito diferenciado,

Então difícil fica essa questão

travestida de mera opinião.

72

Difícil nessa vida é ter o encanto

igual ao que ela joga sobre nós,

E essa é a razão desse grande canto

que aprisiona essa tola minha voz.

Não se admire ninguém do meu espanto

ao descobrir que estamos todos sós,

Foi só agora que ela me mostrou

que eu sou ruim daquilo que não dou.

73

91

Page 92: Ilusão

Deus nos deu um ninho de puro amor

que envolve sempre cada um de nós,

E mesmo que cheio de extrema dor

faz com que não estejamos todos sós.

Qualquer de nós que queira se transpor

pode encontrar em si alguma voz,

E expor a dor que tem no coração

para o vizinho ou para a multidão.

74

O ninho é feito de coisas miúdas,

o ar, a roupa, o tempo, o corpo, o chão...

Cada uma delas pequeninas mudas

a vicejar em torno ao coração,

Formando a mata de árvores graúdas

cá onde estamos em vã solidão,

Porque abrigados com mais tanta gente

que sofre como nós ou diferente.

75

92

Page 93: Ilusão

Ficar tocado pela descoberta

de uma esperança tão boa e raçuda

É a maneira de manter aberta

a porta de um céu que o tempo não muda,

Poder torná-la tão líquida e certa

que sirva como a necessária ajuda

Ao bem viver, em paz e coletivo,

e tirar todos desse grande crivo.

76

O medo, às vezes, é uma grande fera

que assusta nosso coração menino,

E dentro dele é que ela nos espera,

nos espreitando, com o humor canino.

A expectativa que um tal medo gera

nos faz vagar sós feito um beduíno,

Que fora do grupo, em grande deserto,

sabe que a fera sempre está por perto.

77

93

Page 94: Ilusão

Há outras coisas mais com que eu me assusto

e estão dentro de mim, com o fero medo,

Como a surpresa de me erguerem busto

a ser pichado em meio ao arvoredo,

Que eu sou apenas um simples arbusto

e como tal nem que eu queira me arredo,

Por não haver quem de fato conheça

a lei que rege o imo da promessa.

78

Há uma ilusão naquilo que profiro

mas não o faço sem qualquer razão,

Se estou com medo, quero logo um tiro

que atinja alguém dentro do coração.

Se sou contrariado não retiro

o proferido sob acusação,

Iludo ainda, porém quiet0 e mudo,

Porque sou humano acima de tudo.

79

94

Page 95: Ilusão

Há esse novelo que se desenrola,

é o pensamento de que não desisto,

O fio se desprende dessa bola

e eu o vou seguindo, porém não insisto.

Eu sei que essa é uma idéia bem tola

mas é nesse novelo que eu existo,

A poesia é ir sempre no novelo

e não no emaranhado do cabelo.

80

Idéias assim, tolas como esta,

seguindo atrás do invisível fio,

São como arbustos, presos na floresta,

sem nunca poder se achegar ao rio...

E tudo aquilo a que a mente se presta

sem fantasia é um pranto vazio,

Porque o arbusto quer mesmo é chorar

e cria asas pra poder voar.

81

95

Page 96: Ilusão

Há esse novelo, cujo fio eu sigo,

porque acredito em nunca desistir,

Bem como agora, correndo o perigo

de não voltar porque não pude ir.

Que existe em mim e em tudo que eu persigo,

não sou capaz de só parar e rir,

E esse novelo é só o meu pensamento,

eterno agora, durante um momento.

82

Mas meu pensamento é forte e já voa

no firmamento, além desse arvoredo,

E esse seu fio é uma coisinha à toa

que em se perdendo não me gera medo,

Feito uma nau singrando o céu, só soa

seu vaticínio, que me atinge cedo

A multidão dos todos sentimentos,

que já não querem ser os meus lamentos.

83

96

Page 97: Ilusão

E se o que eu sinto vem-me em multidão

já adivinho o que será de mim,

Um louco a mais a se perder no chão,

na imensa terra do tupiniquim

Descaroçado pela cruel mão

dessa gente que teima em ser ruim,

Porque não quer e não pode admitir

que algum de nós tenha direito a rir.

84

Eu penso é assim, não o posso evitar,

quero pousar nos fundos de um quintal,

Pra descobrir carinho em outro lar

porque no meu tudo foi muito mal.

Talvez querendo desrealizar

minha miséria, plena e atual,

Pra descobrir sozinho, ao fim de tudo,

que continuo cego, louco e mudo.

85

97

Page 98: Ilusão

Estou descobrindo que muito pouco

sei daquilo que pensava saber,

E que esse pouco está fazendo um louco

o visionário que eu pensava ser.

Posso saber que o meu ouvido é mouco

que não se dá um bom ouvido eu ter,

O que acontece é sempre diferente

daquilo que eu sonhava e tinha em mente.

86

Ouvindo pouco, o louco não aprende

a ver o razoável com razão,

Porque do muito que ele não entende

não fixa nada que não seja vão.

No fim o que ele faz não surpreende

pois sua vida é feita de paixão,

E o razoável fica constrangido

a procurar um outro por marido.

87

98

Page 99: Ilusão

Do casamento tão sonhado, nada

resta senão o sonho de ter sido

Algo importante, na longa jornada

que se soubesse teria vivido.

A vida assim lhe resta atrapalhada

por pouco dela ter sido sabido,

E tanta vida a ele ainda resta

que dela só pode fazer mais festa.

88

Esse é o louco que cavuca um buraco

pra nele pôr os tolos sentimentos,

Ficando só e se sentindo um caco

entre outros tantos, que lhes são nojentos.

E essas tolices que eu aqui ataco

trazem deveres, de que estão isentos

Os cacos da taça que se partiu,

no pandemônio chamado Brasil.

89

99

Page 100: Ilusão

O buraco é meu, diz esse maluco,

sequer sabendo que o buraco é ele...

Eu que sou doido também me cavuco,

restando nada debaixo da pele.

Sobrevivendo num mundo caduco,

fico sozinho e há quem o assele,

Sem nada dever a tal solidão

que construí feliz com a minha mão.

90

Resta saber se há nesgas de verdade

em tudo quanto eu disse até aqui...

Que pelo menos não me desagrade

a comoção daquilo que não vi.

E se restar uma qualquer saudade,

naturalmente das que eu não sofri,

Espero tê-la com muito carinho

porque a verdade me deixou sozinho.

91

100

Page 101: Ilusão

O que acontecerá depois da morte

à alma da pessoa que morreu?

É isso que me bate muito forte

no coco e sei que não é só no meu.

Eu penso haver algum tipo de corte

separando em duas partes o eu,

Uma que fica, em corpo falecido,

outra que vai, rumo ao desconhecido.

92

E será que isso exige alguma escolha

que deve ser tomada em hora exata?

Será que fico preso numa bolha

que bóia viva debaixo da nata?

Eu sei que a minha idéia é tão zarolha

que ninguém a tem por boa e a acata,

Mas pode ser pensada, como tantas,

pra também ficar presa nas gargantas.

93

101

Page 102: Ilusão

Será que sou alguém se já morri

e vago preso sem nenhum lugar,

Estará nisso o quanto descobri

depois de tanta vida sem amar?

Seja o que for estou ainda aqui

e aqui pretendo muito ainda estar,

Deixando pasmo para o amanhã

a descoberta da doce maçã.

94

Doce maçã que foi nosso pecado

tão curioso quanto original,

Discriminante de certo e de errado,

cientificante do bem e do mal.

Nós carregamos fardo tão pesado

que nunca sabemos o que é real,

No pesadelo que é essa nossa vida

que é tão pequena e às vezes tão comprida.

95

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Page 103: Ilusão

Provar dos frutos do discernimento

é justamente o que eu não vou fazer,

Não sou covarde mas o atrevimento

não é decerto o meu maior prazer.

Não rezo tanto quanto o que eu assento

nesse poema pra melhor viver,

Só cuido estar fazendo o que é melhor

porque essa justa me inspira pavor.

96

E grande temeridade seria

desafiar decreto tão antigo,

Deixar passar da vida um belo dia

e sujeitar-me ao eterno castigo.

Sei que ninguém de tal poder riria

se acreditasse vir de um inimigo,

Se compreendesse a extensão dos fados

e a lei que rege os fardos mais pesados.

97

103

Page 104: Ilusão

Por ora é o que eu desejava ter dito,

embora saiba que vá dizer mais...

Sigo sozinho mas menos aflito

por ter alimentado os animais.

Não vou me desculpar porque repito

o dito pelos grandes e outros tais,

Vou acender a luz e ir-me embora

que a noite cai de novo e não demora.

98

A tarde cai mansinha e sem razão

e não precisa disso pra existir,

Sua presença é a doce ilusão

que me desfralda as velas pra partir.

Na despedida, só aceno a mão

e lanço ao mar esse novo elixir,

Que alguém decerto um dia encontrará

e vai bebê-lo transformado em chá.

99

104

Page 105: Ilusão

Agora fica mais uma saudade

doendo o peito desse trovador,

Que segue a vida em sua insanidade

de jamais amar sem sentir o amor...

Mas fica mais bonita essa cidade

sem ter quem ouse por ela compor,

A roda viva de desesperança

da angustiada vida de criança.

105

Page 106: Ilusão

Canto Terceiro

1

106

Page 107: Ilusão

Torno-me realmente um ser humano

quando aprendo a transmitir o que penso,

E se ao tentá-lo passo a ser insano

é o pensamento que está muito denso.

Porque não posso embrulhá-lo num pano,

queimá-lo e depois cheirar-lhe o incenso,

É que condeno-me a humano ser,

abrindo mão do irracional poder.

2

Tornando humano a mim transformo alguém

a fim de que se torne como eu...

Nesse momento ainda não sei bem

o que fazer com o dom que Deus me deu.

Como é escolha e eu não sei a quem

transtorno fácil no meu apogeu,

Aceito a companhia que vier

contanto que seja bela e mulher.

3

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Page 108: Ilusão

Porque se humano fui e Deus o quis

não foi pra viver só e atrapalhado,

Mas pra deitar razão e ser feliz

inda que insano e mal acompanhado.

Porque da humanidade uma raiz

é a primitiva noção de um Estado,

Que represente o que eu penso e desejo

e é já criado no primeiro ensejo.

4

Humanidade em mim não representa

apenas ser humano, num espaço...

É algo que no tempo movimenta

mil carnavais, com todo o estardalhaço.

Sabendo o que o humano não agüenta

jamais abusa desse seu cansaço,

Humanidade é ver a semelhança

no semelhante e convidá-lo à dança.

5

108

Page 109: Ilusão

Tenho três filhos e dois são meninas,

qualquer um deles humano comigo...

Vivem distantes, porque pequeninas

assombrações vivem no meu umbigo.

Serão humanas quantas nossas sinas

no coração tomarem seu abrigo...

Somos iguais, com toda a diferença

com que a humanidade inda nos compensa.

6

Se sou um homem com o poder de sê-lo

e se encantado venho aqui cantar,

Vou desfiar inteiro este novelo

pra minha alma apenas alegrar.

Não adiantando nada esse desvelo,

persisto aqui sozinho e vou chorar,

Porquanto um homem sou e isso conta

se mais humano sou que gente tonta.

7

109

Page 110: Ilusão

Analisando friamente os fatos

não se conclui nada de interessante...

Laboratórios têm que amar os ratos

que experimentam, o que não nos garante

Que todos sofram intensos maus tratos,

porque quem ama é pouco vigilante.

É preciso calor no que se faz,

que nossas intenções não sejam más.

8

Todo laboratório tem alguém

que ama os seus ratos experimentados,

Alguém que no final não é ninguém,

não interessam seus grandes cuidados.

Os cortes frios, na razão de cem,

são os produtos que são publicados,

Sem descrever que a experiência teve

o amor de alguém a quem ela se deve.

9

110

Page 111: Ilusão

O fato analisado friamente

depende de um olhar que tem amor,

Para ser compreendido pela gente

que aceita a experiência, se não for

Doer em nós, muito naturalmente,

se os resultados se puder expor

Pra concordarem com o que a gente quer,

porquanto os fatos têm o seu mister.

10

O que eu analiso é a humanidade

em cada ato ou gesto da pessoa,

E faço isso com tranqüilidade

porque com jeito, calmo, numa boa.

Seus gestos denunciam falsidade

na vida fácil de quem vive à toa,

Fingindo não haver uma questão

em tudo quanto dão opinião.

11

111

Page 112: Ilusão

A conclusão que vem é bem antiga

e a muito poucos ainda interessa,

Discuti-la é chamar pra boa briga

e o resultado é uma pequena peça

Em que os atores dançam na barriga

do diretor, o qual se ri à beça,

Chocando um público que nada entende

e indo embora no final se rende.

12

A humanidade sofre seus revezes

porque as pessoas estão por aí

Digladiando por algumas reses

e completamente fora de si.

Não será dentro de alguns poucos meses

que eu vou deixar de ver o que já vi,

O egoísmo atolado à garganta

e um desespero que ninguém mais canta.

13

112

Page 113: Ilusão

A salvação que vem é fantasia

desse resgate seletivo e tenso,

Em que eu não vou aonde bem queria

e diferente do que claro penso.

