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Imagem da migração haitiana no Brasil 1 Matheus Passaro 2 PPGCOM ESPMSP Resumo Este artigo reflete sobre as narrativas midiáticas produzidas a partir do intenso fluxo de informações e imagens produzidas sobre a migração haitiana no Brasil. Discutese neste trabalho como as relações de consumo dessas informações e imagens são importantes para compreender algumas práticas discriminatórias e racistas. Para tal, será necessário contextualizar as migrações contemporâneas e a recente migração haitiana, além de realizar reflexões advindas dos discursos das narrativas midiáticas verbais e visuais. Objetivando entender como a mídia apresenta práticas diferenciadas dos Outros (alguns imigrantes) em relação ao Nós (alguns brasileiros) analisamos a representação imagética em um acontecimento jornalístico envolvendo a chegada de imigrantes haitianos à cidade de São Paulo no ano de 2015. Reflexão necessária para compreender se este processo ajuda a configurar o racismo. Palavraschave: comunicação; fotografia; migração haitiana. 1. Introdução A migração haitiana para o Brasil, intensificada no país a partir de 2011, recebeu notoriedade pública pelo intenso fluxo de informações e imagens produzidas plea mídia brasileira. Acompanhamos parte desta visibilidade a partir da narrativas midiáticas que enunciam as dinâmicas de chegada e inserção de haitianos no Brasil, sobretudo, na cidade de São Paulo. Recentemente, uma nova chegada foi difundida pela mídia com ênfase na categorização dos hatianos, conflito de governos na questão da política migratória e pelo registro fotográfico vexatório de um jovem adulto, haitiano, banhandose com água advinda de um mictório. 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Cidadania do 5º Encontro de GTs Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestrando em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPMSP. Professor do curso de graduação em Design da ESPM. Email: [email protected]

Imagem da migração haitiana no Brasil - Comunicon 2015anais-comunicon2015.espm.br/GTs/GT11/7_GT11_Matheus_Passaro.pdf · A migração haitiana para o Brasil, intensificada no país

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Imagem da migração haitiana no Brasil 1

Matheus Passaro 2

PPGCOM ESPM­SP

Resumo

Este artigo reflete sobre as narrativas midiáticas produzidas a partir do intenso fluxo de informações e imagens produzidas sobre a migração haitiana no Brasil. Discute­se neste trabalho como as relações de consumo dessas informações e imagens são importantes para compreender algumas práticas discriminatórias e racistas. Para tal, será necessário contextualizar as migrações contemporâneas e a recente migração haitiana, além de realizar reflexões advindas dos discursos das narrativas midiáticas verbais e visuais. Objetivando entender como a mídia apresenta práticas diferenciadas dos Outros (alguns imigrantes) em relação ao Nós (alguns brasileiros) analisamos a representação imagética em um acontecimento jornalístico envolvendo a chegada de imigrantes haitianos à cidade de São Paulo no ano de 2015. Reflexão necessária para compreender se este processo ajuda a configurar o racismo.

Palavras­chave: comunicação; fotografia; migração haitiana.

1. Introdução

A migração haitiana para o Brasil, intensificada no país a partir de 2011, recebeu

notoriedade pública pelo intenso fluxo de informações e imagens produzidas plea

mídia brasileira. Acompanhamos parte desta visibilidade a partir da narrativas

midiáticas que enunciam as dinâmicas de chegada e inserção de haitianos no Brasil,

sobretudo, na cidade de São Paulo. Recentemente, uma nova chegada foi difundida

pela mídia com ênfase na categorização dos hatianos, conflito de governos na questão

da política migratória e pelo registro fotográfico vexatório de um jovem adulto,

haitiano, banhando­se com água advinda de um mictório.

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Cidadania do 5º Encontro de GTs ­ Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestrando em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM­SP. Professor do curso de graduação em Design da ESPM. E­mail: [email protected]

O presente trabalho tem como objetivo compreender as formas de representação

imagética da migração haitiana por parte da mídia brasileira, tomando como referência

a utilização da imagem em um acontecimento midiático. Entendendo o acontecimento

"como algo que emerge ou provoca uma ruptura na continuidade da experiência, que

provoca ações e discursos por parte de indivíduos e instituições, revelando problemas,

temas, questões da vida coletiva" (COGO; SILVA, 2015, p. 13 apud QUÉRÉ, 2005),

interessa­nos apreender as tensões presentes nas imagens que buscam representar a

presença desse novos imigrantes na sociedade brasileira.

