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IMAGINAÇÕES QUE SALVAM Lay Faggundes

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IMAGINAÇÕES QUE SALVAM

Lay Faggundes

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Copyright© 2010 por Lay FaggundesTítulo Original: Imaginações que salvam

EditorAndré Figueiredo

Editoração EletrônicaAna Paula Cunha

Publit Soluções EditoriaisRua Miguel Lemos, 41 sala 605Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000Telefone: (21) 2525-3936E-mail: [email protected]ço Eletrônico: www.publit.com.br

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PREFÁCIO

Eram 7:00h da noite, na casa de minha tia Júlia nós está-vamos todos, naquele momento, sentados a mesa do jantar. Subitamente tive vontade de fechar os olhos, então visualizei minha mãe com o rosto coberto de sangue.

As imagens se confundiam na minha cabeça, ora parecia ser minha mãe, ora parecia ser meu pai.

Fiquei desesperada e levantei em um salto, com isso as-sustando minha tia e primos que sem entender perguntaram:

- O que aconteceu Lay? Você está branca como cera! O que houve?

- Preciso ir para casa! Respondi, e neste exato momento da minha vida começo a ter visões.

Hoje escrevo sobre essas visões e sobre minha linda famí-lia, simples como qualquer família da época, uma família mui-to grande que começou a vida em um pequeno vilarejo, que viveu com muito sacrifício, e conseguiu criar dez filhos.

Escrevo também sobre minha própria vida, casamento, fi-lhos, drogas e câncer de mama...

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AGRADECIMENTOS

À minha família verdadeira:

Agradeço ao meu pai Júlio Fontoura (em memória), minha mãe Maurília Fontoura, meus irmãos e irmãs, cunhados, cunhadas,

sobrinhos, e sobrinhas. Quero dizer-lhes que tenho muito orgulho dessa família e que sempre peço a Deus que os protejam e que esteja

sempre em seus corações. Agradeço a Ele também por dar-me a graça de compartilhar de suas vidas.

OBRIGADA!

Á minha segunda família:

Aos meus tios Vilmar, Cida e Tânia Franco, (todos em memória) agradeço por me receberem em sua casa e terem me acolhido como filha e irmã. Agradeço por Deus tê-los colocados em meu caminho, e peço a

Deus que em sua bondade tenha-os junto a Ele, e os iluminem sempre. OBRIGADA!

Á minha terceira família:

Agradeço à família de meu tio Orlando Fontoura (em memória) e minha tia Frida, meus primos Ênio, Bise (em memória), Amaurí (em memória), Nilton, Elaine e Denise que foram a minha terceira família durante essa caminhada. Amo muito essas pessoas porque sei que elas,

também, me ajudaram muito para a realização dos meus sonhos. Que Deus os abençoe.

OBRIGADA!

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Sumário

Imaginações que salvam..............................................................7

Uma Época de muito sufoco ...................................................29

Então voltamos à escola............................................................33

Capítulo especial Dona Maura..................................................43

O Casamento...............................................................................49

Tatuadas de Vida.........................................................................99

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Imaginações que salvam

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Imaginações que Salvam

Corria em direção ao campo de arroz e de repente como numa mágica, estava voando. Mas como poderia estar

voando? Minha mãe em sua sabedoria de pessoa simples da roça dizia-me com toda seriedade.

- Isso significa que você está crescendo minha filha, quan-do sonhamos que estamos voando, normalmente é porque nosso corpo está crescendo...

Eu com oito anos de idade imaginava sempre que quando adulta, seria uma mulher alta e muito bonita, e sonhava ser comissária de bordo na aviação, talvez por causa desse desejo, tinha sempre o mesmo sonho, voava como um pássaro sobre o campo de arroz.

Como não entendia de genética aos oito anos de idade, apesar de meus pais terem uma baixa estatura, acreditava que poderia ser alta e assim realizar meu desejo ser “comissária de bordo”. A beleza e a altura eram nessa época, uma das exigên-cias das grandes companhias de aviação.

Meu pai, um autodidata, entendia de todas as coisas. En-tendia de plantações e do comércio dessas culturas. Lembro-me que estava sempre viajando para buscar novas sementes, ou tentar vender a última safra. Ele permanecia dias, e mais dias longe de casa e quando voltava sempre tinha muitas ex-plicações sobre suas ausências.

- Consegui um bom preço para safra! Penso que este ano vamos ter um bom lucro!

Ficávamos todos ao seu redor, ouvindo com atenção, meus irmãos e eu, como se quiséssemos, através de suas palavras,

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visitar e conhecer os mesmos lugares, e as mesmas pessoas de quem ele tanto falava, com sua descrição, nós poderíamos vê-las, e com minha imaginação eu conseguia colocar nelas corpos e fisionomias próprias.

- O Sr. Palmiro, dizia meu pai, está confiante nesta safra. O governo promete um bom preço para o arroz este ano.

O Sr. Amaro, dono do Engenho que comprava sempre a safra de arroz, era uma pessoa muito culta, de família abasta-da para a época, além do engenho de beneficiamento tinha muitas terras. Cultivava também, como meu pai, o arroz irri-gado, e como já comercializava o produto beneficiado, isto é, o arroz sem a casca, vendia direto aos grandes mercados de distribuição e obtinha lucros que meu pai jamais poderia ter, pois além de cultivar em terras arrendadas de terceiros, preci-sava de financiamentos todos os anos para custear os gastos até a venda do arroz.

Estas eram pessoas, de quem meu pai sempre falava, e elas nos causavam uma grande curiosidade, saber como viviam, aquelas pessoas, tão diferente de nossa família. Meu pai pro-curava descrever todas as situações vividas na última visita.

Minha mãe, em sua lide doméstica, se mantinha afastada dos principais assuntos, quando da volta de meu pai de suas viagens. Hoje entendo que era porque ela na sua sabedoria e simplicidade, não acreditava naquelas explicações, e que o motivo dessas viagens nem sempre eram os negócios como meu pai queria que todos acreditassem.

Sempre tive a percepção de que meu pai conseguia traba-lhos, mas quem na realidade trabalhava era minha mãe.

Estava um lindo dia de inverno, inverno este que começara há poucos dias atrás, ainda não fazia aquele friozinho peculiar para a época em nosso vilarejo, a temperatura era amena, uma legítima temperatura de final de outono, um dia gostoso e en-solarado próprio para nossas brincadeiras preferidas.

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Minhas primas, minhas irmãs e eu brincávamos à sombra da grande aroeira, uma árvore gigantesca que tínhamos ao lado de casa. Para nossas brincadeiras de criança, ela se trans-formava conforme nossa imaginação. Ela poderia ser nossa casa, nossa escola, nosso edifício mais alto, ou até mesmo nosso avião, no qual eu era sempre a comissária de bordo.

- Sua madrinha está chegando! Falou minha tia, você é a aniversariante vá recebê-la!

- Estou indo! Respondi para tia Maria, depois de dar as ordens aos de-

mais para que não desorganizassem nada no meu espaço, onde seria a minha casa naquele dia. Hoje percebo que desde criança gostava das coisas em ordem.