Verei as gentes que há muito não via

e imperar a beleza e o bom senso,

A alegria em grande carnaval

por não restar nada que seja mau.

14

Começa em mim essa transformação

por obra e graça do maior poder,

Continuando em grande operação

em que todos irão se refazer,

Passando por abrir o coração

para encontrar aí um novo ser,

Que já saiba encantar o seu vizinho

e nunca desejar ficar sozinho.

15

113

Page 114: Ilusão

Talvez haja um pouquinho de terror

que é conseqüência do mundo atual,

Mas tudo se resolve com amor

singrando pelo espaço sideral.

Há cantos e luzes de toda cor

a iluminar o manso matagal,

Que atravessaremos muito felizes

embora ainda simples aprendizes.

16

Eu fantasio que o nosso planeta

singra o céu atrás do sol que rodeia,

Feliz da vida em sua pirueta,

indiferente ao povo que se odeia

Dançando, cada um sua retreta

que toca à minha fantasia alheia...

Se fantasio algo diferente

é também certo que alguém mais o sente.

17

114

Page 115: Ilusão

Imaginando a vida como é,

não posso crer em ter desesperança,

Porque se a Terra singra há muita fé,

e alguém sozinho é uma infeliz criança.

O quanto restou da nação Caeté

não pode se furtar a essa dança,

Mesmo vivendo só no pensamento

que irreal existe quando eu agüento.

18

Eu fantasio que essa vida é bela,

serena, alegre, rica e vigorosa,

E a atmosfera é uma grande janela

que deixa a luz do sol banhar-me a prosa.

Sem fantasia, quem pinta essa tela

em que o martírio humano é bela rosa,

Em que se pode ver com a chama acesa

a alegria nascer da tristeza?

19

115

Page 116: Ilusão

O que é então a tal realidade

senão o que podemos fazer dela?

Se inclui a fantástica humanidade,

exclui que possa um dia ser mais bela?

Pensar no assunto não é vacuidade

e pode ficar linda essa aquarela,

Se mil respostas tontas encontramos

a nos fazer lembrar que nos amamos.

20

Real é tudo quanto hoje me toca

mas muito mais que um dia tocarei,

Parecendo até haver uma troca

entre o que é e aquilo que serei.

Se é real para mim essa biboca

é porque vivo debaixo da lei

Que impõe aos homens ter nos seus sentidos

mais do que os sonhos, tão bem destruídos.

21

116

Page 117: Ilusão

Não é realidade o que não quero,

por não ser nada de bom pra ninguém...

Se não nos serve é menos que esse zero,

inda que fosse potençado a cem.

Em contestar o nada é que me esmero

porque se nada é, não é um bem.

E se é real ter uma vida nula

o que dizer da vida que pulula?

22

Bordados sutis minha mente tece

buscando fugir ao flagrante erro,

Porque em meio às cores desaparece

tão disfarçado que eu não o desenterro.

Acompanhando o fado a alma desce

e luta bravamente, a fogo e ferro,

Expondo a manha e o desaparecido

para que o real não fique esquecido.

23

117

Page 118: Ilusão

É humano errar, é só o que a gente aprende,

o que fazer com o erro é que são elas...

É como aprender o que não se entende,

as urdiduras verdes e amarelas.

O erro disfarçado não se rende

e prende-se entre portas e aduelas,

Nas dobradiças de dentro da mente

que não quer entender que está doente.

24

Urdido o erro a alma vem à luta

e para expô-lo expõe a si também...

É grande o risco, a mente é muito arguta

e fere a alma se isso lhe convém.

Precisa haver uma boa permuta

para entender que o erro é de ninguém,

Livrando a gente desse descaminho

que no princípio parece um carinho.

25

118

Page 119: Ilusão

Dessa minha vida só entendo eu

e não consinto em outro vir querendo

Desconcertá-la com algum himeneu

porque pra mim isso seria horrendo.

Exatamente o que me aconteceu

e agora sigo sozinho vivendo

A vida que outro não me consentiu

viver nas margens do nosso Brasil.

26

Um ódio pulsa com força total

e é impotente pra resolver isso

Porque é cego, tolo e até marginal,

não tem veneno pra enfrentar feitiço.

E o casamento, simples, natural,

entre o desejo e esse meu compromisso,

Torna esse ódio só resignação

porque não pôde dizer sim nem não.

27

119

Page 120: Ilusão

Só mesmo eu para entender a vida

que Deus me deu, para vivê-la dura,

Sem transformá-la em coisa decidida,

fazendo dela uma eterna procura.

Se uma outra vida tenta, intrometida,

direcioná-la, na rota mais pura,

Jamais consegue porque não consinto,

só vejo o mundo do meu sangue tinto.

28

Não há uma vida sem limitações,

o próprio ser é algo limitado...

Se nós podemos imitar leões

seremos só micróbios desse Estado.

É o que acontece nas rebeliões,

quando o poeta torna-se soldado

De uma guerrilha fadada ao fracasso

porque está presa no tempo e no espaço.

29

120

Page 121: Ilusão

Um ideal jamais se realiza

sem nicho próprio nesse vil planeta...

E a sua ocupação escandaliza,

só deixa nicho aberto na mutreta.

Se não quiser da guerra uma juíza,

um homem deve tocar a trombeta,

Em si achando um ninho, num tufão

que sorve todo e qualquer coração.

30

Um homem que em si mesmo acha o seu ninho

e aceita o seu espaço natural

Pode idealizar não ser sozinho

e achar perto de si mulher igual.

Mas longo, muito longo é esse caminho

que leva o sonho a se tornar real,

E no tufão da vida o seu sucesso

é intransponível com ou sem excesso.

31

121

Page 122: Ilusão

Minha primeira e linda namorada,

a adolescente, tornou-se a mulher

Que hoje vive tão longe e está casada

com quem não sabe ao certo se lhe quer.

Do meu passado vem, por uma estrada

que a traz a mim do jeito que estiver,

E ainda bagunça um coração sombrio

que é esse meu e que só sente frio.

32

O meu passado está sempre presente

como uma névoa a pairar sobre mim,

E às vezes cai pondo-se à minha frente

sem eu saber se isso é bom ou ruim.

Decerto isso acontece a toda a gente

e nada há que fazer se é assim,

Talvez fazendo parte do futuro

pra que não seja todo frio e escuro.

33

122

Page 123: Ilusão

O tempo espraia-se sobre a cabeça

e devagar ao coração se achega,

Nesse processo nada há que o impeça

de tornar a pessoa bruta e cega.

A fantasia é impedir que desça

levando-nos ao diabo que o carrega,

Porque esse tempo teme a fantasia

que o desintegra à sua revelia.

34

Mas há um tempo que hoje é nosso amigo

quando podemos nos achar em graça,

Guardados dentro de todo perigo,

livres de toda e qualquer ameaça.

Esse é o tempo que nos serve de abrigo

em quanta guerra o nosso mundo faça,

Quando com o coração pensamos bem

e dentro estamos repletos de alguém.

35

123

Page 124: Ilusão

O tempo amigo ajuda a ver mais claro

e a se encontrar tranqüilo no que seja,

E se a princípio nos parece raro

deixa com tempo e treino que se veja,

Mais amiúde como um bem tão caro

que nada mais na vida há que não reja,

Impondo a paz tão bem dentro da gente

que o mundo todo fica diferente.

36

A graça está em se encontrar tranqüilo,

em paz com o mundo, no meio da guerra...

Às vezes encolhido como um grilo

pra saltar alto sobre uma outra terra,

Por outras esquecendo tudo aquilo

que acreditamos e que a vida encerra,

Mas sempre em paz com quem sempre nos ama

e com palavras isso nos declama.

37

124

Page 125: Ilusão

Minhas palavras representam rosas

no deserto imenso de uma ilusão...

Pode ser visto como são cheirosas

e são reais nessa comparação.

Mas as palavras podem ser teimosas

e ninguém pode lhes dizer quem são,

Além da beleza têm seus espinhos

e as espetadas são os seus carinhos.

38

Palavras róem como a dura fome,

podem matar se mal alimentadas...

Selvagens feras que não têm nem nome

se compreendidas viram boas fadas.

O que se escreve e bem se lê não some

porque as palavras são tão variadas

Que podem preencher qualquer deserto

e ainda deixar um bom caminho aberto.

39

125

Page 126: Ilusão

É nessa palavra que está a poesia

e os versos são seus meigos borbotões,

Trazendo chuva aonde só havia

poeira, pedras, duras ilusões.

A chuva forma um lago em calmaria

por onde se navega esses sertões,

E eu remo um barco rumo a outras terras

onde não haja mais tão duras guerras.

40

Sonhei com um mundo lindo e mais feliz,

não era um sonho, pode ser verdade...

Alguns portavam sua cicatriz,

mas bem felizes, na realidade.

No sonho eu era o meu próprio juiz,

no coração não havia maldade...

Acho que um sonho assim já foi sonhado

e alguns talvez fizeram dele um fado.

41

126

Page 127: Ilusão

O que eu sonhei não pode ser descrito

mas pode ser talvez comunicado,

Sei que era bom e num lugar bonito

e não se via a presença do Estado.

Mas tinha gente que eu inda acredito

estar à espera de algum resultado,

Do que fazemos pelas nossas vidas

e por aquelas que nos são queridas.

42

Sonhar um pouco deixa a gente quieto

e eu não me sinto assim tão constrangido

Que aqui não possa ser assim direto

e desenhá-lo, firme e decidido.

Filho não digo mas talvez um neto

possa compartilhar o aqui urdido,

E ver mais cedo que o mundo do sonho

pode ser tudo, sem nos ser medonho.

43

127

Page 128: Ilusão

Sonhar é bom e talvez solução

pro sofrimento, sempre complicado...

A vida em sonho ganha direção

e pode até pôr alguém do seu lado.

A vida onírica é uma criação

que a gente teme ser o bem errado,

Mas é à gente que ela se apresenta

e nada impõe, apenas alimenta.

44

Alimentados pelo que sonhamos,

fortalecidos somos para a vida,

Os ódios que sufocam enterramos

e essa existência fica mais florida.

Às vezes inimigos perdoamos

reconhecendo uma luta bandida,

E quase nada temos a perder

vivendo para o sonho não morrer.

45

128

Page 129: Ilusão

Não há nenhuma vida sem sonhar

e é uma ilusão deixar de ver o fato,

Não custa nada a gente imaginar

que o sonho mostra um mundo mais exato.

Porque sonhando podemos amar

e ficar mais bonitos no retrato,

Enquanto sem sonhar a vida míngua

e então de nada serve a própria língua.

46

O que fazemos estando acordados

em nossos sonhos tem seus fundamentos,

E estar pra isso tão despreparados

implica em frustração de movimentos.

Agitamos os nossos vários lados

depois de hesitar por alguns momentos,

Deixando vir à tona o que queremos

no lago raso do que nós fazemos.

47

129

Page 130: Ilusão

O que fazemos acordados é

muito simplesmente o que bem sonhamos,

E sermos tolos como um jacaré

que na lagoa esconde-se entre os ramos,

Renunciando à nossa clara fé

fazendo à vida o que dela encontramos,

Não nos ajuda a agir na vigília

nem ser felizes em qualquer partilha.

48

Não somos como os outros animais

que não sabem muito raciocinar,

Com seus cérebros pequenos demais

pros dons da vida virem encontrar.

Nós somos sonhadores e algo mais,

o que não deixa-nos sofrer o azar

Sem antes refletirmos nossa sina

no espelho dessa vida tão menina.

49

130

Page 131: Ilusão

O que faço é simplesmente o que vivo

e existe uma angústia que aí começa,

Porque do mundo sei que sou cativo

e no quebra-cabeças só uma peça.

Talvez eu seja por demais altivo

pra perceber que a vida é boa à beça,

Porque se a vida é feita do que faço

não é preciso grande estardalhaço.

50

Mas acontece que isso não foi dito

e ainda hoje é uma especulação,

Ninguém ousou enfrentar esse atrito

que me angustia por fazê-lo não.

Pode-se ler o que está aqui escrito

sem sobrecarregar o coração,

E eu digo isso porque bem me sinto

não vendo o mundo do meu sangue tinto.

51

131

Page 132: Ilusão

O que aqui tinjo é só um colorido,

de amarelo, azul, preto, verde, rosa,

Na tela branca de um amor bandido

que se afigura em meio à minha prosa.

Não acredito que faça alarido

ou que atinja a tal massa escandalosa,

Da gente toda que faz como eu

e vive a vida como Deus lhe deu.

52

O que ora faço é contar uma história

que atravesse esse tempo e o julgamento

Dessa atualidade tão inglória

que é incapaz de ver o seu momento,

De um povo tolo, todo feito escória,

que há de ser base da pedra que assento,

O testemunho vivo dessa idade

contra o escárnio da iniqüidade.

53

132

Page 133: Ilusão

Eu vi o povo todo ensandecido,

inebriado da maldade dela...

A aleivosia do dever cumprido

a corromper, porque ninguém assela

A exatidão do mal já cometido

sob esse nosso céu, que é uma janela

Tornada espelho, a refletir a Terra

sem o pudor de lhe esconder a guerra.

