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 IMAGENS AGRESTES 1  O imaginário do cangaceiro a partir do estudo das obras Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha Fabíola Paes de Almeida Tarapanoff Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Bernardo do Campo (SP) Resumo Com um olhar à frente de seu tempo, Glauber Rocha criou um universo próprio sobre o cangaço e cangaceiros emblemáticos como Lampião e Corisco, presentes em  Deus e o diabo na terra do sol  e O dragão da maldade contra o santo guerreiro.  O tema deste artigo é o imaginário do cangaceiro na obra de Glauber Rocha e o objetivo é mostrar como o cineasta construiu essas imagens e como elas se diferenciam das presentes em filmes como O cangaceiro, de Lima Barreto e  Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lívio Ferreira. A metodologia inclui a análise dos filmes citados e a utilização de livros de autores relacionados ao imaginário como Cornelius Castoriadis e ao cinema, como Ismail Xavier. A conclusão é que o cineasta baiano inovou ao mostrar novas imagens sobre o tema, diferente de uma obra que busca a monumentalidade , como O cangaceiro. Palavras-chave: Cinema brasileiro; Glauber Rocha; Representaçõe s; Imaginário. Parte 1: Imaginário e cinema - Conceituação “Continuo fechado com minhas  posições de um cinema terceiro-mundista. Um cinema independente do ponto de vista econômico e artístico, que não deixe a criatividade estética desaparecer em nome de uma objetividade comercial e de um imediatismo político.” A frase de Glauber Rocha mostr a um pouco a visão desse revolucionário diretor de cinema, que em duas obras  Deus e o diabo na terra do sol  e O dragão da maldade contra o santo guerreiro  apresenta o imaginário sobre o cangaceiro. Originária do termo idea ou eidea, a palavra imagem ( imago em latim e eidos, em grego), está relacionada a “ver” ( horáo), cuja conjugação ( aoristo) é eidon, que significa: “eu vi”. Dessa forma, ideia trata -se de uma imagem mental. Como explica Magali Cunha, um dos primeiros que abordou a questão de imagem é Platão, que concebe imagem como ideia de algo, uma projeção da mente, abordagem conhecida 1  Trabalho apresentado no GT 7 Cinema, Arte e Memória no Simpósio Internacional Comunicação e Cultura:  Aproximaçõe s com Memória e História Oral , realizado na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul - São Paulo, de 27 a 30 de abril de 2015.

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ResumoCom um olhar à frente de seu tempo, Glauber Rocha criou um universo próprio sobre o cangaço e cangaceiros emblemáticos como Lampião e Corisco, presentes em Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O tema deste artigo é o imaginário do cangaceiro na obra de Glauber Rocha e o objetivo é mostrar como o cineasta construiu essas imagens e como elas se diferenciam das presentes em filmes como "O cangaceiro", de Lima Barreto e "Baile perfumado", de Paulo Caldas e Lívio Ferreira. A metodologia inclui a análise dos filmes citados e a utilização de livros de autores relacionados ao imaginário como Cornelius Castoriadis e ao cinema, como Ismail Xavier. A conclusão é que o cineasta baiano inovou ao mostrar novas imagens sobre o tema, diferente de uma obra que busca a monumentalidade, como "O cangaceiro".Palavras-chave: Cinema brasileiro; Glauber Rocha; Representações; Imaginário.

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IMAGENS AGRESTES1 

O imaginário do cangaceiro a partir do estudo das obras “Deus e o diabo na terrado sol” e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, de Glauber Rocha

Fabíola Paes de Almeida Tarapanoff

Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Bernardo do Campo (SP)

Resumo

Com um olhar à frente de seu tempo, Glauber Rocha criou um universo próprio sobre ocangaço e cangaceiros emblemáticos como Lampião e Corisco, presentes em  Deus e o

diabo na terra do sol  e O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O tema deste

artigo é o imaginário do cangaceiro na obra de Glauber Rocha e o objetivo é mostrarcomo o cineasta construiu essas imagens e como elas se diferenciam das presentes emfilmes como O cangaceiro, de Lima Barreto e  Baile perfumado, de Paulo Caldas eLívio Ferreira. A metodologia inclui a análise dos filmes citados e a utilização de livrosde autores relacionados ao imaginário como Cornelius Castoriadis e ao cinema, comoIsmail Xavier. A conclusão é que o cineasta baiano inovou ao mostrar novas imagenssobre o tema, diferente de uma obra que busca a monumentalidade, como O cangaceiro. 

Palavras-chave: Cinema brasileiro; Glauber Rocha; Representações; Imaginário.

Parte 1: Imaginário e cinema - Conceituação

“Continuo fechado com minhas  posições de um cinema terceiro-mundista.

