9
112 19 CEUTA’, um laço lusófono Carlos Leitão Carreira Apresentação Todos os dias milhares de pessoas passam em frente ao Palácio do Governo, em Díli, Timor-Leste. Para aqueles que olham para o interior dos jardins que adornam o grande edifício, não passa despercebido um monumento central, em pedra branca, que encabeça todo o cenário. Poucos saberão, contudo, que existem pelo menos outros sete espalhados por outros continentes, idênticos entre si, e que têm um nome: CEUTA. Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do Palácio do Governo A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a Timor-Leste. Foi então que, pela primeira vez, reconhecemos em Díli a exacta mesma forma existente em Torres Novas, cidade ao centro de Portugal e a única onde se pode encontrar o monumento na Europa. Foi então que, inserido nas comemorações da cidade e assinalando o Ano Internacional para o Diálogo Intercultural, levamos a cabo um trabalho de investigação, de forma a poder contextualizar este monumento na história da cidade e em cada um dos locais onde ele se encontra replicado. Nessa busca apurámos que o monumento se encontra em 8 países diferentes, todos anteriormente pertencentes à administração colonial portuguesa. Foram todos erigidos no ano de 1960, e com o propósito de assinalar os 500 anos da morte do Infante D. Henrique, o príncipe português que iniciou os estudos náuticos e lançou a gesta dos Descobrimentos, movimento percursor da globalização e dinamizador do mundo moderno. O resultado final da investigação levada a cabo traduziu-se num breve texto de apoio a uma exposição sobre o monumento, intitulada ‘48 anos do Padrão Henriquino – um marco de cooperação e amizade’, que teve lugar no teatro de Torres Novas, em 2008. Investigação que seria posteriormente complementada para publicação em revista científica portuguesa, e, a 9 de Julho de 2015, apresentada na 5ª edição das Conferências da TLSA. O texto que se apresenta trata-se dessa publicação, revista e aumentada.

Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

112

19

‘CEUTA’, um laço lusófono

Carlos Leitão Carreira Apresentação Todos os dias milhares de pessoas passam em frente ao Palácio do Governo, em Díli, Timor-Leste. Para aqueles que olham para o interior dos jardins que adornam o grande edifício, não passa despercebido um monumento central, em pedra branca, que encabeça todo o cenário. Poucos saberão, contudo, que existem pelo menos outros sete espalhados por outros continentes, idênticos entre si, e que têm um nome: CEUTA.

Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do Palácio do Governo

A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a Timor-Leste. Foi então que, pela primeira vez, reconhecemos em Díli a exacta mesma forma existente em Torres Novas, cidade ao centro de Portugal e a única onde se pode encontrar o monumento na Europa. Foi então que, inserido nas comemorações da cidade e assinalando o Ano Internacional para o Diálogo Intercultural, levamos a cabo um trabalho de investigação, de forma a poder contextualizar este monumento na história da cidade e em cada um dos locais onde ele se encontra replicado.

Nessa busca apurámos que o monumento se encontra em 8 países diferentes, todos anteriormente pertencentes à administração colonial portuguesa. Foram todos erigidos no ano de 1960, e com o propósito de assinalar os 500 anos da morte do Infante D. Henrique, o príncipe português que iniciou os estudos náuticos e lançou a gesta dos Descobrimentos, movimento percursor da globalização e dinamizador do mundo moderno.

O resultado final da investigação levada a cabo traduziu-se num breve texto de apoio a uma exposição sobre o monumento, intitulada ‘48 anos do Padrão Henriquino – um marco de cooperação e amizade’, que teve lugar no teatro de Torres Novas, em 2008. Investigação que seria posteriormente complementada para publicação em revista científica portuguesa, e, a 9 de Julho de 2015, apresentada na 5ª edição das Conferências da TLSA. O texto que se apresenta trata-se dessa publicação, revista e aumentada.