Algumas questões nos orientam para a reflexão aqui proposta. Destacamos três:

1) Como a estetização do cotidiano, proposta por Jameson (1994), influenciou a

fotografia jornalística? 2) A crise do jornalismo, identificada por Baeza (2001; 2009),

resulta no uso de fotografias degradantes? Como, segundo Van Dijk (2010), a

fotografia, como representação de um discurso, de migração pode trazer

representações claras de racismo?

O método de trabalho consistiu na coleta e análise de imagem de um

acontecimento midiático sobre a migração haitiana no Brasil em maio de 2015.

Identificamos o acontecimento selecionado como representativo das disputas que

envolvem a construção midiática e imagética da migração haitiana no Brasil, pois a

veiculação das imagens geraram grande repercussão em diferentes grupos da

sociedade, dentre eles: os receptores da mídia analisada, migrantes haitianos

residentes no Brasil e no exterior, além de setores e comunidades quem atuam no

apoio a essa migração.

As imagens foram veiculadas em um jornal de maior circulação, em seu

segmento, na cidade de São Paulo ­ jornal "Agora" e replicadas a um jornal de

circulação ainda maior, nacional, pertencente ao mesmo grupo midiático, grupo

Folha, do jornal Folha de S. Paulo. As imagens também foram veiculadas na página

da internet do jornal. Trata­se da notícia do dia 20 de maio de 2015, sobre a 3

3 Folha de S. Paulo. Nova onda de imigrantes haitianos causa superlotação em paróquia. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1631279­nova­onda­de­imigrantes ­haitianos­causa­superlotacao­em­paroquia.shtml>. Acesso em: 23 junho 2015.

superlotação da "Casa do Migrante", coordenada pela igreja Nossa Senhora da Paz, no

Glicério, centro de São Paulo. Dentre as seis imagens que acompanham a notícia do

jornal da internet, vamos nos atentar apenas a uma imagem (imagem 01), certamente a

mais emblemática, pois retrata um jovem adulto, haitiano, nu, banhando­se na água

vinda de um mictório. Nesta imagem, não é possível ver o rosto do imigrante, mas nas

outras imagens que acompanham a reportagem na internet, é possível identificá­lo.

Destacamos que a imagem foi capa do jornal Agora.

Imagem 1: Haitiano toma banho com água de mictório. 20/05/2015.

Fotógrafo: Ronny Santos/FolhaPress 4

A análise da fotografia foi desenvolvida a partir de algumas teorias da imagem

aplicadas ao campo da comunicação. Dentre os aportes teóricos, utilizamos as

referências sobre transformações da imagem na pós­modernidade por Jameson

(2004); a crise do jornalismo e da fotografia documental por Baeza (2007; 2009) e

sobre discursos e racismo, por Van Dijk (2015). Destacamos também a contribuição

da autora Cogo (2007; 2013; 2015) para as questões sobre migração contemporânea,

migração haitiana e narrativas midiáticas.

4 Folha de S. Paulo. Nova onda de imigrantes haitianos causa superlotação em paróquia. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1631279­nova­onda­de­imigrantes ­haitianos­causa­superlotacao­em­paroquia.shtml>. Acesso em: 23 junho 2015.

2. Migrações contemporâneas

Diversos fatores podem desencadear um processo diaspórico, dentre os quais,

fatores subjetivos e próprios de uma cultura até fatores externos, tais como desastres

ambientais, guerras, perseguições políticas e étnicas. Além das causas relacionadas

aos estudos e a busca de trabalho para melhores condições de vida. É importante

destacar que um fator não exclui o outro e a migração internacional pode possuir uma

imbricação de diferentes fatores, ou seja, até mesmo uma migração específica pode

possuir nuances e diferenças significativas entre os motivos que desencadearam os

deslocamentos.

