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ILUSTRISIMOS SENHORES Card. Albino Luciani JOAO PAOLO I A Charles Dickens 1 1. O “epistolário” iniciou-se com o número de maio de 1971. ESTAMOS NAS ÚLTIMAS... Meu caro Dickens, eu sou um bispo que assumiu o estranho compromisso de escrever todos os meses, 1 para o Mensageiro de Sto. Antônio, uma carta a um ilustre personagem qualquer. Dispondo pouco tempo, às vésperas do Natal, não sabia a quem escolher. E eis que encontro, num jornal, o “reclamo” dos seus cinco famosos “livros natalícios”. Logo disse comigo mesmo: eu os li quando garoto, gostei imensamente, porque todos estavam repletos de um sentimento de amor pelos pobres e de regeneração social, todos transpiravam fantasia e humanismo. A ele escreverei. E aqui estou para incomodá-lo. *** Lembrei há pouco o seu amor pelos pobres. Você o sentiu e manifestou magnificamente, por ter vivido entre os pobres quando criança. Aos dez anos, com o pai na cadeia por causa de dívidas, você, para ajudar à mãe e aos irmãozinhos, foi trabalhar numa fábrica de vernizes. Desde a manhã até à noite, as suas mãozinhas encaixotavam latas de tintas para sapatos, debaixo do olhar de um patrão impiedoso; de noite, dormia num sótão; aos domingos, para fazer companhia a seu pai, você os passava com toda a família na prisão, onde os seus olhos de criança se abriam espantados, comovidos e atentíssimos, para dezenas e dezenas de casos lastimosos. 1 CHARLES DICKENS, escritor inglês (1812-1870). Uma infância sofrida (o pai esteve preso por causa de dividas e ele começou a trabalhar com 12 anos numa fábrica) inspirou-lhe as suas obras mais conhecidas (Oliver Twist, David Copperfield), marcadas todavia por uma inconfundível veia humorística (O Círculo Pickwick). O eficiente realismo de Dickens, cheio de calor humano, teve conseqüências até no plano social (a reforma da legislação inglesa sobre a infância). Ilustríssimos Senhores - 1

Ilustríssimos Senhores Cartas Do Patriarca de Veneza - Joao Paolo I

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ILUSTRISIMOS SENHORES

Card. Albino Luciani

JOAO PAOLO I

SEQ CHAPTER \h \r 1A Charles Dickens

1. O epistolrio iniciou-se com o nmero de maio de 1971.

ESTAMOS NAS LTIMAS...Meu caro Dickens,

eu sou um bispo que assumiu o estranho compromisso de escrever todos os meses, 1 para o Mensageiro de Sto. Antnio, uma carta a um ilustre personagem qualquer.

Dispondo pouco tempo, s vsperas do Natal, no sabia a quem escolher. E eis que encontro, num jornal, o reclamo dos seus cinco famosos livros natalcios. Logo disse comigo mesmo: eu os li quando garoto, gostei imensamente, porque todos estavam repletos de um sentimento de amor pelos pobres e de regenerao social, todos transpiravam fantasia e humanismo. A ele escreverei. E aqui estou para incomod-lo.

***

Lembrei h pouco o seu amor pelos pobres. Voc o sentiu e manifestou magnificamente, por ter vivido entre os pobres quando criana.

Aos dez anos, com o pai na cadeia por causa de dvidas, voc, para ajudar me e aos irmozinhos, foi trabalhar numa fbrica de vernizes. Desde a manh at noite, as suas mozinhas encaixotavam latas de tintas para sapatos, debaixo do olhar de um patro impiedoso; de noite, dormia num sto; aos domingos, para fazer companhia a seu pai, voc os passava com toda a famlia na priso, onde os seus olhos de criana se abriam espantados, comovidos e atentssimos, para dezenas e dezenas de casos lastimosos.

Por isso, todos os seus romances esto cheios de gente pobre, que vive numa misria impressionante; mulheres e crianas, at com menos de seis anos, amontoados em fbricas ou lojas, indiscriminadamente; no h sindicatos que os defendam, nenhuma proteo contra doenas e acidentes; salrios de fome; trabalho prolongado at 15 horas por dia, que, com desoladora monotonia, prende fraglimas criaturas mquina potente e fragorosa, ao ambiente fsica e moralmente malso e, muitas vezes, as obriga a procurar alienar-se no lcool, ou tentar uma fuga mediante a prostituio.

So estes os oprimidos: sobre eles se inclina toda a sua simpatia. Defrontando-se com eles, esto os opressores, que voc estigmatizou com sua pena movida pelo gnio da clera e da ironia, capazes de esculpir como que no bronze figuras de mascarados.

Uma destas figuras o usurrio Scrooge, protagonista do seu Canto de Natal em prosa.

Dois senhores entrando por acaso no escritrio dele, de papel e caneta na mo o interpelam: dia de Natal, senhor milhares de pessoas carecem do necessrio! Resposta de Scrooge: E no existem prises? e os asilos de mendigos deixaram de funcionar? Existem, funcionam, mas bem pouco podem fazer para alegrar corpos e espritos por ocasio do Natal. Ns pensamos em fazer uma coleta, para oferecer aos pobres comida, bebida, combustvel. Ser que podemos inscrever o seu nome? Absolutamente! Quero que me deixem em paz. Eu no fao festa de Natal e tambm no me permito o luxo de o fazer festejar por vagabundos. Pagando o imposto sobre os pobres, dou a minha ajuda s prises, aos institutos de mendicidade; quem estiver na misria pode dirigir-se a eles. Muitos no podem ir para l e muitos prefeririam antes morrer. Se preferem morrer, melhor que o faam logo para diminuir o excesso da populao. E depois, desculpem-me, estas coisas no me interessam.

Assim descreveu voc o usurrio Scrooge: preocupado s com dinheiro e negcios. Mas, quando ele fala de negcios com o espectro da sua alma gmea, o defunto scio de usuras Marley, este se queixa doridamente: Negcios! Ser mais humano deveria ter sido o meu negcio. O bem-estar geral devia ter sido o meu negcio: caridade, clemncia, e benevolncia, tudo isso devia ter sido o meu negcio. Por que andei no meio da multido dos meus semelhantes de olhos fitos na terra, sem nunca os levantar para aquela bendita estrela que conduziu os magos a uma choupana? No havia ento outras casas pobres s quais sua luz poderia ter-me guiado?

***

Desde quando voc escreveu estas coisas (1843), j se passaram mais de cento e trinta anos. Talvez voc estivesse curioso por saber se e como se remediaram as situaes de misria e injustia que voc denunciou.

J lhe digo. Na sua Inglaterra e na Europa industrializada, os operrios melhoraram, e muito, sua posio. A nica fora de que podiam dispor era o nmero. Valorizaram-na.

Os antigos oradores socialistas disseram: O camelo passava atravs do deserto; suas patas pisavam os grozinhos de areia e ele, orgulhoso e triunfante, dizia: 'Eu vos esmago, vos esmago!'

Os grozinhos deixaram-se esmagar, mas levantou-se o vento, o terrvel simum. Vamos, grozinhos disse unam-se a mim bem juntinhos, juntos flagelaremos o bicharoco e o enterraremos debaixo de montanhas de areia!

Os operrios, de grozinhos dispersos e divididos que eram, tornaram-se uma nuvem unida, nos sindicatos e nos diversos socialismos, com o grande e inegvel merecimento de terem sido, quase em toda a parte, a causa principal da promoo efetuada em prol dos trabalhadores.

Estes, desde o seu tempo para c, realizaram progressos e conquistas no plano da economia, da segurana social e da cultura. E hoje, atravs dos sindicatos, conseguem muitas vezes ser ouvidos tambm l encima, nas altas esferas do Estado, onde na realidade se decide o seu destino. Tudo isso, a preo de gravssimos sacrifcios, superando oposies e obstculos.

De fato, a unio dos trabalhadores em defesa dos prprios direitos primeiro foi declarada ilegal; depois, foi tolerada; em seguida, reconhecida juridicamente. A principio, o Estado foi um Estado policial, declarou o contrato de trabalho assunto totalmente privado, proibiu os contratos coletivos; o patro segurava a faca pelo cabo; a livre concorrncia imperava sem freios. Dois patres correm atrs de um operrio? o salrio do operrio cresce. Dois operrios solicitam um patro? o salrio baixa. Esta a lei, dizia-se, e sua vigncia conduz ao equilbrio das foras! Muito pelo contrrio, levava aos abusos de um capitalismo que foi, e em certos casos ainda , um sistema nefasto.

***

E agora? Pois ! No seu tempo, as injustias sociais tinham mo nica: dos operrios, que precisavam apontar o dedo contra os patres. Hoje, quem aponta o dedo um monto de gente: os trabalhadores dos campos, que se queixam de estar em muito pior situao que os da indstria; aqui na Itlia, o Sul contra o Norte; na frica, na sia, na Amrica Latina, as naes do Terceiro Mundo contra as naes bem acomodadas.

Mas tambm nestas ltimas naes, h numerosas zonas de misria e de insegurana. Muitos operrios esto desempregados ou inseguros no emprego; nem em toda a parte so suficientemente protegidos contra os acidentes, muitas vezes sentem que so tratados quais meros instrumentos da produo e no como seus protagonistas.

Muito mais do que a corrida frentica ao bem-estar, o uso excessivo e tresloucado dos bens no necessrios comprometeu os bens indispensveis: o ar, a gua pura, o silncio e a paz interior, o repouso.

Julgava-se que os poos de petrleo eram como o poo de So Patrcio: sem fundo; improvisadamente, percebe-se que estamos chegando quase ao fim. Pensava-se que, esgotado o petrleo em eras remotas, poder-se-ia contar com a energia nuclear, mas nos vm dizer que, na produo desta, existe o perigo de resduos radioativos prejudiciais para o homem e seu ambiente.

Grandes so o medo e a preocupao. Para muitos, o bicharoco do deserto a ser agredido e sepultado no s o capitalismo, mas tambm o sistema atual, que deve ser abatido por uma revoluo que tudo vire pelo avesso. Para outros, a reviravolta j est acontecendo.

O pobre Terceiro Mundo de hoje dizem ser rico muito em breve, graas aos poos de petrleo que ele desfrutar s para si; o mundo do bem-estar consumista, recebendo petrleo s a conta-gotas, ter que reduzir suas indstrias, seus gastos e submeter-se a uma recesso.

No meio de todos estes problemas, dessas preocupaes e tenses, caro Dickens, ainda valem ampliados e adaptados os seus princpios acalentadores, embora um tanto sentimentalistas. Amor pelo pobre, e no tanto o pobre como indivduo, quanto os pobres que, rejeitados quer como indivduos, quer como povos, se uniram em classe e se solidarizaram entre si. Para eles, sem dvida, a exemplo de Cristo, deve voltar-se a preferncia sincera e aberta dos cristos.

Solidariedade: somos um nico barco cheio de povos que, agora, se aproxima no espao e nos costumes, porm num mar muito agitado. Se no quisermos ir ao encontro de graves situaes, a regra esta: todos por um e um por todos; insistir naquilo que une, e deixar perder-se o que divide.

Confiana em Deus: pela boca do Sr. Marley, voc fazia votos de que a estrela dos Magos iluminasse as casas pobres.

Hoje, casa pobre o mundo inteiro, que precisa tanto de Deus!

Fevereiro, 1974

A Mark Twain

TRS JOOS NUM SPrezado Mark Twain,

voc foi um dos autores preferidos da minha adolescncia.

Ainda me lembro das divertidas Aventuras de Tom Sawyer, que so as suas prprias aventuras de infncia, prezado Twain. J devo ter contado centenas de vezes as suas piadas, por exemplo aquela do valor dos livros. um valor inestimvel respondeu voc a uma menina que o tinha interrogado mas variado. Um livro encadernado em couro excelente para afiar a navalha; um livro pequeno, conciso, como sabem escrever os franceses, serve maravilhosamente para calar a perna mais curta da mesa; um livro grosso que nem um dicionrio timo projtil para atirar nos gatos; e, finalmente, um atlas, com pginas grandes, tem o papel mais adequado para colar vidros.