54

Todo valor humano aprisionado

pela invencível força que o assola,

Em qualquer canto e em tudo quanto é lado,

insaciável, e ninguém dá bola.

Aqui o próprio Estado escravizado

pelo infernal azar que longe rola,

Além a mesma coisa, de outro jeito,

porque em todo lugar ele é aceito.

55

133

Page 134: Ilusão

Fazendo isso faço o que me toca

e sem preocupar-me em fazer bem feito,

O encontro é verdadeira pororoca

a borbulhar as águas no meu peito.

Quando o que eu faço com o dever se choca,

borbulha o dito mais dino e escorreito,

Assim se dando uma fina poesia,

a ardente lâmina de faca fria.

56

Sendo o que faço, sou um bom poeta,

a dissecar ardentemente a vida...

Não faço mais porque essa faca é reta

e a fina arte é sempre bem sofrida.

Penetra a alma com certeira seta

e mira sempre na parte escondida,

Só quer ferir porque por isso existe

e de acertar em cheio não desiste.

57

134

Page 135: Ilusão

Realidade ou não, o que me importa

é desenhar os traços do que vejo,

Realizando os sonhos de quem corta

um mundo inteiro atrás de um realejo.

E não importa se essa arte é morta

porque o artista é só um menino andejo,

E atenderá o desejo de quem sonha

se não temer sua face medonha.

58

Eu profetizo, isso parece certo,

e delineio aos poucos o que vi,

a Terra em transe, com seu céu aberto,

e o povo louco em quem eu nunca cri.

Esse poema é o meu santo deserto

e quem vier a mim termina aqui,

Sentindo frio, sem ter um pelego

para cobrir o seu desassossego.

59

135

Page 136: Ilusão

O que dizer da alma de um maluco

que diz aquilo que lhe vem à mente?

Está escrito no seu próprio suco

que ele é de todo fruto diferente.

Como num jogo, algum tipo de truco,

ele não diz jamais o que bem sente,

Então a sua alma é quase nada,

porque pra ele esse mundo é uma espada.

60

A insanidade que me pesa à alma

não vem de mim mas do que o mundo faz

A todo mundo que aprecia a calma

e nessa terra não encontra paz,

E na acolhida uma única palma

é o retrato do que existe por trás

Dessa loucura que é a solidão

de só saber o que está nessa mão.

61

136

Page 137: Ilusão

Entendimento é algo que aparece

ao homem bom depois de refletir,

É resultado dessa sua messe

e é conquistado à espera do porvir.

Logo que entende, a sua vida cresce

e sua alma deve decidir

Se irá partir deixando de ser jovem

ou esperar pelos que não se movem.

62

Envelhecer é muito entendimento

e aponta a vida para o rumo certo,

A morte, cúmulo do sofrimento,

que a cada dia achega-se mais perto.

Preciso é aprender o esquecimento

e conservar meu espírito aberto,

Não para engolir o que se aproxima

mas pra agarrar-me ao que lhe cai encima.

63

137

Page 138: Ilusão

O entendimento é belo mas mortal

e quem o sofre torna-se um navio

Que singra os mares do que é casual

e só aporta quando está vazio.

Saber da vida até que não é mau

se nos tornamos parte desse rio

Que nos transporta ao exato destino

e que é o fim do nosso desatino.

64

Nada de novo existe no que escrevo

mas eu reúno as coisas espalhadas,

E analisando assim faço o que devo

juntando o que colhi pelas estradas.

Se a alguma novidade não me atrevo

é por saber que pragas são pesadas,

E a essas pragas sempre está sujeito

o que não faz o serviço bem feito.

65

138

Page 139: Ilusão

Assim reúno as mais velhas verdades

concatenando um entretenimento,

Propondo um nexo às realidades

que nos permita algum entendimento.

De umas contradições sinto saudades

mas sua ausência já não mais lamento,

Porque essa vida segue e eu prossigo

junto de quem quiser seguir comigo.

66

Há algo novo assim no que componho

e que compilo do que vi na vida,

Algumas vezes ficando tristonho

por pressentir a dura despedida.

Que uma verdade dura é o que proponho

para uma vida já tão decaída,

Porque o mistério atinge muito poucos

e em breve ficaremos todos loucos.

67

139

Page 140: Ilusão

Enquanto houver alguma claridade

escreverei o que comigo penso,

É meu destino, nenhuma maldade

que afronte gente tola ou de bom senso.

Preciso discernir realidade

para identificar-lhe o que é infenso,

E só posso fazer isso escrevendo

com essa clareza que no mundo acendo.

68

É uma batalha gigantesca esta

e pode enlouquecer a quem a luta,

Porque pra libertar ela não presta

e nem pra corrigir de má conduta.

Sabendo disso sinto-me uma besta

levando a carga de uma prostituta,

Que se aproveita dessa teimosia

pra deleitar-se em sua carne fria.

69

140

Page 141: Ilusão

Mas há clareza ainda e eu rabisco

a luta que há de desenlouquecer

O mundo, uma pessoa, um grão, um cisco

no olho de quem já não pode ver.

E esse meu lampejo é feito um corisco

que corta o céu sem se fazer saber,

Alumiando a noite da ilusão

de um mundo que só pensa em circo e pão.

70

Enterro aqui meus doces sentimentos

para eles transcenderem minha vida,

O que me vale são os meus intentos

porque a escrita é só para ser lida.

Enquanto vivo lanço tudo aos ventos

porque a morte há de ser bem dolorida,

E a transcendência espiritual

não vai fazer que eu seja bom ou mau.

71

141

Page 142: Ilusão

Quem quer colher necessita alcançar

o desejado fruto que lhe espera,

Não é bastante bem intencionar

fazê-lo apenas quando for quem era.

O que se quer também tem seu azar

e à sua volta às vezes uma fera,

Onde os desejos ardem igualmente

pelo esperado fruto e pela gente.

72

Não facilito mais porque não posso

mas meu desejo é ver o mundo são,

Não podendo querê-lo sendo insosso

ou mero mercador de uma ilusão.

Quem só quiser desmaio tenha um troço

e há de alcançar o seu desejo vão,

Mas se quiser um fundo entendimento

deve alcançar na dor o seu lamento.

73

142

Page 143: Ilusão

Ontem perdi um amigo querido,

assassinado pela guerra vil...

Um meio século bem mal vivido

nessa província escrava do Brasil.

De tantos males foi tão bem ferido

pela cidade sempre a ele hostil,

Que mesmo forte teve abreviada

pela metade a vida tão danada.

74

Deixou desarrimada uma família,

mulher e filhos, mãe, irmã, sobrinhos...

A todos eles nossa guerra humilha

porque no mundo estarão mal sozinhos.

E fica impune o crime da quadrilha

que vira e mexe e mata seus vizinhos,

Pra lucros tão pequenos computar

que é impossível o crime lhe imputar.

75

143

Page 144: Ilusão

A terra engole o corpo e o devora

e o seu Espírito eleva-se ao céu,

Não há como dizer se foi embora

mas escapou da vida de ser réu.

Eu sei que a minha parte não demora

e que não há de haver um escarcéu,

O mundo quer sobreviver sem nós

porque suporta mal a nossa voz.

76

O enterro do defunto foi comum,

apenas a família e alguns amigos...

Choro bem sentido eu não vi nenhum,

se é que houve disso entre os antigos.

O sentimento vero, se houve algum,

só uma das filhas, prevendo castigos...

O que se via mais era a conversa

enquanto a urna na terra era imersa.

77

144

Page 145: Ilusão

O Espírito partiu pra algum lugar

se algum lugar existe para ele,

No corpo não podia mais estar

aprisionado pela morta pele.

Decerto existe e vai continuar

à espera do bom Deus que a ele assele

Um bom futuro, em outra dimensão,

igual ao que os outros encontrarão.

78

Eu só percebo a espiritualidade

quando com ela em direto contato,

Por um olhar isento de maldade

com o sentimento de frente pro fato.

Alguns me dizem que é mediunidade

e só parece agir no meu recato,

Não sei que seja mas eu acredito

que alguma coisa é e fico aflito.

79

145

Page 146: Ilusão

É a sensação que algumas vezes tenho

o que tem o condão de me afligir,

Quando bem atento descerro o cenho

e exponho a minha alma a quem me vir,

Lembrando sempre que de longe venho

e que difiro muito de um menir,

Olho algum ponto bem à minha frente

e sinto que sou mesmo diferente.

80

Tanto vejo uma dimensão estranha

quanto sinto em mim os seus bons efeitos,

Tudo numa fina teia de aranha

que liga umas coisas aos seus conceitos.

No cipoal dessa ilusão se apanha

o engano vão do mundo e seus direitos,

E reduzidos àquilo que são

lembram a morte do primeiro irmão.

81

146

Page 147: Ilusão

Não sou Abel mas sei o que sentiu

o pobre Jó depois que perdeu tudo,

No meu retiro sei quem me traiu

e us0u a minha vida como escudo.

Quem já morreu acho que não dormiu

mas sonha um sonho vívido e graúdo,

Em que a realidade é simplesmente

a verdadeira causa dessa gente.

82

Quando as leoas atacam em bando

os touros bravos que querem comer,

Expõem-se àqueles que estão atacando

e impõem a todos lutar e correr.

Pessoas se matam de vez em quando

segundo uma lei dura de entender,

Precisam comer, correr e lutar

pra sobreviver num mesmo lugar.

83

147

Page 148: Ilusão

Pessoas humildes, feras altivas,

paralelismo comportamental,

As nossas atitudes construtivas

constróem-se no plano do animal.

Com ínfimo acerto em mil tentativas,

civilização é lei natural,

Não se entendendo portanto esse excesso

de legislação travando o progresso.

84

A lei é só uma, amar sem limites,

não há outro jeito sem mais espaço...

Idéias são muitas, tantos convites,

não vejo razão pra dizer que passo.

Se existe a concordância das elites,

por que não convidá-las ao abraço?

É bem altiva a nossa humanidade

e sem amor fica entregue à vaidade.

85

148

Page 149: Ilusão

E destruiu-se a inteira Natureza

que nos pariu e bem alimentou,

À Humanidade que hoje inteira reza

por não caber no espaço que restou.

Desesperada cresce e não se preza

e já não sabe o que Deus lhe falou,

De tantos modos quando era menina

e hoje já moça sabe que termina.

86

Eis aqui o mistério da evolução,

esse que empurra a gente pro futuro...

Não deixa espaço pra nenhum sermão

porque ele próprio impera só e duro.

Aqueles que viverem viverão

o horror da guerra em fronte bem escuro,

Pra compensar o estrago que se fez

à Terra que se vinga dessa vez.

87

149

Page 150: Ilusão

Não há lugar para sobrevivência

de uma cultura humana natural,

A Terra destruiu-se com Ciência

e não se escapa desse grande mal.

Dos nichos habitáveis só ausência

existe nesse estágio terminal,

Em que vivemos Deus sabe até quando

à espera disso ir se modificando.

88

Enquanto a Terra ruma ao seu destino,

eu fico aqui descrevendo o seu fado,

E isso fazendo penso que me ensino

a não sofrer por não ser perdoado.

O amor me faz voltar a ser menino

e querer ver o mundo do outro lado,

Por isso valorizo o que é sublime

em vez de investigar em quem há crime.

89

150

Page 151: Ilusão

Menino vou vivendo essa poesia,

examinando a terra que inda há,

Não posso mais pensar no que haveria

se houvesse alguma gente pouco má.

À frente vai o povo, em romaria,

adivinhando o que lhe ocorrerá,

Decerto obedecendo ao seu senhor

que espera a recompensa em muita dor.

90

É triste ver o mundo andar assim,

seguindo sempre os passos dos antigos,

Precisamente no que há de ruim

e assim não vendo o quanto são mendigos.

Persistem preparando um mau festim

para os convivas todos inimigos,

Porque já desistiram de se amar

e aguardam ansiosos seu azar.

91

151

Page 152: Ilusão

Às vezes conseguimos nos amar

mas é dominadora essa ilusão,

Dilacerando a dor no fim do lar

porque o amor iludido é paixão.

A desilusão não vem de sonhar

mas de se iludir tapando a visão

Do verdadeiro amor, que quis crescer

mas foi sufocado pelo prazer.

92

Desiludidos, de amar desistimos,

vindo a pensar que ilusão é amor...

Tomamos ódio de todos os mimos

que no lar conseguimos ter e pôr.

Odiando amar, todos regredimos,

seguindo a vida desdenhando a flor.

Nosso descuido é que nos iludiu,

deixando o amor tornar-se um ódio vil.

93

152

Page 153: Ilusão

É vigiar essa ilusão que temos

a solução pro sonho não morrer,

Porque odiando o amor nós não podemos,

nenhum de nós, uma esperança ter.

É vigilantes que nós venceremos

a estupidez de se deixar perder

No emaranhado da ilusão atroz

que quer perder de vez a todos nós.

94

Toda ilusão é só uma perspectiva

segundo a qual vemos o que não há,

Evoluindo pra função ativa

que gera em nós tudo quanto haverá.

Domina a mente e a torna seletiva,

fazendo crer que muito bem está,

E assim conduz a vida nesse mundo

onde o que é raso torna-se profundo.