Segundo cálculos da ONU para o ano de 2013, cerca de 232 milhões de 5

pessoas, ou 3,2% da população mundial, são migrantes. Destaca­se o maior fluxo de

pessoas para a Ásia, registrando 1,7 milhão de migrantes por ano na primeira década

do século XXI. A América Latina e Caribe representam 1 milhão de novos migrantes

ao ano. Este cenário representa uma mudança frente às migrações típicas do passado

colonial, "circunscrita a alguns países de acolhida e a algumas nações ou regiões de

saída de migrantes" (COGO, 2007, p. 65). Ainda, segundo o relatório, recentemente a

crise econômica e financeira tem forte impacto sobre o fluxo de cidadãos dos países

afetados.

País caracterizado pela miscigenação de diferentes povos, o Brasil tem sua

trajetória marcada por diferentes fluxos migratórios na. No final do século XIX e

início do século XX, com o fim da escravidão, o país recebeu um grande número de

imigrantes, principalmente europeus. Contudo, nas décadas de 1980 e 1990,

constatamos uma grande saída de brasileiros para a Europa, Estados Unidos, Japão,

Paraguai e Inglaterra (COGO, 2013 apud MRE, 2011). Na atualidade, alguns dados

apontam para uma estabilidade no fluxo migratório no Brasil, sem poder constituir

como um único movimento migratório predominante (COGO, 2013 apud IBGE,

2010; FERNANDES, 2015). Outros dados, apontam para um aumento do fluxo

5 ONUBR ­ Nações Unidas do Brasil. Mundo tem 232 milhões de migrantes internacionais, calcula ONU. Disponível em: http://nacoesunidas.org/mundo­tem­232­milhoes­de­migrantes­internacionais­calcula­onu/. Acessado em: 20 jul 15.

imigratório levando ao Brasil, novamente, à condição de nação receptora de migrantes

transnacionais, como aponta Cogo (2013) ao apresentar dados do Departamento de

Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça que identificam um aumento

significativo de imigrantes entre 2010 e 2011, além de reflexões produzidas por

pesquisadores e dados divulgados na mídia.

Entretanto, é importante problematizar as diferentes estatísticas compreendendo

a variação interpretativa de seus dados e de que se tratam de casos estritamente

registrados, o que não abarca neste contingente, os não documentados. Assim sendo,

os dados oficiais brasileiros não revelam a real magnitude da migração no Brasil.

Concordamos com Cogo (2013, p. 30) onde "não é possível associar às migrações

uma única causa, nem homogeneizar os fluxos migratórios, mas é necessário analisar

os diferentes fluxos, perfis e realidades migratórias, as diversas causas e motivações

econômicas, políticas e sociais que a elas se associam".

No que concerne à recente migração haitiana para o Brasil, consideramos

importante contextualizar, primeiramente em dados quantitativos, a sua relação com

outros fluxos migratórios. Segundo dados compilados por Uebel (2015) do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatísticas, do Departamento de Polícia Federal e do

Ministério do Trabalho e Emprego, o país recebeu 1,9 milhão de imigrantes no

período que compreende os anos de 2007 a 2014. Destes, contabilizando apenas os

registros oficiais, 27.970 eram haitianos, ou seja, quase 1,5% do total de migrantes

vindos para o Brasil. Ainda, segundo o autor (UEBEL, 2015), em um ranking dos

grupos migratórios no Brasil por nacionalidade, dados dos anos 2000, 2007­2014,

utilizando­se das mesmas instituições apontadas acima, o Haiti figura 19° posição.

Dentre as 5 primeiras nacionalidades, encontramos respectivamente Portugal

(323.468), Estados Unidos (163.582), Japão (157.390), Bolívia (112.828) e Itália

(111.969). Apenas no ano de 2014, mais de 279 mil portugueses migraram para o

Brasil.

Embora a migração haitiana para o Brasil não seja representativa, em termos

numéricos, ela se reveste de especial importância pelo afluxo expressivo de migrantes

que chegaram ao país sem o visto de entrada. Além, obviamente, da intensa cobertura

midiática sobre o acontecimento, propiciando ações mais imediatas do Governo, no

que compete a políticas migratórias, e repercussões antagônicas em grande parte da

população, indo da acolhida dessas novas pessoas ao xenofobismo e discriminação.