Page 2: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

113

Uma conjuntura difícil

Em fins da década de 50, Portugal vivia um crescente sobressalto político e social. Nas eleições de 1958, o General Humberto Delgado havia feito sombra ao governo autoritário do Estado Novo, obrigando-o a um gigantesco esforço de manipulação dos resultados. O ambiente de contestação era declarado e há muito se havia apagado o estado de graça conferido ao regime, no decorrer da neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial. Da própria Igreja, aliado sempre próximo do regime, chegavam manifestações de desagrado. A carta pública de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, criticando o líder máximo do regime, Salazar, e o exílio que se seguiu do prelado, aprofundam a crispação e a falta de apoio ao regime. Dois dos principais sustentáculos do Estado Novo, a Igreja e as Forças Armadas, pareciam agora divididos, menos convictos no seu apoio. Um precedente nunca mais sanado, agravando-se até à revolução de 1974. Portugal entrava, então, na recta final de uma ditadura com mais de trinta anos. Interna e externamente, perspectivavam-se já as primeiras convulsões contra o domínio colonial português. O Estado da Índia, longínquo e vulnerável, vivia sobre a crescente ameaça de anexação por parte da União Indiana. Os movimentos independentistas africanos ensaiavam também o início de ofensivas contra a presença do Estado Português. Em Portugal a emigração ameaçava traduzir-se numa sangria de proporções dramáticas, rumo a França, Alemanha ou Canadá e Estados Unidos.

Ainda assim, o regime procurava dar mostras de vigor ideológico, alheio à conjuntura que se agravava. Depois das grandes comemorações da década de 40 (8º Centenário da Fundação e 3º Centenário da Restauração) o ano de 1960 trazia novo pretexto para exultar os símbolos nacionais e revalidar os dogmas do Estado Novo: o V Centenário da Morte do Infante D. Henrique. E necessitado que estava de encontrar novas formas e pretextos para a sua própria reabilitação e revalidação ideológica, o regime busca nestas comemorações a assunção e partilha geral de um espírito colectivo, apaziguador e militante. Linhas Novas

Peça importante neste derradeiro fôlego do regime seria, como outrora, a acção criativa dos artistas portugueses. Desde há muito empenhado em fazer-se valer pela projecção, nacional e internacional, de uma imagem onde imperasse a vanguarda e o vigor artístico, o Estado Novo procura continuar a sua ‘Política de Espírito’, implementada desde 1933.

A promulgação da nova Constituição, em 1933, traria consigo a criação do Secretariado de Propaganda Nacional (depois SNI). Este organismo, vocacionado para uma orientação ideológica da produção artística e da criatividade em geral, marcará decisivamente a evolução das artes plásticas em Portugal, anunciando um rumo modernista e na vanguarda de um ‘estímulo à vida do espírito’ (de resto, inicialmente apoiado pelo próprio Fernando Pessoa). Assim se anuncia um ‘gosto oficial’, que relega para a indiferença outras tendências e sensibilidades. Na arquitectura denota-se a apreensão de uma linguagem modernizante e clássica, de clara tendência conservadora. O traço severo, tendencialmente geometrizante, em blocos, funda-se na utilização de novas técnicas e materiais industrializados, entre o cimento e o ferro, que permite ao regime uma eficácia produtiva que importava implementar, marcando o seu espaço e criando uma nova identidade, também ao nível artístico: a ordem e a disciplina. Verifica-se como que uma apropriação da estética nazi-fascista, recorrendo à sua gramática fortemente clássica, à padronização das técnicas de representação e proporções monumentais, procurando colocar o Estado, materializado na sua obra, em superioridade face ao indivíduo. Contudo, essa influência cessa onde começa a tónica nacionalista e historicista do Estado Novo, que reconhece no culto ao passado, dos feitos pátrios, e na sua transição para uma escala monumental, a forma de garantir uma autenticidade e maior aceitação desse ‘gosto oficial’, contribuindo para o discurso da grandiosidade nacional nas outras vertentes de aculturação. Na Escultura Também na escultura se reflectiriam os cânones instituídos pelo gosto dominante. A Escultura Pública, enquanto forma de enaltecer figuras e concepções adequadas à mensagem do regime, segue uma deriva de subserviência e sujeição à entidade promotora, o Estado. A dependência face à sua

Page 3: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

114

iniciativa conduz a uma uniformização das abordagens, com raras excepções de maior autonomização. A reprodução de uma iconografia invariavelmente pautada pelos valores da Ordem e da Nação, recorrendo à estilização de géneros nacionais, integram peças laudatórias, portadoras de narrativas que visam enaltecer e mistificar os heróis e o espírito que, crêem, sustenta a legitimidade do regime, seu herdeiro moderno.