95

153

Page 154: Ilusão

Se não me iludo junto é que estou louco

de perceber as coisas de outro jeito,

E atirar pedras para mim é pouco

que é grande a mente e fortíssimo o peito.

Quem é da grita vai ficando rouco

sem ter a chance de falar direito,

E eu não me entrego à paixão desmedida

que só nos torna a vida mais bandida.

96

Eu vazo firme o que há no sentimento

sem preocupar-me a quem vou convencer,

Muito já faço no patrulhamento

que todo dia sofro por arder.

A diferença é que mantenho atento

o olhar sadio sobre o meu prazer,

Sendo só isso o que o mundo precisa

pra rotular a minha pena lisa.

97

154

Page 155: Ilusão

Eu vejo no mundo certa indigência

que escandaliza quase toda a gente,

Talvez por causa da sua imanência

ou por pensá-la como impermanente.

O Estado e o povo juntam-se à Ciência

pra definir o que essa gente sente,

Só se esquecendo que ela somos nós,

que o mundo inteiro somos desse algoz.

98

Essa indigência certa no que vejo

é imanente ao mundo que inda habitamos,

Está presente no que cacarejo

e em tudo o mais que nós realizamos.

É tão indigente o que há de sobejo

na confusão que nós perpetuamos,

A miserável condição humana

que hoje nem mesmo a uma criança engana...

99

155

Page 156: Ilusão

Resta saber se nós vamos mudar,

reconhecendo esta necessidade,

Se nós queremos construir um lar

ou nos manter nessa perversidade.

Eu parto hoje para algum lugar

que seja longe de qualquer cidade,

Mas vou sozinho pois não encontrei

ninguém disposto a acatar a Lei.

156

Page 157: Ilusão

Canto Quarto

1

157

Page 158: Ilusão

A realidade dói demais em mim

talvez porquanto eu pense em realeza,

A minha vida não é tão ruim

e existem bem piores, com certeza.

Mas o que eu sinto jamais chega ao fim

e o que é real só me entorna tristeza,

E eu imagino a vida de outras gentes

que é certo sofrem dores diferentes.

2

A realidade parece uma só

e diferentes todas as pessoas,

A confusão que surge é feito um nó

no fio liso que segue essas loas,

Porque se o que é real se torna pó

dificilmente restam coisas boas,

E o que era uno faz-se indiferença

que grassa em tudo quanto a gente pensa.

3

158

Page 159: Ilusão

Talvez a realidade não exista

sem uma realeza a sustentá-la,

E a gente tem que ser talvez artista

pra não cair no fundo dessa vala.

Então se a gente quer ser realista

tem que escutar a voz que não se cala,

A voz de quem também não foi amado

exceto no que tenha imaginado.

4

Eu imagino esse século vinte

em que vivi quase quarenta anos,

E algum artista que também o pinte

mostrando os tão bem escondidos planos.

A violência havida é um grande acinte

a toda a humanidade em seus enganos,

Porque o que aconteceu foi enterrado

depois de muito bem embaralhado.

5

159

Page 160: Ilusão

Tudo começa com os bons aviões

e uma primeira guerra mundial,

Dando estatura a alguns poucos anões

que assim conseguem redobrar o mal.

Por trás de tudo alguns poucos leões

achando a hecatombe natural,

E só interrompendo a urdidura

por medo à comunista ditadura.

6

Em vinte anos urdem outra guerra

pra impor ao mundo a vil democracia,

Algo que em antes não se viu na Terra,

cinqüenta anos de uma guerra fria.

Diante do caos a consciência emperra

e rui a pouca moral que existia,

O Mal liberto faz o que bem quer

e uma santa guerra é o seu vil mister.

7

160

Page 161: Ilusão

A guerra agora atua em muitas frentes,

cobrindo toda a extensão do planeta...

Já não há mais nações independentes

e as que resistem sofrem o capeta.

Não há espaço pra falar de gentes

porque essa vaca só tem uma teta,

Alimentando apenas a discórdia

sem nem saber o que é misericórdia.

8

Pessoas já não podem resistir

e são joguetes nas mãos desse império,

Quando atingidas só podem rugir

alimentando o mal e o seu mistério.

As vítimas são metas a atingir

mas ninguém pode levar isso a sério,

Porque é cruel demais essa vileza

que atenta contra toda a Natureza.

9

161

Page 162: Ilusão

E a guerra esquenta até virar inferno,

tão implacável quanto pode ser...

Esse espetáculo é o mundo moderno

que pode tudo menos bem querer.

Sabendo disso hoje mesmo eu me interno

por meu desejo, no hospício que houver,

Sei que estou louco porque estou sozinho

sofrendo essa miséria sem carinho.

10

O que acontece dentro de um hospício

com os internados ninguém imagina,

Não é possível ter maior suplício

que a aflição que a coisa determina.

Mas nesse espaço tão prenhe de vício

é que o coração a pensar ensina,

Mostrando as coisas tal como elas são

na mais doída e doida solidão.

11

162

Page 163: Ilusão

Sair do hospício não é brincadeira,

é necessário aprender de verdade...

Qualquer vacilo e por qualquer besteira

és dominado pela insanidade.

Há uma armadilha covarde e certeira

que traga e rasga toda identidade,

E só o milagre de escapar ileso

permite sobrevida ao indefeso.

12

A guerra santa prevê tudo isto

e quanto mais houver pra se prever...

A minha vida, tal como resisto,

é só detalhe nesse anoitecer.

Logicamente eu mesmo não existo

e o que eu escrevo ninguém mais vai ler,

É só o presente chegando ao futuro

em seu papel de inconsistente e duro.

13

163

Page 164: Ilusão

Eu saí de um hospício sete vezes

e sei que é certo um dia eu lá voltar,

Não sei se é uma questão de anos ou meses

mas creio que não vão me libertar.

A vida é toda feita de revezes

e já não posso mais me aventurar,

Preciso é burilar o pensamento

pra compensar não ter contentamento.

14

O Estado é uma só guerra planetária

aliciando todas as nações,

Não é apenas coisa imaginária

com que eu iludo as minhas emoções.

O seu desenho é essa obra vária

que entorpece o mundo dos corações,

E a sua ação é afligir a vida

anunciando a nossa despedida.

15

164

Page 165: Ilusão

Não há saída do destino horrendo

que preparou o Mal para o planeta,

Qualquer esforço nosso acaba sendo

um passo a mais em direção à meta.

Resta viver e persistir vivendo

a cada dia vendo a coisa preta,

A escuridão de quantas nossas luzes

erguem-se em vão contra os seus arcabuzes.

16

Eu vejo alguém colher lírios pra nós

pra receber-nos em nova morada,

Aqui na Terra estamos todos sós

mas lá teremos vida transformada.

Já posso ouvir daqui a sua voz

silenciosa como fosse nada,

A única esperança verdadeira

que vence tudo de toda maneira.

17

165

Page 166: Ilusão

Ela nos olha com os olhos fechados,

irradiando a luz da nova vida...

Espera que cheguemos transformados

por nossa vida sempre tão sofrida.

Só lá seremos todos perdoados

da nossa culpa na guerra bandida,

Podendo finalmente ser felizes

sem nos lembrar de tantas cicatrizes.

18

Nós passaremos todos pela morte

e só assim podemos renascer,

Não há mistério, porque Deus é forte

e sabe como a todos reviver.

Nós não devemos pois temer o corte

que livra a alma de só padecer,

A eternidade é muito mais bonita

que a vida que essa Terra nos agita.

19

166

Page 167: Ilusão

É nessa Terra que eu devo aprender

ao tempo todo estar com nosso Deus,

Em meio à guerra o coração arder

querendo estar em paz com os filhos seus.

Eu sinto isso ainda sem saber

como será quando estiver nos céus,

Porque acredito que há um compromisso

e bem estar é tudo o que cobiço.

20

O mundo roda mas eu rodo mais

em quantas piruetas vêm-me à idéia,

Meus lustros podem ser tão desiguais

que a mente quase vira uma geléia.

Eu creio que as noções originais

são tantas quanto abelhas na colméia,

Por isso devo estar em movimento

ainda que retido num convento.

21

167

Page 168: Ilusão

Para as abelhas, flores são tão belas,

e em movimento formam belo par...

Não sei por quê devo aprender com elas,

nem sei se sofro o mesmo seu azar.

Quero ir pro Céu pra ver pelas janelas

a maravilha de sempre sonhar

Com belos campos sempre tão floridos

que mais não lembre dos lustros sofridos.

22

Tudo me lembro do que teho visto

arder na Terra do Brasil de agora,

Tanto que posso contar tudo isto

bastando dar uma olhada pra fora.

Eu sei que sou um seguidor de Cristo

mas sei ver algo que não me enamora,

E quanto lembro o brasil é vermelho

e seu calor eu sinto até no espelho.

23

168

Page 169: Ilusão

Assaram índios em muitos brasis

na grande festa da carnificina,

Exploradores brutos, padres vis

e os nobres arquitetos da ruína.

Fundaram desse jeito esse país

e agora conto isso a uma menina

Que nada sabe da ancestralidade

e sofre cedo a sua puberdade.

24

O mundo inteiro não é diferente

e vê-se isso na televisão...

Mostra-se o Mal sem vergonha e de frente,

descaroçando qualquer ilusão.

A fruta que mais se cobiça é gente

e o deleitoso é a depravação,

Nessa Terra em que somos prisioneiros

e obrigados a ser bons cavalheiros.

25

169

Page 170: Ilusão

De onde vem essa certeza de haver

uma alma imortal dentro de nós,

Uma alma que não podemos ver

e sem a qual nosso mundo é atroz?

Eu penso que do medo de morrer

e ter vivido tão mal e tão sós,

Passando sempre por uma esperança

dessa vida ter alguma pujança.

26

Porque na ausência da alma imortal

nosso ser humano é mero acidente,

E a nossa vida que é fato real

torna-se o delírio de algum demente.

Isso é importante no mundo atual

que abriga a nunca antes havida gente,

Se o mundo inteiro é como uma colméia

mas as abelhas formam uma alcatéia.

27

170

Page 171: Ilusão

Foi demonstrado que essa alma existe

e que é independente da matéria,

Há milênios essa crença persiste

alimentando toda a gente séria.

Duvidar disso é sempre muito triste

e às vezes leva a infinita miséria,

Valendo a pena refletirmos bem

se desacreditá-lo nos convém.

28

As interrogações da alma são

inevitáveis no curso da vida,

Por mais que nos atormentem serão

sempre uma parte da sina sofrida.

Elas exigem a toda atenção

e estão presentes na nossa partida,

O que nos leva a pensar desde agora

que nos convém pensá-las vida afora.

29

171

Page 172: Ilusão

Pensando bem devemos concluir

que se existe o Bem tem que haver a alma...

E se a alma há temos que existir

num mundo tenso que nos rouba a calma.

O que podemos fazer pra sentir

a nossa alma, sem ter nenhum trauma,

É crer que Deus existe e nos quer bem

sem nunca desistir de amar ninguém.

30

Acreditar é parte da resposta

às interrogações que a alma cria,

A parte que quem acredita arrosta

sabendo hoje o que ontem não sabia.

Se a vida não é como a gente gosta,

façamo-lhe o que a gente gostaria

Sem esperar por qualquer recompensa,

pra que o nosso desejo não nos vença.

31

172

Page 173: Ilusão

Eu acredito que a vida é assim

tal como o digo nesse grão poema,

Deve existir princípio se há um fim

diante do qual ninguém há que não trema.

Por isso invoco o que há de bom em mim

pra descobrir nesse trabalho um lema,

Que de algo sirva a quem quiser segui-lo

e a quem não queira não deixe intranqüilo.

32

É bom poder dizer o que pensamos

se o que pensamos pode interessar,

Os versos são dessa árvore os ramos

e os frutos justificam seu pomar.

Podemos confessar que muito erramos

sem ter que desistir de nos amar,

E a voz que usamos dá novo sentido

ao muito que possamos ter sofrido.

33

173

Page 174: Ilusão

Eis que o que digo pode arrebatar

os corações que andam sofrendo tanto,

E arrebatados singrar esse mar

das lágrimas caídas do seu pranto.

Eu acredito podermos mudar

o mundo inteiro sentindo esse canto,

Que vem de algum lugar especial

onde não há quem nos deseje mal.

34

O negativo de uma das raízes

dessa nossa unidade natural

Parece superar as suas crises

e se afirmar como um valor real.

Talvez assuste muitos aprendizes

por ser completamente irracional,

mas é importante porque transcendente

e está contido em quanto a gente sente.

35

174

Page 175: Ilusão

A relevância de uma tal ciência

é que ela está no âmago de tudo,

Tudo quanto veio a ter existência

está sujeito ao seu império mudo.

Por isso é necessária a reverência

frente a esse detalhe tão miúdo,

Porque é a manifestação do amor

que tudo liga para ter sabor.

36

Eu sei que essa ciência é muito velha

mas sei também que é sempre novidade,

E a realidade que ela nos espelha

convida-nos a amar em caridade.

Nós andamos vendo o mundo de esguelha

porque não suportamos a verdade,

Enquanto o mundo muda o tempo todo

nos arrastando sempre para o lodo.