Minha madrinha estava se aproximando de nossa casa, sempre muito bem vestida. Vestia-se com simplicidade, mas com muito bom gosto, era a costureira da vila e fazia, alem das roupas que quase todos nós da vila usávamos, suas próprias roupas, com todo o cuidado e carinho. Era uma mulher muito bonita. Tinha a pele muito clara com algumas pintinhas mar-rons as quais lhe davam um charme todo especial, seus olhos eram azuis e tinha uma doçura muito profunda no olhar.

Estava chegando para meu aniversário e trazia pela mão o pequeno Sergio, seu único filho e meu primo muito querido.

Meus presentes de aniversário variavam, mas eles eram sempre acompanhados da mesma sobremesa, que ela fazia questão de trazer todos os anos, um pote enorme de creme de laranja, minha sobremesa preferida, e tão deliciosa como só ela sabia fazer.

- Bom dia minha querida!- Feliz aniversário! Falou carinhosamente.Ela sempre tinha um conselho nestas datas e aquele dia

não seria diferente, segurando-me pelas mãos com carinho disse-me:

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- Minha querida, você hoje está completando 10 anos e logo será uma mocinha, precisa ajudar sua mãe nas tarefas da casa, e principalmente cuidar de seus irmãos menores.

Penso que ela com certeza sabia de todo o sacrifício que minha mãe passava para dar conta de todo o trabalho que tinha de realizar.

- Obrigada madrinha! Não vou esquecer!Dei-lhe um beijo e segurando a mão de meu priminho cor-

ri para a aroeira, anunciando a todos.- Serginho será meu filho agora, e vocês tenham cuidados

para com ele, não esqueçam que ele ainda é um bebê.Era meu 1° aniversário sem a presença de meu avô, ele havia

morrido a seis meses, de um problema cardíaco. Minha avó esta-va ainda um pouco deprimida e também não veio nesse dia.

Ficamos todos muito tristes com a morte de vovô, prova-velmente por ter sido uma morte repentina. Lembro-me que no dia do seu último aniversário, combinamos uma ceia em família com nossa avó, sem que ele soubesse.

Na véspera do grande dia brincávamos à sombra da grande aroeira, como sempre, e um pouco mais afastado, um primo de minha mãe que a ajudava nas enumeras tarefas diárias, estava ten-tando fazer uma pequena gaiola para colocar um cardeal que ele, mesmo sem o consentimento de minha mãe, havia capturado na mata próxima de casa no dia anterior.

O pássaro estava em uma caixinha de madeira. Era lindo com uma plumagem cinzenta e a pequena cabeça vermelha.

Lembro-me que ao redor de Carlos estavam vários peda-ços de madeira e muitos pregos.

Minha irmã Emily de 4 anos brincava junto conosco e de-cidiu ir ao banheiro dentro da casa.

Correu em direção a porta da cozinha, repentinamente ouvimos seus gritos e corremos em sua direção. Ellen e eu a carregamos no colo até onde estava mamãe sem saber o que estava acontecendo.

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De repente vimos um pequeno pedaço de madeira colado ao seu pé direito. A menina tinha pisado sobre um prego preso ao pedaço de madeira e estava com o prego enterrado em seu pezinho.

Em pouco tempo todas as crianças estavam chorando jun-to a Emily. Mamãe a pegou no colo e com muito cuidado mas também com muita firmeza conseguiu arrancar o prego de seu pezinho. Depois com um chumaço de algodão embebido em álcool, limpou o ferimento forçando para que saísse um pouco de sangue. Então colocou um novo chumaço de algo-dão com álcool e enfaixou o pé de Emily.

Naquele momento mamãe lembrou-se de Carlos, das ma-deiras, dos pregos e do pequeno cardeal. Bom este já estava voando junto aos seus iguais, as madeiras e os pregos haviam sumido, juntamente com Carlos.

- Onde estaria Carlos!!!! Ficamos nos perguntando!!!! De-pois de algumas horas Carlos desceu da grande aroeira onde tinha se refugiado.

Estávamos apreensivos, no dia seguinte seria o aniversá-rio de Vovô e com certeza Emily não poderia caminhar até a pequena propriedade onde seria a festinha. Mamãe como sempre tinha a solução. Chamou Carlos e disse-lhe:

- Bom Sr. Carpinteiro, como castigo você terá que carregar Emily no colo até a festa, isso se quiser participar dela.

- Quero sim! Respondeu Carlos.- Carregarei Emily no colo até lá. Depois pediu desculpas

a mamãe por sua travessura.Estava um lindo dia de verão, meu avô fazia aniversário no

verão, havia sempre muita uva no parreiral, e nos deliciáva-mos com as frutas de seu pomar.

Quando chegamos vovô veio nos receber na entrada da chácara com aquela alegria de sempre, minhas tias e primas já estavam no pomar, então corremos todos para lá.

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Vovô sentou-se e como sempre colocou minha prima Cla-ra e eu uma em cada joelho. Adorávamos quando ele fazia isso, porque sabíamos que ouviríamos lindas histórias, mas naquele dia foi diferente.

Meu avô passando a mão sobre os meus cabelos disse para Clara:

- Você sabia querida, que Lay será nossa professora daqui á alguns anos? E completou.

- Não teremos mais que nos preocupar em arranjar, cada ano, uma nova professora para a Vila, teremos a nossa profes-sora, e passando a mão em meu rosto perguntou:

- Não é verdade minha querida? - Sim, é verdade Vovô! Respondi depois de dar-lhe um bei-

jo na face. E esse foi o último beijo que dei em meu avô.Um infarto fulminante levou vovô de nosso convívio, al-

guns dias depois. A vida na vila continuou um pouco mais triste e sem as lindas estórias de nosso querido avô.

A safra não tinha sido nada boa naquele ano. O inverno chegou repentinamente, muito rigoroso, e a geada veio no momento em que o arroz estava formando grãos, fase cha-mada de enchimento, e a perda foi quase total.

Papai tinha desistido pela centésima vez da cultura do ar-roz. Agora ele abrira um pequeno armazém, e continuava com suas viagens, agora para fazer compras para o armazém. Como sempre mamãe, em casa cuidava dos filhos e agora também trabalhava no armazém. A rotina era sempre a mesma, com uma diferença, meu pai agora estava se tornando alcoólatra, e não admitia isso de maneira nenhuma.

Foi quando tive minhas primeiras visões. Meus irmãos e eu tí-nhamos muito medo quando papai chegava a casa, embriagado. Temíamos por mamãe, pois muitas vezes ele se tornava violento.

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Então comecei a ter visões, eu não entendia o que estava acontecendo, mas de repente comecei a visualizar coisas. Quan-do papai saía, eu procurava saber se ele voltaria sóbrio ou não, e isso era quase como se estivesse vendo a sua entrada em casa, e quase sempre acontecia da maneira que eu o imaginava. Era como se eu saísse do meu próprio corpo e me transportasse para o futuro. No futuro eu visualizava o que iria acontecer.

No início fazia isso como uma brincadeira de criança. Quando queria ir a algum lugar encontrar com uma pes-

soa, ou uma amiga, eu podia saber antes se encontraria aquela amiga ou se ela não iria ao meu encontro. Pensava sempre que era brincadeira de criança e que tudo aquilo fosse fruto da minha fértil imaginação.