Não existe um único motivo para esse fluxo migratório e sua origem pode ser

representada em um quadro de múltiplos fatores. Certamente que o recente e severo

terremoto que acometeu o Haiti em 2010 influenciou a saída de haitianos do país mas

soma­se a isso, muitos outros aspectos, dentre os quais, destacamos: a longa crise

econômica e política que vive o país, na sucessão de governos ditatoriais, golpes de

estado e uma gerra civil; características culturais, inerentes aos haitianos, de serem um

país diaspórico (HANDERSON, 2015); política brasileira de apoio e comando da

Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti ­ MINUSTAH

(FERNANDES, 2015; COGO, 2015); efervescência econômica brasileira, no período,

representando o país como 6° economia mundial ­ Brazilian dream como destaca

Uebel (2015), além "das obras de infraestrutura relacionadas aos grandes eventos

como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016" (COGO, 2015, p. 5);

dentre outros fatores. Contudo, Handerson (2015) aponta que boa parte dos haitianos

não buscavam o Brasil como destino mas como local de passagem para outros países.

Porém, muitos acabavam fincando no país por serem enganados pelos raketè yo . 6

3. Enquadramento da migração contemporânea na mídia

Utilizamos um estudo coordenado por Cogo (2006) em torno das interfaces

entre mídia, interculturalidade e migrações contemporâneasomo como reflexão sobre

o enquadramento da migração contemporânea na mídia. Entendendo o conceito de

enquadramento, como "útil para identificar as formas de interpretar ou significar um

acontecimento, tema etc. e as disputas de sentido aí envolvidas, além de permitir ver

como os atores envolvidos são posicionados ou qualificados numa determinada

6 Expressão em créole, língua nativa no Haiti, para designar as pessoas que cobram dinheiro para efetuar vários tipos de transação como as viagens das pessoas. Comumente chamados aqui no Brasil de "coiotes". Estima­se que este comércio já faturou 60 milhões de dólares.

situação" (COGO, 2015, p. 6).É preciso problematizar que o estudo de Cogo (2006) é

anterior a 2006 e este cenário vem se modificando significativamente após, sobretudo,

o acompanhamento midiático da migração haitiana no Brasil.

Segundo o estudo (COGO, 2006), o espaço dedicado as migrações aos países

pertencentes à União Européia e os Estados Unidos como nação receptora de

imigrantes de distintas nacionalidades representavam, respectivamente, 22,1% e 21%,

ou seja, 43,1% dos textos coletados apresentavam uma relevância assumida pelo

espaço da editoria Mundo (entenda­se aqui como não local). As migrações

contemporâneas no contexto brasileiro, editoria local, foram pouco representadas em

relação a editoria Mundo. Destacam­se os "fluxos migratórios internos ao Mercosul"

com 5,30%; "outras migrações internacionais no Brasil" com 3,50% e a "experiência

imigratória asiática no contexto brasileiro" com 2,80%. Diferentemente das

imigrações históricas de matriz européia no contexto brasileiro que representavam

19,80% nas mídias analisadas, embora a pesquisa tenha utilizado três mídias da região

sul ­ conhecido reduto de imigrantes europeus.

Concordamos com Cogo (2006) ao problematizar a perspectiva de pouca

cobertura das migrações no contexto brasileiro na editoria Local, uma vez que essa

dinâmica desfavorece uma maior sensibilização e mobilização dos jornalistas para

assuntos migratórios "ou pelo menos a se preocuparem com o tratamento ético do

fenômeno por meio, por exemplo, do emprego de manuais de estilo de minorias

éticas" (idem, p. 59). Soma­se a esse problema que boa parte das fontes de informação

sobre as migrações da editoria Mundo provém das agências de notícias. Segundo

Cogo (2006, p.82) em sua pesquisa, houve "uma centralidade assumida pelas agências

AP, France Press e Reuters na noticiabilidade das migrações, especialmente as de

caráter contemporâneo", leia­se também, uma presença majoritária de fotos

produzidas por essas agências. Baeza (2009) aponta a centralidade dessas agências

como a crise do jornalismo e do fotojornalismo,

"propiciada por la incapacidad de dar respuesta profesional al proyecto de los grandes poderes financeiros de dominar el sentido del mundo a través del control de todos los campos y discursos de la representación, especialmente

en los medios de comunicación. Quien controla el sentido de las cosas, controla mejor las cosas" (Idem, p. 12).