Os meus alunos se excitavam quando eu anunciava: agora vou contar uma outra de Mark Twain. Mas receio que os meus diocesanos fiquem escandalizados: Um bispo a citar Mark Twain! Talvez seja preciso explicar-lhes antes que, assim como h livros e livros, tambm h bispos e bispos. Alguns, de fato, se parecem com as guias que voam alto com documentos magistrais de alto nvel; outros so canrios, que cantam os louvores do Senhor de maneira maravilhosa; outros, pelo contrrio, so pobres tico-ticos que, nos ramos inferiores da rvore eclesial, mal sabem piar tentando exprimir algum pensamento sobre temas vastssimos.

Eu, prezado Twain, perteno ltima categoria. Por isso, crio coragem e conto o que voc observou certa vez: O homem mais complicado do que parece: cada homem adulto encerra em si no um, mas trs homens diferentes. Mas como isto? perguntaram-lhe. E voc: Tomem um Joo qualquer. Nele existe o Joo Primeiro, isto , o homem que ele pensa que ; existe o Joo Segundo, aquele que os outros pensam que ele ; e finalmente o Joo Terceiro, o que ele na realidade.

***

Quanta verdade, Twain, na sua brincadeira! Eis, por exemplo, o Joo Primeiro. Quando nos trazem a fotografia do grupo em que posamos, qual o rostinho simptico, atraente, que vamos logo procurar? Pena diz-lo, mas o nosso. Porque ns nos queremos um bem ilimitado e nos preferimos aos outros. Querendo-nos to bem, sucede que somos levados a engrandecer os nossos mritos, e atenuar as nossas culpas, e a usar para com o prximo pesos e medidas diferentes do que para conosco. Mritos exagerados? Descreve-os o seu colega Trilussa:

O caracol da Vanglria

Que se arrastara sobre um obelisco,

Olhou a baba e disse: compreendi

Que vou deixar um rastro para a histria.

Eis como somos, meu caro Twain, at mesmo um pouco de baba, se nossa e porque nossa, nos faz inchar e nos sobe cabea.

Defeitos atenuados? Eu tomo um trago, l uma vez que outra diz aquele. Os outros afianam, pelo contrrio, que ele como uma esponja, uma garganta sempre seca, um autntico devoto de Santa Bibiana, de cotovelo sempre erguido. Diz aquela outra: Eu sou um tanto nervosa, s vezes fico emocionada. Ora, muito obrigado que emoo! O povo afirma que carrancuda, nervosa e vingativa, um carter insuportvel, uma Harpia.

Em Homero, os deuses andam pelo mundo envoltos numa nuvem, que os esconde aos olhares de todos; ns temos uma nuvem que nos esconde aos nossos olhos.

Francisco de Sales, bispo como eu e humorista como voc, escrevia: Ns acusamos o prximo de coisas leves, e desculpamos em ns mesmos coisas graves. Queremos vender a preo altssimo, mas compramos muito barato. Queremos que se faa justia em casa dos outros, que se use de misericrdia em nossa casa. Queremos que sejam bem interpretadas as nossas palavras e nos escandalizamos com as alheias. Se algum dos nossos inferiores no tem boas maneiras para conosco, levamos a mal tudo o que fizer; pelo contrrio, se algum nos simptico, desculpamo-lhe tudo o que fizer. Os nossos direitos so reivindicados com rigor, mas queremos que os outros sejam discretos na reivindicao dos seus... O que fazemos pelos outros sempre nos parece muito, o que os outros fazem por ns, parece-nos ser nada.

***

Quanto ao Joo Primeiro, acho que basta. Vamos ao Joo Segundo. Aqui, prezado Twain, parece-me que os casos so dois: Joo deseja que os outros o estimem, ou ento se aflige porque os demais o ignoram e desprezam. Nada h de mal nisto; basta que procure no exagerar nem num sentido nem no outro. Ai de vs disse o Senhor que desejais os primeiros lugares nas sinagogas e os cumprimentos nas praas...; que fazeis todas as vossas obras para serem notadas. Hoje diramos: que realizais a escalada s posies e ttulos na base dos cotovelos, das concesses, das abdicaes, que morreis de vontade de aparecer nos jornais.

Mas, por que ai de vs? Quando, em 1938, Hitler passou por Florena, a cidade cobriu-se de cruzes gamadas e de inscries encomisticas. Bargellini disse a Dalla Costa: Est vendo, Eminncia, est vendo? No tenha medo, respondeu o Cardeal, a sorte j est lanada no Salmo 37: Eu vi o inquo vangloriar-se e dilatar-se como rvore frondosa. Passei outra vez e no mais existia; procurei-o e no o encontrei mais.

As vezes, o ai no significa um castigo divino, mas s o ridculo humano. Pode acontecer como ao burrinho que se cobriu com a pele de um leo e todos diziam: Que leo! Homens e animais fugiam. Mas soprou o vento, a pele se levantou e todos viram o burro. E ento, furiosos acorreram e descarregaram no animal merecidas bordoadas.

Tambm Shaw dizia: Como cmica a verdade!, isto , d vontade de rir quando sabemos quo pouca coisa se esconde por baixo de certos ttulos e celebridades!

E se acontece o contrrio? Se os outros pensam mal, onde est o bem? Neste passo, acode-nos outra palavra de Cristo: Veio Joo, que no comia nem bebia, e disseram: est endemoninhado. Veio o Filho do Homem, que come e bebe. e dizem: eis um comilo e um beberro, amigo de publicanos e pecadores. Nem sequer Cristo conseguiu satisfazer a todos. No liguemos muito, se nem ns o conseguirmos.

***

Joo Terceiro era cozinheiro. No voc quem conta isto, Twain, mas Tolstoy. Na soleira da cozinha, estavam deitados os cachorros. Joo matou um vitelo e jogou as vsceras no ptio. Os cachorros pegaram-nas, comeram-nas e disseram: bom cozinheiro, como cozinha bem! Pouco depois, Joo debulhava ervilhas, descascava cebolas: jogava as cascas ao ptio. Os cachorros precipitaram-se sobre elas, mas, virando o focinho para outro lado, disseram: O cozinheiro j no presta, no serve mais para nada. Joo, porm, no se comoveu por causa deste alvitre e disse: Quem deve comer e apreciar a minha comida o patro, no os ces. A mim, basta-me ser estimado pelo patro.

Bravo tambm a voc, Tolstoy. Mas eu me pergunto: Do que que o Senhor gosta? Que coisa lhe agrada em ns? Um dia, enquanto Ele ensinava, algum lhe disse: Tua me e teus irmos esto l fora e querem falar contigo. Ele estendeu a mo em direo dos discpulos e respondeu: Eis aqui a minha me e os meus irmos. De fato, todo aquele que fizer a vontade do meu Pai que est no cu, este meu irmo, irm e minha me.

Eis a quem lhe agrada: quem faz a sua vontade. Gosta de que se reze, mas no gosta de que as oraes se tornem pretexto para fugir fadiga das boas obras. Por que me chamam Senhor, Senhor e no fazem o que lhes digo? Fazer o que ele diz!

A concluso pode ser moralizadora. Voc humorista no teria concludo assim. Mas assim preciso concluir eu, que sou bispo e recomendo aos meus fiis: Se tiverem ocasio de pensar nos trs Joos, ou trs Tiagos, ou trs Franciscos que h em cada um de ns, tomem mais, especialmente o terceiro: aquele que agrada a Deus.

Maio 1971

A Gilbert K. Chesterton

EM QUE ESPCIE DE MUNDO...Prezado Chesterton,

nos meses passados, apareceu no vdeo da televiso italiana o Padre Brown, imprevisvel padre-policial, criatura tipicamente sua. Pena que no aparecessem tambm o professor Lucfero e o monge Miguel. Eu os teria visto com prazer, como voc os descreveu em A esfera e a cruz, viajando de avio, sentados um ao lado do outro, a Quaresma junto ao Carnaval.

Quando o avio sobrevoa a catedral de Londres, o professor solta uma blasfmia endereada a cruz.

Estou pensando de que lhe serve esta blasfmia diz o monge. Escute essa histria: eu conheci um homem igual a voc; tambm ele odiava o crucifixo. Baniu-o de sua casa, do pescoo de sua senhora, at mesmo dos quadros; dizia que era feio, smbolo de barbrie, contrrio alegria e felicidade. Cresceu-lhe ainda mais a fria: um dia, trepou na torre da igreja arrancou a cruz e atirou-a l de cima.

Por fim, este dio se transformou em delrio e, depois, em furiosa loucura. Numa tarde de vero, detivera-se, fumando o cachimbo, diante duma longussima cerca; no brilhava uma luz, nenhuma folha se movia, mas ele pensou estar vendo a comprida cerca transformada num exrcito de cruzes, amarradas uma na outra, colina acima e vale abaixo. Ento, agitando a bengala, atirou-se contra a cerca como se fosse contra um exrcito de inimigos; pela estrada afora, arrancou, quebrou e esparramou todos os morres que encontrava. Odiava a cruz e cada estaca era para ele uma cruz. Chegando a casa, continuou a ver cruzes por todo o lado, quebrou os mveis, jogou-os ao fogo e, no dia seguinte, encontraram-no a boiar morto no rio.

A esta altura, o professor Lucfero olhou para o velho monge mordendo os lbios e disse: Essa histria, voc a inventou!!! verdade, respondeu Miguel inventei-a agora; mas exprime bem aquilo que esto fazendo voc e os seus amigos que no crem. Vocs comeam desprezando a cruz e acabam destruindo o mundo habitvel. A concluso do monge, que a sua, prezado Chesterton est certa.

Tirem Deus, e o que que fica, aonde vo parar os homens? Em que raa de mundo somos obrigados a viver? Mas o mundo do progresso, ouo dizer, o mundo do bem-estar! Sim, mas este famoso progresso no tudo aquilo que espervamos; ele traz consigo tambm os msseis, as armas bacteriolgicas e atmicas, o atual processo de poluio, coisas todas que de no se prover a tempo ameaam levar a humanidade inteira para uma catstrofe.

Em outras palavras, o progresso com homens que se amem e se considerem irmos e filhos do nico Pai Deus, pode ser uma coisa maravilhosa. O progresso com homens que no reconhecem em Deus o nico Pai, torna-se um perigo permanente: sem um concomitante processo moral interior e pessoal, ele o progresso desenvolve de fato o fundo mais selvagem do homem, transforma-o em mquina dominada por mquinas, em nmero que manipula nmeros, um brbaro em delrio diria Papini que, ao invs da clava, pode servir-se das imensas foras da natureza e da mecnica para satisfazer seus instintos predadores, destruidores e orgacos.

Eu sei: muitos pensam o contrrio do que voc e eu pensamos. Pensam que a religio um sonho consolador: teria sido inventada pelos oprimidos, imaginando outro mundo inexistente onde encontrar mais tarde o que lhes roubado pelos opressores; teria sido organizado inteiramente pelos opressores, em favor de si mesmos, para manter debaixo dos ps os oprimidos e neles adormecer aquele instinto de classe que, sem religio, os incitaria para a luta.

De nada vale lembrar que foi a prpria Religio Crist que favoreceu o despertar da conscincia proletria, exaltando os pobres e anunciando uma justia futura. verdade, respondem, o cristianismo desperta a conscincia dos pobres, mas depois a paralisa, pregando a pacincia e substituindo a luta de classes pela confiana em Deus e as progressivas reformas da sociedade!

Muitos pensam que Deus e a Religio canalizam esperanas e esforos para um paraso futuro e remoto, alienam o homem, dissuadem-no de se comprometer em prol dum paraso prximo, a ser realizado aqui na terra.

Intil lembrar-lhes que, segundo o recente Conclio, um cristo, justamente por ser cristo, deve sentir-se, acima de tudo, empenhado em favorecer um progresso que um bem para todos e uma promoo social que sirva para todos. Fica em p, dizem, que vocs pensam no progresso para um mundo transitrio, espera dum paraso definitivo que no chegar. O paraso, ns o queremos aqui, como resultado de todas as nossas lutas. Ns j o estamos vendo despontar, enquanto o vosso Deus dado por morto pelos telogos da secularizao. Ns estamos com Heine, que escreveu: Ouve o sino? De joelhos! Esto levando os ltimos sacramentos a Deus que est morrendo!