Era uma tarde de outono, 07:00h da noite e começava a es-curecer. No nosso povoado não havia luz elétrica e era muito difícil conseguirmos andar durante a noite. Existiam poucas casas e uma muitas vezes bastante distante da outra.

Minha avó agora morava com a sua filha mais velha, desde a morte de vovô, ela não querendo ficar em sua antiga casa, optou por morar com tia Maria. Meus tios e meus primos, todos moravam naquele povoado. Sempre havia algum paren-tesco entre as pessoas da vila e todos se conheciam.

Naquela noite eu iria dormir em casa de minha tia Júlia.- Seu pai está no botequim!Disse-me ao chegar, meu primo Jorge. Preocupada perguntei:- Ele está embriagado?- Bastante! Respondeu Jorge. - Estava inclusive numa discussão ferrenha com o Sr. Mau-

ricio. Discutiam por causa de um problema com o cavalo que vai correr no pário do próximo final de semana.

O botequim era um pequeno bar do vilarejo, o único para ser sincera, e o único lugar onde vendiam bebidas alcoólicas, e quando meu pai estava lá sabíamos bem o que iria acontecer.

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Papai havia comprado um novo cavalo, para participar das corridas, que aconteciam em uma cancha reta nos finais de sema-na. Ele mesmo mandou construir esta cancha em nosso pequeno lote de terras, onde antes estava o campo de arroz. Este era o único divertimento para os habitantes de nossa pequena vila.

O cavalo era um animal muito bonito, tinha o pelo bri-lhante, era um animal de porte, papai se preocupava mais com a saúde do Zaino do que de qualquer um de nós e dizia.

- Ele não sabe falar o que sente, precisamos ter muitos cuidados...

Na véspera das principais corridas o Sr. Maurício que era o tratador do cavalo, tinha que colocar sua cama junto à cochei-ra, pois papai tinha medo que algum adversário, para prejudi-cá-lo desse algum tipo de droga ao animal.

- Venham para a mesa o jantar está servido! Disse minha tia Júlia.

Fomos todos para a sala de jantar onde um lampião de gás iluminava o ambiente. A mesa estava servida e cada um ocupou o seu lugar.

De repente tive vontade de fechar os olhos, e então vi minha mãe com o rosto coberto de sangue as imagens se fundiam na minha cabeça. Fiquei desesperada e levantei em um salto, assus-tando minha tia e primos que sem entender perguntaram:

- O que aconteceu Lay? Você está branca como cera! O que houve?

- Preciso ir para casa! Preciso ver minha mãe! E chorando saí pela porta sem que ninguém entendesse o motivo.

Estava escuro lá fora e em uma situação diferente eu teria medo de colocar o pé para fora da porta. Mas continuava com aquela imagem que em certos momentos me confundia, e eu não conseguia saber se aquele rosto era de meu pai ou de mi-nha mãe. Não notei e nem senti medo da escuridão, simples-mente corria em direção a minha casa.

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Não sei quanto tempo corri, mas só parei ao entrar na casa. Mamãe e meus irmãos estavam á mesa de jantar, alegres e todos bem. Minha mãe estranhando e sem saber o que esta-va acontecendo perguntou:

- O que aconteceu? Você brigou com seus primos? Aposto que foi com o Jorge!

Jorge e eu tínhamos quase a mesma idade e vivíamos bri-gando como gato e cachorro como dizia minha tia.

- Não briguei com ninguém! Onde está papai? - Saiu para encontrar o Sr. Maurício no botequim. Disse

minha mãe. Queria saber sobre o medicamento do cavalo que não estava no lugar de sempre. Não entendo porque ainda não voltou!

Minha mãe acabou de falar e naquele momento ouvimos alguém chamando por ela em frente á casa.

- Maura! Maura! Reconhecemos a voz de nosso vizinho Sr. Vicente.

Corremos todos para fora. Estava muito escuro, mas pude ver que meu pai estava debruçado sobre o cavalo.

Mamãe correu em sua direção e eu fui junto com ela. Papai tinha um grande corte na parte frontal da cabeça. Naquele momento consegui visualizar seu rosto coberto de sangue. Era a mesma imagem que vira durante o jantar na casa de minha tia, só que agora era real.

O Sr. Vicente nos ajudou, tiramos meu pai do cavalo, que também já estava coberto de sangue. Minha mãe correu para estancar o sangue pressionando o corte com uma toalha, e o levamos para cama. Depois do curativo, notamos que o corte não era profundo e que a quantidade de sangue se dava por ter sido em um lugar com muitos vasos sanguíneos.

Mais tarde quando meus irmãos já estavam dormindo, contei a minha mãe sobre a visão que tive em casa da minha tia Júlia.

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No dia seguinte soubemos que meu pai foi empurrado por alguém, quando discutia no armazém e batera com a cabeça na soleira de uma porta.

Começara o ano letivo, e naquele ano tínhamos uma novi-dade, minha prima Clara iria estudar no liceu da cidade. Fora convidada por sua madrinha.

Janete, madrinha de Clara, era professora e tinha um filho de dois anos. Minha prima iria morar com eles para fazer com-panhia a Celso Henrique. Enquanto sua madrinha lecionava pela manhã ela ficava em casa com o menino e à tarde Clara cursava a 5ª serie do Ensino Fundamental no mesmo Liceu.

Fui com meu pai a cidade e fiquei encantada com tudo que minha prima tinha ganhado de presente de sua madrinha e principalmente com o bonito uniforme do Liceu. Eu estava também cursando a 5ª série e sonhava que poderíamos ir juntas para o colégio. Meus pais tentavam me convencer que não ha-via a menor possibilidade de isso acontecer, porque não tinham condições financeiras, e que minha prima estava estudando na cidade porque sua madrinha Janete cobria suas despesas.

Concluí a 5ª serie naquele ano, e não poderia mais estudar porque na escola da vila tinha apenas um professor que englo-bava alunos da 1ª à 5ª série. Para não ficar longe da escola, pois o meu maior sonho era estudar, e ser professora da Vila mais tarde e assim concretizar o sonho do meu querido Avô, con-tinuei, não estudando, mas auxiliando a professora nas tarefas com as crianças menores por quase dois anos.

Com isso tinha a possibilidade de recordar as coisas que aprendera até aquele momento.

Meu pai agora comercializava produtos agrícolas, compra-va dos agricultores da Vila e revendia para os grandes merca-dos na cidade. Com isso continuava sempre com suas viagens e agora percorria praticamente todas as cidades próximas para conseguir mercado para a venda de seus produtos.

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Mamãe continuava organizando tudo em casa, e cuidando dos filhos. Agora já éramos cinco irmãos, 3 meninas e dois me-ninos. Muitos deles, ou quase todos, papai nem vira nascer.

- Seu pai é muito nervoso! E eu não gostaria de tê-lo por perto durante um parto! Dizia minha mãe, quando questioná-vamos suas ausências, quando estava se aproximando a data do nascimento de uma das crianças.

Os partos sempre foram em casa, com o acompanhamen-to de minha avó e de uma parteira.