37

175

Page 176: Ilusão

Podemos discernir a realidade

usando a faculdade natural

De distinguir mentira de verdade

em vez de separar o bem do mal.

Conquanto essa armadilha da maldade

pareça ser em tudo racional,

É exatamente quem nos trouxe a morte

nos enganando sobre o que é ser forte.

38

Olhar o mundo e ver que é verdadeiro,

e ver que é falsa a sua negação,

É bem mais fácil que entrar no vespeiro

de em bem e mal querer ver distinção.

Se eu quero ter o melhor conselheiro

para a verdade poder ter à mão,

Devo pensar no que é melhor pra mim

não confundindo o Bem com o que é ruim.

39

176

Page 177: Ilusão

É perigoso o fruto da Ciência

e se o comemos pode nos matar,

Independentemente da prudência

com que pensamos nos alimentar.

Se desejamos ter clarividência

pra que ninguém possa nos enganar,

Devemos procurar por outros meios

fugir dos males que nos são alheios.

40

Assim vou separando do que é falso

o verdadeiro bem da minha alma,

Parando ao pressentir cada percalço

e vendo a minha vida com mais calma.

Aí me vejo e vou no meu encalço

sem precisar temer um novo trauma,

Porque é verdade que eu nasci do Bem

e o Mal só vi porque cri ser ninguém.

41

177

Page 178: Ilusão

Em cada passo dessa minha vida

está contida a minha vida inteira,

E é culpa minha ser desinsofrida

a espera pela morte derradeira.

Eu tenho a alma tão fraca e moída

que a minha vida passa na peneira,

Dando pra ver em cada passo meu

que a fé ainda não me reviveu.

42

Portanto sei que é vivo o que declaro,

que viverá ainda depois de mim,

Não tendo preço porque é muito raro

e revelado bem perto do fim.

Eu sei também que Deus não é avaro,

que a nossa vida não é tão ruim...

O que não sei é o que fazer agora

que a minha alma já sinto ir embora.

43

178

Page 179: Ilusão

Dez vezes mais lenta que um caramujo,

a Terra rola o seu balé maluco...

Mil vezes menos que o que aqui estrujo,

ela murmura o seu humor caduco.

Prouvera a Deus que eu não fosse tão sujo

para cantar tão bem quanto retruco,

E como a Terra deslizar silente

sem ter que me explicar a toda a gente.

44

A vinda de Deus ao mundo foi sim

a suma perfeição da nossa vida...

Nada pode abalá-la, nenhum fim,

porque ela não foi feita despedida.

Não nos mandou um grande serafim

para a maior celebração havida,

Mas veio em carne pra sofrer por nós

mostrando a todos quem é nosso algoz.

45

179

Page 180: Ilusão

Por isso canto sem saber fazê-lo

e hei de seguir cantando a vida toda,

A fina brisa aqui no meu cabelo

me sussurrando que eu estou na moda.

Se houver inferno eu sei que não vou vê-lo

tão certamente quanto o mundo roda,

Porque o que Deus espera desse ser

só é sabido por seu bem querer.

46

Não há mais nada que fazer aqui

senão viver e deixar que se viva,

Eu sou tão bobo quanto um juriti

se eu só sonhei em ter o amor da diva.

Muito me lembro do que me esqueci

mas não de ter tido uma vida ativa,

Tudo que fiz foi rogar pela vida

sem ter lembranças de tê-la perdida.

47

180

Page 181: Ilusão

Agora fico aqui cantando o amor

sem ter ninguém pra conversar comigo.

Sem ter a vida o que eu iria pôr

nessa cantiga que faço de abrigo?

Só poderei saber quando eu me for

e a alma não deixar nas mãos do imigo,

Com quem só luto por ser ignorante

e não ter medo de que ele me encante.

48

Essa poesia que me encharca todo

não vai deixar de ser nunca o que é,

e se eu me sujo volto ao mesmo lodo

de onde saí por ter crido com fé.

Não vou deixar-me seduzir do engodo

mais uma vez para avançar de ré,

Vou para a luz do sol que me ilumina

pedindo a Deus que mude a minha sina.

49

181

Page 182: Ilusão

Quem quiser rir que ria por seu gosto

do que eu sofri na minha natureza,

Será talvez porque não tem um rosto

que agrade a quem não quer ser sua presa.

Que pense assim que sofre de um encosto

que não lhe deixa ser da realeza,

Ria bem forte porque a vida é isso

que em nós só ri quando é sem compromisso.

50

Eu não pretendo só me defender

da acusação de ter vivido a vida,

Preciso expor o que pude viver

pra que ela possa ser bem esquecida.

E se me atacam por puro prazer

não vou deixar impune essa ferida,

Vou atacar também o que se vive

já que segredo meu eu nunca tive.

51

182

Page 183: Ilusão

Acho que vi de tudo o que há na Terra

e ouso dizer que nada é meritório,

Quanto se pense nasce de uma guerra

cujo motivo é torpe e ilusório.

Tanta altivez não vê quanto ela encerra

de vã loucura em seu falso esponsório,

Só vê o que quer e não me compreende

quando lhe mostro quem nunca se rende.

52

Uma ilusão a mais é esse canto

em que me encanto com meu próprio umbigo...

Porque não sou e nunca quis ser santo,

nem santidade carrego comigo.

Se não é pouco e não pode ser tanto

quanto essa realidade com que brigo,

Deve ser só mesmo o que pode ser

sem se furtar ao seu próprio poder.

53

183

Page 184: Ilusão

E o que esse canto pode é confortar

a alma de quem vive em seu segredo,

Talvez até um pouco impulsionar

alguém que muito pouco sente medo.

Não é decerto como navegar

o mar que em nós atravessamos cedo,

Porque é sem lágrimas, sangue ou suor

que ele nos fala isso que eu sei de cór.

54

Assim me rendo ante uma tal beleza

que pode tudo contra o que eu componho,

Que pode sempre ter a chama acesa

porque não sabe o que é ficar tristonho.

Irá manter seu poder com certeza

e me deixar desolado e medonho,

Porque eu não quis reconhecê-la assim

e vou negá-la ainda até o fim.

55

184

Page 185: Ilusão

Ainda é cedo para concluirmos

que essa poesia não dará em nada,

Há muita coisa ainda pra sentirmos

e esse é o acesso pra uma nova estrada,

Que nos alerta para não partirmos

sem que ela antes seja imaginada,

No coração do viajor que parte

inebriado de sua própria arte.

56

O que imagino transmitir é como

desvencilharmo-nos dessa ilusão,

Que na ramagem da Ciência é pomo

a seduzir de novo Eva e Adão.

O doce fruto que eu mesmo não como

porque os que dele comem morrerão,

Pra vida de verdade que Deus quis

pra todos nós por meios tão sutis.

57

185

Page 186: Ilusão

Uma ilusão é sempre tão nociva

à vida que trazemos dentro em nós...

Porque é da própria vida que nos priva

ao gerar desilusão tão atroz.

Desilusão que impede que se viva

a vida que quem nos quer bem compôs,

E dilacera-nos o próprio ser

restando nada para se fazer.

58

Existe a chuva pra correrem rios

na Terra em que plantamos um jardim,

Rios que ao mar nos levam bons navios

a uma viagem que nunca tem fim.

A chuva traz os dias luzidios

que inda recorda o bom tupiniquim,

Que imaginava o que essa vida é

e o que dizer ao coração caeté.

59

186

Page 187: Ilusão

Cruzara a Terra até seu litoral,

descendo o rio até a sua foz...

Investigava de onde vinha o mal

que pendurava gente nos cipós.

Vira um acampamento da infernal

matilha caraíba, tão atroz,

Trazendo gente presa em grandes filas

e os enormes navios a engoli-las.

60

Ficara apavorado e não sabia

ainda o que dizer ao povo seu...

A mãe de Ronje inda era uma guria

mas bem amava o homem que perdeu,

Na noite mais escura e mais sombria

que coroara seu puro himeneu,

E agora à filha tinha que contar

que o pai valente fora para o mar.

61

187

Page 188: Ilusão

O ideal que move esse poeta

é ser um dia alguém angelical,

Seguro em cada situação correta

porque resiste ao confronto com o Mal.

Na busca disso empunho essa caneta

que escorre os versos de um homem normal,

Esse poeta ruma para a morte

desencantado da sua própria sorte.

62

Mas o que aconteceu à mãe de Ronje

e à menininha que perdeu o pai,

Há tantos séculos, o que é bem longe

mas prende um tempo que inda não se vai?

Terá criado um filho que foi monge

ou sucumbido a um invencível ai?

Talvez também tenha caído presa

e vitimada da própria beleza...

63

188

Page 189: Ilusão

Existe a chuva pra molhar a terra

e esse chão úmido é bom pra plantar,

Tudo isso acaba se houver uma guerra

que decidida queira nos matar.

O acirramento a todo o mundo ferra

porque esse sistema é imune ao azar,

Só há esperança na realidade

que dessa ilusão não sinta saudade.

64

Desilusão é dor pra toda a vida

e é da ilusão que vem esse tormento,

Que só permite alegria fingida

e a perversão da dor que eu não aguento.

É o inferno da alma ensandecida

que já não sabe onde pôr seu lamento,

E só deseja enfim se libertar

como o navio que segue pro mar.

65

189

Page 190: Ilusão

Por isso é mau se deixar iludir

pelo próprio apetite desregrado,

Que negligenciado nos faz rir

mas gera o sofrimento mais danado.

O que se revela em todo porvir

porque a ilusão leva ao caminho errado,

E quem se desilude tem que ver

que deve ser real o seu prazer.

66

O prazer sentido é bem verdadeiro

quando originado num bem real,

Como aquele sentido num puteiro

se lá não fomos fazer nenhum mal.

Mas se queremos pagar com dinheiro

o amor da puta e achar natural,

Iremos ver que ela também é gente

e bem merecido é o que a gente sente.

67

190

Page 191: Ilusão

O que um homem vai dizer da mulher

se a essa vida ele veio por ela,

Se na infância ela forma o que ele quer

e é contra isso que ele se rebela?

Tantas questões se deve revolver

pra imaginar quem é a Cinderela,

Que é bom ouvir o que ela diz de si

antes de aceitar o que afirmo aqui.

68

Muitas mulheres falaram comigo

das suas vidas, dores e alegrias,

Todas discordam do quanto hoje digo

porque discuto as suas fantasias.

Mas a ilusão tem nelas seu abrigo

e desiludem-se todos os dias,

As que aqui põem suas esperanças

querendo apenas ter as vidas mansas.

69

191

Page 192: Ilusão

Podemos ler no Segundo dos Reis

o quanto elas podem quando têm fome,

Comem os filhos e discutem leis

e o que nos causam nem mesmo tem nome.

Sei muito bem que poucas são cruéis

mas certas coisas tempo algum consome,

Portanto é bom conversarmos com elas

pra compreendermos as nossas mazelas.

70

Se a nossa vida é dura, e eu sei que é,

temos que ter alguma fantasia...

Uma que não combata a boa fé

e ressuscite a esperança que havia,

No nosso mundo, quando dava pé

acreditar em qualquer utopia

Que prometesse uma vida melhor,

sem tantas lágrimas, sangue e suor.

71

192

Page 193: Ilusão

Não é ilusão nas fantasias crer

quando sabemos que fantasiamos...

Nos iludir é dar-lhes tal poder

que as torne nossos assolutos amos.

Fantasiamos até sem querer

mas vigilantes não nos enganamos,

Com a realidade que da vida é dona

porque nenhuma ilusão a destrona.

72

Fantasiemos pois as nossas vidas

que miseráveis são na realidade,

Sonhando que não são despossuídas

daquilo que queremos de verdade.

Mas não deixemo-las ser iludidas

por algo que tão pouco nos agrade

Quanto o prazer fugaz da vã mentira

que em nosso mundo pula, dança e gira.

73

193

Page 194: Ilusão

Bem mais complexo é o organismo humano

do que supõe a nossa medicina,

Por isso é vão contá-la em nosso plano

se ela nos considera gente indina.

Vamos tratarmo-nos no mano a mano

que o que acontece nessa vida é sina,

E aprenderemos o que Deus quiser

que nós saibamos do que Ele nos quer.

74

Se formos esperar desse sistema,

em que vivemos toda a nossa vida,

A solução para um nosso dilema

que assusta de maneira descabida,

Jamais conceberemos quem não trema

diante do mal que quer a fé perdida,

E a esperança será coisa morta

porque ninguém nos abrirá a porta.

75

194

Page 195: Ilusão

Mas se, ao contrário, nos deixarmos ver,

por Deus, abandonados à doença,

Teremos chance de um dia nascer

quem nos socorra porque nunca pensa

Que a gente humana merece sofrer,

e ao sofrimento nunca dá licença

De vitimar a humilde alma da gente,

que arrasta a vida porque muito a sente.

76

Os pássaros cantam e a chuva cai

nessa hora muito triste do dia,

E eu vou sonhando em voltar a ser pai

porque não posso ver a minha cria.

Estou sozinho, Pai, me conservai

para que eu possa ver o que não via

A gente que morreu antes de mim

e ver o que eu queria antes do fim.

