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IMAGENS EM SALA DE AULA 1 Reinaldo Nishikawa 2 (UNOPAR) [email protected] “Continuidade de palavras não significa necessariamente continuidade de significados”. (Carlo Ginzburg) Vivemos numa sociedade na qual as imagens adquiriram, ao longo dos séculos, uma quase absoluta credibilidade. Com o surgimento da fotografia no século XIX, multiplicaram-se seus usos e funções, que iam desde molduras fixadas nas lareiras das propriedades da elite aos retratos pitorescos e pornográficos destinados à diversão. A partir da premissa de que a fotografia é a transposição da realidade congelada no espaço/tempo, seria possível inferir que existem formas de “ler” uma imagem? No tocante aos textos escritos, é válido ressaltar que os compreendemos como construções históricas, na medida em que são elaborados por um indivíduo inserido num conjunto de relações sociais, econômicas, culturais e, entre outras, políticas. A linguagem, neste ínterim, é perpassada de signos que representam dado “objeto”, de modo que abre possibilidades para múltiplas leituras distintas. Estas, por sua vez, são também convenções ligadas a um espaço/tempo, condicionadas por diversos elementos, como autor, obra, edição e público. Tendo em vista estas considerações, pretendemos, neste artigo, contribuir para o estudo das imagens, apresentando a fotografia como um conjunto de relações, apropriações e representações da “realidade”, demonstrando as possibilidades de se “ler” uma fotografia, uma vez que a mesma é perpassada de “protocolos de leitura”, que funcionam como filtros interpretativos indicando sentidos pré-determinados pelo produtor. 1 Esse artigo é resultado parcial do projeto de extensão intitulado: “Museu de Imagem e História” desenvolvido na Universidade Norte do Paraná. 2 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Docente do curso de História da Universidade Norte do Paraná – UNOPAR. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2473

IMAGENS EM SALA DE AULA1 - uel.br · o direciona e convence o interlocutor (observador) do que a fotografia “representa”, o sujeito retoma seu olhar para a imagem na tentativa

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IMAGENS EM SALA DE AULA1

Reinaldo Nishikawa2 (UNOPAR)

[email protected]

“Continuidade de palavras não significa necessariamente continuidade de significados”.

(Carlo Ginzburg)

Vivemos numa sociedade na qual as imagens adquiriram, ao longo dos

séculos, uma quase absoluta credibilidade. Com o surgimento da fotografia no século XIX,

multiplicaram-se seus usos e funções, que iam desde molduras fixadas nas lareiras das

propriedades da elite aos retratos pitorescos e pornográficos destinados à diversão. A partir

da premissa de que a fotografia é a transposição da realidade congelada no espaço/tempo,

seria possível inferir que existem formas de “ler” uma imagem?

No tocante aos textos escritos, é válido ressaltar que os compreendemos

como construções históricas, na medida em que são elaborados por um indivíduo inserido

num conjunto de relações sociais, econômicas, culturais e, entre outras, políticas. A

linguagem, neste ínterim, é perpassada de signos que representam dado “objeto”, de modo

que abre possibilidades para múltiplas leituras distintas. Estas, por sua vez, são também

convenções ligadas a um espaço/tempo, condicionadas por diversos elementos, como autor,

obra, edição e público.

Tendo em vista estas considerações, pretendemos, neste artigo, contribuir

para o estudo das imagens, apresentando a fotografia como um conjunto de relações,

apropriações e representações da “realidade”, demonstrando as possibilidades de se “ler”

uma fotografia, uma vez que a mesma é perpassada de “protocolos de leitura”, que

funcionam como filtros interpretativos indicando sentidos pré-determinados pelo produtor.

1 Esse artigo é resultado parcial do projeto de extensão intitulado: “Museu de Imagem e História” desenvolvido na Universidade Norte do Paraná. 2 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Docente do curso de História da Universidade Norte do Paraná – UNOPAR.

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

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Os elementos que o produtor dissemina pela fotografia, na tentativa de

assegurar, ou indicar a correta interpretação que se deveria dar a ele, fazem parte dos

protocolos. Assim como, as apropriações do objeto pelo observador, que implica nesse

caso, suas diferentes leituras do mesmo objeto, ou como disse Chartier, “[...] cada leitor, a

partir de suas próprias referências [...] dá um sentido mais ou menos singular, mais ou

menos partilhado, aos textos de que se apropria”.