Um cinema independente do ponto de vista econômico e artístico, que não deixe a

criatividade estética desaparecer em nome de uma objetividade comercial e de um

imediatismo político.” A frase de Glauber Rocha mostr a um pouco a visão desse

revolucionário diretor de cinema, que em duas obras Deus e o diabo na terra do sol  e

O dragão da maldade contra o santo guerreiro  apresenta o imaginário sobre o

cangaceiro.

Originária do termo idea ou eidea, a palavra imagem (imago em latim e eidos, em

grego), está relacionada a “ver” (horáo), cuja conjugação (aoristo) é eidon, que

significa: “eu vi”. Dessa forma, ideia trata-se de uma imagem mental. Como explica

Magali Cunha, um dos primeiros que abordou a questão de imagem é Platão, que

concebe imagem como ideia de algo, uma projeção da mente, abordagem conhecida

1  Trabalho apresentado no GT 7 Cinema, Arte e Memória no Simpósio Internacional Comunicação e Cultura:

 Aproximações com Memória e História Oral , realizado na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São

Caetano do Sul - São Paulo, de 27 a 30 de abril de 2015.

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como “O Mito da Caverna”. O filósofo descreve a existência de dois mundos: um

concreto, que apreendemos pelos sentidos e outro das ideias, mais elevado, do qual

nosso mundo não passa de mera sombra. Platão também aborda o tema da imaginação

(no grego -  phantasia) e ancora sua noção na teoria de mímesis. Em sua opinião,

imaginação seria “um misto de sensação e opinião (...) a mais inferior das faculdades,

 pensamento que dá base a outros que apreendem esta noção como algo de que se deve

desconfiar ” (CUNHA, 2011, p. 34).

Gilbert Durand é um dos autores que mais se aprofunda na questão do estudo

desse conceito. Para o autor, imaginário é o “conjunto de imagens e relações de imagens

que constitui o capital pensado do Homo sapiens” e pode ser ainda descrito como “[...] a

faculdade da simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos

culturais jorram continuamente desde os cerca de 1,5 milhão de anos que o homo

erectus ficou em pé na face da Terra” (DURAND, 1998, p. 17). 

Segundo Cornelius Castoriadis, o homem só existe na e pela sociedade, que é

histórica. E o que mantém coesa é a perpetuação de seus valores e do  status quo.

Em uma sociedade cada vez mais complexa, globalizada, vemos o antigo que entra no

novo com a significação que o novo lhe dá. E uma das formas em que o novo se

manifesta de forma significativa é por meio da criação, da obra de arte, como um filme.

 No presente artigo esta pesquisadora busca analisar o imaginário do cangaço e de

seus personagens nos filmes  Deus e o diabo na terra do sol   e O dragão da maldade

contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, comparando com duas obras que abordam

o mesmo tema: O cangaceiro, de Lima Barreto e  Baile perfumado, de Paulo Caldas e

Lívio Ferreira. Além dessa análise, procura-se identificar as diferenças presentes devido

ao momento histórico em que cada uma delas foi produzida.Segundo Marcos Napolitano, o cinema, com seu caráter ficcional e linguagem

artística, confere uma identidade ao documento inicialmente visto como subjetivo.

 No entanto, sua natureza técnica, sua capacidade de registrar e de criar realidades

objetivas remetem a um fetiche de objetividade e realismo, reiterado no pacto que os

espectadores criam quando entram em uma sala de cinema:

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A força das imagens, mesmo quando puramente ficcionais, tem acapacidade de criar uma realidade em si mesmo, ainda mais quelimitada ao mundo da ficção, da fábula encenada e filmada.A experiência social do cinema e da televisão apoia sua força nesse pacto. Em alguns casos, o historiador pode reproduzir esse fetiche emseu trabalho de análise, o que fica claro nos casos em que a análise é pautada pela avaliação do grau de “realismo” e “fidelidade” do filmehistórico, em relação a eventos “realmente” ocorridos. Em outras palavras, é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aosdiálogos, à caracterização física dos personagens ou a reproduções decostumes e vestimentas de um determinado século. O mais importanteé entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que sãoapresentadas em um filme (NAPOLITANO, 2005, p. 237).

Parte 2: Imaginário sobre o cangaço brasileiro

“O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a

caatinga [...] o sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito

governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.” 

Seco, árido, com vegetação e pessoas que imploram por uma gota de água.

Assim é o sertão, nas palavras de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas.

 No Nordeste brasileiro, só sobrevive o sertanejo, que antes de tudo é um forte, comoexplica Euclides da Cunha, em um dos clássicos da literatura: Os sertões, que mostra a

Guerra de Canudos e a figura messiânica de Antônio Conselheiro, que aparece em

 Deus e o diabo na terra do sol , analisada adiante.