Nesse sentido, a escultura conquista um lugar de destaque na atenção institucional. A criação de prémios, por parte do Secretariado de Propaganda Nacional e outras instituições governamentais, revelam esse empenho no desenvolvimento e estímulo da disciplina.

Contudo, em fins da década de 60, arquitectos, escultores e artistas plásticos, encontram-se igualmente tocados pela profunda interrogação social que se fazia ao regime, o que constitui uma óbvia contrariedade à necessidade sentida por este de renovar a tradução da sua mensagem, cada vez mais anacrónica e incompreendida. Os jovens artistas, capazes de inovação, de trazer uma nova linguagem à arte, adoptavam outros paradigmas, recusando a temática oficial, e outras mensagens, nomeadamente a de contestação ao regime, pelo que recusavam ser com este conotados. A ausência de consensos, ou sequer de uma ampla participação, conduzem a um impasse e contribuem para a anulação sucessiva de importantes concursos, que visavam uma actualização da linguagem iconográfica do Estado Novo. É esta a conjuntura vivida aquando das comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, em 1960. O Padrão Henriquino Falecido aos 66 anos, a 13 de Novembro de 1460, D. Henrique deixava como legado uma escola de ciência, um rumo inevitável e uma nova vocação para Portugal: a expansão por mar. Factor de incremento e empreendedorismo, a gesta dos Descobrimentos marcaria a transição do reino medieval para o Estado moderno, levando de arrasto toda uma Europa, já então em acesa competição. Foi esta a figura, desde sempre presente no imaginário nacional, a homenageada de 1960 que mobilizou toda a máquina ideológica e propagandística do Estado Novo. Por todo o país se multiplicaram os concursos, jogos, desfiles e paradas, colóquios, inaugurações, discursos e publicações, num verdadeiro corrupio de comemorações onde as crianças eram peça chave, arregimentadas pelas escolas e comandos da Mocidade Portuguesa.

Imagem 2 - Infante D. Henrique – Pormenor dos Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves (1470-1480)

Page 4: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

115

Ora, mas se para o regime seria fundamental um assinalar expressivo da efeméride na metrópole, não menos o seria junto das colónias, desejavelmente imbuídas no mesmo espírito, enquanto símbolo vivo do ‘legado henriquino’ e verdadeiro motor de uma economia delas dependente. Era então criada, em 6 de Setembro de 1958, pela Presidência do Conselho e Ministério do Ultramar, a Comissão Ultramarina das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, presidida pelo Contra-Almirante Manuel Maria Sarmento Rodrigues. A 11 de Setembro de 1958 eram nomeadas as Comissões Provinciais do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, para estabelecer correspondência directa com a Comissão Ultramarina. Em Timor, a comissão provincial era presidida pelo Intendente de Distrito, Dr. Leovigildo Lisboa Santos, chefe dos Serviços de Administração Civil, posteriormente substituído pelo Comandante da Defesa Marítima de Timor, Capitão-Tenente António Sérgio Pereira Cardoso. A Comissão Provincial de Timor tinha um orçamento total de 2.750$00 para o seu programa, onde se incluía a emissão de um selo postal específico da província, alusivo à efeméride.

Por sua vez, à Comissão nacional caberia a organização e divulgação, junta das respectivas Comissões Provinciais, do programa de comemorações destinado a cada província. Desse programa, e somando aos itens próprios de cada província, fizeram parte iniciativas abrangentes como um ‘Acampamento internacional da juventude’.

À referida Comissão Ultramarina caberia ainda a promoção de um concurso para a escolha de um ‘Padrão Comemorativo, a erigir nas províncias ultramarinas pelas respectivas Comissões Provinciais’. Os resultados, conhecidos a 13 de Janeiro de 1960, atribuiriam o segundo prémio, no valor de 15 mil escudos, ao arquitecto Joaquim Areal, sendo o primeiro prémio, no valor de 25 mil escudos, entregue ao pintor e escultor conimbricense Severo Portela Júnior, com o projecto/modelo denominado ‘CEUTA’.