Prezado Chesterton, voc e eu nos pomos de joelhos, mas diante de um Deus mais atual do que nunca. S ele, de fato, pode dar uma resposta que satisfaa s trs grandes questes: Quem sou eu? Donde venho? Para onde vou?

Quanto ao paraso que se gozar na terra e s na terra e num futuro prximo, como concluso das famosas lutas, gostaria que escutassem algum que mais capaz do que eu e tambm sem desfazer nos seus merecimentos do que voc: Dostoievsky.

Voc se lembra do Ivan Karamazov. um ateu, amigo at do diabo. No entanto, ele protesta, com toda a veemncia de ateu, contra um paraso conseguido por meio dos esforos, fadigas, sofrimentos e martrios de inmeras geraes. Nossos psteros felizes, graas infelicidade de seus antecessores! Estes antecessores que lutam sem receber seu quinho de alegria, sem gozar sequer o conforto de antever o Paraso sado do Inferno que atravessam! Imensas multides de chagados, de sacrificados, que servem simplesmente de humo para fazer crescer as futuras rvores da vida! E impossvel, diz Ivan, seria uma injustia cnica e monstruosa!

E tem razo.

O sentido de justia que est em cada homem, seja qual for a sua f, exige que o bem operado, o mal sofrido, sejam premiados, que a fome de vida que jaz dentro de todos seja satisfeita. Onde e como, se no em outra vida? E por quem, se no por Deus? E por que Deus, se no aquele de quem S. Francisco de Sales escrevia: No tenham medo de Deus, que no quer fazer mal, mais amem-no, pois lhes quer fazer muito bem?

O que muitos combatem no o verdadeiro Deus, mas a falsa idia que de Deus conceberam: um Deus que protege os ricos, que s pede e exige, que tem cimes do nosso progresso no bem-estar, que, do alto, espreita continuamente os nossos pecados para ter o prazer de castig-los.

Prezado Chesterton, voc bem sabe, Deus no assim: mas justo e bom ao mesmo tempo; pai tambm dos filhos prdigos, aos quais quer ver, no mesquinhos e miserveis, mas grandes, livres criadores do seu prprio destino. O nosso Deus to pouco rival do homem que o quer seu amigo, chamando-o a participar de sua prpria natureza divina e de sua prpria felicidade eterna. E no verdade que Ele pretende demais de ns: satisfaz-se com pouco, porque bem sabe que no temos muito.

Prezado Chesterton, eu estou convencido como voc: esse Deus h de ser sempre mais conhecido e amado por todos, inclusive por aqueles que hoje o rejeitam, no por serem maus (talvez sejam melhores do que ns dois!), mas porque o vem dum ponto de vista errado. Eles teimam em no acreditar nEle? Pois Ele responde: quem acredita em vocs, sou Eu!

Junho, 1971

A Maria Teresa de ustria

BONITA, SEM TANTA DOIDICEMajestade real e imperial!

conheo-a somente pelos livros. Soberana tpica do sculo das luzes, a Senhora tambm governou paternalisticamente: era chamada me de todos os seus domnios; parece, entretanto, que, sobretudo, muito se preocupava por que os filhos destes fossem obedientes sditos da imperatriz.

Nada h que estranhar nisto: nem sequer de uma rainha se pode exigir que anteveja profeticamente o porvir. Afinal de contas, no grupo de soberanos do seu tempo, talvez a Senhora sela a figura menos feia: regente da orquestra estatal, sem ter a presuno de tocar todos os instrumentos!

Melhor ainda saiu-se a Senhora como esposa e me. Esposo amado e sinceramente chorado depois da morte (embora soubesse que ele a tinha trado com diversas favoritas). Casa de vidro, na qual os sditos podiam enxergar os costumes ilibados de sua soberana. Dezesseis filhos, entre os quais o famoso Jos H, chamado pelo vizinho rei da Prssia de rei-sacristo e a infeliz Maria Antonieta, a principio esposa do delfim depois rainha da Frana.

para esta ltima que, com sensibilidade de mulher e de me, a Senhora escreveu cartas que ainda guardamos, sobre a maneira de se vestir.

Em Paris, murmura-se que a futura rainha descura da elegncia. A Senhora toma conhecimento disso em Viena e, prontamente, pega da pena escrevendo: Dizem-me que voc anda mal vestida e que suas damas no ousam chamar-lhe a ateno.

Tornando-se rainha, Maria Antonieta se excede em sentido contrario e manda A Senhora um seu retrato ostentando na cabea um monumental catafalco ferro de frutas, flores, plumas e de dez metros de fazenda. E a Senhora a escrever de novo: No me parece deva a soberana duma grande nao vestir-se deste modo. preciso seguir a moda, mas no exager-la. Uma rainha bonita no precisa de todas essas loucuras na cabea!

Eis um principio judicioso: a beleza da mulher aparece sem precisar de tantas loucuras.

***

Majestade, acredita? H um colega meu, bispo, que parece ainda mais compreensivo do que a Senhora. So Francisco de Sales mostra-se, de fato, cheio de sorridente indulgncia para com as eternas pequenas fraquezas humanas, que levam especialmente as mulheres a procurar sempre novos atavios, penteados e vestidos; em particular, mostra-se indulgente com a elegncia pretensiosa das senhoritas. Estas escreve sentem grande desejo de agradar aos outros. E continua: Nelas, licito o desejo de agradar a muitos, embora o faam com a nica finalidade de agarrar algum com vistas ao matrimonio.

Bispo como ele , cabe-lhe moderar o zelo da baronesa de Chantal, que vigia com demasiada austeridade a moda das filhas e escreve-lhe: bem necessrio que as meninas sejam bonitinhas. Quando preciso, porm, sabe reprimir as pequenas (ento, eram pequenas) audcias das jovens de sua parentela: um dia em que Francisca de Rabutin lhe aparece um pouco decotada demais, oferece-lhe, sorrindo, alguns alfinetes.

Igual moderao para com a moda dos homens e das senhoras. A senhora Charmoisy tem um filho, um rapago, que no se sente vontade porque todos os seus colegas sont beaucoup mieux que lui, isto , vestem-se muito melhor do que ele. Isso no fica bem, escreve o santo, pois, j que vivemos no mundo, precisamos seguir as leis do mundo em tudo aquilo que no pecado. A senhora Le Blanc de Mions sente, pelo contrrio, um escrpulo: ser que pode religiosa como enfeitar os cabelos de acordo com a moda? Eh! meu Deus, responde Francisco, enfeite mesmo hardiment (ousadamente) a cabea: os faises tambm lustram as penas!

Assim escrevendo, Francisco de Sales pensava dar conselhos cristos sensatos, deixando vida devota todas as rosas sem arrancar nenhum espinho. Mas no foi bom para ele, Majestade. O grande Bossuet escreveu dele que, daquele jeito, ele nada mais fazia do que colocar almofadas por baixo dos cotovelos dos pecadores. Um frade, mais tarde, falou do plpito contra a Introduo vida devota, livro em que o santo desenvolveu os conceitos que vimos acima; no fim do sermo, mandou que Lhe trouxessem com magna pompa uma vela acesa, tirou da manga o livro e ateou-lhe fogo, dispersando as cinzas aos quatro ventos.

***

Majestade, fique bem claro, eu no estou com o frade! Estou com a Senhora e com Francisco de Sales, na posio moderada e justa de quem compreende e encoraja tudo aquilo que sadiamente bom, mesmo na moda.

Mas estou com a Senhora tambm na condenao das loucuras. E quantas e que loucuras em nossos dias. No vestir e em tudo o que, forosamente, com ele se relaciona: despesas, maneiras de se comportar, divertimentos! No falo das praias e da maneira como alguns as freqentam.

A sua Maria Antonieta trazia na cabea dez metros de fazenda, ao passo que outros abundantes metros serviam para o vestido e a cauda. Agora acontece o contrrio: h mulheres que no vestem quase nada, e andam desta maneira em qualquer lugar, pretendendo at entrar neste estado nas igrejas.

Na corte da Senhora, Pedro Metastsio, por viver entre cavalheiros de peruca e damas embonecadas, comps melodramas: num deles escreveu:

A lealdade dos amantes

como a fnix da Arbia:

Que ela existe, todos dizem,

Por onde anda, ningum sabe.

o mximo que ele ousou escrever, sentimentalmente falando. Agora, tudo se ousa: no vestir, no cantar, no escrever, no fotografar, nos espetculos, no modo de se comportar.

Nos seus tempos, aqui em Veneza, dizia a Margarida dos Rusteghi goldonianos: Minha me me levava pera, ou ento comdia e comprava a chave do camarote e gastava bom dinheiro. Procurava ir aonde sabia que se exibiam boas comdias, onde podia levar os filhos, e vinha conosco e ns nos divertamos. amos. s vezes. ao Ridotto, um pouquinho ao Liston, um pouso Piazzetta das marionetes e dos fantoches e umas duas vezes ao 'casoti'. Quando estvamos em casa, tnhamos sempre as nossas tertlias. Vinham os parentes, vinham os amigos, tambm algum jovem; mas no havia perigo.

Agora? Uma jovem de boa famlia ausenta-se dias inteiros. Aonde vai? Com o seu rapaz, sozinha no carro, sozinha no hotel com ele, pelas estradas do mundo.

Acontece at isto: recebe-se um convite para o baile e, no convite, aparece uma sigla SBI (sem bagagem incmoda, quer dizer, sem os pais!)

Acontece, tambm, ler-se nos jornais que os funcionrios de certas firmas decaem notavelmente no ritmo e qualidade da produo, por se ocuparem demasiadamente em demoradas meditaes sobre as saias ou calcinhas lilipucianas de suas colegas de trabalho. Ou l-se que tal governo, para obstar ao crescente nmero de acidentes nas estradas, cuida em admoestar com cartazes os motoristas que no se deixem distrair enquanto esto dirigindo pelas moas de minissaia, que fitam pelo pra-brisa ou pela janela do carro.

Majestade, a Senhora escreveu a palavra certa: a mulher no precisa de muita coisa para agradar aos outros. Trata-se to-somente de saber a quem se quer agradar e para qu. Agradar a todos? Em si, no h nada mal nisto; m poder ser a vontade de agradar daquele jeito. Penso, porm, que a mulher deve procurar agradar primeiro aos pais, irmos e irms e, sobretudo, ao marido, ao homem que a escolher por esposa e ser pai dos seus filhos.

Pois bem, todos estes querem a mulher elegante, sim, e bonita, mas emoldurada pela modstia que a torna ainda mais bela e moralmente viosa.

***

Majestade, desculpe se confidenciei e desabafei tudo isso com a Senhora, que aprova estas idias. No quero dizer que faltem, hoje, mulheres que as prezem. Mas existem as que pensam ser idias antiquadas e superadas. A Senhora sabe, pelo contrrio, que so imperecveis e sempre atuais, porque refletem o pensamento de Deus, que escreveu por S. Paulo: As mulheres vistam-se com decoro, enfeitadas de modstia e verecndia!

Julho, 1971.

A Charles Pguy

SOMOS A ADMIRAO DE DEUSMeu caro Pguy,

o seu esprito entusiasta, a sua paixo de instigador e condutor de almas sempre me agradaram; menos, porm, as suas redundncias literrias por vezes amargas, por vezes irnicas, por vezes excessivamente apaixonadas na batalha contra os homens extraviados do seu tempo.

Em suas pginas religiosas h trechos poeticamente (no digo teologicamente) felizes, por exemplo, onde voc introduz Deus a falar da esperana.

A f dos homens no me admira diz Deus no coisa surpreendente: eu resplandeo de tal maneira na minha criao, que para no me descobrir, esses coitados deveriam ser cegos. A caridade dos homens no me admira diz Deus no coisa surpreendente: esses coitados so to infelizes, que, se no tiverem um corao de pedra, s podem ter amor uns para com os outros. O que me admira, a esperana!