Como explica Luiz Zannin Oricchio na obra Cinema de novo, é preciso imaginar

a Guerra de Canudos como uma rebelião à brasileira. No final do século XIX, milhares

de fiéis reuniram-se em torno de Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como

Antônio Conselheiro. Nascido em Quixeramobim, no Ceará, ao chegar ao árido sertão baiano, resolve formar uma comunidade autônoma, que repudia a República,

 proclamada em 1889. Era um grupo de pessoas miseráveis, sem expectativas, famintos e

apenas alimentados pela fé e que moravam nas vizinhanças do rio Vaza-Barris. O local

recebeu o nome de Arraial de Canudos. A comunidade era vista como um problema

 pelo poder republicano e várias tropas foram enviadas para exterminar o que julgavam

ser um foco de resistência ao governo. As tropas foram derrotadas pela comunidade

liderada por Conselheiro até que caiu em 1897, diante de um exército bem equipado.

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Esse episódio podia ser apenas uma página da história, se não fosse o belo relato

realizado pelo escritor Euclides da Cunha, repórter do jornal O Estado de S.Paulo  e

enviado especial para cobrir o que ocorria. Quando saiu de São Paulo para cobrir o

episódio, via a República como sinal de progresso e Canudos um local atrasado. Depois

de acompanhar de perto a complexidade da situação, ele mudou de ideia. Euclides

escreveu então uma série de reportagens chamadas “Diário de uma expedição” e que

depois dariam origem ao livro Os sertões. Ao invés de fanáticos religiosos, ele

encontrou homens destemidos, como se pode perceber no trecho que descreve o final da

 batalha:

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda história, resistiu até oesgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisãointegral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seusúltimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: umvelho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiamraivosamente cinco mil soldados (CUNHA apud ORICCHIO, 2003, p.124).

O sertão também é espaço de uma figura emblemática: o cangaceiro. Homem

valente, o cangaceiro era seguido por seu bando e roubava dos ricos para dar aos pobres,

como o lendário personagem Robin Hood e ficou imortalizado no imaginário nacional

devido à figura de Lampião. Na obra Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva,

Marcos E. Clemente busca conceituar o universo da catinga e a prática do cangaço e

admite que a tarefa não é fácil. Por isso ele busca a “apropriação e a constituição de

diferentes memórias do cangaço” e se questiona: “É possível construir uma história fora

dos cânones da historiografia oficial?” (CLEMENTE, 2009, p.180).

Depois de pesquisar folhetos de cordel e fazer entrevistas em locais como SerraTalhada e Mossoró, o autor constatou que há uma glorificação de Lampião. Clemente

explica que há uma admiração do sertanejo pelo espírito valente de Lampião,

considerado “honrado” e “vingador” dos mais pobres. Já a volante é vista como

instrumento de opressão dos poderosos. Sua glorificação é vista como uma forma de se

instaurar uma nova ordem em um sertão esquecido. O autor ressalta que é curioso notar

que “todo o registro de violência praticada por Lampião e pelo seu bando, inclusive

contra pobres trabalhadores e suas famílias [...] parece ter desaparecido da memóriacoletiva” (CLEMENTE, 2009, p. 103).

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Para Clemente, essa glorificação que desconsidera aspectos negativos do

 personagem, está presente em Baudrillard, que diz que o princípio do mal pode ser

entendido “não como instância mística e transcendente, mas como receptação da ordem

simbólica, rapto, violação, receptação e malversação irônica da ordem simbólica” 

(BAUDRILLARD, 1996, p. 161). Portanto em um espaço de carência, a alma popular

 precisa de seu instante criador, de uma força que a conduza além do pré-determinado

 pela natureza e pelo governo. O cangaço surge como essa força do povo, que se

identifica com Lampião. Herói que como o povo nordestino, passa por dificuldades,

mas as enfrenta de forma corajosa. E que junto de Maria Bonita forma uma dupla vista

de forma romântica pela população, como Bonnie e Clyde no sertão brasileiro.

Luiz Bernardo Pericás em Os cangaceiros - ensaio de interpretação histórica

também questiona a imagem idealizada de Lampião. Doutor em História pela

Universidade de São Paulo (USP), Pericás diz que os cangaceiros costumavam defender

seus interesses pessoais, utilizando para isso da violência e procuravam manter vínculos

com protetores poderosos, agredindo o próprio povo se fosse necessário. O autor relata

que Lampião quando distribuía dinheiro aos mais pobres, fazia questão de que seu gesto

fosse público, procurando constituir a imagem de homem bom. No entanto, Pericás

alerta que Lampião não roubava dos “ricos” para dar aos pobres. Quando roubava dos

ricos, era para guardar o dinheiro para si ou para pagar pelo serviço dos homens de seu

 bando. Portanto era comum a troca de favores e proteção entre coronéis e cangaceiros,

fator apontado pelo autor como dificuldade na tentativa de construir pontes entre os

 bandos do cangaço e lideranças comunistas, que os enxergavam como potenciais aliados

de lutas revolucionárias.O autor ainda descreve a violência cometida pelos cangaceiros, como a prática

de marcar com ferro em brasa o rosto de mulheres, muitas vezes vítimas de estupro.