Ainda, segundo o autor, para o campo da fotografia e do fotojornalismo:

"El resultado es que la pérdida de cultura visual profesional crítica hace que en el terreno de la imagen los diarios sean muy parecidos unos a outros, y que estén estancados en unos parámetros muy bajos de riqueza visual. Predomina la imagen de acontecimiento local o suministrada por los monopolios informativos de AP, Reuters o AFP. Imágenes iguales para todos que reducen la realidad del mundo a esteriotipos que anulan la diversidad de los fenómenos a los que se refierem y que sin embargo ocultan, en su profusión de escenarios, lo más obvio: a quién aprovecha la injusticia y la violencia" (BAEZA, 2001, p. 14).

Dentre as temáticas com maior presença da mídia brasileira, foram encontradas,

segundo Cogo (2006) as políticas e regulações dos fluxos migratórios como principal

tematização, totalizando 13,9% do total de textos analisados. Seguidos pelo

terrorismo (13,9%); contribuição cultural e artística relacionada às migrações,

sobretudo de matriz européia no Brasil (12,1%); leis de imigração (9,8%);

discriminação (8,6%) e conflitos e manifestações envolvendo os imigrantes com

7,8%. Destacamos algumas tematizações com menor incidência e sem percentual

representativo sobre as questões envolvendo cidadania, dificuldades enfrentadas por

imigrantes e a contribuição econômica e social desses novos povos para a população

brasileira. Podemos apreender pelos dados apresentados, elementos que direta ou

indiretamente contribuem para uma ação discriminatória contra os membros de um

grupo minoritário, pelo simples agendamento de algumas questões em detrimento de

outras. Van Dijk (2015, p. 138) aponta que "os discursos não só são formas de

práticas interacionais ou sociais, mas também expressam e transmitem sentidos, e

podem assim influenciar nossas crenças sobre imigrantes ou minorias".

Em relação à migração haitiana para o Brasil, dados recentes (COGO; SILVA,

2015) apontam para uma maior cobertura midiática na editoria Local, mesmo se

levarmos em consideração as características dessa migração, pois fica evidente o

agendamento sistemático de acontecimentos de chegada desta população.

Comparativamente, os 162 materiais midiáticos analisados pelas autoras Cogo e Silva

(2015) sobre a migração haitiana, superam significativamente todos os materiais

analisados por Cogo (2006) em estudo anterior a partir da presença de notícias sobre

as migrações internacionais no Brasil (no estudo citado, a abordagem representava

3,5% do total de mídias analisadas ou 66 eventos midiáticos). Lembramos que no

mesmo período relacionado à migração haitiana e analisado pelas autoras, de 2010 a

2014, o país recebeu mais de 1,450 milhão de novos imigrantes. 7

Ainda, segundo as autoras Cogo e Silva (2015), dois acontecimentos foram

representativos no período analisado: (1) a chegada dos imigrantes ao Brasil e (2) o

fechamento do abrigo em Brasiléia no Acre, seguido da chegada de haitianos a São

Paulo. Destaca­se, na análise de chegada dos imigrantes haitianos, um tipo de

representação que privilegia vitimação desses imigrantes , seja advinda da miséria de

grande parte da população haitiana ou da uma epidemia de cólera que sofreu o país

após terremoto de 2010. Além da imagem vitimadora, a condição de ilegalidade dos

imigrantes, também foi ressaltada na análise das autoras, destacando a ação como

"um recurso que privilegia um enquadramento objetivo e conclusivo das migrações em detrimento da compreensão do seu caráter sociocultural e cidadão, além de fortalecer o protagonismo das nações e governos (e não das sociedades) na gestão e controle da realidade dos movimentos migratórios" (COGO; SILVA, 2015, p. 7).