Concordo com voc, caro Pguy, a esperana causa admirao. Concordo com Dante, em que ela um esperar certo. Concordo, tambm, com o que a Bblia narra daquelas que esperam.

Abrao no sabia ao certo por que Deus Lhe ordenara matar seu filho nico; no sabia donde, morto Isaac, poderia nascer a posteridade numerosa que Lhe tinha prometido e, no entanto, esperava com certeza.

Davi, ao investir contra Golias, sabia muito bem que cinco pedras, embora lanadas por mo adestradssima com a funda, eram muito pouco diante de um gigante revestido de ferro. No entanto, esperava com certeza e afianava ao colosso blindado: Eu venho da parte de Deus. Daqui a pouco, separarei do tronco a tua cabea.

Rezando com os Salmos, eu tambm, caro Pguy, me sinto transformado num homem que espera com certeza: Deus minha luz e minha salvao, a quem temerei? Ainda que se poste contra mim um exrcito, no ter medo o meu corao. Ainda que se levante contra mim uma batalha, tambm, ento, terei confiana.

***

Como erram, Pguy, aqueles que no esperam. Judas cometeu um grande erro no dia em que vendeu Cristo por trinta dinheiros, mas cometeu outro ainda maior quando pensou que o seu pecado era grande demais para ser perdoado. Nenhum pecado grande demais: uma misria finita, por quanto enorme, sempre poder ser coberta por uma misericrdia infinita.

E nunca tarde demais: Deus no se chama s Pai, mas Pai do filho prdigo, que nos enxerga quando ainda estamos longe, e se comove e vem lanar-se correndo ao nosso pescoo e beijar-nos carinhosamente.

E no precisamos assustar-nos por causa dum passado tempestuoso. As tempestades, que foram um mal no passado, tornam-se um bem no presente, se nos levam a remediar, a mudar; transformam-se em jias, se doadas a Deus para Lhe dar a consolao de perdo-las.

O Evangelho recorda, entre os antepassados de Jesus, quatro mulheres, trs delas no totalmente recomendveis: Raab foi uma cortes; Tamar tivera um filho, Fares, do seu sogro Judas e Betsab fora adltera com Davi. Mistrio de humildade o terem sido estas avoengas aceitas por Cristo, terem sido includas na sua genealogia, mas tambm segundo penso meio nas mos de Deus para nos tranqilizar: vocs podem tornar-se santos, seja qual for a histria da sua famlia, o temperamento e o sangue herdados, a situao passada!

Meu caro Pguy, seria, porm, errado esperar, protelar continuamente. Quem se mete pelo caminho do depois desemboca na estrada do nunca. Eu conheo algum que parece fazer de sua vida uma perene sala de espera. Os trens chegam e partem e ele: Seguirei depois! Confessar-me-ei no fim da vida! Visconti Venosta dizia do forte Anselmo:

Passa um dia, passa outro, nunca volta o forte Anselmo.

Aqui, temos o contrrio: um Anselmo que nunca parte.

A coisa no sem risco. Suponha, caro Pguy, que os brbaros estejam invadindo a Itlia e avancem destruindo e matando. Todos fogem: avies, carros, trens so tomados de assalto. Vamosgrito eu para o Anselmo ainda h lugar no trem, suba depressa. E ele: Mas ser mesmo verdade que os brbaros me liqidaro se eu ficar aqui? Certeza no tenho, poderiam poupar-te, pode ser tambm que, antes da chegada deles, passe outro trem. Mas so possibilidades remotas e trata-se da vida. Esperar mais imprudncia imperdovel.

No posso me converter tambm mais tarde? Decerto, mas talvez seja mais difcil do que agora: os pecados reiterados transformam-se em hbitos e correntes bem mais difceis de partir. Por favor, agora mesmo.

***

Voc bem sabe, Pguy. A esperana baseia-se na bondade de Deus, que transparece especialmente no comportamento de Cristo, chamado no Evangelho de amigo dos pecadores. Qual seja a dimenso desta amizade bem conhecido: perdida uma ovelha, o Senhor vai procur-la at ach-la; quando a encontra, coloca-a todo feliz sobre os ombros, carrega-a at a casa e diz a todos: Haver maior alegria no cu por um s pecador que se converte do que por noventa e nove justos que no precisam de penitncia!

A samaritana, a adltera, Zaqueu, o ladro crucificado sua direita, o paraltico e ns mesmos fomos procurados, encontrados e assim tratados. E esta outra maravilha.

***

H, porm, mais outra: o esperar certo da glria futura, como diz Dante. Causa admirao esta certeza relacionada com o nosso porvir, isto , algo que, distancias se desvanece. E, no entanto, Pguy, esta a nossa situao, dos que esperamos.

Caminhamos na senda de Abrao que, tendo recebido de Deus a promessa duma terra fertilssima, obedeceu e partiu diz a Bblia sem saber para onde iria, mas seguro, assim mesmo, e confiado em Deus. Encontramo-nos na situao descrita por Joo Evangelista: Desde j somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda no foi manifestado. Encontramo-nos como o Napoleo de Manzoni, encaminhados pelas floridas veredas da esperana, embora no conheamos bem a regio em que vo dar essas veredas.

Ser que a conhecemos, ao menos vagamente? Ou delirava Dante quando tentou descrev-la como luz, amor e felicidade? Luz intelectual, porque l em cima a nossa mente ver clarissimamente o que, aqui, s entrevia em sombras: Deus. Amor do vero bem, porque os bens que aqui amamos so um bem, gotculas, migalhas, fragmentos de bem, ao passo que Deus o bem. Letcia que transcende toda doura, porque no h comparao entre aquela e as douras deste mundo.

Concorda com isto Agostinho, que chama Deus de beleza sempre antiga e sempre nova. Concorda Manzoni: L em cima silncio e treva a glria que passou. Concorda Isaas, no famoso dilogo: Clama! O que vou clamar? Clama assim: Todo o homem como erva e toda a sua glria como a flor do campo. A erva seca e fenece a flor!

Com esses grandes vultos concordamos, tambm ns, caro Pguy.

Acaso nos acoimem de alienados cultores da poesia e sem espirito prtico? Ns responderemos: Somos filhos da esperana, somos a admirao de Deus!

Agosto, 1971

A Trilussa

NO CORAO DO MISTRIOMeu caro Trilussa,

tornei a ler a poesia saudosamente autobiogrfica em que voc conta que, de noite, se perdeu no meio da floresta e ali encontrou uma velhinha cega que Lhe disse: Se no conhece o caminho, eu o acompanho, porque o conheo! Surpresa sua: Acho estranho que me possa guiar quem no enxerga. Mas a velhinha no perde tempo, pega-o pela mo e Lhe intima: Caminha. Eis a f.

Em parte, estou de acordo com voc: a f realmente um bom guia, amorvel e sbia velhinha que diz: ponha aqui o seu p, tome este caminho que sobe. Mas isto acontece num segundo momento, quando a f j aprofundou suas razes na mente, como convico, e desde ali guia e dirige as aes da vida.

Antes disso, porm, a convico precisa formar-se e consolidar-se na mente. E aqui, meu caro Trilussa, est hoje a dificuldade, aqui se revela a viagem da f, no como o pattico passeio na floresta, mas como viagem por vezes difcil, por vezes dramtica e sempre misteriosa.

Entretanto, j difcil ter f nos outros, aceitando sob palavra suas asseres. Ouve o estudante o professor dizer que a terra fica a 148 milhes de quilmetros do sol. Gostaria de comprov-lo, mas como? Toma coragem e aceita com um ato volitivo de confiana: O professor honesto e bem informado, confiemos nele!

Uma me narra a seu filho coisas da longnqua infncia, os sacrifcios enfrentados para proteg-lo, cur-lo, e conclui: Voc acredita em mim? Lembrar-se- de quanto fiz por seu amor? Como posso no acreditar responde o filho e farei o possvel para no desmerecer do amor que teve por mim! Alm da confiana, este filho deve suscitar em si, por sua me, tambm ternura e amor: s assim podem medrar nele um mpeto de dedicao e um empenho de vida.

A f em Deus algo semelhante: um sim filial, dito ao Deus que nos conta algo de sua prpria vida ntima; sim s coisas narradas e, ao mesmo tempo, quele que as narra. Quem o pronuncia precisa no s ter confiana, mas, tambm, ternura e amor e sentir-se na condio dum filhinho que aceita. Eu no sou um indivduo que tudo conhece, que diz a palavra definitiva sobre tudo, que tudo verifica. Talvez, tenha o hbito de chegar certeza cientifica por meio da verificao mais rigorosa feita em laboratrio; aqui, porm, preciso limitar-me a uma certeza no fsica, no matemtica, mas de bom-senso, ou de senso comum. No s: confiando em Deus, sei que preciso aceitar que Deus possa invadir, dirigir e transformar a minha vida.

Nas suas Confisses, prezado Trilussa, Agostinho muito mais incisivo do que voc, ao descrever sua viagem na f. Antes de dizer o sim pleno a Deus, a alma se Lhe arrepia e contorce em conflitos penosos.

Duma parte est Deus que o convida, da outra os hbitos antigos, as velhas amizades que o puxam docemente pelas vestes da carne e Lhe segredam: Manda-nos embora? Pense que, desde o momento em que o deixarmos, aquela coisa no Lhe ser mais lcita e nem aquela outra, e para sempre!

Deus o impele a fazer depressa e Agostinho implora: No agora, ainda mais um momento! E continua semanas inteiras na indeciso, no conflito interno, at que, ajudado por um impulso poderoso de Deus, toma a coragem com ambas as mos e se resolve.

Como v, Trilussa, no drama humano da f insere-se um elemento misterioso: a interveno de Deus. Paulo de Tarso o experimentou no caminho de Damasco, e assim o descreve: naquele dia, Senhor, tu me raptaste, por tua graa sou o que sou.

Aqui, achamo-nos no corao do mistrio. Em que consiste, pois, e como opera esta graa de Deus? Quo difcil diz-lo!

Suponha, Trilussa, que o incrdulo seja uma pessoa adormecida. Deus o acorda e diz: levanta da cama! Suponha que um doente. Deus lhe pe na mo o remdio e diz: toma-o! De fato acontece que um incrdulo v-se a certa altura, de improviso e sem dar-se conta, a refletir sobre problemas da alma e da religio, potencialmente disponvel para a f.

Depois desta interveno efetuada sem ns, Deus realiza outras, mas conosco, isto , com a nossa livre colaborao. Quem nos despertou enquanto dormamos, foi s Ele; cabe a ns descer da cama, embora precisemos, para descer, de outras intervenes suas. A graa de Deus, de fato, possui a fora mas no pretende forar; possui uma santa violncia, porm apta para enamorar-nos da verdade, no para violentar a liberdade. Pode acontecer que, acordado, convidado a levantar-se, amparado at pelo brao, algum se vire para o outro lado dizendo: Deixe-me dormir.

No Evangelho, temos casos semelhantes. Vem e segue-me disse Cristo, e Levi ergue-se da banca e o acompanha; um outro, pelo contrrio, convidado, responde: Deixa-me primeiro sepultar meu pai e no aparece mais. So pessoas observa Cristo tristemente que pem a mo no arado e depois voltam-se para trs. Assim se explica como, no crer, h uma gama inteira que vai de quem nunca teve f, a quem a tem em grau insuficiente, aos mornos e raquticos na f, at queles que tm uma f ardente e operosa.

Porm, s se explica at certo ponto, caro Trilussa. Por que que alguns de ns no crem? Porque Deus no lhes deu a graa. Mas por que no Lhes deu a graa? Porque no corresponderam s suas inspiraes. Por que no correspondemos? Porque, sendo livres, abusamos da liberdade. Por que abusamos da liberdade? Aqui bate a dificuldade, meu caro Trilussa, aqui renuncio a querer compreender. Aqui, em vez do passado, apraz-me pensar no futuro e resolvo seguir o convite de Paulo: Exortamo-vos a no receber em vo (para o futuro) a graa de Deus.

Meu caro Trilussa! Manzoni define a volta do Inominado f como alegre prodgio e convite da graa. Falava com conhecimento de causa, pois tambm ele tinha voltado.