Imagem 3 - Modelo do projecto vencedor de Severo Portela: CEUTA

Page 5: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

116

Severo Portela Júnior – (n. 10 Set.1898 / m. 8 Jul.1985) Severo Portela Júnior cursou escultura na Escola de Belas Artes de Lisboa, tendo o seu primeiro trabalho obtido a classificação de 20 valores. Desde cedo foi viver para Almodôvar, vila do Baixo Alentejo, onde se começou a dedicar mais à pintura, por influência da mulher, a pintora Maria José Carrilho Marreiros, aluna particular de pintura de Mestre Carlos Reis. Em 1930 recebe o prémio Rocha Cabral e a primeira medalha de ouro da Sociedade Nacional de Belas Artes, prémio que torna a receber no ano seguinte com o quadro ‘1860’, adquirido pelo Estado para o Museu de Arte Contemporânea. Foi bolseiro da Junta Nacional de Educação, em 1933, e do Instituto de Alta Cultura. Para além de primeiro classificado no concurso do Padrão Henriquino, seria o segundo premiado no concurso da medalha comemorativa do monumento a Nun’Álvares. Seria condecorado com a Ordem da Instrução Pública em 1936, e com a Ordem Militar de Cristo, em 1981. Era ainda membro jubilado da Academia Nacional de Belas Artes. Encontra-se, por sua vontade, sepultado em Almodôvar, local onde se concentra a maior parte do seu espólio artístico. O Padrão nas ex-colónias No âmbito da Escultura Pública, este será dos casos raros em que aquela se faz de forma tão ampla, dispersa e unificadora ao mesmo tempo. Observando o referido Programa de Comemorações, destinado às Províncias Ultramarinas, foram várias as cidades que, nas ex-colónias, adoptaram este modelo arquitectónico como forma de se associar às comemorações e fazer perpetuar a memória desse símbolo maior da ocupação colonial: Díli (Timor), Água Grande (S. Tomé e Príncipe), Lourenço Marques (Moçambique), Cidade da Praia (Cabo Verde), Bissau, Farim e Cacheu (Guiné-Bissau), Pangim (Goa, Índia), são algumas cidades onde, ainda hoje, se poderá encontrar o Padrão no seu lugar. Por confirmar ficarão as reminiscências de uma possível presença em Angola. Com efeito, apesar de no Programa se encontrar indicada a pretensão da sua construção na generalidade do Império, o prazo para a obra raramente se encontra estipulado, ficando dependente da capacidade e da iniciativa de cada ‘Comissão Provincial’, em alguns não se tendo chegado a concretizar. Assim, para Angola, admitia-se a ‘implantação de um monumento ao Infante, segundo plano que seria posto a concurso’. A Caravela Padrão A obra com a divisa ‘Ceuta’ insere-se na tipologia do Monumento, veiculando uma homenagem e evocando uma memória específica. Contudo, importa primeiro reconhecer a natureza formal desta peça, procurando desconstruir a criação do autor. O corpo principal do monumento, à primeira vista interpretável como uma vela estilizada, é, antes de mais, o comum ‘Padrão’, um marco de pedra que, no período dos Descobrimentos, os capitães mandavam implantar no solo descoberto, como forma de afirmar a soberania portuguesa e reclamar o direito de precedência. Estes marcos, em forma de pedestal, eram constituídos por uma coluna cilíndrica de alguns metros, contendo a respectiva inscrição do capitão. Seria depois encimada por um cubo, cujas 4 faces apresentariam gravadas as armas portuguesas, em baixo-relevo. No topo do cubo fixada a cruz de Cristo.

Page 6: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

117

Imagem 5- Réplica do padrão colocado pelo navegador Diogo Cão, no Cabo da Cruz, na Namíbia, em 1485

Este motivo nacional, e sobejamente reproduzido na escultura do Estado Novo, foi o ponto de partida tomado pelo artista, podendo-se reconhecer, na face frontal do monumento cada uma das componentes do padrão tradicional (coluna inscrita, cubo com armas nacionais, e cruz no topo). Severo Portela toma então a liberdade de dinamizar o estático padrão, fazendo com que o seu corpo de prolongue para trás, dando-lhe a forma de uma vela enfunada, a sensação de movimento. Por seu lado, a base da composição é composta por uma rampa que sobe no sentido da vela, o que poderá ser interpretado como forma estilizada do casco do navio.

O monumento é erigido em pedra, calcário moleano, possuindo motivos decorativos em baixo-relevo. O tema desses motivos, a pretexto da comemoração do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, trata da composição entre uma homenagem e a evocação de uma memória. É exactamente essa duplicidade que se vislumbra na iconografia presente, em baixo-relevo, contornando o cubo deformado do Padrão. Assim, para além das armas do Infante, gravadas na face frontal do cubo, a sua face esquerda oferece a imagem do Quadrante e do Astrolábio, envoltos em estrelas.