O fechamento do abrigo em Brasiléia pelo governo do Acre, em abril de 2014, e

o aumento do fluxo de imigrantes à cidade de São Paulo foi acompanhada de ampla

visibilidade midiática no que compete às disputas da política migratória entre as

várias instâncias governamentais em uma sugestão" a reinstauração de uma ambiência

securitária e criminalizadora que visa o controle dessa migração, ao mesmo tempo

em que contribui para expor, no âmbito do debate público, as repercussões da

intervenção geopolítica do Brasil no Haiti" (COGO; SILVA, 2015, p. 11).

Destacamos, a partir da análise das autoras Cogo e Silva (idem), as narrativas

desprendidas das reportagens, evocando a migração haitiana associada a "problema",

7 Dados do IBGE, MTE e Polícia Federal in UEBEL, 2015.

"chegada massiva", "invasão", "descontrole por parte das autoridades" e "ilegalidade

por parte dos imigrantes", etc. Acrescentaríamos a essas narrativas, com relação a

notícia utilizada de divulgação da imagem (imagem 01) que analisamos, os termos 8

"nova onda de imigrantes causa superlotação em paróquia" e "quando a imigração de

haitianos para o Brasil explodiu", além da já citada, falta de controle das autoridade.

Assim, concordamos com Van Dijk (2015, p. 134­135) que

"o discurso pode ser um influente tipo de prática discriminatória. [...] Isso não significa que as práticas discriminatórias são sempre intencionais, mas tão somente que elas pressupões representações mentais socialmente compartilhadas e negativamente orientadas acerca de Nós sobre Eles. [...] As ideologias e os preconceitos étnicos não são inatos e não se desenvolvem espontaneamente na interação étnica, Eles são adquiridos e aprendidos, e isso normalmente ocorre através da comunicação, ou seja, através da escrita e da fala. E vice­versa: essas representações metais do racismo são tipicamente expressas, formuladas, compartilhadas dentro do grupo dominante. Esse é essencialmente o modo como o racismo é "aprendido" na sociedade".

Compartilhamos o conceito de racismo do autor Van Dijk (2015, p. 134) que

aponta, embora o racismo seja frequentemente reduzido a ideologia racista, ele deve

ser compreendido "como um complexo sistema social de dominação, fundamentado

étnica ou "racialmente", e sua consequente desigualdade".

Podemos perceber, sendo intencional ou não, existe uma ideologia para

categorizar Alguns em detrimento de Outros. Ressaltamos ainda, que "diferenciar a

fim de criar identidades é uma prática que a mídia realiza com frequência, tendendo a

generalizações um tanto quanto vazias, mas que auxiliam na identificação de grupos

sociais nos texto jornalísticos" (CHIODETTO, 2008, p. 125).

4. Construção imagética na mídia

Morin, em "O cinema e o homem imaginário" (1970), expõe o quanto é vasto o

campo abarcado pela fotografia ­ desde a foto­presença e a foto­recordação à

foto­extralúcida ­ satisfazendo uma grande quantidade de carências tão evidentemente

8 Folha de S. Paulo. Nova onda de imigrantes haitianos causa superlotação em paróquia. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1631279­nova­onda­de­imigrantes ­haitianos­causa­superlotacao­em­paroquia.shtml>. Acesso em: 23 junho 2015.

subjetivas quanto tão amplas são as nossas necessidades, destacando que a função da

fotografia é ser multiforme e sempre, em última análise, indefinível. Reforça ainda

"o que parece ser propriedades da fotografia são propriedades do nosso espírito, que nela se fixaram, e que ela nos devolve. Em vez de se procurar na coisa fotográfica a qualidade tão evidente e profundamente humana da fotografia, dever­se­á partir do homem… A riqueza da fotografia reside, de fato, no que nela não existe, mas que nela é projetado e fixado por nós. [...] Tudo se passa, igualmente, em certos casos, como se a fotografia revelasse uma qualidade que o original não possui, uma qualidade de duplo" (Morin, 1970, p. 41).