Trata-se de um convite sempre presente e perceptvel para todos. No que me diz respeito, procuro aproveit-lo todos os dias, repondo em p, hoje, a minha vida de f derrubada com os pecados de ontem. Quem sabe os cristos que, como eu, ora se julgam bons, ora pecadores, aceitem como eu comportar-se como bons convidados?

Setembro, 1971

A So Bernardo, Abade de Claraval

SE GOVERNAS, S PRUDENTE

Ao Abade de Claraval.

Fostes um grande monge e, de maneira totalmente original, um grande estadista. Houve tempo em que Claraval foi mais importante do que Roma: a vs recorriam imperadores, papas, reis, senhores e vassalos. Vs lanastes uma Cruzada: coisa hoje muito discutida, mas, ento, isto encaixava no panorama da histria. Em compensao, fostes profeticamente contrrio ao anti-semitismo da poca, com vossa franca defesa dos judeus. Destemido no falar. A um papa, escrevestes: Eu no receio para ti nem ferro, nem veneno, mas o orgulho do poder. E, ao rei de Frana, que nomeara general em chefe a um abade: Agora, o que suceder? O novo general vai celebrar a missa de capacete, couraa e botas de ferro, ou conduzir as tropas de sobrepeliz e estola?

Na Idade Mdia, outros tinham guiado a Europa a golpes de espada. Vs, a poder da pena, com cartas que partiam em todas as direes e que hoje, infelizmente, s possumos em parte: quinhentas, mais ou menos.

Elas tratam, na sua maioria, assuntos de asctica. H uma, porm, a vigsima quarta do epistolrio, que contm em resumo a vossa viso crist do governo e se tornou texto clssico numa circunstncia extraordinria.

Corria o Conclave. Os cardeais estavam na dvida entre trs candidatos que se distinguiam, um pela santidade, o segundo pela elevada cultura, o terceiro pelo senso prtico.

Um cardeal acabou com a indeciso justamente citando a vossa carta. No h por que duvidar ainda, disse ele; o nosso caso j est contemplado na vigsima quarta carta do Doutor Melfluo. Basta aplic-la e tudo correr bem. O primeiro candidato santo? Pois bem, oret pro nobis, diga alguns Pai-nossos por ns, pobres pecadores. O segundo um gnio? Isto muito nos apraz, doceat nos, escreva algum livro de erudio. O terceiro prudente? Iste regat nos, este nos governe e seja Papa.

Considerando tudo isso, por que no continuar, querido Abade, a sua antiga tarefa, escrevendo alguma carta que nos faa a caridade de conselhos teis, para mim, pobre bispo, e para outros cristos preocupados com as mltiplas dificuldades de servir o povo? Uma voz monacal que, do fundo da Idade Mdia, venha repercutir no complicado dinamismo da vida moderna. um ensejo para o bem. Aproveitai, por favor, padre Abade.

Vosso

Albino Luciani

***

Ao Patriarca de Veneza.

Aceito e comeo invertendo a minha prpria sentena.

Se prudente, governe escrevi naquele tempo. Se governa, seja prudente escrevo agora. Isto , tenha bem firmes na cabea alguns princpios basilares e saiba adapt-los s circunstancias da vida.

Que princpios? Referirei, ao acaso, alguns pontos. Um sucesso aparente, embora clamoroso , na realidade, um insucesso, se se consegue espezinhando a verdade, a justia, a caridade. Quem est por cima est a servio de quem est por baixo: tanto os senhores como os sditos. Quanto maior a responsabilidade, tanto mais necessria a ajuda de Deus; quem o diz tambm o vosso Metastsio:

A efetuar belas empresas

Ajudam arte e prudncia

Mas so vs prudncia e arte,

Quando o cu no propcio.

Mas os grandes princpios devem descer vida dos homens e os homens so como as folhas duma rvore: todas parecidas, nenhuma perfeitamente igual outra. Eles se nos antolham diferentes um do outro conforme a cultura, o temperamento, o carter, as circunstancias, a disposio de nimo.

Atente-se, portanto, s circunstancias, s disposies de nimo: se estas mudam, mudem-se tambm, no os princpios, mas a aplicao dos princpios realidade do momento. Certa vez, Cristo fugiu da multido que queria rapt-lo fora para faz-lo rei. Ao invs, mudadas as circunstancias, s vsperas da Paixo, ele mesmo promoveu o modesto triunfo da entrada em Jerusalm.

No chamo, porm, prudncia a demasiada desenvoltura em mudar. A boa ttica das justas dosagens e adaptaes no o oportunismo, a adulao, o virar as costas para quem j caiu, ou brincar de esgrima com a prpria alma ou com os princpios. Cai o ministro, cai o prefeito e quantas vezes se opera em volta deles imediatamente, o vazio. E quantas vezes se v gente que banca o vira-casaca.

Cito o caso, remoto no tempo, mas clssico, do Moniteur, jornal oficial francs. Em 1815 o jornal narrava da seguinte forma aos seus leitores as vicissitudes de Napoleo: O bandido fugiu da ilha de Elba; O usurpador chegou a Grenoble; Napoleo entra em Lyon; O imperador chega hoje a noite a Paris. O crescendo realmente despudorado. De no se louvar como prudncia. Como no prudncia a atitude de quem teima em no tomar conhecimento das realidades evidentes e cai na rigidez excessiva e no integrismo, tornando-se mais papista do que o Papa.

Isto acontece. H quem, apossando-se duma idia, a enterra e continua a guard-la, a defend-la ciosamente por toda a vida, sem mais reexamin-la, sem querer verificar o que aconteceu depois de tantas chuvas e ventos e tempestades de acontecimentos e mudanas.

Correm perigo de no ser prudentes aqueles que vagueiam na estratosfera, forrados de cincia puramente livresca, e no sabem desligar-se uma vez sequer daquilo que foi escrito, verdadeiros tira-teimas, sempre preocupados em analisar, em sublinhar, numa perptua busca do plo no ovo.

A vida coisa bem diferente. Lord Palmerston observava judiciosamente que, para cortar a pgina de um livro, um corta-papel de osso Lhe servia muito melhor do que uma navalha afiada. Clmenceau, o Tigre, era do mesmo parecer quando opinava sobre dois ministros do gabinete presidido por ele, afirmando: Poincar sabe tudo, mas no entende nada. Briand no sabe nada, mas entende tudo.

Eu diria: procure-se, juntamente, saber e entender. Como dizia antes: possuir os princpios e aplic-los realidade. o inicio da prudncia!

Vosso

Bernardo de Claraval.

***

Ao Abade de Claraval.

Agradeo a vossa carta. Apreciei, sobretudo, o estmulo para verificar, reexaminar, no deixar as situaes estagnarem-se, iniciar as necessrias reformas. Isto vale para a Igreja, vale para o Estado e para a Prefeitura.

Sabeis o que aconteceu? dizia-me um prefeito. Um vereador da Prefeitura, recm-eleito, notou que um guarda-civil ficava de planto todos os dias diante de alguns assentos do jardim pblico. Que desperdcio, pensou. Ele podia empregar o tempo protegendo o Banco da Itlia, mas para uma dezena de modestos assentos! Resolve indagar a fundo e descobre... o qu? Anos atrs, os assentos do jardim tinham sido envernizados de novo. Para que ningum fosse prejudicado pelo verniz fresco, um guarda com as devidas ordens municipais tinha sido destacado para aquele posto. Esqueceram-se depois de retirar a ordem. O verniz secou e o planto ficou a guardar... nada.

Voltando prudncia de quem governa, no achais, Padre Abade, que ela deve ter certo dinamismo? Plato chamava a prudncia de cocheiro das virtudes; ora, o cocheiro procurava chegar meta poupando a vida do cavalo, se puder; mas, se for preciso, usa o chicote e at sacrifica o cavalo, contanto que chegue e chegue a tempo. Em outras palavras: no me agradaria que se confundisse a prudncia com inrcia, preguia, sonolncia, passividade. Ela exclui o zelo cego e a audcia louca, mas impe a ao franca e decidida, audaz quando for preciso. s vezes, age como freio, s vezes como acelerador; s vezes, leva a poupar-se, as vezes prodigar-se; s vezes, reprime a lngua, os sonhos, as cleras; s vezes as deixa, conforme o motivo, explodir.

Nos anos em que os emissrios de Cavour trabalhavam pela Romanha, chegou a Turim o comedigrafo Paulo Ferrari e disse-lhe: Conde, ns l no sabemos mais em quem acreditar: o Buoncompagni prega a prudncia, o La Farina prega a audcia. Quem dos dois interpreta o vosso pensamento e vosso enviado? Ambos, respondeu Cavour, pois so precisas uma audcia prudente e uma prudncia audaz.

Na espera de maiores precises,

Vosso

Albino Luciani

***

Ao Patriarca de Veneza.

Com algumas reservas quanto seriedade da resposta de Cavour, acho justo que a prudncia seja dinmica e isto a leve ao. Porm, devem-se levar em considerao trs tempos: deliberar, decidir, executar.

Deliberar quer dizer procurar os meios que conduzem ao fim: faz-se com base na reflexo, em conselhos procurados, em cuidadoso exame. Pio XI dizia com freqncia: deixe-me primeiro pensar. A Bblia adverte: Filho, no faas nada sem conselho. Os provrbios populares do colorao a tudo isto: Quatro olhos vem melhor que dois Quem age com pressa chora com vagar. Bem e depressa, raro que acontea. A gata apressada pariu gatinhos cegos.

Decidir quer dizer: depois de ter estudado os vrios meios possveis, lanar mo de um: Escolho este, o mais apto, o nico vivel ! No prudncia alternar eternamente, pois isso deixa tudo em suspenso e dilacera o nimo com a incerteza; tampouco prudncia esperar pelo timo, para resolver; costuma-se dizer que a poltica e a arte do possvel; e, em certo sentido, verdade

A execuo o mais importante dos trs tempos; a prudncia, aqui, se associa fortaleza em no dar azo ao desnimo diante das dificuldades e obstculos. o momento em que algum se revela chefe e guia. A este momento aludia Filipe, o Macednio quando afirmava: melhor um exercito de tmidas gazelas guiadas por um leo, do que um exrcito de fortes lees guiados por uma gazela

Monge como sou, sinto-me coagido a ressaltar que a prudncia , sobretudo, uma virtude, portanto, s serve a causas nobres e emprega somente meios lcitos.

Segundo Plutarco, Alcibiades vivia possudo pela obsesso da popularidade; queria a todo o custo que o povo se ocupasse dele. Como, a certa altura, arrefecesse o interesse do povo pelas suas coisas, o que fez? Tinha um belssimo cachorro, que lhe custara a bagatela de 70 minas; cortou-lhe a cauda. E, assim, toda Atenas teve oportunidade de falar de Alcibiades, da sua riqueza, das suas custosas singularidades.

Eis um caso, no de prudncia, mas de astcia, que vejo repetir-se entre vocs com meios diferentes: fotografias publicadas em jornais, entrevistas na imprensa, discursos arquitetados com arte, mexericos habilmente difundidos. E se, alm disso, unirmos a astcia a meios desonestos, ponho vocs tambm na escola da raposa de Ulisses.

O astuto fala e suas palavras no so veculo, mas vu do pensamento, fazendo parecer verdadeiro o falso, e o falso como verdadeiro. s vezes, consegue algum resultado. Geralmente, porm, a coisa no dura. Na peleteria, h mais peles de raposa que de burro. Quando os malandros fazem procisso, quem carrega a cruz na frente o diabo.

E desculpe a franqueza.

Bernardo de Claraval.

***

Ao Abade de Claraval.

Conforme a vossa ltima carta, existiriam pseudo-prudncias como a malandragem e a astcia mentirosa que descrevestes. s vezes, porm, no se pode negar que, na vida dos homens pblicos fica difcil no recorrer a alguma astcia. Pensai to-somente nos candidatos polticos, que precisam persuadir os eleitores a eleg-los dentre dezenas de concorrentes; nos que so eleitos, que devem cultivar o seu reduto eleitoral, em vista, a seu tempo, de uma reeleio.