77

195

Page 196: Ilusão

Dirijo a Deus essa má prece minha

porque não posso aqui no mundo ver

Vocês que são a própria ladainha

e que me poderiam dar poder

Pra discernir o que hoje me convinha

em relação aos filhos eu fazer

Porque a saudade dói e já me aperta

um coração que é essa porta aberta.

78

Estou ligado a uma real resposta

que eu sei haver em qualquer bom futuro,

E a espera até que já não me desgosta

porque eu a sei precisa em mundo duro.

Mas minha vida acaba e essa aposta

chega bem perto de fazer perjuro

Quem na verdade aposta sua vida

porque a mentira quer ver destruída.

79

196

Page 197: Ilusão

A tempestade que eu pensei não veio

me fulminar com o elétrico raio,

E já que vivo sigo sendo o esteio

que a minha voz sustenta e não desmaio.

Porque quem sofre mesmo está no meio

de um furacão e deve ser cambaio,

E eu que não sou devia estar feliz

por ser ainda apenas aprendiz.

80

Esse cambaio em meio à tempestade

que imaginei pra mim é mais que eu,

Porque seu fado é duro de verdade

e longe está de ter seu apogeu.

E essa evidência que me persuade

que dor maior que a minha ele sofreu,

É que me inspira a bem continuar

sem ligar tanto para o meu azar.

81

197

Page 198: Ilusão

Estou aqui bem continente e duro

versificando todo o pensamento

Que veio a mim porque não vejo furo

no teorema que aqui apresento

A quem quiser afastar-se do escuro

e à luz do sol permanecer atento

Para poder na vida prosseguir

sem apertar-se frente ao grão vizir.

82

Uma mulher é sempre um grande encanto

pro homem que está pronto para tê-la

Num abraço que acalente o seu pranto

e a faça ver que a vida é sempre bela.

Tal homem pode ver que o amor é tanto

a fantasia de ter uma estrela

Quanto a realidade de sonhar

que ele possui inteiros céu e mar.

83

198

Page 199: Ilusão

O amor então deve encantar os dois

e possuí-los de uma tal maneira

Que impossível se torne ser depois

sós novamente, até de brincadeira.

Serão no fim como dois belos sóis

que brilham um pro outro a noite inteira,

Iluminando as almas tão felizes

que um dia arderam tantas cicatrizes.

84

Por isso a gente deve se escolher

com mais cuidado que a tudo na vida,

Buscando sempre em si mesmo saber

se o outro é nossa alma mais querida.

Sabendo inexistir maior prazer

que o que se encontra na alma escolhida,

Iremos ser felizes com certeza

porque é mais belo esse amor que a beleza.

85

199

Page 200: Ilusão

Eu simplesmente não sei onde está

você que o meu amor forte procura,

O que eu sei é que você cantará

esse poema porque a vida é dura.

Sei muito bem também que não é já

que estarei vendo essa linda figura

Que você faz no mundo que eu não canto

porque estou longe, longe do seu pranto.

86

Quando você cantar esse poema

vou encontrá-la porque eu ouvirei,

A sua voz e espero que não trema

a Terra toda por não sei que lei.

A sua imagem verei no cinema

e descobrindo o que ainda não sei

Vou poder vê-la no seu endereço

e me curar das dores que padeço.

87

200

Page 201: Ilusão

Espero ser agradável a si

porque eu a amo muito desde agora,

E já não posso estacionar aqui

sabendo que está longe e se demora.

Não tenho mais o tempo que perdi

de si distante pela vida afora,

E é ansioso que vou encontrá-la

se Deus quiser que eu ouça a sua fala.

88

O que lhe poderia bem dizer

que até aqui já não houvesse dito?

Que sonho mais poderia trazer

que não tornasse o canto um mero rito?

Eu quero dar-lhe todo o meu prazer

e não apenas pra ficar bonito,

Mas pra você realizar-se em mim

e eu em você se Deus quiser assim.

89

201

Page 202: Ilusão

Irei cantá-la toda a minha vida

enquanto Deus me der alguma voz,

Fazendo tudo pra não ver sofrida

a alma em quem me vejo sempre em nós.

Trarei mais versos que qualquer partida

e seguirei seu rio até a foz,

Porque eu a amo sem nunca ter visto

seu lindo rosto a me dizer que existo.

90

Espero encontrar você muito em breve

e poder compensar o tempo ido,

Com todo o amor que espero seja leve

e dentro de si siga colorido.

Então veremos o que Amor prescreve

para quem quer ver o fado cumprido,

E poderemos ambos prosseguir

na busca do nosso santo elixir.

91

202

Page 203: Ilusão

Não haverei de ter nenhum pecado

manchando esse meu pobre coração,

Que já é seu e anda alvoroçado

com os dias de alegria que virão.

E assim bem certo do meu rico fado

desposarei o seu amor irmão,

Que simplesmente irá se transformar

no conjugal amor que é do seu par.

92

Estou feliz por sabê-la tão bem

nesse planeta que é nossa morada,

E vou achá-la ao lado de ninguém

para seguir consigo essa jornada.

Talvez não diga aqui o que lhe convém

numa tal prosa tão desesperada,

Mas vou dizê-lo em breve em seu ouvido

quando pra sempre for ser seu marido.

93

203

Page 204: Ilusão

Não fique triste com minha demora

porque ela é breve e logo estou aí,

Sei que você bem raramente chora

e que esse choro é algo que perdi.

Mas quer voar minha alma canora

exatamente pra voar pra si,

Por isso peço que não chore mais

e espere cedo ver os meus sinais.

94

Senhor, vem, eu te imploro, vem a nós,

nossas desgraças já têm vindo aos pares!

Já não sabemos usar nossa voz,

cheios estando dos nossos pesares...

Sei que sofreste uma dor tão atroz

que não a quererás quando voltares,

Mas te asseguro que se suportasse

tomá-la-ia em minha própria face.

95

204

Page 205: Ilusão

Sei que virás talvez feito mulher

num corpo delicado e gracioso,

Que fará toda a gente se esquecer

que uma mulher só vive pelo esposo.

Mas sei também que se o mundo quiser

desesperado mergulhar em gozo,

Irás morrer de profunda tristeza

por escolhermos de novo a vileza.

96

Por isso penso que virás o Mesmo,

o mesmo corpo santo de Jesus...

E não sofrer por nós nem um tenesmo,

nem nada que nos lembre a tua cruz.

Prefiro eu próprio ser um vil torresmo

sofrendo a dor que em mais ninguém supus,

Que vê-lo vindo ao mundo pra sofrer

de novo a morte que nos deu prazer.

97

205

Page 206: Ilusão

Perdoa esses meus versos, que sou fraco

de corpo e alma, mente e tudo mais...

Sou fraco mesmo quando o Mal ataco,

por não ser justo nem com os meus iguais.

Sem teu perdão minha alma é só vácuo

e o meu corpo menos que os vegetais,

Não sendo nada nada do que penso

sem o perdão do teu amor imenso.

98

Espero concluir meu pensamento

sem ter que teminar a minha vida,

Nos versos que aqui jogo para o vento

em busca da melhor razão sentida.

Não sei se é uma razão o que sustento

ou a emoção de vê-la combalida,

Então convido a mais uma demora

quem tem seguido firme até agora.

99

206

Page 207: Ilusão

Daqui pra frente o caminho é de chão

e os atoleiros nos fazem parar

Para tirar os versos de onde estão

e livres possam nos levar ao mar

Em que deságua toda essa canção

e nos convida a melhor velejar

Por uma vida sem tanta maldade

e que tão linda nunca nos enfade.

207

Page 208: Ilusão

Canto Quinto

1

208

Page 209: Ilusão

Me perdoa, Pai, todos os meus erros

porque sem isso eu não posso viver,

Eu merecia bem ouvir meus berros

porque não soube lidar com o prazer.

Talvez eu seja mesmo preso a ferros

porque na vida eu nunca soube crer,

E pra quem sempre desdenhou o irmão

é merecida a pena de prisão.

2

Não quero ser contudo encarcerado

porque na vida muito já sofri,

E sei o quanto sofre um condenado

nas cadeias insalubres daqui.

Estou com medo desse ser meu fado

e me apavoro porque o mereci,

Levando a vida sem o compromisso

de não fingir não ter nada com isso.

3

209

Page 210: Ilusão

Eu não sou o mais perfeito animal

que o Senhor pôs na Terra pra viver.

Desculpe se me expresso tanto mal,

eu não agüento muito mais sofrer.

Não digo que ao cachorro sou igual

mas gente existe tanta pra nascer...

Há gente mais perfeita nesse mundo

e eu posso sentir isso firme e fundo.

4

Engano muita gente com meus erros

e isso não é certo, eu bem o sei...

Não só porque não quero estar a ferros

mas porque atraso a vida que eu amei.

Percebo claramente nos meus berros

a voz de quem não se sujeita à Lei,

Porque é iníquo, fraco e preguiçoso,

e esse sou eu que só procuro o gozo.

5

210

Page 211: Ilusão

Mas sofro muito por viver assim

divorciado da razão do povo,

O que eu queria é ter um outro fim

que ser humana privada de novo.

Não desejei essa vida pra mim

mas pra mulheres eu bem sei que a aprovo,

Quando desejo levá-las pra cama

sem o amor que o coração reclama.

6

Eu baixo o tom porque estou com vergonha

de ter sido na vida tão bizarro

Quanto uma criatura que não sonha,

não tem amor e vive no catarro.

A minha cara deve estar medonha

como esses versos maus que aqui amarro,

E só não morro porque não é hora

de desistir e jogar tudo fora.

7

211

Page 212: Ilusão

Eu já não sei se posso conseguir

sobreviver no mundo com essa cara,

Amedrontada e que não vai servir

para esconder o que ninguém repara,

O medo das pessoas que hão de rir

de ver exposta toda a minha tara,

E das que nela logo cuspirão

porque o amor é forte e tem razão.

8

É meu pecado e tão grande pecado

que já não posso dele me esconder,

Mesmo sabendo que fui perdoado

de nessa vida só querer prazer.

Tenho que pôr todo o orgulho de lado

pro teu amor de novo conhecer,

Porque é mais lindo que tudo o que há

o amor que sempre o Senhor nos dará.

9

212

Page 213: Ilusão

Por isso digo, Senhor, obrigado,

por toda a vida que eu muito vivi,

Muito obrigado por ter perdoado

esse pecado que eu plantei aqui.

Eu agradeço desse jeito errado

porque o amor perfeito eu não sofri,

E o que sofri por culpa da ilusão

é não sofrer de mais desilusão.

10

Estou contente por saber que a vida

irá livrar-se do seu passo falso,

E ver que a causa de ser tão sofrida

é ter a morte sempre em seu encalço.

A força da ilusão será vencida

e o mundo saberá que eu também valso,

Na pista da verdade conquistada

por força de razão na Terra dada.

11

213

Page 214: Ilusão

Peço licença aqui mais uma vez

pra expor o fio do meu pensamento,

Que vai sofrendo na vida o revés

de ver seu curso sempre muito lento.

Pois é bancado pela insensatez

e só avança quando aqui o assento,

Desnudo, tenso, duro e verdadeiro,

como um rapaz em seu amor primeiro.

12

Deus é um só e sei que isso é sabido

desde que o mundo conheceu Jesus,

E até bem antes dele ter surgido

e exposto a hipocrisia numa cruz.

Mas sei também o quanto é mal querido

e desprezado como fosse pus,

Por essa gente que inferniza a Terra

com sua insânia, vaidade e guerra.

13

214

Page 215: Ilusão

Por isso digo: obrigado, meu Deus,

por ter me honrado com teu santo amor,

Perdoa a multidão dos erros meus

e dá-me a força de enxergar a flor

Que viceja onde estão os filhos teus,

e assim poder finalmente compor

Os versos verdadeiros que desejo

para ferir esse mal tão sobejo.

14

Sinto porém que pra isso preciso

deixar bem claro o que penso de ti,

Que nada existe que faças sem siso

e tudo gozas quando alguém sorri.

Que pra nos alertar és bem conciso

e a mim fizeste ver quanto vivi,

Porque teu nome é generosidade

e só te alegras quando o Bem me invade.

15

215

Page 216: Ilusão

Estou com ódio de todo esse mal

que denuncio aqui nesse poema,

Não posso achar que seja natural

a indiferença a quanta gente gema.

O sofrimento não é casual

e me comove como o do cinema,

Quando me lembro o quanto sou mesquinho

e não mereço beber do teu vinho.

16

Eu não mereço porém necessito

beber desse sangue que é vosso vinho,

Porque sem ele meu ser é finito

e nada vale estar aqui sozinho,

Fugindo de todo e qualquer atrito

apenas pra viver mais um cadinho,

Num mundo que sem ti é quase nada

e que no fim nos leva à morte errada.

17

216

Page 217: Ilusão

Aproveitar a vida sem saber

como ela pode ser maravilhosa

É desdenhar o infinito prazer

que aquele que o buscou recebe e goza.

Viver buscando apenas não sofrer

é ser casado e não amar a esposa,

Pra descobrir no fim, tarde demais,

como seus olhos eram maternais.

18

A comunhão material com Deus

que nos é dada por seu corpo santo

Nutre o espírito dos filhos seus

que ouvem na dor da morte um acalanto.