A referência acima, está relacionada diretamente a nossa faculdade de criar ou

conceber imagens que podem estar associadas à fantasia, crença ou até superstição. A

existência de um conjunto de imagens é determinada pela existência de um imaginário

e, nesta duplicidade, o imaginário é ao mesmo tempo, impalpável e real (Maffesoli,

2001). Destaca­se ainda que o imaginário, funcionando pela interação e sempre

coletivo, é o estado de espírito de um grupo, de um país de um Estado­nação e, que ao

mesmo tempo, o imaginário é mais que cultura: "é aura que a ultrapassa e alimenta"

(Maffesoli, 2001, p. 76). Fazemos essa correlação com o imaginário, pois, certamente,

a fotografia do imigrante haitiano aqui analisada, de autoria do fotógrafo Ronny

Santos, representa imagens de uma certa categorização ou de um certo olhar para

alguns pertencimentos (SERRES, 1997). Este olhar está determinado pela escolha de

ângulo de tomada da cena, um recorte operado por uma lente grande­angular , além 9

dos aparatos técnicos de pós­produção da imagem, ou seja, "o fotógrafo faz opções

técnicas calcadas na sua ideologia, na sua cultura visual e na sua leitura leitura

estritamente pessoal e subjetiva do tema que será representado na fotografia"

(CHIODETTO, 2008, p. 51).

A exposição degradante do jovem nu exauri o animus do seu corpo. O ser

humano é objetificado, transformado em coisa. Sua dupla constituição (Morin, 2000)

é reduzida a uma realidade subjetiva extrema, alienante. Seu nascimento é cultural,

9 lente que propicia um ângulo de visão, maior que o do olho humano. O uso desta lente próxima do assunto, cria distorções na imagem, diminuindo o tamanho dos elementos drásticamente conforme se afastam da lente.

imagético. Ele nasce e morre em imagem, mas sua presença na ausência, enquanto

fotografia, é perpetuada e rememorada constantemente.

O olhar do fotógrafo pode estar em alguma das três etapas da teoria da visão,

distinguidas por Jameson (1994), que apresenta, a partir do século XX, uma

elaboração histórica de uma cultura social e de uma experiência social da visão,

teorizada posteriormente. Dentre as etapas, temos: i. um primeiro momento

identificado como colonial ou sartreano, onde "o grande tema do olhar se liga à

problemática da coisificação ou reificação, do devenir objeto, do converter o visível ­

e mais dramaticamente o sujeito visível ­ em um objeto" (Jameson, 1994, p. 129);ii. o

segundo momento é caracterizado como burocrático (ou foucaultiano) a partir da

apropriação dos temas da reificação e do olhar, Foucault tenta "transformar uma

política da dominação em uma epistemologia, e de ligar o saber e o poder tão

intimamente como para torná­los inseparáveis, transformando assim o olhar em um

instrumento de medição" (Jameson, 1994, p. 130). O olhar burocrático busca a

mensurabilidade do outro e de seu mundo, futuramente reificados; iii. momento

pós­moderno. Neste momento, caracterizado também como sociedade da imagem, os

sujeitos são expostos diariamente a um bombardeio de imagens, vivendo e

consumindo a cultura de maneiras novas e diferentes. Neste momento, "a

reflexividade como tal se submerge na pura superabundância de imagens como em

um novo elemento no qual respiramos como se fosse natural" (Jameson, 1994, p.

135). Nosso mundo passa a operar na representação, e a imagem é vista como um

grande cenário.

Acreditamos, contudo, que a imagem do jovem adulto, nu, está presente neste

terceiro momento, ou seja, na superabundância de imagens que são representadas

efetivamente como reais. A própria centralidade da mídia, em nosso tempo, contribui

para divulgação exacerbada de imagens, em uma desorientação, em que muitos acham

que o está representado no jornal é a realidade. Embora acreditamos também que este

fator não é totalizante e sim, um campo de tensões e disputas, onde se pode encontrar

algumas brechas.

Dentre as brechas percebidas, destacamos a carta de repúdio da Missão Paz

contra a fotografia do jovem banhando­se na água do mictório e as manifestações de

acadêmicos, especialistas e parte da sociedade brasileira, além da indignação dos

próprios imigrantes, registradas em sites de redes sociais.