A propsito, sabeis acaso que, justamente na vossa Frana, acaba de sair um livrinho (Pigeon Vole, ou Cabra Cega) que vem ao nosso caso? Em primeiro lugar, encontra-se nele um tratado de bl-bl-bl, ou seja, da arte de falar, falar e falar enquanto se encontra alguma coisa para dizer. Em segundo lugar, explicada a tcnica de apresentar estatsticas, percentagens e nmeros, til especialmente para interpretar os resultados das eleies. A propsito de nmeros, diz ele: a democracia no comandada to-somente pela lei do nmero, mas tambm pela do cifro. Em terceiro lugar, faz-se a autpsia das frases bonitas, mas que no significam nada.

Eis que, para evitar confuses desse tipo, foi publicado outro livro, verdadeiro vade-mecum, para discursos e alocues de homens polticos. Vejam s! Trinta e duas frmulas diferentes, lindas e prontinhas, para comemorar homens desaparecidos, dezessete para psames aos familiares, dezoito para comear brindes e catorze para encerra-los. Para os brindes, sugerem-se as seguintes normas: devem ser pronunciados com o copo na mo e a durao do discursinho deve variar de acordo com o grau de inspirao do orador, a importncia da pessoa homenageada e a qualidade do licor. Normas, tambm, para os elogios: no louvar demais, louvar bastante, louvar com donaire, no louvar atravessado.

Em suma, um manual que ensina pequenas e quase inofensivas astcias, parecidas com as espirituosas invenes do Llio goldoniano. Vai ser preciso, portanto, condescender com elas, no acha?

Vosso

Albino Luciani.

***

Ao Patriarca de Veneza.

Acho que o senhor est fazendo pilhria com suas ltimas asseres. Eu estou pela retido e coerncia nos homens pblicos. Tanto mais que eles determinam com o seu comportamento a educao ou deseducao dos jovens. Por outro lado, eles podem valer-se de meios lcitos bem mais eficazes do que aqueles que foram lembrados pelo senhor. A sagacidade, por exemplo. Uma pessoa sagaz no se deixa embair pelas aparncias e adulaes: atina com o temperamento, as ambies alheias, pela fisionomia, pela maneira de gesticular; levam-no a intervir sem tardana e ele sente que a hora ainda no chegou; dizem-lhe que melhor esperar e ele, com um sexto sentido, fareja que, pelo contrrio, preciso apressar-se, e os fatos, mais tarde, lhe do razo.

Outro recurso: o mtodo. Este faz com que anteponhamos o fim aos meios, relacionemos os meios entre si e, a cada meio, demos a importncia que merece. As normas sugeridas so melhores do que aquelas de Pigeon Vole que o senhor citou. Ei-las:

1) Ao deliberar, levai em conta s os fatos averiguados. Digo fatos e no opinies, nem boatos; digo averiguados e no somente certos, porque, se eu sou um administrador pblico, no basta que existam provas vlidas para mim; so precisas provas vlidas para todos, que amanh possam ser exibidas e resistam prova de fogo. Os ingleses dizem: Um fato como o Prefeito de Londres, s ele tem verdadeira, indiscutvel dignidade.

2) Tende presente um epifonema muito usado por ns, os medievais: distingue frequenter. Na corte do Rei Sol, uma dama era capaz de cumprimentar com uma s mesura umas dez pessoas; a reverncia era nica, mas o olhar despedia lampejos mltiplos e variados, que outorgava a cada um fosse ele duque, marqus ou conde aquilo que almejava. Distinguindo, diz-se: este negcio importante, dar-lhe-ei precedncia absoluta; este outro menos importante, dou-lhe um posto secundrio. So as famosas escolhas prioritrias.

3) Pode valer-vos, tambm, o divide et impera dos romanos. Aqui, porm, trata-se de dividir as aes em tempos sucessivos e no as pessoas umas das outras. Motivo? No se pode fazer bem, mais do que uma coisa por vez.

O divide, outrossim, deve ser aplicado tambm ao trabalho; dividir distribuindo os encargos entre os vrios colaboradores. Mas, depois, valer-se desses colaboradores! No acontea como nos tempos da Trplice Aliana, quando se dizia: a Trplice Dplice, ou seja, Bismarck. Parece que, com o vento democrtico que sopra entre vocs, os Bismarck, hoje, no agradam l muito.

Mais um recurso? A previdncia. Em 1800, antes de partir de Paris para a Itlia, Napoleo espetara um alfinete num ponto do mapa, entre Alexandria e Tortona, dizendo: Aqui, provavelmente, se concentraro os austracos. Foi profeta: eles se concentraram exatamente ali, em Marengo.

Nem todos tero um tal dom divinatrio; mas todos devemos procurar prever de longe os efeitos de nossos atos e calcular com antecipao os esforos e somas que sero exigidos por determinada iniciativa. O ministro Sonnino fazia escola em matria de prudncia at mesmo com o silncio; tendo sido encontrado, pensativo e meditabundo, por um amigo, este lhe disse: Aposto que est pensando no que vai ter que dizer amanh na Cmara. Oh, no respondeu, estou pensando naquilo que no devo dizer. Luzzati dizia dele: Em Versalhes, Orlando fala todas as lnguas que no sabe, e Sonnino cala-se em todas as lnguas que sabe.

Pode acontecer, entretanto, que, apesar de todas as precaues tomadas, a empresa fracasse. O homem pblico prepara-se, tambm, para esta eventualidade com medidas adequadas. O campons cuida que pode vir granizo e faz um seguro. O general dispe tudo para a vitria; porm, fica preparado tambm para o caso esconjurado duma derrota ou retirada. Conta Plutarco que Digenes, um dia, ps-se a pedir esmola a uma esttua de mrmore. Naturalmente, no recebeu um msero vintm, mas continuava a pedir. No est perdendo tempo? perguntou-lhe algum. No estou respondeu ele, estou me acostumando a receber recusas. Prudncia tambm esta.

No ltimo conselho. No desanimeis em excesso! Faz anos que suo e labuto em prol do Municpio. Empenhei todo o esforo, descuidei at dos meus interesses e da famlia, abreviando a vida com preocupaes graves e persistentes. E dai? Fazem o vazio minha volta, cavam-me o terreno por baixo dos ps, atacam-me e me destroem. Eles que se arranjem, eu me retiro na devida ordem. A tentao forte, mas nem sempre prudente ceder-lhe. Se verdade que o rodzio necessrio, tambm verdade que o bem pblico exige, s vezes, que quem comeou seja forte e quem possui dotes e experincia fique. Se um dever aceitar as justas criticas (ningum infalvel), tambm necessrio lembrar que nem sequer Cristo conseguiu satisfazer a todos. Quando se trabalha em favor do povo, preciso no sonhar com demasiados agradecimentos e aplausos, mas preparar-se para a indiferena e as criticas dos prprios administradores, cuja psicologia bem curiosa.

Quem a descreveu foi Aristides Briand, que foi vrias vezes primeiro ministro da Frana. Entra numa loja disse um louco com um porrete na mo; distribui bordoadas a esmo sobre os vasos e reduz tudo a frangalhos. O povo pra, acorre de toda a parte, admira-lhe a coragem. Horas depois, aparece na loja um velhinho com uma caixa de adesivo debaixo do brao; tira o casaco, enfia os culos e, com uma pacincia de beneditino, comea em meio a todos aqueles cacos a recompor os vasos quebrados. Podem ter certeza de que nenhum dos que passam vai deter-se para olhar.

Vosso

Bernardo de Claraval.

Outubro, 1971

A Johann Wolfgang Goethe

NOBREZA NOS COMPROMETEIlustre poeta,

o recente festival de cinema (1871), mil vezes e de mil modos bisbilhotado, levou-me a pensar, no sei por que, em voc. Trata-se, talvez, de impresses que emergem do meu subconsciente, provocadas por observaes publicadas nos jornais daqueles dias, que o chamam de esteta, artista, crtico de arte.

Voc foi um grande esteta porque capaz de perceber, intensamente e com ampla viso, o belo natural que anda espalhado pelo mundo, desde os fenmenos da natureza at as paixes intensas da alma humana. Voc foi um grande artista porque capaz de exprimir poderosamente para os outros, tanto o belo percebido como os estados de alma com que foi percebido. Voc foi um insigne crtico de arte porque se inclinou com agudeza e paixo sobre as criaes artsticas dos outros.

No o admirou a Alemanha como diretor do teatro de Weimar, por vinte e cinco anos? No chamou voc seu segundo dia de nascimento aquele em que pisou na Roma dos monumentos antigos? Quase no desmaiou de felicidade ao contemplar o Apolo do Belvedere? Pena que no pde ver os filmes do Festival, nem eu observar as suas reaes; no entanto, procuro adivinh-las.

***

Como esteta, voc teria descoberto na Exposio um monto de coisas bonitas, novas para si. O prprio cinema cheio de luz, movimento, cores, msica e ao, uma coisa linda.

Voc instala-se perante a tela. Se a montagem do filme for bem feita, um ritmo rpido o arrasta na seqncia dos acontecimentos e as horas Lhe parecem minutos. Os primeirssimos planos, enchendo a tela s com um rosto, aproximaro extraordinariamente de voc as figuras, mostrando almas agitadas por emoes profundas e criando entre voc e os artistas uma grande intimidade. Os poderosos esforos que admirou em Mantegna e Caravaggio, voc pode v-los agigantados, graas ao ngulo de tomada que, focalizando vamos supor um delinqente de baixo para cima, deforma-o com sombras sinistras e o faz aparecer ameaador e terrifico. Isto, s para lembrar alguns elementos.

Ser que voc encontraria tambm no cinema o belo artstico? Creio que sim. Mas o crtico de arte que existe em voc deve preparar-se para surpresas. Estava habituado s contemplaes transcendentais, ao esto clssico, a auscultar uma linguagem que Lhe brotava das obras arquitetnicas, dos mrmores e afrescos, das miniaturas dos cdices. Voc julgava em separado o arquiteto, o pintor, o ator-intrprete.

No cinema, porm, os artistas podem ser vrios: o produtor, o cengrafo, o diretor, os atores, cada qual atuando com os outros e em harmonia com os outros para produzir um nico filme. E difcil individualizar qual foi o verdadeiro momento criativo da obra: isto varia de um filme para outro. Pode ser que haja arte repito e elevadssima, mas, quando esta existe, no se deixa incluir neste ou naquele setor, gosta, pelo contrrio, de divagar e intrometer-se por todos os setores. Arte sui generis! Chamam-na Dcima Musa.

Quanto influncia ento, torna-se o quinto poder depois do Parlamento, do Conselho dos Ministros, da Magistratura e da Imprensa. Quanto esfera de influncia, porm, ela pode s vezes ser chamada de Primeiro Poder; de fato, calculou-se que certos filmes em alguns anos hajam influenciado bilhes de espectadores. A tantos pode chegar seu poder de condicionamento.

Mas ele , por sua vez, condicionado, por estar vinculado indstria, ao comrcio e, portanto, ao dinheiro. O diretor, os artistas desejam muitas vezes produzir obras de alto nvel artstico, que Lhes permitam revelar-se.

Mas o produtor, que precisa tirar o dinheiro do bolso, raciocina de maneira diferente e quer filmes de grande aceitao e de sucesso de bilheteria. Caso existisse um feiticeiro vamos supor o seu Doutor Fausto ou, quem sabe, o Mefistfeles em pessoa que, com uma varinha de condo ou com filtros e passes mgicos, garantisse a priori o sucesso do filme artstico, o produtor faria um filme artstico.

No havendo o feiticeiro, o produtor procura garantir-se por outras vias. Quais? Terncio teve, no seu tempo, a amarga surpresa de ver os espectadores abandonarem suas comdias artsticas para irem assistir, rindo bandeira despregada, s exibies de saltimbancos e mmicos junto ao teatro.

O fenmeno repete-se: os produtores procuram fazer filmes que agradem s tendncias menos nobres dos espectadores, que em geral vo s salas de cinema no para se elevarem, mas para se divertir.