A vida assim deixa cair seus véus

e nos revela o que tão mal eu canto,

Por não saber talvez bem comungar

desse mistério que é meu próprio lar.

19

217

Page 218: Ilusão

Deus escolheu esse nome, Jesus,

para afirmar que quer a salvação

De quanta gente a ele se conduz,

acreditando que assim viverão.

Quis vir ao mundo e padeceu na Cruz

como se fosse bandido ou ladrão,

Pra dar seu corpo como um alimento

e nos tirar do nosso desalento.

20

Se desprezamos saber a verdade

e preferimos viver de ilusão

Estamos náufragos na tempestade

em que os flagelos se alimentarão.

Mas se aceitarmos a intensa amizade

que Deus nutriu em nosso coração,

Compreenderemos o amor que nos tem

e o que sofreu por nos querer tão bem.

21

218

Page 219: Ilusão

Sabendo disso eu não posso calar

meu coração que quer gritar bem alto,

Que precisamos preparar um lar

pra receber o nosso santo arauto.

E outra Cruz não pode perdoar

porque não é e nunca foi incauto,

Mas sabe ser o tempo de colher

o que plantou com seu santo sofrer.

22

Duvidar disso é chamar de mentira

todo o relato do santo evangelho,

É não ouvir sua voz feito lira

ensinando o que nunca será velho.

Porque é a própria verdade que atira

ao coração humano que é espelho,

A refletir o amor de que é formado

e que não deve ser estilhaçado.

23

219

Page 220: Ilusão

E ignorar o que o Cristo ensinou

dando seu sangue pra escrever na Terra,

É como desdenhar o próprio Sol

e o vendaval que a nossa História encerra.

Desconhecer como o mundo mudou

civilizando mesmo a própria guerra,

Que já domesticada agora finda

mesmo que muito nos avilte ainda.

24

Desconhecer o que Deus fez é triste

porque é imensa a sua conseqüência,

É dizer simplesmente que inexiste

e que o universo é mera impermanência.

Considerar que a vida é só um chiste

e uma ilusão verdadeira ciência,

Quando o que ocorre é uma grande impostura

que serve apenas a quem nos tortura.

25

220

Page 221: Ilusão

Tudo o que eu pude entender dessa vida

é que é preciso amar com o coração,

Nada valendo a esperança doída

de ser feliz pela imaginação.

Não pode essa alegria ser trazida

por ser sabido como as coisas são,

Porque no fim o que se entende é isto:

que não há vida sem viver o Cristo.

26

Toda a ciência que possamos ter,

alimentando as nossas esperanças

De ter a vida o seu melhor prazer,

não leva a mais que sofridas andanças.

Se o que queremos é não ver sofrer

desesperadas as nossas crianças,

Temos que amar até sentir aberta

a carne do coração que desperta.

27

221

Page 222: Ilusão

A alegria que essa vida dá

só pode achar-se em amor verdadeiro,

Que enfrenta e sofre tudo quanto há

pela loucura de se crer certeiro.

Fugir da sina é ter a vida má,

sem alegria, sem gosto, sem cheiro,

Porque essa vida é obra de Jesus

que ao seu amor nossa vida conduz.

28

Estou bem certo do que digo aqui

e o faço em versos porque me convém,

Que todo mundo saiba o que vivi

nesse planeta que não segue o Bem.

Porque não sabe o que é melhor pra si

e segue escravo do ser que é ninguém,

Mas inferniza a vida das pessoas

que muito erram por se acharem boas.

29

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Page 223: Ilusão

Ninguém se pensa como sendo nada

mas nada sendo tem que ser alguém,

Mesmo que tenha a vida toda errada

se a essa vida por algo ele vem.

Algo que pode ser como uma estrada

por onde trilha a vida como um trem,

Que sendo nada não sente seu fim

e só fica contente se é assim.

30

Se a solidão não é problema agora

que o mundo sente ser todinho seu,

O fim do mundo é algo que apavora

pois sendo nada nisso nunca creu.

E se a existência é sua grão senhora

não vai poder chegar ao apogeu

De aniquilar o mundo e seu destino,

porque pra ele isso seria indino.

31

223

Page 224: Ilusão

Eu também sou um filho do pecado

de se viver uma vida vazia

Querendo sempre estar do outro lado,

mas só fazendo o que já não devia

Interessar a um coração magoado,

por ter perdido sempre mais um dia

No vão desejo da carne salvar

vivendo a vida toda sem amar.

32

Esse poder que o nada exerce em mim

e que me torna escravo de ninguém

Faz minha vida ser sempre ruim

pois ninguém posso chamar de meu bem.

Se eu fosse mesmo um bom tupiniquim

não buscaria o amor num armazém,

Mas ia atrás da vida que é fartura

mesmo que fosse pouca, pobre e dura.

33

224

Page 225: Ilusão

Mas rezo pra que um dia ninguém seja

julgado só pelo que mereceu,

E que Deus faça com que sinta e veja

o quanto em nós sua ilusão doeu.

E ver enfim o fim dessa peleja

que é o veneno que não mata o Eu,

Mas fere a alma de morte tirana

e ao coração, fantasia que engana.

34

Ninguém na vida morre antes da hora,

o tempo escorre e a vida segue viva...

Não há como ajudar quem não me chora,

não há como salvar quem não se priva

Da tentação de amar quem não lhe adora,

do vendaval que é ter a vida altiva.

Hoje é o dia em que a esperança morre

e junto morre quem não nos socorre.

35

225

Page 226: Ilusão

Eu já morri mas não virei defunto,

não fui chorado e nem encomendado...

A minha morte não se fez assunto

na roda em que eu me fiz mal assombrado.

Por isso agora forte me pergunto

o que é que eu fiz pra ser tão retardado,

Na evolução da vida que Deus quis,

quanto um casal de loucos juritis.

36

Não sou ninguém e isso me dá coragem,

pra comungar com qualquer um de vós

A vida louca e a morte de bestagem,

manifestando a minha própria voz.

Se os próprios anjos sem Deus nunca agem

quem vai desamarrar meus santos nós,

Que estão prendendo essas tristes metades

e me tolhendo as mais santas vontades?

37

226

Page 227: Ilusão

Só sei da vida o que Deus me faculta

adivinhar perante as minhas faltas,

Que são mais fundas nessa língua culta

que não alcança as emoções mais altas.

Só sei dizer que um sentimento avulta

e avilta a língua dos bons argonautas,

Que bem cantaram suas aventuras

trazendo às nossas vidas desventuras.

38

Quero escrever alguma coisa séria

que possa dar sentido à minha vida,

Que hoje é tida por triste miséria

e a cada dia fica mais sofrida.

Eu quero um canto que seja uma artéria

a irrigar com sangue a nossa lida,

Pois Deus faculta a mim essa atitude

e seu amor perfeito nunca ilude.

39

227

Page 228: Ilusão

Quero falar com Deus diretmente,

dizendo claramente o que mal penso...

Quero falar de Deus a toda a gente

sem afrontar o siso e o bom senso.

Não sei por quê toda essa gente mente

dizendo que o que digo é muito denso,

Não sei por quê tamanha insensatez

se isso que digo foi Deus que me fez.

40

A solidão me come e me vomita

da sua pança cheia de ilusões,

Renasço pronto para a minha grita

mas todo lambuzado de emoções.

A minha vida fica mais bonita

e posso até curtir as afeições

Que surgem no caminho desse dia

e vão-se embora pela noite fria.

41

228

Page 229: Ilusão

Recheio assim essa imensa lingüiça

com pensamentos vagos e vazios,

Deixando claro que não há preguiça

que possa esvaziar os nossos rios.

Como já disse essa é uma dura liça,

como transpor os mares em navios

Que foram construídos muito antes

de sermos deles fracos navegantes.

42

Quero dizer que ainda não vivi

o que Jesus viveu em menos anos,

E assim não posso retratar aqui

tão fielmente seus divinos planos.

Por isso o santo vinho eu não bebi

e corro o risco de muitos enganos,

Como acontece enfim a toda a gente

que aqui se espreme no tempo presente.

43

229

Page 230: Ilusão

Sou um poeta sem muita humildade

porque nasci nessas Minas Gerais,

E vivo toda a vida na cidade

não tendo comunhão com os animais.

Não sei que significa liberdade,

prisão de ventre ou outros males mais,

Sou só mais um menino maluquinho

que aguarda tonto seu primeiro vinho.

44

A minha própria estima muito erra,

e erra tanto que me deixa tonto...

Às vezes faz-me desdizer a Terra,

dizendo vírgula quando é um ponto

E vendo nisso o motivo da guerra,

que é muito mais que aquilo que lhe conto

Nesses versisnhos feitos decapodos,

que são correntes porque têm bons modos.

45

230

Page 231: Ilusão

Eu sou escravo da soberba altiva

com que me presenteia o soberano

E preso fico nessa voz passiva,

como se fosse esse um belo plano

Para evitar morrer de morte ativa,

e ser tornado o mais lindo tuano

Que já desceu aos infernos da Terra,

só pra não ser um soldado na guerra.

46

A chuva cai e me apavora o gato

que quis ficar comigo e com seu medo,

Ficando quieto e sem seu desacato

cercando o lugar de onde não me arredo.

Olhando isso fico estupefato

com o que está tão perto e não vi mais cedo,

As coisas serem como sempre foram,

mudas aos que com elas se enamoram.

47

231

Page 232: Ilusão

Passada a chuva o gato está mais manso,

mais moderado nos seus arrepios...

Mas eu me espanto tanto que até danço

a valsa falsa dos mais arredios.

Não valso mais porque logo me canso

e o violoncelo mexe com meus brios,

Porque não sei tanger esse instrumento

e a melodia dói como um lamento.

48

Gosto da música que a vida dá,

tenho os ouvidos prontos pro que canta...

E o corpo treme do lado de cá

sentindo a voz que há na minha garganta.

O gato, a chuva, a música, o que há

é ter uma ilusão da vida santa,

Quando o que ocorre é que não modifico

o que já me transborda do penico.

49

232

Page 233: Ilusão

Desperto agora de um sono profundo

em que sonhei com a morte e seu azar,

Não sinto ajuda vinda desse mundo

e estou perdido em tenebroso mar.

Não devo ficar de novo iracundo

pois tenho vida ainda pra sonhar,

A vida ainda não me deu seu fruto

e o fim da morte deve ser bem bruto.

50

Se recebo ajuda espiritual

devo ser grato e lutar pra viver,

Não entregar meu corpo a tanto mal

e dar ao Mal assim maior poder.

Não devo achar que tudo é casual

e preencher a vida com prazer,

Mas lutar com bravura e mais coragem

pelas pessoas que ao mal não reagem.

51

233

Page 234: Ilusão

Acho que disse tudo o que queria

e o fiz usando os versos que escolhi,

Podendo agora esperar pelo dia

em que bem deverei morrer por aqui.

Termino então essa prosa vazia

ainda sem saber a quem venci,

Se à ilusão que domina essa vida

ou à realidade ainda perdida.

52

Tão pouco eu sei do que o Senhor nos disse

para dizer o que penso que sei,

Que é assim como se o Senhor não visse

que eu não consigo viver pela Lei.

É como se o Senhor não me pedisse

para abrir mão do sonho de ser Rei,

Pra perdoar toda a mágoa sofrida

e compreender o que é essa nossa vida.

53

234

Page 235: Ilusão

Depois de meses recomeço aqui,

pensando um livro grosso de verdade...

Que ensine a vida que jamais vivi,

que entorne a vida que já não me invade.

Não é bem isso tudo o que escrevi

usando tão ingênua liberdade,

porque me falta ainda ser um homem

cujas pequenas faltas não lhe somem.

54

Portanto escrevo o que não sei dizer,

por ter vivido tão erradamente...

Dizendo ser o que não sei querer,

a falta toda que transfuga a gente.

Por pouco siso, em busca de um prazer

atrapalhado em ser inconsistente,

Querendo sabe lá o que Deus quer

a um homem que não vive sem mulher.

55

235

Page 236: Ilusão

A linha rosa na camisa dela

me faz lembrar o quanto sou feliz...

Me faz lembrar dos tempos de janela,

me faz lembrar o quanto não me quis

Essa beleza dela que me vela,

esse botão de rosa que eu não fiz

Desabrochar no seu belo jardim,

porque sorriu mas não sorriu pra mim.

56

Rubra é a cor daquele fio rosa

que quando flor era só algodão,

A vicejar nos campos dessa prosa

em que há ciúmes do meu próprio irmão.

Porque eu me vejo em paixão horrorosa

ensimesmado do meu próprio pão,

Ensimesmado dessa companhia

que regurgita essa vida tão fria.

57

236

Page 237: Ilusão

Rubra é a cor daquele fio fino,

rubra a color daquele sangue humano...

Jogado aos pés desse grande menino

que vê tecida a sua vida em pano.

A rosa em seu botão tece seu hino

e veste a fantasia em que eu me engano,

Engalanando a vida que há em mim,

fazendo crer que é natural cetim.

58

Eu agradeço, Pai, porque me ouvistes

e clareastes teu segredo em mim...

Porque meus dias já não são tão tristes

e até me alegro em ser algum cetim.