Significa que a leitura das imagens é produto e produtor de sentidos. Ao

analisar uma imagem, devemos levar em consideração as diversas apropriações que

fazemos. Portanto, seria possível ler uma imagem? Se utilizarmos como pressuposto que as

imagens são convenções ligadas a um espaço e a um tempo e que acabam sendo

condicionadas a diversos elementos exteriores, como, o autor, a edição e o público, como

afirmar que a imagem é neutra? Em sala de aula, seria correto afirmar que uma imagem é

uma transposição fiel de um acontecimento?

O livro de Walter Benjamin anuncia uma leitura de uma imagem pintada

por Paul Klee. Na descrição dada a imagem, encontramos um turbilhão de informações

capazes das mais diversas concepções de tempo, modernidade, passado. Assim, na Tese 9,

de seu livro, Benjamin descreve a obra “Angelus Novus”:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.3

3 BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política. São Paulo: brasiliense, 2002, p. 222-223.

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Note que a descrição na verdade é uma leitura dada pela obra,

referenciando determinada concepção de história, de perspectiva e de visão de tempo. Uma

imagem pode gerar diferentes visões. Observe a imagem analisada por Walter Benjamin.

Paul Klee. Angelus Novus, 1920. As imagens são parte integrante de um arcabouço epistemológico, criando

um referencial de análise onde a capacidade de “leitura” também condiciona como o leitor

faz a leitura do ícone.

II. Livro didático e imagética

Ao utilizarmos os livros didáticos como mananciais do conhecimento

histórico, devemos nos atentar para algumas observações fundamentais. O livro didático é

um instrumento pedagógico e/ou um depositário de conteúdos. O desafio, entrementes, é

fazer a transição do saber acadêmico para o saber escolar, também conhecido como um

processo de explicitação curricular. A grande questão é que os livros didáticos não

apresentam tão somente conteúdos programáticos, mas demonstram como esses devem ser

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ensinados, transmitidos e avaliados. Portanto, os livros didáticos são também parte de um

grande sistema de valores, de ideologias, de culturas, dentre outros interesses.

O livro didático também acaba sendo, em muitos casos, o único suporte

que o professor tem acesso. Essas características também devem ser levadas em

consideração, sendo de uma importância considerável no sentido de relativizar o papel do

docente nesse processo. Vejamos um exemplo. Determinado livro didático apresenta uma

imagem. A imagem acaba sendo parte de um longo processo de criação, que deve ser

contextualizado, analisado a relação tempo e espaço de produção, o período, o público,

dentre outros elementos. Uma fotografia, nesse sentido, acaba reduzindo a escala de

observação (foco), ignorando, dessa forma, toda dimensão existente; aquilo que a fotografia

não mostra têm um valor na interpretação iconográfica. O valor da interpretação consiste na

capacidade de análise dada ao objeto.

O olhar do fotografo (agente) é de fundamental importância para uma

desconstrução da imagem, afinal, é dele que parte a eleição privilegiada de focalizar

determinada imagem ou determinada paisagem que (in)conscientemente já está

estabelecida em sua memória. Dessa perspectiva ficamos com a relação existente em seu

contexto histórico de produção. Pensando dessa maneira, as imagens são, segundo a

perspectiva de Ciro F. Cardoso (1997), um ícone. Além dessa questão, o ícone-signo é

considerado um elemento comunicativo “por serem de percepção instantânea (CARDOSO,

1997:403). Quando pensamos em analisar esses elementos, devemos supor uma ação entre

a imagem (produto) e o fotógrafo (produtor). Essa relação existe na medida que buscamos

inferências nessa relação.

A fotografia, enquanto componente desta rede complicada de significações, revela, através da produção da imagem considerada como fruto de trabalho humano, pauta-se em códigos convencionalizados socialmente, possuindo [...] um caráter conotativo que remete às formas de ser e agir do contexto no qual estão inseridos as imagens como mensagens.4

4 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História – Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 406.

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Assim, a compreensão da análise imagética deve se buscar aquilo que não

foi revelado pelo olhar fotográfico. Muitas vezes, o espaço escolar exige uma demanda

muito grande de informações e o grande problema enfrentado é transformar essa

informação em conhecimento. O olhar fotográfico analisado em sala de aula deve ter como

aspecto fundamental a relação entre signo e imagem, ou seja, os [...] aspectos da mensagem

que a imagem fotográfica elabora [...] inserir a fotografia no panorama cultural [...] e

entende-la como uma escolha realizada de acordo com uma dada visão de mundo. (idem)

É indiscutível a importância da imagem fotográfica como uma marca

cultural de uma determinada época, não apenas pelo passado ao qual nos refere, mas pelo

passado que trás a tona. Esse passado revela um tempo e um espaço próprios, vivos. Em um

sentido individual, envolve uma escolha a ser realizada; em um sentido coletivo, remete o

indivíduo a sua época.