Eis, pois, algo que, no Festival, talvez teria contristado a Goethe critico de arte: constatar a existncia de recursos e pessoas para realizar obras-primas e deparar por vezes, nas obras realizadas, somente produes medocres, por culpa das prevalecentes preocupaes econmicas.

***

Outro fenmeno poderia ter sucedido: encontrar em algum filme arte autntica, misturada com imoralidade igualmente autntica. Aqui, talvez, voc estranhe que eu admita a existncia de obras imorais e, ao mesmo tempo, artisticamente belas.

Mas que o adjetivo artstico refere-se obra; o adjetivo imoral, porm, refere-se atuao do artista homem e cristo. Certas novelas imorais de Boccacio so artisticamente belas; porm Boccacio, ao escrev-las, cometeu uma ao moralmente feia, que tem repercusso prejudicial para certas categorias de leitores.

Tambm voc teve uma experincia parecida quando, aps ter escrito As dores do jovem Werther, sentiu-se inquieto e perturbado, ao verificar a influncia corrosiva que o livro exerceu sobre os mais fracos e os mais exaltados jovens alemes.

***

Mas eu estou me atrevendo a criticar aquele Goethe que escreveu, a propsito de um critico seu: Assim como toda rosa, tambm todo o artista tem o seu inseto: eu tenho Tiesk! Assim, agora voc tem a mim, que tambm admiro o seu gnio, mas no aceito algumas de suas idias Esta por exemplo: que, tendo a arte como campo toda a realidade, o artista pode legitimamente e com a mxima liberdade, narrar, pintar, descrever tudo, inclusive o mal.

O artista pode, sim, representar o mal, mas de forma tal que o mal aparea como um mal, do qual se deve fugir; no seja ele acolhido como um bem, no seja enfeitado e no leve os outros a reproduzi-lo e imit-lo.

O tema central do Edipo Rei de Sfocles o incesto; este descrito com frases nuas e cruas, mas torna-se de tal forma evidente, do principio ao fim, a reprovao, to terrveis so os castigos cados sobre os culpados, que o leitor, ao acabar a leitura, no fica nada entusiasmado com o incesto

Escrevi do principio ao fim. Pour cause: existem, de fato, diretores e crticos que pensam remir todo um filme pornogrfico com uma seqncia ou frase moralistica final, jogada qual asperso de gua benta para exorcismo e esconjuro.

O caso bem diverso.

***

Outra idia a ser rejeitada: que o homem de gnio quase um semideus um divo! sobranceiro moral comum. Voc manifestou este pensamento mormente no tempo em que, estudando Spinoza com a Senhora von Stein, procurava Deus no Grande Tudo, pensando que o homem inteligente poderia, elevando-se sempre mais pela cultura, ser pouco a pouco absorvido por Deus, confundir-se com Ele e tornar-se lei de si mesmo.

Hoje, no poucos compartilham esta idia, pelo menos na prtica Errado! Grandes so, verdade, o destino e as possibilidades do homem, mas de todos os homens, tambm do pobre ignorante e sofrido. Deus quis que todos fssemos seus filhos e tivssemos todos, num certo sentido, o destino que Ele tem. Mas trata-se duma elevao que se realiza com a sua ajuda e com a observncia de sua Lei, que obriga a todos, grandes e pequenos, inclusive os artistas

Diante de Deus, voc, grande poeta, os artistas presentes com seus trabalhos no Festival e ns, povo da rua, menos privilegiados em dons naturais, somos todos iguais sob este aspecto. Se a algum coube o dom da arte, da notoriedade e da riqueza este tem, por isso mesmo, uma obrigao a mais de manifestar sua gratido a Deus com uma vida boa.

Ser contado entre os grandes tambm dom de Deus que no deve esquentar a cabea de ningum, mas pelo contrrio, lev-lo modstia e virtude.

Mais uma vez, noblesse oblige! A nobreza nos compromete.

Dezembro, 1971

Ao Rei Davi

REQUIESCAT PARA A SOBERBAIlustre soberano e, tambm, poeta e msico!

Todo mundo lhe v sob os mais diferentes aspectos.

H sculos que os artistas o apresentam, ora com a harpa, ora com a funda diante do gigante Golias; ora com o cetro, sentado num trono real, ora na gruta de Engaddi, pronto a retalhar o manto de Saul.

Os jovens se deliciam com sua luta contra Golias e com suas faanhas de chefe destemido e generoso.

A liturgia, entretanto, recorda-o como um antepassado de Cristo.

A Sagrada Escritura apresenta diferentes componentes de sua personalidade: poeta e msico; oficial corajoso; rei destemido e, tambm, implicado embora nem sempre, felizmente em histrias de mulheres, intrigas de harns e as conseqentes tragdias familiares. Mas, apesar de tudo isto, amigo de Deus, graas insigne piedade que Lhe levou a adquirir conscincia de sua pequenez diante de Deus.

Esta ltima nota me fala profundamente e sinto-me feliz quando a encontro, por exemplo, no Salmo 130, composto por voc.

Naquele salmo aparece a seguinte expresso: Senhor, o meu corao no soberbo. Procuro seguir o seu caminho, mas, infelizmente, devo me limitar a pedir: Senhor, que meu corao no v atrs dos pensamentos soberbos!...

Muito pouco para um bispo!, voc diria. Eu sei, mas o fato que j fiz, muitssimas vezes, o funeral de minha soberba e me iludi a mim mesmo, crente hav-la enterrado dois metros debaixo da terra com muitos requiescat. E muitas outras tantas vezes a vi reerguer-se mais forte do que antes: senti que as crticas me desagradavam, os louvores, ao contrrio, me alegravam, e os juzos que outros faziam a meu respeito, me preocupavam.

Quando recebo algum elogio, sinto a necessidade de me comparar quele burrinho que Cristo montou no Domingo de Ramos. E digo a mim mesmo: se aquele burrinho, ouvindo os aplausos do povo, se tivesse ensoberbecido e comeasse manhoso como era a agradecer a torto e a direito, inclinando-se como o fazem os artistas num palco, quanto riso teria causado! No proceder assim!...

Quando aparecem as crticas, sinto que tenho necessidade de me colocar na situao daquela personagem manzoniana, Frei Cristforo que, objeto de ironias e zombarias, se mantinha calmo, dizendo-se a si mesmo: Frei, lembra-te que no ests aqui por tua causa.

O mesmo Frei Cristforo, em uma outra passagem, voltando-se um pouco atrs, colocando a mo direita na cintura, e levantando a esquerda, com o dedo indicador em riste, apontou Dom Rodrigo e Lhe cravou no rosto dois olhos flamejantes.

Este gesto agrada muito aos cristos modernos, que exigem profecias, denncias clamorosas, olhos inflamados, raios fulminantes, como Napoleo.

A mim me agrada muito mais aquilo que voc, Rei Davi, escreveu: os meus olhos so altivos. Gostaria tanto de me poder aproximar do que So Francisco de Sales dizia: se um inimigo me arrancasse o olho direito, poderia sorrir-lhe com o esquerdo e, se arrancasse todos os dois olhos, me sobraria o corao para am-lo.

Neste mesmo salmo, voc continua: no vou atrs de grandes coisas ou muito altas para mim. Nobre atitude de esprito, especialmente quando confrontada com o que dizia Dom Abbondio: os homens so feitos assim: sempre querem subir, sempre subir. Infelizmente, receio que Dom Abbondio tenha razo: procuramos alcanar aqueles que esto acima de ns, rebaixar os nossos iguais, e colocar mais abaixo ainda, os que esto por baixo de ns.

E ns? Procuramos sempre ser o primeiro, crescer por reconhecimentos e promoes. Nada de mal haveria em tudo isto se se tratasse de s emulao, de desejos honestos e razoveis que estimulam ao trabalho e procura.

Mas, e se se tornar uma espcie de doena? Se para irmos adiante tivermos que pisar os outros com atos de injustia e aviltamento? Se para avanarmos nos reunimos em bandos, sob pretextos os mais sutis, mas, na realidade, para obstaculizar o passo a outros bandos, tambm eles, animados de apetites mais avanados?

E pra que tipo de satisfaes? Um o efeito que produzem as cargas distncia, antes de aproximarem-se, e outro o efeito, quando esto prximas, depois de atingir o alvo. Disse-o muito bem algum que foi mais louco mas, tambm, poeta como voc: Jacopone di Todi. Quando ele ouviu que Frei Pier di Morone fora eleito papa, escreveu:

que fars Pier di Morone?

se no sabes esgrimir,

cantars uma m cano!

Repito-o muitas vezes a mim mesmo em meio s preocupaes impostas pelos meus deveres episcopais: agora meu caro, ests a cantar a ruim cano de Jacopone. Mas voc j disse isto mesmo no salmo 51, contra as ms lnguas. Estas, ouvindo o que se diz, so como navalhas afiadas que no lugar da barba rasuram o bom nome.

Bem, mas mesmo depois de cortada a barba, esta cresce de novo, espontnea e florida. A honra perturbada e a fama atacada, tambm crescem. Por isto muitas vezes melhor calar, ter pacincia: um pouco de pacincia e tudo volta espontaneamente ao seu lugar.

Ser otimista apesar de tudo! Foi isto que voc quis dizer quando escreveu: como uma criancinha no regao de sua me... assim esta a minha alma em mim. A f em Deus deve ser o motivo dos nossos pensamentos e das nossas aes. Pensando bem, so dois os personagens da nossa vida: Deus e ns.

Olhando estes dois personagens, veremos sempre a bondade em Deus e a misria em ns. Veremos a bondade divina sempre voltada para nossa misria e a nossa misria, objeto da bondade divina. Os juzos dos homens esto um pouco fora do jogo: eles nem curam uma conscincia culpada, e nem podem ferir uma conscincia reta.

O seu otimismo, ao findar deste pequeno salmo, explode num grito de alegria: entrego-me, senhor, a vs, agora e para sempre. Ao l-lo, voc no me parece um tmido, mas um destemido, um corajoso que esvazia a prpria alma da confiana em voc mesmo para reench-la da confiana e da fora de Deus.

A humildade em outras palavras caminha paralelamente com a magnanimidade. belo ser bom, mas tambm difcil e duro. Para que o esprito no aspire, de modo exagerado, s coisas grandes, eis a humildade; e para que ele no se amedronte diante das dificuldades, eis a magnanimidade.

Penso em So Paulo: deprezos, flagelos, presses, no deprimem este homem magnnimo; xtases, revelaes, aplausos, no enaltecem sua humildade. Esta aparece quando escreve: sou o menor de todos os apstolos. Magnnimo e decidido a todos os riscos, quando afirma: Tudo posso naquele que me d foras. Humilde, mas segundo as circunstncias, sabe ser corao: so hebreus? Tambm eu o sou... so ministros de cristo? Falam como loucos? Eu o sou mais ainda! coloca-se abaixo de todos, mas, em se tratando do dever, no se deixa dobrar por nada e por ningum.

As ondas arrebentam contra os cascos da nave que o levam; as serpentes o mordem; pagos, judeus, falsos cristos o expulsam e perseguem; chicoteado e preso; est a ponto de morrer todos os dias; e quando se pensa que est esmagado e aniquilado, emerge vigoroso e decidido a assegurar-nos: non angustianum, no desespero. Depois se pe em p e lana o desafio da certeza crist: estou certo de que nem a morte, nem a vida... nem o presente, nem o futuro, nem as altura, nem as profundidades, nem qualquer outra coisa me poder separar do amor de Deus que est em Cristo Jesus.

a sada da humildade crist. Esta no desemboca na pusilanimidade, mas na coragem, no trabalho interdependente e no abandono a deus.

Fevereiro, 1972

A Penlope

NA SORTE FAVORVEL E NA ADVERSAPrincesa

fez a televiso reviver as aventuras de Dido, que reinou em Cartago nos anos em que vossa Alteza era esposa de Ulisses, rei da pedregosa taca. Acontecimentos pateticamente humanos.

Santo Agostinho, que era bispo no longe de Cartago, quando menino chorara sobre eles, e ns no podemos ouvi-los de novo em emoo.