Era inverno, e este ano foi bastante frio. A nossa Vila situ-ava-se no lugar mais alto da região, e durante este inverno as temperaturas estavam bastante baixas. Os campos amanhe-ciam brancos de geada.

No final do mês de junho, eu tinha completado 12 anos. Quando meu pai retornou de uma de suas viagens. Tinha sempre muitas novidades, e enquanto minha mãe preparava o jantar, ele nos reunia para contar uma grande novidade.

Tinha encontrado, por um acaso desses que só acontece por obra divina, um de seus irmãos por parte de pai. Meu avô pater-no tinha formado uma segunda família após a morte de minha avó. Mas até aquele momento ninguém sabia onde moravam.

Meu pai estava assistindo a um jogo de futebol, em uma das cidades de suas viagens. Papai, um gaúcho dos Pampas, adorava estar vestido com a PILCHA GAÚCHA que na épo-ca era uma honra para qualquer Gaúcho. Complementando a vestimenta típica, usava um chapéu com barbicacho, e neste constavam as iniciais de seu nome JF (Júlio Fontoura). Este também era o mesmo nome de meu avô paterno.

Em meio ao jogo um homem se aproximou de meu pai e perguntou-lhe:

- Você é Júlio Fontoura?Meu pai pensando que fosse um de seus clientes respondeu:

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- Sim, sou Júlio Fontoura. E o senhor é do supermercado....O homem o interrompeu e disse:- Não! Não sou de nenhum supermercado, não. E sorrin-

do falou:- Sou Orlando Fontoura e acho que sou seu irmão!Então meu tio falou que seu pai se chamava Júlio Fontou-

ra, e que era como se ele estivesse olhando naquele instante para o próprio pai, devido à semelhança entre os dois.

E assim, dessa maneira todos nós, conhecemos o outro lado de nossa família, ou seja, os meios irmãos de meu pai e com eles tios primos e uma avó torta, que foi a segunda espo-sa de meu avô paterno.

No dia seguinte estávamos todos eufóricos com as novida-des. Todos nós já estávamos sonhando com os novos mem-bros da nossa família, como viviam, e queríamos saber quan-do todos iriam se encontrar para que todos se conhecessem.

Era uma manhã de inverno, e como sempre os campos haviam amanhecidos brancos de geada. O sol brilhava em um céu total-mente azul, e dentro de poucas horas, o gelo havia derretido e os campos voltavam a sua cor natural, um imenso tapete verde.

Papai e mamãe levantaram um pouco mais tarde, aquele dia. Nós as crianças, ouvíamos que conversavam no quarto. Estra-nhamos porque não era comum, ficarem no quarto até tão tar-de, principalmente mamãe, que costumava levantar antes do sol nascer, para começar suas tarefas de dona de casa. Meus irmãos e eu levantamos e todos já havíamos tomado o café da manhã, quando papai e mamãe desceram para tomarem seu café.

Meus irmãos começaram suas brincadeiras de sempre, pois o sol estava alto e a temperatura já havia se tornado agradável.

Quando subia as escadas para os quartos, meu pai disse:- Lay, fique aqui, sua mãe e eu, queremos conversar com você!Voltei e sentei à mesa novamente ao lado de mamãe. Meu

pai então perguntou:

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- Você ainda tem vontade de voltar aos estudos?Meu coração parecia não caber dentro do peito de tanta

felicidade, meus olhos brilhavam de alegria, eu voltaria a fazer o que mais queria na vida, estudar. Meu pai vendo toda aquela agitação falou.

- Calma menina! – Vamos sentar e conversar!- Contei ao seu tio Nenê, esse era o apelido de meu tio

Vilmar Franco, a sua vontade de voltar a estudar, e ele falou-me que você pode ficar em sua casa. Mas você precisa saber que é uma cidade distante, e que você terá de ficar afastada de casa, durante praticamente todo o ano letivo. Não pode-mos ter muitas despesas com passagens de ônibus você sabe. Combinei com seu tio que mandaremos suprimentos para sua alimentação.

Eu estava tão eufórica que não consegui ouvir mais nada. Já visualizava minha escola sem nunca ter visto a mesma e até meu próprio uniforme. Como sempre a imaginação rolava a solta, minha escola, minhas colegas, meus professores, tudo era um grande redemoinho dentro da minha cabeça.

As aulas iniciariam em 02 de agosto, aquele ano, seguindo o segundo semestre, nas escolas.

Minha mãe preocupada falou:- Lay minha filha! Precisamos pensar em suas roupas! Sua

madrinha com certeza poderá ajudar-nos! Amanhã iremos até a cidade e compraremos alguns tecidos.

Na manhã seguinte o dia amanheceu ensolarado e menos frio. Saímos bem cedinho, e para chegarmos á cidade mais próxima, andaríamos aproximadamente 3 horas, em uma pe-quena charrete puxada por um bonito cavalo, que nos foi em-prestada pelo meu tio.

Tio José era a pessoa mais doce que eu conhecera, casado com minha madrinha era o irmão mais velho de mamãe. Nas viagens de meu pai, e nas suas ausências, muitas vezes, em ca-

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sos de emergência, era a ele que recorríamos, e por isso era ele a pessoa que muitas vezes nos socorria, tanto em momentos de alguma doença em casa, ou qualquer outra necessidade.

Chegamos a cidade as 9:00h da manhã. Eu estava ansiosa para chegarmos á loja de tecidos, chamava-se Casa Gaúcha e ficava no centro da cidade. Ali podíamos encontrar todo o tipo de tecidos, calçados, etc ...

Lembro até hoje, que todas às vezes, que entrávamos na-quela loja, minhas irmãs e eu, ficávamos inebriadas com o cheiro de tecidos novos, que exalavam daquelas pilhas e pilhas de tecidos de todas as estampas e cores.

- Ao entrarmos na loja, mamãe preocupada falou:- Filha! Temos pouco dinheiro! Seu pai deu-nos todo o di-

nheiro que podia! Então, lembre-se que temos que pesquisar os preços, como sempre! Precisamos comprar calçados e seu material escolar!

- Mas mamãe! E meu uniforme escolar! Quando iremos comprá-lo?

- Veja bem Lay! Exclamou mamãe, seu pai ainda não re-solveu em qual escola você vai estudar! Por isso seu uniforme será comprado quando isso estiver decidido!

- Está bem mamãe! Respondi um pouco decepcionada.Mamãe procurou a balconista que sempre a atendia e disse:- Marta minha querida! Precisamos de alguns tecidos! Pre-

cisamos de roupas íntimas e sapatos, para esta menina.Marta, muito atenciosa, era filha de uma amiga de mamãe.

Com muito carinho conduziu-nos para o interior da loja.Compramos os tecidos, que havíamos escolhidos, sapatos, e algu-

mas peças de roupas íntimas. E o mais importante, o primeiro sutiã.Dizem que o primeiro sutiã, nenhuma menina esquece, e

eu tive um motivo muito grande para não esquecê-lo.Chegamos a nossa casa quando já estava escurecendo, e

estávamos muito cansadas.

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Naquela noite, fui para o quarto mais cedo, antes de minhas irmãs menores, queria experimentar novamente o meu belo sutiã.