Page 7: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

118

Imagem 6 - Instrumentos náuticos, gravados a baixo-relevo na face direita do cubo – monumento na Cidade da

Praia, Cabo Verde

Estes dois elementos, essenciais à navegação nocturna, surgem como homenagem à empresa do Infante, principal organizador e financiador da gesta dos Descobrimentos. Na face direita, observam-se duas caravelas que se aproximam de terra, retratando o momento antes do desembarque que daria lugar à conquista de Ceuta, em 1415. Imagem 7- Caravelas aproximando-se de Ceuta, gravado a baixo-relevo na face esquerda do cubo - monumento

em Díli, Timor-Leste

Page 8: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

119

Trata-se da evocação dessa memória. A expansão da fé cristã e o aumento de solo sob domínio cristão foram algumas das motivações que levaram à conquista da importante praça marroquina de Ceuta. Revestindo o espírito de cruzada, o Infante D. Henrique é apontado como principal instigador do avanço sobre África, tendo insistido junto de seu pai, D. João I, para que tomasse a decisão. Após a tomada chegaria a ser encarregue do governo da praça. Daí a forte ligação do Infante a Ceuta. Daí a temática escolhida por Severo Portela.

Por fim, na sua face esquerda, em letras a bronze, o monumento contém a inscrição ‘POR MARES / NUNCA DANTES / NAVEGADOS’, citando as estrofes do poeta português Luís Vaz de Camões. Na sua face direita, também em letras a bronze, encontra-se escrito ‘V CENTENARIO / DA MORTE DO / INFANTE D. HENRIQUE’.

Tendo partido de um pintor com visível predilecção pelo estudo da gente simples, seus rostos, trajes e alfaias, um pouco ao gosto naturalista, torna-se peculiar esta sua incursão pelas linhas rectas e formas clássicas da escultura monumental do Estado Novo. Não se lhe conhecem outros projectos do género, salvaguardando-se a criação de alguma estatuária. Num tempo em que o regime procurava contrariar todas as novas tendências, políticas, económicas, sociais e, inclusive artísticas, Severo Portela terá condescendido em criar algo de acordo com os cânones da idade de ouro do Estado Novo. Uma nova missão Conservado que foi em 8 cidades da Lusofonia, o Padrão Henriquino representa, agora, pouco mais que a ténue memória de uma época em que a arte tinha uma função eminentemente ideológica e política. O símbolo de um regime, a marca de uma época, o selo de uma presença dominante. Hoje, ultrapassadas todas as dúvidas e redefinida a identidade destes países, compete-nos o dever de estreitar laços e encorajar novas formas de diálogo. O Padrão Henriquino, longe de representar hoje, para os povos que o mantêm, um símbolo da devassa ou da tutela de um povo, poderá representar e cumprir uma nova missão, como símbolo comum entre estas cidades e legado de uma história partilhada. Este e outros monumentos do período colonial pertencem agora à herança cultural destas novas nações. Uma parte da sua própria história e um bem para o seu futuro. Bibliografia Aavv, 1998, Severo Portela (1898-1985) – O Homem e o Artista No 1º Centenário do seu Nascimento, s.n., 2ª

edição, Braga

Page 9: Imagem 1 - Monumento de Díli, Timor-Leste, em frente do ... Conf 2015/VOLUME I/vol1_chp19.pdf · A nossa atenção para esta obra surgiu em 2008, o ano da nossa primeira visita a

120

Abreu, José Guilherme, 2007, Escultura Pública e Monumentalidade em Portugal (1948-1998), Tese de Doutoramento na FCSH-UNL

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. 22, Editorial Enciclopédia, Lda., Lisboa – Rio de Janeiro, pag.580

Programa das comemorações nas províncias ultramarinas, 1960, Presidência do Concelho e Ministério do Ultramar, Lisboa

Tostões, Ana Cristina, 1995, ‘Arquitectura portuguesa do século XX’, in: História da Arte Portuguesa, Dir. Paulo Pereira, Barcelona, Círculo de Leitores, Col. Grandes Temas da Nossa História, Vol. III