Entre os principais fatores para a entrada no cangaço estão as disputas entre grupos

familiares e a necessidade de vingança - com os crimes ligados à “honra” e à posse da

terra ocupando lugar de destaque. Mostra enfim, que uma terra árida e sem lei foi um

espaço fértil para o surgimento desse poder paralelo, que pregava que fazia justiça

 popular, mas que apresentava contradições.

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Parte 3: Estudo das obras Deus e o diabo na terr a do sol  e O dr agão da maldade

contra o santo guerreir o

“Vou contar uma estória/Na verdade e imaginação/Abra bem os seus olhos/Pra

escutar com atenção/É coisa de Deus e o Diabo/Lá nos confins do sertão.” Os versos de

Glauber Rocha, escritos em parceria com Sérgio Ricardo e presentes nas músicas,

ajudam a compreender o filme Deus e o diabo na terra do sol . Nunca antes o sertão e o

 povo tinham sido retratados com tanta beleza e força. Atemporal, a obra-prima

glauberiana impressiona pela modernidade de seu discurso.

O vaqueiro Manuel encarna o sertanejo forte, que não desiste nunca e que peloseu sonho e fé, vai até os confins do sertão. A figura de Sebastião é a personificação do

retorno de Antônio Conselheiro. “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” é a

grande promessa de Sebastião e esperança para o povo sofrido. Mas como explica

Oricchio, fartam-se apenas da inversão da “ordem natural das coisas”, que perpetua a

injustiça social, encontrando no sertão sua forma mais exposta.

Injustiçado mais uma vez, o vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) mata seu patrão

que o oprime e foge pelo sertão com sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) em busca demelhores perspectivas de vida. Em sua trajetória ele se depara com o líder messiânico

Sebastião, o “Deus Negro” (Lidio Silva) e passa a segui-lo, pois ele anuncia a terra

 prometida e o fim da opressão causada pelos proprietários latifundiários. No entanto, o

discurso de Sebastião causa a ira do governo e da igreja local, que solicita a Antônio das

Mortes (Maurício do Valle), conhecido como “Matador de Cangaceiros”, que extermine

Sebastião e seus seguidores.

Únicos sobreviventes da chacina promovida por Antônio das Mortes ao lado dovioleiro cego Júlio, Manuel e Rosa partem sem destino, em busca de uma vida melhor.

Encontram pelo caminho Corisco, o “Diabo Louro” (Othon Bastos) e sua mulher Dadá

(Sonia dos Humildes), que também vivenciaram uma tragédia e viram Lampião, Maria

Bonita e seu bando serem dizimados pela volante, pelos “macacos”, policiais do

governo, que não gostavam da justiça praticada pelos cangaceiros.

O Corisco de Glauber Rocha é diferente de outras representações no cinema

 brasileiro, como o do emblemático filme da Vera Cruz, O cangaceiro, de Lima Barreto.

Ao contrário da obra de Barreto, que traz uma monumentalidade, com seus cangaceiros

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com chapéus cheios de adornos e sempre montados a cavalo, como nos filmes de John

Ford em Hollywood, o filme de Glauber mostra homens sem recursos, que contam

apenas com sua valentia. Enquanto Teodoro (Alberto Ruschel) tem um motivo para

entrar no cangaço, é digno e procura ajudar a professora Olívia (Marisa Prado), Corisco

é um personagem amoral, que pensa em sua própria sobrevivência, que age mais por

instinto do que por honra. Tanto que se entrega de forma institiva à atração que sente

em relação à Rosa, em um longo beijo filmado em todos os ângulos e acompanhado da

 poderosa Bachianas, do maestro Heitor Villa-Lobos. E que se opõe à figura de “Deus”

de Sebastião, surgindo como um “Diabo” no sertão, um mal que não apresenta aspectos

malignos clássicos, mas uma subversão necessária em um espaço de carência. Antônio

das Mortes completa esse quadro de ambiguidade e subversão, pois serve a patrões

(é contratado pelos fazendeiros para exterminar as ameaças do sertão: Sebastião e

Corisco), mas acaba preparando o povo (Manuel) para sua possível libertação. No final

vemos Manuel correndo ao som da música “O sertão vai virar mar e o mar virar sertão”.

Trata-se de um caminho para a revolução?