Como sempre, fiquei deitada na cama com os olhos fecha-dos, e fazendo aquilo, que eu pensava ser “imaginação”.

Era como se eu entrasse em transe, meu espírito parecia desligar-se do corpo, e eu podia ver e imaginar coisas.

Nessa noite não foi diferente, só que para a minha surpresa eu não estava mais em meu quarto. Estava em um lugar que eu nunca havia visto antes, e conversava com um desconheci-do, que pelas suas vestes brancas, me parecia ser um médico. Ele examinava meu seio direito e dizia:

- Não se preocupe vai correr tudo bem, e você vai ficar curada!

- Curada!!! Curada de que eu não tenho nada!!! Falei.A partir daquele momento, desesperadamente tentava sair

daquele lugar, voltar ao meu quarto, voltar para o meu corpo. Quando consegui fiquei muito assustada e pensei:

- Nunca mais brinco de imaginação!!!! Minha madrinha como sempre, prestativa, fez para mim

muitas peças de roupas, vestidos, pantalonas, blusas, etc., usando os tecidos, que mamãe comprou.

Estava chegando o final do mês de julho, e papai foi até a cidade de meu tio para acertar a minha ida e escolher o colé-gio que iria matricular-me. Em casa eu estava com tudo orga-nizado, e imaginando todas as coisas que estariam esperando por mim naquela cidade desconhecida, mas que eu sabia de alguma maneira, que lá eu seria muito feliz. Estaria realizando meu sonho, voltaria a estudar e venceria.

Papai voltou de viagem e eu sabia que estava tudo certo. Eu não queria, mas eu podia sentir e saber, tudo que eu quisesse.

Depois de um pequeno descanso meu pai me chamou:- Lay, minha filha ! Venha até aqui!- Pois não papai! Respondi, e corri para sentar ao seu lado.

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- Seu tio e eu resolvemos que você vai estudar junto com sua prima Tânia, na mesma escola.

Eu fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo preocupada, pois sabia que minha prima estudava em um Colégio de Frei-ras, e a mensalidade, conforme meu pai havia falado não era nada acessível.

- Mas papai este colégio não é muito caro? Como vamos pagá-lo?

- Será um sacrifício um pouco maior, mas valerá a pena! Falou papai, e explicou:

Como a sua prima já estuda neste colégio, e com a inter-ferência de seu tio, conseguimos matricular você no 1º ano Ginasial, você precisa apenas fazer um teste e passar. Eu sei que isso não será problema!

- Papai ainda falou:Seu uniforme já está comprado, o deixei lá para não ter que

levá-lo no dia em que você for!Chegou o grande dia que meu pai me levaria até a casa do

meu tio e a minha nova vida. Levantamos cedo naquele dia para não nos atrasarmos.

Meu pai dizia: - O ônibus tem horário e não espera ninguém! Aquela seria a viagem mais longa da minha vida, quase 100

km, e me pareceu, por conta da minha ansiedade, que não chegávamos nunca.

Quando avistamos a cidade, estávamos quase dentro dela, ficava num vale e era muito bonita. Uma pequena cidade colo-nizada por imigrantes alemães era muito limpa e arborizada.

Chegamos à casa de meu tio por volta de 11:00 horas da manhã de uma sexta-feira, meus tios e minha prima estavam a nossa espera.

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Meu pai, como havia prometido a meus tios, trazia muitos quilos de mantimentos como, feijão, arroz, farinha, etc., e al-gumas frutas e legumes que havíamos colhido na horta.

Minha mãe enquanto colhia, falava:- Lay! Diga a sua tia que mandarei mais quando seu pai for

até lá, no próximo mês. Minha mãe estava muito feliz, embora sabendo que sentiria

a minha falta, ela sabia que aquele era o meu grande sonho.A casa de meus tios era simples, composta de dois dormitó-

rios, banheiro, sala de estar e jantar e uma grande cozinha. Meus tios Nêne e Cida Franco eram pessoas maravilhosas, senti isso desde a primeira vez que os vi, e minha prima, que tinha a minha idade, era uma menina muito bonita e carinhosa, me recebeu com muita alegria e a partir daquele dia eu ganhei uma nova irmã.

Aquele final de semana, papai, meus tios, minha prima e eu aproveitamos para visitar os demais parentes, pois a maioria deles moravam na cidade. Adorei esses passeios, pois era uma maneira de o final de semana passar mais depressa.

Chegara o grande dia.Enquanto caminhávamos pela rua naquela manhã, meus

pensamentos e minha imaginação rolavam a soltas, como se eu quisesse ver todas as dependências do colégio antes mes-mo de chegar lá.

Era um legítimo dia de inverno e, sobretudo um legítimo mês de agosto. Fazia naquele horário, 7:15 da manhã um friozinho gostoso, com um sol um tanto apagado, uma neblina baixa, que mais parecia fumaça que saiam das chaminés, para marcar encon-tro junto aos morros, deixando-os cinzentos e melancólicos.

Não vou esquecer jamais, aqueles trinta minutos de cami-nhada que fiz com minha prima até o colégio.

Estreava o meu lindo uniforme, padrão naquela época para to-dos os Colégios Religiosos. Uma camisa feminina branca, saia azul, com pequenas pregas, (plissada), uma jaqueta azul, que devido a

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minha pequena estatura aos doze anos, parecia, e não só parecia, estava um pouco comprida demais, sapatos preto e meias branca.

Nesse momento eu esquecia a minha condição de menina da roça e me sentia igual às demais meninas que estudavam naquele bonito colégio.

Em suas conversas com amigos, papai dizia sempre muito orgulhoso:

Minha filha Lay, freqüentará o melhor colégio da região! Vai ser um pouco difícil, mas ela merece, um dia ainda vai ser a professora aqui da vila.

- Meu colégio era maravilhoso, papai não exagerou em nada. Como sempre, mesmo sem querer mais “brincar de imaginação”, reconheci vários lugares com características quase idênticas às dos meus sonhos.

O sinal, para entrada nas salas de aula, tocava 7:45h. Quando chegamos, minha prima levou-me até a presença de Irmã Ro-sinha, uma freira muito carinhosa, magra e de estatura média, que se destacava das demais por seu sorriso carismático. Irmã Rosinha levou-me até a sala da Madre Superiora, que se chama-va Irmã Clara. Apresentou-nos e falou sobre a possibilidade de que eu ingressasse no 1° ano ginasial, desde que passasse numa prova que seria preparada, para minha avaliação.

A Madre Superiora lembrou de que havia falado com meu pai e meu tio sobre isso e falou:

- Você é Lay! A prima da menina Tânia do 1° Ginasial I, lembro que combinei isso com seu pai! Exclamou Irmã Clara.

- Irmã Rosinha vai preparar a sua avaliação, mas enquanto isso você pode freqüentar a 5ª série, da qual ela é professora.

- Combinado Irmã Rosinha! - Sim Madre, respondeu Irmã Rosinha, a prova estará

pronta no máximo em duas semanas.- Então vamos para sua sala minha querida! Que já deve

estar em alvoroço sem a minha presença por lá! Brincou Irmã

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Rosinha, levando-me pela mão por um longo corredor no an-dar térreo do Colégio.