Pobre Dido! Jura fidelidade s cinzas de Siqueu, forceja por contrastar a nascente inclinao por Enas, e acaba abandonando-se confiadamente ao seu amor.

Eis, porm, sobrevm a tragdia: a apaixonada descobre que Enas se prepara para deixar Cartago; em vo suplica ao heri amado que no parta, em vo o acusa de ingratido e traio; Enas parte, e a abandonada no sabe resistir dor. As chamas da fogueira sobre a qual se deixa consumir so vistas pelos navios troianos que rumam para a Itlia.

Mais exemplar e bem sucedida foi vossa alteza. O sagaz Ulisses, com seu gnio multiforme, a levou para seu palcio depois; de haver implantado solidamente sob o leito conjugal a mais viosa oliveira. Dele teve vossa alteza Telmaco, uma jia de filho.

Verdade que Ulisses partiu pouco depois para a demorada guerra de Tria, acabada a qual (graas, sobretudo, ao famoso cavalo por ele fabricado) foi obrigado a errar pelos mares de meio mundo.

Mas, apesar de suas infinitas peripcias, teve a sorte de voltar sua taca e ao seu amor. Este, nesse entretempo, se mantivera recendente e intacto. Aqueles enfadonhos pretendentes Procos, instalados na sua casa, a banquetear-se alegremente sua custa, instavam com V. Alteza a que escolhesse dentre eles um novo esposo, mas a senhora quedou-se inabalvel! Eles se banqueteavam embaixo, e a senhora, nos aposentos superiores, com suas servas, fazia de dia e desfazia de noite o seu famoso tecido, no intento de control-los e, assim, defender a fidelidade do seu amor.

Diziam-lhe o corao e os sonhos de todas as noites que seu esposo voltaria. Quem, ento, seria o atrevido que ousasse dormir no travesseiro de Ulisses, beber na sua taa, mandar no seu filho j crescido, montar no seu cavalo e chamar o seu co?

Os Procos foram todos mortos espada; a fidelidade foi recompensada, a famlia reunida e o amor conjugal rejuvenescido.

***

Eis um amor, princesa, que, sagrado para a senhora, ainda mais sagrado para ns catlicos. E ai de quem brincar com ele!

Montaigne, por exemplo, representava o matrimnio como uma espcie de gaiola pintada e dourada: os pssaros de fora teriam uma vontade louca de entrar nela, os de dentro tudo fariam para sair.

O Conclio Vaticano II, pelo contrrio, compraz-se em tomar conscincia de que muitos homens da nossa poca do grande valor ao verdadeiro amor entre marido e mulher.

Entre os passos bblicos por ele citados, h o seguinte, que parece escrito de caso pensado para o seu Ulisses que voltou: Ele encontra sua alegria na mulher de sua juventude, serva amvel, gazela graciosa (Prov 5,18) e no pense mais na sedutora Circe, que no seu palcio o enredou um ano inteiro com festas e banquetes; no pense mais nos encantos de Nausicaa, a moa que vislumbrou certa vez beira do rio; se necessrio for, faa-se amarrar mais uma vez no fundo da nau, para no se deixar fascinar pelo canto das sereias.

A vossa alteza aplica-se por sua vez o trecho do concilio que fala de um amor conjugal indissoluvelmente fiel na prspera e na m sorte, tanto no nivel-do corpo como no do esprito, alheio a todo e qualquer adultrio e divrcio. Objetivo este que a Senhora conseguiu praticando a virtude incomum, a grandeza de nimo e o espirito de sacrifcio louvados pelo conclio, e superando os no poucos obstculos que se interpem ao amor conjugal.

E em primeiro lugar, este nosso pobre corao, to volvel e to imprevisvel o cnjuge prudente sabe que precisa acautelar-se. Pode acontecer, todavia, que tenhamos a iluso de poder, vez que outra, afrouxar na vigilncia, permitindo-nos alguma distrao. E diz-se: s um momentinho! no sairei do meu cercado; s darei uma olhadela por cima do porto fechado, assim, para ver como vai a vida l fora! Sucede, porm, que, por acaso, o porto esteja aberto, que o momentinho se transforma em hora e a hora vire traio.

Que imagina estar fazendo? Escrevia S. Francisco de Sales provocando o amor, no verdade? Mas ningum o provoca voluntariamente sem ficar necessariamente preso nele; neste jogo, quem toma tomado...

Quero prov-lo, dir algum, mas s um pouquinho. Ai!.... o fogo do amor mais ativo e devorador do que parece; vocs imaginam gozar s de uma faisca e ficam pasmos ao perceber que lhes incendiou o corao, reduzindo a cinzas os propsitos, e a reputao, a fumaa.

* * *

Segundo obstculo: a monotonia. Os cnjuges so tomados cada dia pelo prosasmo das necessidades domsticas ou profissionais. Ele tem medo de que os amigos o chamem de fraco se renuncia a uma partida para fazer companhia esposa; ela acha que perde tempo se interrompe a prpria lida para conversar um pouco com ele; e assim, chegam a convencer-se de que tudo, na sua vida afetiva, j foi mais ou menos dito, que basta ao seu amor recordar o passado e as lembranas das prprias manifestaes. Nesta situao, eles correm certos riscos: os dos anos quarenta, que Paul Bourget analisou to profundamente no romance O demnio meridiano.

Vnus ou Adnis esto na pessoa do colega ou da colega de trabalho, com os quais descobrimos ter em comum mais pontos de vista do que com o cnjuge.

Ou ento, surge uma curiosidade v: Quero experimentar se a atrao de antanho ainda vigora; uma vez verificado que funciona, quase impossvel no deixar-se arrastar.

Ou ento, enquanto as convices sadias vo caindo aos pedaos, deixamo-nos dominar pelas modas do dia: Todos fazem assim. O marido trair a mulher? so frases de melodrama; a coisa muito mais simples: trata-se s de aproveitar a ocasio, de colher uma rosa. Vocao conjugal fidelidade? Sim, s que multifidelidade; andar com esta ,no vai diminuir a minha ternura para com aquela que me dos meus filhos, que os educa, zela por meu lar, fazendo as compras todos os dias, cozinhando etc.

Haveria remdios contra esta espcie de perigos? Sim: o sentimento da nossa dependncia de Deus, a orao que alcana o que falta nossa fraqueza e a arte de renovar o prprio amor: no cesse o marido de cortejar sua mulher; procure a mulher fazer sempre agrados ao marido, tratando-o com ateno e gentileza.

S. Francisco de Sales escreve: O amor e a fidelidade, juntos, sempre geram a intimidade e a confiana; por isso os santos e santas casados mantinham intensa troca de carinhos no estado conjugal.

Assim Isaac e Rebeca (o mais casto par de cnjuges do tempo antigo) foram vistos pela janela a se acariciarem de tal modo que, embora nada houvesse de indecente, Abimelec percebeu que no podiam ser seno marido e mulher.

O grande rei S. Lus quase foi repreendido por exceder-se nessas... pequenas atenes necessrias conservao do amor conjugal.

***

Terceiro obstculo: o cime, que no nobilita o amor como s vezes se acredita mas o humilha e corrompe. uma maneira estpida de blasonar de ter amor, o querer exalt-lo com o cime; o cime pode ser, de fato, indcio da grandeza e intensidade do afeto, mas no da sua bondade, pureza e perfeio. Na realidade, quem tem um amor ntegro tem certeza de que a pessoa amada virtuosa e fiel; quem ciumento duvida da fidelidade da pessoa amada. Assim, S. Francisco de Sales, continua: O cime, acaba desgastando a substancia do amor, porque produz contrastes e discusses.

E esses contrastes e discusses constituem um quarto obstculo ao amor conjugal. Mesmo os melhores cnjuges tm seus momentos de cansao e mau humor, para os quais preciso encontrar remdio sem romper com a paz. Ele est carrancudo e sombrio? a oportunidade, para ela, de iluminar-se de doura. Ela est nervosa e cansada? a vez dele se manter calmo, aguardando a bonana. O importante que o nervosismo dele e o dela no coincidam no tempo e se sobreponham, caso contrrio, cria-se um curto-circuito, fascam relmpagos, esfusiam palavras, quem sabe por demais verdadeiras, daquela triste verdade que produz desiluses, rancores e feridas secretas.

Justo seria j que no h como furtar-se aos maus momentos que cada um dos dois tivesse a sua vez de mostrar mau carter. Infelizmente, acontece, s vezes, que um dos dois detm o triste monoplio! Neste caso... ao outro nada mais resta a fazer, seno encher-se de coragem e procurar deter o monoplio da pacincia.

Princesa, dou-me conta de ter cotejado e feito coincidir a praxe com a teoria, sobrepondo aquilo que a Senhora, no sendo crist, realizou com seu inato senso de honestidade e delicadeza, ao que o grande bispo Francisco de Sales ensinou, iluminado pela Bblia e ajudado por crescida introspeo psicolgica.

Ser que tudo isso poder ser de alguma utilidade aos cnjuges de hoje, que vivem a braos com inegveis dificuldades?

Assim espero.

Maro, 1972

Ao barbeiro Fgaro

A REVOLUO PELA REVOLUOPrezado Fgaro,

ento, voc voltou! Assisti na pequena tela, ao seu Casamento. Voc foi um filho do povo, que tratava os privilegiados de outrora de igual para igual e de chapu na cabea. Junto com a sua Susana, vocs representavam a juventude que luta para que se lhes reconhea o direito vida, ao amor, famlia, justa liberdade.

Perante o seu arrojado jeito de artista, o seu ardor agressivo e juvenilmente endiabrado, a nobreza fazia papel muito mesquinho de classe frvola, decrpita e em vias de decomposio.

Ouvi mais uma vez o seu famoso monlogo. Desde o palco, voc dizia mais ou menos assim: Ento, quem sou eu e o que, ora essa, eu Fgaro, diante de todos esses nobres brasonados, desses burgueses togados, que tudo so e tudo fazem, enquanto em substncia no so nem melhores nem piores do que eu? Barbeiro, mediador de casamentos, conselheiro de pseudo-diplomatas, sim senhores, tudo o que vocs quiserem. Mas eu sou tambm, e sinto que sou, diante de todos eles, algo novo, algo forte. Eles pretendem que s eu seja honesto num mundo de trapaceiros e tratantes No aceito, me revolto: eu sou um cidado!

Naquela noite, em Paris, o teatro virou tumulto. A platia aplaudiu, mas a nobreza, escandalizada, tapou os ouvidos. O Rei, por sua vez, tapou-lhe a boca, mandando-o para a cadeia. Em vo, porm: do palco e da priso, voc pulou lia gritando: Senhores! A comdia acabou e a revoluo ps-se em marcha!

E comeava a Revoluo Francesa

***

Se voc voltasse agora, descobriria que milhes de jovens fazem, mais ou menos, aquilo que voc fez dois sculos atrs: confrontam-se com a sociedade e, encontrando-a decrpita, revoltam-se e saltam para a lia

Num sto, l em Liverpool, est escrito: Aqui nasceram os Beatles! Aqui tudo comeou! Se no sabe, os Beatles so quatro cabeludos e Jovens cantores, que tinham o seu mesmo jeito de artista e aos quais a Rainha da Inglaterra no s no tapou a boca, mas concedeu uma alta condecorao.

Eles venderam milhes de discos e ganharam montes de dinheiro. Foram aplaudidos por platias bem mais vastas do que a sua; determinaram no mundo inteiro o surgimento de conjuntos nos quais, acompanhados de baterias e guitarras eltricas, jovens cantores agitam-se debaixo da luz violentssima de potentes refletores, excitam os espectadores, superaquecendo-os psicologicamente e levando-os a gestos coletivos de paroxstica participao.

***

Olhe em torno de si. Muitos desses rapazes usam rabicho que nem voc e cuidam do cabelo com fervor quase feminino: com shampoo de todos os tipos, com ondulaes, caracis e at mise-en-plis feitos por cabeleireiro para senhoras. E que fartas barbas! E suicinhas e suionas!

E a variedade de roupa! Uma verdadeira miscelnea de velho e novo, de feminino e masculino, de oriental e ocidental! As vezes, um simples par de blue-jeans com uma camiseta, ou mal