Como explica Ismail Xavier em Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da

 fome, o registro visual do fim almejado não ocorre por força de uma esperança, pois

não vemos Manuel alcançando o mar:

Se imagem e som celebram a representação do télos, renovando acerteza revolucionária, tal coroação, é uma intervenção direta donarrador. Em termos de desencadeamento, o mar não vem, portanto,da consciência ou do gesto de Manuel. No entanto, o mar na tela parece ter tudo a ver com essa corrida na caatinga. [...] Inegavelmente,esse final é a afirmação reiterada de que a revolução é urgente, aesperança é concreta. Mas a sua realização efetiva não está na própriaaventura de Manuel e de Rosa, nem nas figuras que tomaram para si a

tarefa da transformação, Sebastião e Corisco, pois já estão mortos. [...]Analisar quem interfere no seu percurso e como seus lancesfundamentais é encontrar, se possível, a sustentação dessa esperança everificar se uma determinação mais efetiva aparece ou não no“mecanismo de mundo” para tornar a lenda de Deus e o diabo mais doque um elogio romântico da verdade transformadora e da energia doque se move pela negação (XAVIER, 2007, pp.91-92).

O contexto, porém, é diferente da obra de O cangaceiro, que buscava mostrar

um Brasil que tinha uma grande indústria cinematográfica, à “la Hollywood”. Aqui,

como explica Ismail Xavier em Cinema moderno brasileiro, Glauber trabalha a relação

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entre fome, religião e violência, buscando legitimar a visão do oprimido e mostrando

uma tradição de rebeldia do povo, ao contrário da propalada índole pacífica do

 brasileiro. “Em Deus e o diabo prevaleceu o impulso de mobilização para a revolta e a

tonalidade do filme era de esperança, pois estávamos no período anterior ao golpe

militar de 1964, no momento de luta pelas reformas de base, com a questão agrária no

centro, esta mesma que ainda hoje permanece no centro de tensões sociais brasileiras”,

explica Xavier (2001, p.18).

Considerado um dos filmes mais importantes do cinema nacional e marco

introdutório do chamado “Cinema Novo”,  Deus e o diabo na terra do sol   inovou ao

apresentar enquadramentos inovadores e ir na contramão da decupagem clássica,

trazendo planos longos e a naturalidade típica do Neorealismo italiano e montagem

inspirada na estética de Eisenstein. Outro ponto forte são as canções, escritas pelo

 próprio Glauber com Sérgio Ricardo e que pontuam toda a obra e trazem a riqueza da

chamada “literatura de cordel”, típica do povo nordestino. Eleito pelo Museu de Arte

Moderna de Nova York, como um dos “dez maiores filmes de todos os tempos” e foi

indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes. Nessa ópera monumental guiada por

Glauber Rocha, pode-ser gostar ou não de tamanha eloquencia. Mas é impossível ficar

indiferente diante da explosão de imagens, que mudou os rumos do cinema brasileiro.

Assim como outra obra criada a partir da imaginação do cineasta: O dragão da

maldade contra o santo guerreiro. A história inicia com o retorno de Antônio das

Mortes (Maurício do Valle) ao sertão. Quando mata o último cangaceiro, Corisco sente-

se meio perdido, pois considerava-se imbuído de um propósito maior: livrar o mundo de

todos os males. E só ele poderia encarnar perfeitamente o papel de justiceiro. Então, um

dia, surge a oportunidade de mais uma vez cumprir seu papel. 

 Na cidadezinha de Jardim das Piranhas aparece um cangaceiro que se apresenta

como a reencarnação de Lampião, chamado Coirana (Lorival Pariz). Antônio das

Mortes é chamado para matar esse cangaceiro. E vai até a cidade para exterminá-lo, não

 por dinheiro, mas porque esse é o seu destino. E aí o filme mostra de forma alegórica o

encontro desses mitos. Apesar de desacreditado inicialmente, por se dizer herdeiro de

Lampião, no final Coirana morre como um mártir. Nessa fábula que resgata o mito de

São Jorge, há, ao contrário de Deus e o diabo na terra do sol , um desencanto. O sertão eseus cangaceiros não configuram mais um espaço de subversão, mas de interrogação.

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Tudo parece incerto. Instigante, o filme apresenta uma forma diferente de se

fazer cinema, seguindo os parâmetros do Cinema Novo. Tão inovador, que não passou

despercebido pela crítica e Glauber Rocha foi aclamado como Melhor Diretor no

 Festival de Cannes. Destaque para a atuação de Odete Lara como Lara, atormentada

mulher do coronel Horácio (Jofre Soares), que se envolve com o professor interpretado

 por Othon Bastos. De acordo com Ismail Xavier na obra  Alegorias do

 subdesenvolvimento: Cinema novo, tropicalismo, cinema marginal , embora O dragão

da maldade contra o santo guerreiro tenha seus momentos esquemáticos, constrói uma

alegoria que ultrapassa o retorno simples ao chamado “nacional/popular”, presente nos

anos 1960:

O filme desconfia, sem dúvida, da modernização e lhe endereça a suacondenação moral. Mas sabe da sua efetividade, do quanto ela negou aantiga teleologia do sertão/mar e exige a sua inclusão no diagnósticogeral, aqui formulado de modo oblíquo. Neste sentido, Glauber temuma forma muito peculiar de trabalhar a articulação arcaico/moderno,inversão da colagem tropicalista. [...] A alegoria de Glauber é aexpressão do descompasso entre a teleologia da história, que se queria,e o fluxo do tempo que se impôs. O real, modernizante, é ilegítimo; o passado é força simbólica, fonte da Revolução, mas sua eficácia estácomprometida porque não pode agir sem se contaminar com o presente, esta engrenagem a reduzir o sagrado a simulacro(XAVIER, 1993, p. 186).

É uma obra também emblemática do chamado Cinema Novo, assim como

Terra em transe. Filmes muitas vezes não compreendidos pelo público, mas que tinham

como intuito chamar a atenção para questões nacionais.

Já Baile perfumado (1997), filme de Lívio Ferreira e Paulo Caldas, apresenta um

sertão diferente, fértil, rico. Apresenta a história de um personagem real, o libanês

Benjamin Abrahão (interpretado por Duda Mamberti). Mascate, fotógrafo e cineasta, eleconsegue a proeza de encontrar o famoso bando de Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos).

A obra apresenta imagens feitas originalmente por Abrahão e que foram apreendidas

 pela ditadura do Estado Novo, sendo recuperadas só nos anos 1960 pelo cineasta Paulo

Gil Soares e seu produtor, Thomas Farkas. A partir desse material eles produziram em

1965 o curta-metragem  Memória do cangaço, que ao lado de  A musa do cangaço 

(1981), de Humberto Mauro, ajudou a popularizar a figura de Benjamim.

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 Nessa obra a tônica é a de inovação. Não se busca a politização, como Glauber,

nem mostrar o setão e suas mazelas. O bando de Lampião é mostrado de forma

descontraída, dançando, bebendo e rindo. Lampião é visto de forma aburguesada, gosta

de usar o perfume francês Fleur d’Amour e o uísque Wh ite Horse. É apaixonado por

Maria Bonita, mulher que sempre ouve com atenção e que o influencia sobre que

decisões deve tomar. Mostra um outro lado do mito: um cangaceiro que gosta de

escrever poesias e que reflete sobre seu legado. Nesse momento de decadência do

cangaço, eles vivem às custas de fazendeiros ricos, dos quais cobram taxa de proteção.

Essa indolência acaba sendo fatal e eles são presos pelos soldados do governo. Como

explica Oricchio:

O sertão fértil de  Baile Perfumado, essa criativa inversão doestereótipo pode ser fascinante e, ainda assim, não conduz a nenhumaconsequencia crítica, no sentido mais estrito do termo. Funciona comoum cenário eficiente para um gênero tido como surrado, mas é só.O que, per se, não enfraquece o filme, pois o horizonte de reflexão política estaria, no caso, mais na expectativa do analista do que noleque de preocupação da dupla de realizadores (ORICCHIO, 2003, p.134). 

Parte 4 - Considerações finais

Cada obra analisada, à sua maneira, revela diferentes formas de se ver o sertão e

seu personagem emblemático, o cangaceiro. Mostram, mais do que visões dos diretores,

a marca de seu tempo, de sua história. Segundo Eduardo Morettin, há quatro maneiras

como a história se manifesta no cinema:

a)  Herança positivista: preocupação com a exatidão da reconstituição fílmica do

 passado; 

 b) 

Predomínio da ideologia dos realizadores sobre a historicidade, subvertendoo sentido dos personagens e dos fatos; 

c)  Apelo ao discurso novelesco, tornando mais sutil a “subversão” dos fatos; 

d)  Criação de uma narrativa histórica própria, que é criada dentro do discurso

histórico e que utiliza técnica de citação bibliográfica e documental, que é

legitimada pelos pesquisadores. 

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Estão assim em jogo várias opções de representação cinematográfica da história

que não possuem apenas implicações estéticas, mas ideológicas. Muitas vezes essas

quatro maneiras se interligam, exigindo do historiador um olhar que vá além da mera

dicotomia entre filmes de ficção e documentais. As tensões internas de uma obra

cinematográfica vão além do jogo “história oficial” ou “contra-história” da manipulação

fílmica em oposição à verdade por trás do filme, como também propõe Marc Ferro.