E ela tinha razão quando chegávamos perto da Sala 33, já podíamos ver o alarido das meninas.

Quando entramos todas correram para seus lugares, e fi-caram em silêncio.

- Esta é Lay Fontoura! Exclamou! - Lay ficará conosco por alguns dias! Ela fará uma ava-

liação para o 1° ginasial dentro de alguns dias, se ela passar vocês a perderão.

Todas queriam que eu sentasse a seu lado, e queriam saber por que eu não ficaria na 5ª serie, e de onde eu vinha. Irmã Rosinha com toda a sua calma explicou:

- Embora não pareça, disse ela, Lay era professorinha em uma pequena Vila onde morava, auxiliava a professora da es-cola local com as crianças menores. Por isso vamos avaliá-la, pois por sua experiência, seria uma lástima, ela perder mais um ano repetindo a 5ª série.

Todas falavam ao mesmo tempo, fazendo milhões de per-guntas, mas irmã Rosinha com sua voz meiga, mas firme, pe-diu silêncio e todas se acalmaram.

Fiquei por duas semanas aguardando os testes de avaliação, enquanto isso procurava aprender, recordar e aproveitava cada palavra, tudo que fosse possível para fazer um bom teste.

Duas semanas depois, no final da aula, irmã Rosinha pediu que eu ficasse na sala, por que precisávamos conversar, de-pois, que o restante da sala se retirou ela falou:

- Bom minha filha! Você foi avaliada por mim nestas duas semanas e aprovada, porque senti que além de ser uma menina inteligente, você tem um senso de responsabilidade muito gran-de. Sabemos que ao abrirmos esta exceção, que não é comum, não nos arrependeremos, visto que temos a certeza de que você poderá acompanhar a classe 1° ginasial sem nenhum problema.

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- E acrescentou:Faremos o teste de avaliação englobando todas as matérias,

e você precisa alcançar a média 7 (sete) em cada disciplina. Seu teste será amanhã na sala 18, pode dirigir-se para lá quan-do você chegar ao colégio.

Naquela noite fiquei um pouco nervosa e insegura, pois aquele teste era muito importante para mim, me levaria dire-tamente para o 1° ano ginasial o que significava, em primeiro lugar tempo e em segundo lugar dinheiro, pois era menos um ano que meu pai teria que pagar pelos meus estudos.

O teste na manhã seguinte foi tranqüilo, pois sabia que estava preparada e o nervosismo da noite anterior era apenas ansiedade. Minha média variou de 9,0 a 9,6 e estava aprovada para seguir em frente e realizar meus sonhos.

No final da semana voltei para o vilarejo em que moravam meus pais e irmãos, teríamos a comemoração do aniversário de uma de minhas irmãs e aproveitando a data comemoramos também meu bom desempenho na escola.

Este final de semana e aquela pequena festinha, que não passou de um pequeno almoço em família como sempre, foi a festa mais importante de minha vida até aquele momento, co-memorava meu ingresso na 1ª seria ginasial, isso me levaria em um semestre a 2ª série, se obtivesse média no final do ano, e eu tina absoluta certeza que conseguiria. Mas não foi só isso.

Quando estávamos todos sentados a mesa naquele dia sen-ti, ou se quiserem, imaginei, visualizei, tive a certeza de que naquele momento eu poderia falar uma coisa que sempre tive vontade, e que seria um primeiro passo para a tranqüilidade de toda a nossa família, então criei coragem, levantei e depois de desejar felicidades a minha irmã Emily que era a aniversa-riante do dia criei coragem e falei:

- Papai gostaria de lhe fazer um pedido!

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- Faça minha filha, o que você quer? Falou papai sem saber de que se tratava.

Então peguei a mão de minha mãe e de minha irmã Ellen que também não entenderam nada e falei:

- Nós gostaríamos que o senhor parasse de beber, isso me deixaria mais tranqüila e minha mãe e as crianças mais felizes.

Notei que papai naquele momento, ficara com os olhos cheios de lágrimas, então ele também levantou e com a voz emocionada segurou também em nossas mãos e falou:

- Bom minha gente, eu não penso que isso será uma coisa muito fácil, precisarei de muita força de vontade, mas juro que vou fazer o possível para atendê-los, para realizar o sonho dessa família linda que hoje é minha razão de viver.

Todos nós choramos abraçados e continuamos nosso al-moço que a partir daquela data não foi mais acompanhado de nenhuma bebida alcoólica.

Tenho um grande orgulho de meu pai, por sua determi-nação e força de vontade, não vou dizer que ele nunca mais bebeu, mas quando o fazia era socialmente e isso foi deter-minante para a nossa evolução mais tarde, quando todos nós estávamos na cidade.

Sempre soube do sacrifício de minha mãe para tomar con-ta daquela família, que até aquele momento já era de seis fi-lhos, todos pequenos.

No momento em que voltei para casa depois de algumas semanas longe de tudo, pude então ter a noção exata das di-ficuldades que aquela pequena mulher enfrentava todos os dias, hora se dedicando aos filhos, ao marido, a casa e ainda cuidando do pequeno comércio de onde tirávamos o sustento para todos. E como uma guerreira ela se entregava a todo o tipo de sacrifício enquanto meu pai como sempre coordenava algumas coisas no armazém, isso quando não estava viajando, para comprar suprimentos para o mesmo.

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Senti naqueles dias que minha luta para dar uma vida me-lhor para todos estava começando naquele momento, minha mãe precisava de ajuda e eu com 12 anos de idade precisava fazer alguma coisa para ajudá-la. Senti que me dedicando aos estudos seria a melhor maneira de ajudar meus pais e meus irmãos. Não seria uma ajuda imediata, mas senti que estava no caminho certo e precisava investir no médio e longo prazo.

Voltei para casa de meus tios e a escola com aquela determinação.Encontrei naquela família verdadeiros pais e mais uma

irmã. Minha prima Tânia foi mais que uma irmã que tive, quando não sobrava dinheiro para comprar roupas ela me dava suas próprias roupas para eu usar. E foi assim que con-segui estudar, e me formar aos 18 anos, como Técnica em Contabilidade.

Meus pais e irmãos que nesse momento já eram oito, pois minha mãe, a minha heroína, além dos oito filhos gestados, na-quele ano adotara uma menina que perdera a mãe ao nascer.

Todos continuavam no vilarejo, e sobreviviam com gran-de dificuldade.

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Uma Época de muito sufoco

Lembro que meu pai sempre cuidou de que não faltasse o básico para nossa alimentação, mas era só isso, claro

que era uma função muito importante, por isso desde que me lembro era mamãe quem fazia doces e salgados, e se dividia em três para ganhar algum dinheiro extra para comprar alguns metros de tecidos, ou então alguns metros de pelúcia para fazer roupas para ela e para nós as crianças.

Enquanto meu pai curtia a sua paixão que era as corridas de cavalos, na pequena cancha reta próxima de casa, mamãe trabalhava, ganhava algum dinheiro vendendo pasteis e doces durante o dia inteiro. Muitas vezes em um fogo de chão ela ainda cozinhava, fazia pratos, como uma gostosa galinhada e vendia como “prato do dia”.