A descobrir o amor, que tanto insistes

cultivar em nós, tão perto do fim

Da nossa raça, toda perdoada

das faltas tantas, de tanta embrulhada.

59

237

Page 238: Ilusão

E agora que isso sei da minha vida

que posso fazer senão me obrigar

A vivê-la sem perdê-la, bandida,

sem brandir suas armas contra o lar?

Que destruído é uma viva ferida

que me ensangüenta o coração de amar,

Ferida aberta a derramar o amor

que esse poema não pode compor.

60

Me falta muito para ser feliz

e poder ser o que sonhei pra mim,

Me falta aprender a ser aprendiz

da vida rude que me quis assim.

Ensimesmado do que eu nunca fiz

por ter nascido um triste bacurim,

Não quero ser mais um triste defunto

mas céus galgar sendo mais um assunto.

61

238

Page 239: Ilusão

É assim mesmo que eu me vejo aqui

enrodilhado nas teias do mundo,

Preso ao que há sem ter a dor em si

pois anestesiado em coma profundo.

Do qual só saio como um jabuti

que ousou ferir o mundo firme e fundo,

Que ousou dizer que era por causa dela

a sua dor cansada mas tão bela.

62

Esse tecido de onde sai o fio,

a filharada e tudo o que sou eu,

É o intestino que pára vazio

da bosta toda que já me comeu.

Por isso no calor não sinto frio,

graças à bênção do meu asmodeu,

Graças ao santo que não vive em mim

e faz que viva Eu num curumim.

63

239

Page 240: Ilusão

Seu nome é Túlio, o elemento xis,

que na tabela é só sessenta e nove...

O curumim que em vós tem tanto anis,

e anistiado não queirais que aprove

Esses versinhos, que são jabutis

na primavera que me arrasta, e move

Os sentimentos de um pai pelo filho,

que não são nada apenas empecilho.

64

É o meu trabalho descrever aqui

de modo raso essa profundidade,

Que está na toda letra que já li

e é desafio pra qualquer idade.

É uma saudade do que eu não vivi

porque não me molhei na tempestade,

Em que apanhado foi meu filho amado

e que não sei se sabe ser amado.

65

240

Page 241: Ilusão

Não tenho nada pra vazar agora

e é bem vazio que me sinto triste,

Mas isso é bom porque não vou embora

para um lugar qualquer que nem existe.

O que vos digo aqui não se decora

e essa maldade não se vos resiste,

Só vós sois Deus em minha confusão

e é em vós que tenho a vossa salvação.

66

Porque abundou em nós nosso pecado,

que não é vosso mas nossa irrisão...

Tendo abundado por nós vossa graça,

que não é nossa mas vosso perdão.

Porque sem vós eu me sinto exilado

fora do mundo, no meio da praça,

Sem ser senão mais um pobre coitado

a deitar suas lágrimas em vão.

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241

Page 242: Ilusão

Agora digo estar só nesse mundo

que me apedreja por não ser velhaco,

Embora tolo, orgulhoso, iracundo,

e quanto mais me couber nesse saco.

Por conta disso não me sinto imundo,

por conta disso não me sinto um caco,

Só sinto vossa presença ao meu lado

já me salvando de mais um pecado.

68

Agora, sem nenhuma falsidade,

o que é que venho vos trazer aqui?

O que é que posso dizer sem maldade,

o que é que prova que eu não me perdi?

A confiança que tendes em mim,

a confiança em tanta liberdade?

A sorte tida porque não caí

nem no princípio nem aqui no fim?

69

242

Page 243: Ilusão

A sorte fala em meu favor e assim

posso falar em meu favor também,

O que me importa é verdadeiro sim

porque a mentira não salva ninguém.

Tudo o que tenho de verdade em mim

só vem de vós e muito me convém,

A poesia que derramo aqui

por vós é dada pelo que sofri.

70

Fica provado então que escrevo bem

o que o Senhor ditais no sofrimento,

E o que ditais a mim nesse lamento

é que salvais em mim também aqui.

Sei que o terreno aqui é lamacento

especialmente para quem só ri,

Dessa desgraça que só eu sofri

na busca de querer amar alguém.

71

243

Page 244: Ilusão

Eu quero concluir esse trabalho,

eu creio que essa vida tem valor...

Ninguém vai me dizer se eu mesmo valho

só porque pude vir aqui compor.

Eu sei que valho como um espantalho

afugentando os pássaros da dor,

Mas sei melhor que tudo quanto sinto

não se resume a ter um cu no pinto.

72

Palavreado chulo às vezes rola,

só dependendo mesmo do ambiente...

Porque quem quer não ler não me dá bola,

como se eu fosse assim algum demente.

Se eu fosse um descendente quilombola

me mostraria a todos como gente,

Urrando os versos todos com mais força

para que o negro rito não se torça.

73

244

Page 245: Ilusão

Desfio esse poema pra mim mesmo

pois ninguém há que ouça o grito rouco,

Que veja os grãos lançados fora, a esmo,

que sinta o mesmo que esse pobre louco.

Ninguém portanto sinta em seu tenesmo

saber da vida algo, muito ou pouco,

saber de si alguma coisa boa,

porque isso é falto pra qualquer pessoa.

74

Então é triste a verdade falada

e propalada assim aos quatro ventos,

Pois deixa a nu a nossa mentirada

que faz de sete mais de setecentos.

Revela a todos nossa calma irada

e expõe a face de tão maus rebentos,

Deixando às cegas quem quer ser piloto

na espaçonave desse céu imoto.

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245

Page 246: Ilusão

Mas não é triste se eu falo a verdade,

se bem traduzo o amor que sinto em mim...

Porque a verdade pura persuade

e a confissão aproxima do fim,

A dor da morte que não teme a idade

da mocidade morta em mau festim,

Deixando às claras quem quer navegar

na espaçonave que o céu vai singrar.

76

Se eu não sei nada então como é que escrevo,

se quem escreve escreve só por vós?

Se não há nada aqui, por quê me atrevo

a vir puxando a linha do retrós?

Terei sacado o meu amor primevo

e confundido tudo em minha voz?

Terei mordido o lábio e quis cuspir

o sangue nesse canto e resistir?

77

246

Page 247: Ilusão

Já faz um ano que me sento aqui

para escrever o grão poema inteiro...

Será que tudo quanto persegui

era ilusão do meu amor primeiro?

Sinto que foi um ano o que vivi

em cada verso, sempre derradeiro,

Foi um projeto o que me emocionou

e conheci mais vida nesse vôo.

78

Se embolo tudo nesse termo exato,

se faço nada e tudo é ilusão,

Não há quem possa me pagar o pato

de estar vivendo só de solidão.

Se é por um nada que me sinto grato

e nada vale nesse mundo cão,

Então como é que ainda estou aqui

ludibriando a quem não conheci?

79

247

Page 248: Ilusão

Sinto que escorro o suor como tinta

e pinto o quadro que é a minha vida,

Que pinto como ninguém mais me pinta,

pintando uma aquarela colorida.

Sinto não sentir, com quem mais se sinta

bandido ser nessa vida sentida

De tanto amor, rancor e o quanto há

de sentimento tinto aqui e lá.

80

Lá longe vão-se embora as ilusões

por que perdi a vida verdadeira,

A parte que perdi eram canções

que costuravam minha vida inteira

E a parte em que perdi os meus culhões

não era a parte minha sementeira,

Mas parte o coração do trovador

doer em si a dor com tanto amor.

81

248

Page 249: Ilusão

Não sinto mais vontade de chorar

as lágrimas perdidas no caminho,

Não mais sinto alegria nem pesar

por ter perdido em lágrimas o ninho,

Em que sonhei poer um novo lar

em que coubesse um pouco de carinho,

Um pouco de alegria de verdade

e a busca honesta da felicidade.

82

Por isso encerro aqui esse poema

que canta alto tudo o que pensei,

Que canta solto tudo o que se esprema

da fruta doce que é bendita lei.

Vou terminar e que essa mão não trema,

não tema a morte que experimentei,

Mas seja calma, forte e corajosa

para enfrentar a fúria dessa prosa.

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249

Page 250: Ilusão

É terminando que posso afinal

dar arremate a tanta má costura,

Porque eu me enfrento a mim no mesmo mal

que me corrói a vida inteira e dura.

E é com repentes que entro no canal

de comunicação da gente pura,

Que ainda habita essa Terra enlutada

por uma morte tão dura e jurada.

84

Podia terminar aqui mas há

questões que querem ser correspondidas,

Por essa prosa que não vingará

o sangue derramado em tantas vidas.

Na violência que há aqui e lá,

nas pequenezas tolas destruídas,

E nas questões em que se pensa grande

o ínfimo ser que nelas não se expande.

85

250

Page 251: Ilusão

É uma linguagem dita alexandrina

em que me esvaio todo de ilusões,

Essa linguagem tola e tão menina

que expressa aqui as minhas emoções.

Não quer dizer que seja a minha sina

desiludir-me vendo os meus porões,

Bombardeados pela língua culta

mantendo a alma ainda um tanto estulta.

86

Mas é assim que sigo esse poema

que no final apenas se inicia,

Desavisado desse meu dilema

e destroçado pela vã porfia.

Em que se mete pelo diadema

que nos promete a santa porcaria,

Que se esvazia em prevaricação

mesmo não tendo nenhum coração.

87

251

Page 252: Ilusão

Assim reduzo a marcha da canção

que longe veio desde que partiu,

Dizendo nada novo desde então

e prometendo mais do que cumpriu.

Alguém me guarda no covo da mão

e foi por ele que a mãe me pariu,

Para poder estar aqui convosco

me burilando num poema tosco.

88

Alguma coisa nova vou dizer

que se traduza em qualquer pensamento,

Alguma coisa que vos dê prazer

ao ver concluso esse entretenimento.

Não há mais nada para se fazer

senão rezar a vós nesse momento,

Que me proteja de não ser linchado

como mereço nesse santo fado.

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252

Page 253: Ilusão

Espero a morte e que venha depressa

buscar meu corpo já tão aviltado,

Por tanta fúria e que ninguém me impeça

de ser no fim um biltre derrotado.

Um moço leso que creu na promessa

de transcender já salvo o seu estado,

Esperançoso de vos encontrar

num bom regaço e livre para amar.

90

A vida em si é o nosso compromisso

e desdenhá-la não nos leva a nada,

Devemos tê-la vivido com viço

e tê-la visto bonita na estrada.

Ninguém no mundo pode amar sem isso

porque por isso a vida é uma jornada,

Em que se aprende de alguma maneira

que não é bom viver de brincadeira.

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253

Page 254: Ilusão

Estou bem perto agora de acabar

longe do fim que imaginei pra mim,

Estou vazio e isso não vai mudar

porque já sei o que verei no fim.

Meio agarrada a esse meu azar,

a minha cama em lençol de cetim

Traz meus princípios de volta à razão,

e eu me levanto mal do coração.

92

É triste aqui sozinho no meu quarto

e eu me escrevendo em vez de estar vivendo,

Porque essa luz me veio no meu parto

quando nasceu-me a luz de ser horrendo.

Finjo ser bom e estou bastante farto

de não saber e ver acontecendo,

O que previ com tamanha amargura,

que a alma vai-se embora e cai madura.

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254

Page 255: Ilusão

Exilado no quinto canto estou,

e recomeço a vida bem daqui...

Para humilhar ainda mais quem sou,

vida finada em fim que não pedi.

Driblando a morte e já marcando um gol

abençoando a vida que pari,

Com tanto amor para chegar ao mundo

e me mostrar no fundo tão profundo.

94

Espero ser bem mais do que serei,

quando exumado o corpo dessa Terra

For dessa vida pranto e toda a lei

de que preciso pra findar-se a guerra.

Espero estar mais vivo e vencerei

as maldições de quem sempre me erra,

Mirando em mim o seu humor azedo

e errando sempre porque atira cedo.

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255

Page 256: Ilusão

Quem não quiser entender que não leia

o que escrevi com toda a honestidade,

Que não se sente à mesa nessa ceia

porque esse corpo é carne de verdade.

Porque esses fios são da minha teia

e emaranhados vão pela cidade,

Grudando em tudo o que se usou dizer

dessa ilusão vazia de poder.

96

O que não posso o tempo poderá

com sua manha, astúcia e covardia...

Sinos repicarão e isso fará

que enfim se veja toda a porcaria.

Que é ter à mão apenas uma pá

pra joeirar malícia e fantasia,

Que é ter nas mãos um fio da verdade

e se enrolar sozinho e sem vontade.

97

256

Page 257: Ilusão

Termino então esse meu canto amaro

com uma cantiga que aprendi bem cedo,

Todo o cinismo que nos foi tão caro

não fere tanto quanto fere o medo.

Mas é o mal que eu mesmo me preparo

que atinge a minha alma assim que excedo,

As raias do bom senso e viro um rato

que rói o próprio rabo ao ser exato.

98

Não imagino o que virá adiante,

como não sei como termina o canto...

Não vejo mal, conquanto eu não me encante,

nem bom lugar para esconder meu pranto.

Só sei da vida ser seu novo amante

mas não marido que não chego a tanto,

Pois sei bem quão irrazoável sou

e à vida minto porque não me amou.

257