Nesse sentido, a imagem deixa de ser uma imagem congelada no tempo

para se tornar uma mensagem que se processa através do tempo. Seja uma

imagem/documento, seja uma imagem/monumento.5

A fotografia

Louis Daguerre foi o inventor de um aparelho de captar imagens através

de células sensíveis à luz. A base desse material eram matérias químicas a base de nitrato

de prata. As primeiras fotografias serviam para decorar salas de jantar, rememorar antigas

lembranças, dentre outros significados. Mas o surgimento da fotografia trouxe grandes e

diferentes expectativas. Por um lado, a técnica fotográfica, a perfeição da imagem, a

riqueza de detalhes deixavam maravilhados muitos que presenciaram tal invento e suas

imagens; por outro, a idéia de que a fotografia aprisionava as almas dos retratados não era

exclusivo de ignorantes, incultos. Segundo vários pensadores da época, a fotografia trazia

como conseqüência, a perda da própria essência humana, sintetizada em uma “teoria dos

espectros”, assim definida:

5 Para aprofundar a discussão sobre o papel da memória ver: LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Ed. Unicamp, 1990.

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[...] cada corpo é composto por camadas sobrepostas de espectros. Na operação daguerreana (fotográfica), uma camada de espectro é extraída do corpo para sensibilizar a chapa [...] impregnada de sais de prata, que formarão os contrastes de luz na imagem. A cada chapa batida, um espectro a menos. O corpo vai perdendo sua consistência até desaparecer completamente. Decomposto, o sujeito passa a existir somente em fragmentos fotográficos.6

Sendo assim, as diferentes interpretações podem alterar a maneira de se

analisar a imagem fotográfica. Devemos estar atentos a escala de observação reduzida pelo

olhar fotográfico, pois, ao mesmo tempo em que a imagem é rica em detalhes, é pobre

quanto a um plano mais geral. Dessa forma, a fotografia reduz a realidade em uma parte,

definida pelo plano. Mas essa parte da realidade sofre interferências de algo exterior a

trama fotográfica? Como funciona esse mecanismo de leitura chamado legenda?

As legendas possuem um papel capital em uma imagem; uma vez que ela,

a fotografia, é uma linguagem não-verbal, será a legenda que trará inteligibilidade cognitiva

a uma imagem, sendo expressa em poucas linhas e dispensando uma melhor observação no

pictórico.

Imaginemos as pessoas, ao verem uma fotografia, digamos, numa exposição. Sua primeira

reação é olhar a foto, numa observação superficial. Em seguida, quando se lê a legenda, que

o direciona e convence o interlocutor (observador) do que a fotografia “representa”, o

sujeito retoma seu olhar para a imagem na tentativa de encontrar a mensagem que a legenda

lhe propôs (sugeriu).

Um elemento essencial dessa nostalgia é que os objetos naturais –

árvores, flores, animais criados pelos homens, e pássaros – são valorizados por suas

associações primeiras: eles trazem de volta lembranças da infância, de uma maneira mais

vívida e imediata do que é capaz qualquer ser humano: os objetos naturais, ao contrário dos

humanos, são percebidos enquanto classes, não como indivíduos, e uma primavera pode ser

instantaneamente reconhecida como a mesma planta que vimos na infância, ao passo que

uma pessoa não.

Na análise fotográfica, devemos levar em consideração que essa imagem

não demonstra uma visão geral de uma determinada sociedade, mas uma visão particular (a

6 DUBOIS, François. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994, p. 227.

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do fotógrafo) que exprime uma dimensão do real, uma visão de mundo que se altera no

movimento do foco. Em outras palavras, a imagem congelada e focalizada pelo fotógrafo

não é uma verdade inquestionável, mas, é a tentativa de convencimento de que a sua

fotografia demonstra é a totalidade de uma sociedade. A compreensão da cultura, enquanto

forma de apreender e transformar as relações sociais, passa pela análise dos sistemas de

signos.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política. São Paulo: brasiliense, 2002.

CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História – Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. DUBOIS, François. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994, p. 227.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Ed. Unicamp, 1990.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

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