Com o dinheiro arrecadado com muito trabalho e sacri-fício, podia comprar algumas roupas e calçados, coisas que precisávamos para “sair”, como ela sempre dizia.

Para usar em casa, usávamos tamanquinhos de madeira com couro, a maioria de nossas roupas, eram feitas com pa-nos tirados das embalagens usadas para acondicionar as mer-cadorias como açúcar e farinha de trigo do pequeno armazém que meu pai tinha na vila. Armazém este que não dava quase nenhum lucro, pois a maioria dos pagamentos, como a vila era muito pobre, eram feitas através de trocas. As pessoas precisa-vam comprar açúcar ou café, mas não tinham dinheiro, então traziam outras mercadorias que cultivavam em suas pequenas porções de terras, como feijão ou milho e assim faziam as compras na base da troca.

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Para confeccionar nossas roupas e também de minhas pri-mas, minha mãe e minha tia lavavam os panos retirados das embalagens, e os tingiam com tintas de várias cores, lembro-me que elas amarravam uns cordões nos tecidos antes de co-locá-los para tingir, assim onde eram amarrados os cordões ficavam umas manchas que até pareciam flores e nós as crian-ças, em nossa ingenuidade, achávamos lindos.

Penso que as primeiras roupas que ganhei de papai, foram quando fui estudar na cidade.

Nos nossos aniversários mamãe fazia uma gostosa galinha-da, (arroz com galinha) e permitia que cada uma das crianças escolhesse seu pedaço de carne preferido. Se ela fazia algum doce de frutas, nos servia em pratinhos feitos com latas de pes-cado que papai trazia da cidade em suas viagens, pescado esse que ela nunca comia, quando papai perguntava a ela se queria um pouco, ela respondia que sim, mas acabava dando o pescado para nós, as crianças e sempre falava com seu jeitinho carinhoso ”aqueles que tem filhos jamais morrerão engasgados”.

Nunca passamos fome porque sempre tínhamos o velho feijão com arroz e alguma mistura como repolhos, mandioca ou alguns outros legumes que mamãe plantava na horta com a ajuda de algum dos primos que sempre vinham ajudá-la.

Leite também não era problema porque sempre tínhamos uma vaquinha de leite no pasto.

À noite tínhamos sempre a velha e boa sopa, muitas ve-zes sem nenhum tipo de carne. A sopa geralmente era feita com massa caseira ou arroz e legumes da horta. Eu adorava quando mamãe cortava a massa em tiras largas, porque a sopa ficava com um caldo bem grosso e era muito saborosa.

Quando nascia uma das crianças mamãe fazia dois ou no máximo três conjuntinhos de roupas e as fraldas eram feitas com pedaços de lençóis velhos, porque como eram velhos fi-cavam mais macios, dizia ela e mais confortável para o bebê.

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Sempre tive sonhos que lutei para realizar, estudar era um deles, porque sabia que com isso iria tirá-los, meus pais e as crianças daquele sufoco.

Quando fui para a cidade voltava sempre ao vilarejo em alguns finais de semana ou em férias, via como todos estavam vivendo e em muitas vezes não tinha nenhuma vontade de voltar, queria ficar lá para ajudar, mas ficar seria parar de es-tudar e sucumbir o sonho de tirá-los daquela miséria, sempre voltava à cidade triste e deprimida, meu objetivo era conseguir um emprego e ajudá-los, mas naquela época não se conseguia trabalho nas fábricas ou em outro lugar sem completar 18 anos de idade, eu precisava esperar. Infelizmente todos preci-savam esperar.

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Então voltamos à escola

Depois de ver que não conseguiríamos pagar o colégio, no segundo ano consegui, com a ajuda de Irmã Rosi-

nha, meia bolsa da Escola, e mesmo assim não conseguíamos pagar as mensalidades em dia, então consegui convencer meu pai que poderia estudar à noite, em uma escola pública, coisa que ele não queria, por isso tinha me matriculado em um colé-gio particular, nas escolas públicas naquela época, só existiam cursos ginasial e de segundo grau à noite.

Pedi transferência para um Colégio Público e as coisas fi-caram mais fáceis, pelo menos não precisava me preocupar se conseguiríamos ou não pagar as mensalidades do colégio no final do mês. Nessa mesma escola pública consegui estudar me formar, primeiro no ginasial e depois no curso de Técnico em Contabilidade.

Ao me formar também completei 18 e então chegara a mi-nha hora, agora eu precisava trabalhar, e meu curso Técnico não estava me proporcionando grandes chances na época.

Então me inscrevi para trabalhar em uma grande Cia. adqui-rida por um Grupo Alemão e que estava ampliando sua área fa-bril na mesma cidade em que eu vivia com meus tios. Minha tia já trabalhava nesta empresa e acompanhara seu desenvolvimen-to, mesmo antes da aquisição da mesma pelo Grupo Alemão.

Aguardei alguns dias e fui chamada na empresa para ava-liação. Comecei a trabalhar na área de Controle de Qualidade da Empresa que era fabricante de cigarros. Fui admitida no inicio do mês de dezembro e esse foi o meu primeiro e me-lhor presente de Natal.

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Eu já tinha o meu presente, e com ele eu poderia dar os presentes que toda aquela família nunca tivera.

Sabia que com o pequeno salário que recebia, não poderia fazer milagres, então perguntei a minha tia.

- Tia Cida o que a Senhora acha que eu poderia levar como presente de Natal para minha mãe, papai e as crianças?

Minha tia sabendo da dificuldade que todos passavam, pensou um pouco e disse:

- Ora minha filha! Penso que o melhor presente seriam roupas. Sua mãe se queixou da dificuldade que está tendo para vestir as crianças, na última vez em que nos encontramos.

Durante aquela noite o sono me abandonou. Pensava em todas as roupas que compraria e as vestia, na minha imagina-ção, em cada um deles.

Para minha mãe compraria um lindo vestido e também um par de sapatos.

Já visualizava meus irmãos menores correndo para mos-trar suas roupas novas aos tios e primos.

Minhas irmãs Hellen com 17 anos e Emily com 15 anos, ganhariam vestidos para se apresentarem lindas na próxima festa da comunidade.

Meu pai ganharia um chapéu novo.No dia seguinte fui para o trabalho e durante todo o dia

continuei aquele sonho, pois quando saísse do trabalho, iria passar nas lojas para iniciar as compras.

Chegando á primeira loja, procurei as peças que tinha imaginado e tal foi minha decepção quando percebi que para comprá-las, gastaria não o meu 1° salário, mas os próximos seis salários, e que meu sonho seria impossível.

Voltei para casa de minha tia arrasada. Ao chegar minha tia logo percebeu minha tristeza, e perguntou.

- Como foi na loja? Você conseguiu o crédito que precisa-va? E com sua presteza de sempre falou.

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- Se precisar eu assino fiança para você!Contei a minha tia o que tinha acontecido, e que infeliz-

mente não poderia comprar as peças que imaginara, porque ficariam caras demais.

- Você já pensou confeccioná-las! Você leva jeito para isso minha filha! Penso que não seria difícil. Disse minha tia.