Segundo Morettin, o mais importante é perceber a ambiguidade das imagens,

que nem sempre mostram uma leitura coerente de um fato histórico, mesmo quando

esse é o desejo de seus realizadores. Portanto é preciso cuidado ao analisar um

documento fílmico, observando o ângulo adotado pela câmera, distância das imagens

em relação a um mesmo plano, grau de legibilidade das imagens e da iluminação e grau

de intensidade da ação. Essa metodologia permite avaliar se o documento fílmico é

autêntico ou não em relação aos fatos registrados. Quanto menos “manipulação” do

material bruto, o filme apresentaria mais veracidade. O problema consiste em separar o

que é manipulação de adulteração dos códigos narrativos que estruturam a imagem

fílmica e que são compartilhados, guardadas as diferenças de estilos e gêneros pelos

conjuntos de cineastas. A nova historiografia chama a atenção sobre abusos decorrentes

dessa metodologia, sem o devido exercício crítico. De acordo com Morettin, há três

visões distorcidas sobre o documento fílmico: filme como contraponto do documento

escrito; filme como registro mecânico do real e filme como resgate do passado, registro

do presente e prenúncio do futuro. No lugar dessas proposições, o pesquisador propõe a

análise de

Como o sentido é produzido [...] para que possamos recuperar o significado deuma obra cinematográfica, as questões que presidem o seu exame devememergir de sua própria análise. A indicação do que é relevante para a respostade nossas questões em relação ao chamado contexto somente pode seralcançado depois de ter feito o caminho acima citado, o que significa aceitartodo e qualquer detalhe (do filme). [...] Trata-se de desvendar os projetosideológicos com os quais a obra dialoga e necessariamente trava contato, sem perder de vista a sua singularidade dentro do seu contexto (MORETTIN apud NAPOLITANO, 2005, p. 245).

O cangaceiro, de Lima Barreto (1953), mostra uma imagem de cangaço e sobre

o cangaceiro traz a perspectiva histórica do momento, de Juscelino Kubitscheck, de “50

anos em cinco” de se buscar uma modernização do país e também de recuperar aautoestima, exaltando por meio das artes, como o cinema. Com diálogos criados por

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Rachel de Queiroz, o filme é considerado até hoje o melhor produzido pela Companhia

Cinematográfica Vera Cruz e mostra a ambição da produtora em se tornar uma

“Hollywood” brasileira. A fotografia é primorosa, o figurino bem elaborado e percebe-

se uma necessidade em fazer um filme comercial, que atinja as grandes plateias,

lembrando os famosos westerns  de John Ford. Todo o empenho foi reconhecido e o

filme ganhou o prêmio de melhor filme de aventura e de melhor trilha sonora com “Olê

muié rendeira”, interpretada pela atriz Vanja Orico com o grupo os Demônios da Garoa

no Festival Internacional de Cannes.

Em  Deus e o diabo na terra do sol , percebe-se uma desconstrução dessa

grandeza. Como explica Ismail Xavier em Cinema brasileiro moderno, em meados dos

anos 1950 ocorre a falência da Vera Cruz. Nos anos 1960 surge um cinema de autor,

que contesta esse modo de produção cinematográfico inspirado em fórmulas comerciais,

 buscando uma nova forma de cinema. Segundo Paulo Emílio Salles Gomes em Cinema:

trajetória no subdesenvolvimento:

O Cinema Novo é parte de uma corrente mais larga e profunda, que seexprimiu igualmente através da música, do teatro, das ciências sociaise da literatura. Essa corrente –  composta de espíritos chegados a uma

luminosa maturidade e enriquecida pela explosão ininterrupta de jovens talentos  –  foi por sua vez a expressão mais requintada de umamplíssimo fenômeno histórico e nacional (GOMES, 1996, p.100).

 No filme de Glauber, o diretor transgride com a narrativa clássica e procura um

“cinema de autor”, como explica Ismail Xavier em Cinema brasileiro moderno:

Assumindo uma forte tônica de recusa do cinema industrial  –  terrenodo colonizador, espaço de censura ideológica e estética  –   o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procuroudestruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome davida, da atualidade e da criação. [...]Tal busca se traduziu na “estéticada fome”, na qual a escassez de recursos técnicos se transformou emforça expressiva e o cineasta encontrou a linguagem em sintonia comseus temas (XAVIER, 2001, p.58).

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 Na obra, a seca do sertão é um dos personagens, devido à sua constante

 presença. Corisco é diferente do Galdino (Milton Ribeiro), da obra de Lima Barreto.

Enquanto Galdino possui um chapéu todo adornado com estrelas e medalhas e as mãos

cheias de anéis de ouro e monta de forma pomposa seu cavalo, Corisco (Othon Bastos)

 possui vestimentas simples e vaga a pé: é destituído de recursos como o sertão em que

habita. Ao contrário da monumentalidade de O cangaceiro, aqui se afirma o realismo

com toda sua crueza.