É importante salientar que o olhar do fotógrafo, legitimado pela centralidade da

mídia, na conversão do visível em objeto, também deve ser problematizado, uma vez

que o fotógrafo é funcionário de um sistema midiático , como aponta Chiodetto (2008,

p. 128­129):

"Ao ser integrande de um grupo dominante, o profissional da mídia, por mais que se esforce, acaba operando dentro de uma lógica social em que identificações e identidade tendem a estigmas e preconceitos de toda sorte. O preço que ele paga para fazer parte de seu grupo social é, em boa medida, uma certa inaptidão em conseguir codificar e transmitir a mensagem de forma imparcial e justa, principalmente quando se vê na obrigação de representar alguém, ou alguma coisa, que seja alheio ao seu universo simbólico. Por contraste, a diferença sempre se faz muito visível, palpável".

Quanto ao nosso jovem adulto, nu, banhando­se na água de um mictório,

podemos identificar na fotografia a ênfase no registro de alguns pertencimentos:

negro, haitiano, imigrante, pobre e vítima. Destacamos que essa conduta, de registro

vexatório e de destaque aos pertencimentos, leva a práticas descriminatórias, como

aponta Serres (1997), onde

"injustiças escandalosas e uma insustentável miséria nascem, a partir daí, de um simples erro de lógica, correntemente cometido que consiste "em confundir sua identidade com um ou outro de seus pertencimentos"[...] Ele (o racismo) o trata como se sua identidade se esgotasse em um dos seus pertencimentos: para ele, você é negro, ou homem, ou católico, ou ruivo. O que redunda em reduzir a pessoa a uma categoria ou o indivíduo a um coletivo. [...] Se tal indivíduo pertence a um subconjunto, isso supõe que exista, ao menos, um outro indivíduo que não pertence a esse mesmo agrupamento; exterior, é expulso do subconjunto, de fato ou pela força. Fora dos limites que o pertencimento designa, este outro não pode se valer dos mesmos benefícios: a inclusão implica e explica a exclusão".

Nessa perspectiva, em sua manifestação frente ao episódio, a entidade Missão

Paz (2015) também lembra que "o objetivo da mídia às vezes é pressionar o estado para tomar uma atitude, e não constranger aqueles que mais precisam de assistência".

4. Considerações finais

Ao resgatarmos a noção das narrativas midiáticas a partir de tematizações sobre

as migrações contemporâneas (COGO, 2007), sobretudo, a migração haitiana para o

Brasil (COGO; SILVA, 2015), podemos compreender como o discurso reside no

coração do racismo (VAN DIJK, 2015).

A partir das práticas de consumo de informação e imagem, orientada para ações

discriminatórias, visualizamos os espaços de construção identitária negativa de parte

da migração contemporânea no Brasil.

Visualizamos, contudo, embates contrários à hegemonia midiática a partir do

posicionamento de ativistas dos direitos humanos, acadêmicos e comunidade migrante

nos discursos contrários à vitimização e exposição degradante do ser humano, visando

uma ética intercultural e cidadã.

Concordamos com Baeza (2009, p.12) que "necesitamos un discurso visual al

servicio de la sociedad para que la forma que tenemos de mirar el mundo no se

encuentre tan mediatizada por los intereses del poder económico".

Referências BAEZA, P. Por una función crítica de la fotografía de prensa. Barcelona: Gustavo Gili, 2001. BAEZA, P. Las imágenes controladas por los mercaderes. Fotografía documental: decreto de crisis. In: LeMonde Diplomatique en español. N° 166, Agosto de 2009. p. 12. BILENKY, T. Nova onda de imigrantes haitianos causa superlotação em paróquia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 junho 2015. Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano /2015/05/1631279­nova­onda­de­imigrantes­haitianos­causa­superlotacao­em­paroquia.shtml. Acesso em: 23 julho 2015. CHIODETTO, E. Fotojornalismo ­ realidades construídas e ficções documentadas. 2008. 201 f. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo 2008. COGO, D.; BADET, M. Guia das migrações e diversidade cultural para comunicadores ­ migrantes no Brasil.Bellaterra: Instituto de la Comunicación de la UAB/Instituto Humanitas Unisinos, 2013.

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