A partir de 1964, com o golpe militar e o início de um período de longa ditadura

no país, o cinema busca novos caminhos. Há uma preocupação dos cineastas em

analisar o instante presente, mostrando sua perplexidade diante do rumo dos

acontecimentos. A questão da ditadura, aparece de forma velada em filmes como

O dragão da maldade contra o santo guerreiro.

 No segundo filme há um retorno do personagem Antônio das Mortes, presente

na obra  Deus e o diabo na terra do sol . Mas diferente do primeiro filme, em que ele

aparecia decidido, sabia qual era sua missão, nessa obra o personagem apresenta-se

reflexivo e questiona sua própria função na sociedade. Começa a questionar o Coronel

Horácio (Jofre Soares), que o contratou para matar Coirana, o último cangaceiro e no

final se alia ao professor (Othon Bastos), procurando ajudar a população local.

Apresenta de certa forma o fim de uma era (do cangaço), com a morte de Coirana e um

mundo que se modificava rapidamente, com a urbanização invadindo o sertão.

Mostra também como o país mudava a mentalidade e que era necessário perceber quem

era realmente o inimigo e oprimia o povo, representada pelos personagens Mattos

(Hugo Carvana) e do Coronel Horácio. Trata-se de uma fábula alegórica, que revela

também um desencanto em relação ao momento vigente, de opressão, que viveu seuápice com a implementação do AI-5 (Ato Institucional Número 5).

Por fim,  Baile perfumado  é uma retomada do “filme de cangaceiro”, em uma

época em que o cinema brasileiro voltava a produzir, após anos de quase inatividade.

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Com músicas de Chico Science, o filme apresenta linguagem ágil e mostra de

forma bem-humorada um sertão fértil e seus protagonistas, que gostam de consumir

 perfumes e participar de festas. Traz registros originais de Benjamim Abrahão e faz uma

homenagem à figura desse pioneiro. Busca assim retomar as tradições nordestinas, mas

de uma forma moderna, indicando novos rumos.

O cinema, dessa forma, como propõe Marc Ferro, é um testemunho singular de

seu tempo e apresenta uma tensão própria, trazendo à tona elementos da sociedade:

Destrói a imagem de duplo que cada instituição, cada indivíduo setinha constituído diante da sociedade. A câmera revela ofuncionamento real daquela, diz mais sobre o que cada um queriamostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as

máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus “lapsus”. [...].A ideia de que o gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longodiscurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, asimagens [...] constituem a matéria-prima de uma outra história, quenão a História, uma contra-análise da sociedade (FERRO apud LEGOFF & 1976, p. 202-203).

Filmes que possuem marcas do período histórico em que foram produzidos, mas

que mostram também uma visão de seus diretores, que permitem identificar não só a

mudança no imaginário do sertão e do cangaceiro, mas também da sociedade, propondo

uma nova história.Referências bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Tradução Ana M. Scherer. Rio de Janeiro:Rocco, 1996.

CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos e SALIBA, EliasThomé. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2011.

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem. VolumeII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 

CLEMENTE, Marcos E. de. Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva. SãoCristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teiveira, 2009. 

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CUNHA, Magali do Nascimento. “Da imagem, à imaginação e ao imaginário: elementos-chave para os estudos em comunicação e cultura.” pp. 33-48. In: BARROS, Laan Mendes de (Org.)Diversos autores. Discursos midiáticos: representações e apropriações culturais. São Bernardodo Campo (SP): Editora da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), 2011.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1988.

FERRO, Marc. “O filme: uma contra-análise da sociedade?” pp.199-2015. In: LE GOFF & NORA, Pierre (Orgs.) História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1996.

 NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: A História depois do papel.” In: PINSKY, Carla

Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: EstaçãoLiberdade, 2003.

PERICÁS, Luís Bernardo. Os cangaceiros:  ensaio de interpretação histórica.  São Paulo:Boitempo Editorial, 2010.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema novo, tropicalismo, cinemamarginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.

XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. Coleção Leitura. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify,2007.

Filmes:Deus e o diabo na terra do sol (Brasil, 1964). Direção: Glauber Rocha.

O dragão da maldade contra o santo guerreiro (Brasil, 1969). Direção: Glauber Rocha.

O cangaceiro (Brasil, 1953). Direção: Lima Barreto.

Baile perfumado (Brasil, 1997). Direção: Paulo Caldas e Lívio Ferreira.

SitesWikipediahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Deus_e_o_Diabo_na_Terra_do_Sol (Imagem de Deus e o diabo

na terra do sol) 

Encyclopedia - http://www.encyclopedia.com/doc/1G2-3406800278.html (O dragão da

maldade contra o santo guerreiro) 

 XV Edição CinePE –  Festival do Audiovisualhttp://www.cine-pe.com.br/2011/v2/index.php?i=homenageados (Baile perfumado)