Lembrei então que muitas vezes fazia minhas próprias rou-pas, ou as reformavam na velha máquina de costura da casa, uma herança da avó de minha prima.

No dia seguinte fui a uma loja de tecidos e comecei a escolher os tecidos, percebi realmente que minha tia tinha razão, e eu a partir daquele momento muito trabalho pela frente a fazer.

Faltavam pouco mais que uma semana para o Natal, e eu teria que trabalhar muito se quisesse ver a expressão maravi-lhada nos olhinhos de cada um de meus irmãos.

Todos os dias quando chegava do trabalho na Fábrica, co-meçava a minha jornada de costura que se estendia até altas horas da noite.

E a cada dia uma ou mais peças amanheciam prontas sobre a pequena mesa. Para os meninos fiz peças como bermudas que poderiam ser ajustadas com elásticos e para as meninas menores, pequenas saias e blusinhas frente única. Minhas ir-mãs, Helen e Emily, como tinham o meu manequim, fiz os vestidos de festa tão sonhados por elas, com a ajuda de minha tia, e para minha mãe achei mais conveniente uma saia longa.

Agora precisava comprar o presente de papai. Fui a uma loja de produtos para homens e encontrei o chapéu, era con-feccionado em feltro preto com uma fita de cetim, também preta. Era lindo! Meu pai ficaria orgulhoso.

Aquele foi o melhor Natal de nossas vidas e o mais lindo até o momento.

Meus irmãos felizes não queriam ir para cama naquela noi-te, e até esqueceram de colocar as meias na janela para os

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presentes de Papai Noel. Quando exaustos foram todos para cama dormir, minha mãe e eu colocamos suas meias nas ja-nelas e dentro de cada uma delas, algumas balas, como era de costume em todos os Natais.

Durante esses dias em que estive em casa com meus pais, conversamos sobre meu sonho de trazê-los um dia para a ci-dade, só que para isso precisávamos conseguir trabalho para minhas irmãs Helen e Emily e escolas para os pequenos.

Meu emprego na fabrica de cigarros no setor de Controle da Qualidade, pelo tipo de trabalho que realizava, me proporcio-nava manter contato com pessoas de todos os departamentos, muitas delas pessoas com cargos de chefia, e muitas vezes os ouvia comentar a necessidade de contratar novos funcionários.

Algum tempo depois quando fui visitar meus pais na pe-quena Vila onde meus pais continuavam vivendo, comentei esses fatos com minha família e meus tios.

Ao voltar para a cidade trouxe comigo minha irmã Helen e minha prima Clara que tinham completado 18 anos, e as levei até a fábrica para inscrição no Departamento de Pessoal. Cla-ra e Helen voltaram para o vilarejo, cheias de esperanças.

Alguns dias depois ouvi comentários sobre algumas vagas que surgiriam no próximo mês. Falei com um colega de traba-lho sobre minha irmã e prima e ele falou:

- Lay! Escreva o nome completo das meninas e deixe em minha mesa, vou ver o que posso fazer.

- Obrigada Mário! Vou fazer isso agora mesmo!Sempre penso que quando acreditamos em alguma coisa

de verdade é meio caminho andado, e naquele momento, eu tinha certeza que tudo daria certo e meu sonho de trazer to-dos para junto de mim estaria cada vez mais próximo.

Passou dois ou três dias desde que falei com Mário. Não o vi mais.

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Sexta-feira, final de semana chegando, todos apressados, cruzei com Mário na saída da Fábrica e o cumprimentei.

- Olá Mário! - Oi menina! Respondeu Mário e depois de alguns passos

se voltou e disse:- Não esqueci você! Peça para as meninas virem até o de-

partamento de pessoal na segunda-feira.- Tenha certeza que estarão aqui. Obrigada mais uma vez

Mário!Precisava avisar minha irmã e minha prima. A comunica-

ção com o vilarejo não era fácil, não havia telefones no local e a única maneira de comunicação entre meus pais e eu era feita através de cartas, que muitas vezes demoravam uma semana para chegar.

Contei o que havia acontecido para meus tios. Minha tia ficou pensativa e depois de alguns minutos falou.

- Lembra aquela vez que você ficou doente e teve que ser hos-pitalizada? Conseguimos mandar um bilhete com o ônibus e seu pai recebeu no mesmo dia. E perguntou para minha prima:

- Taninha você lembra como isso aconteceu?O ônibus que minha tia falava passava a 10 km do vilarejo

e seguia para a cidade. Pois então Mamãe! Disse minha prima lembro-me que pa-

pai e eu, fomos até a Estação Rodoviária, enquanto você ficou no Hospital com Lay.

Meu tio não estava em casa, havia viajado para a Capital para visitar um irmão, mas aquela era uma possibilidade e tí-nhamos que tentar. Se eles tinham conseguido uma maneira de comunicação rápida naquele dia era na Estação Rodoviária que eu poderia saber.

No dia seguinte escrevi um pequeno bilhete e fui até lá um pouco antes do horário que normalmente partia o ônibus.

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Chegando, encontrei Getúlio, um negro forte, amigo de meu pai e que trabalhava como cobrador daquela linha de ônibus.

- Olá menina! Vai visitar seus pais? Perguntou Getulio, com seu sorriso franco e sempre cordial.

-Não! Hoje não! Respondi. Apenas preciso muito entrar em contato com eles.

- Algum problema? - Não meu amigo! Mas se conseguisse sei que resolveria

muitos problemas.Getúlio rio e perguntou.- Posso fazer alguma coisa para ajudar?- Você lembra aquela vez que fui hospitalizada? Falei.- Sim é claro que me lembro da famosa apendicite! Seu pai

ficou quase enlouquecido.- E você lembra como conseguiu que o bilhete chegasse

até ele?- Lembro! Havia um rapaz no ônibus que conhecia seu pai

e que estava indo para o vilarejo, dei o bilhete a ele.- Será que vamos ter essa sorte hoje? Perguntei.- Podemos tentar! Disse GetúlioNaquele momento o motorista estava entrando no veículo

para dar a partida. Getúlio entrou logo atrás e perguntou.- Oi pessoal!- Tem alguém aí que está indo para o Vilarejo de Capivari?Não houve resposta.Getúlio desceu e falou-me:- Lay tem muitos passageiros por essas estradas e pode

ser que tenhamos sorte mais adiante! Deixe comigo o bilhete. Subiu e o ônibus partiu.

Bom agora eu só poderia rezar e esperar.Fui para casa e naquela noite quase não consegui dormir. Ha-

via algum tempo que por medo ou mesmo não querendo ver

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coisas, as quais eu não poderia mudar, não tentava ver nada no futuro, como fazia quando criança e chamava de imaginações.

Naquela noite, não conseguindo controlar minha ansieda-de, fechei os olhos, e tentei ver se meus pais receberiam o bi-lhete. Sempre dera certo quando era criança, não custava nada tentar. Não vi a entrega do bilhete, mas vi minha irmã e minha prima agitadas, como que se preparando para viajar.

Pensei, eles receberam!!!!!Domingo pela manhã costumávamos ir á missa na pequena

capela próxima no mesmo bairro em que moravam meus tios. Minha tia minha prima e eu levantamos cedinho e seguimos as três para a Igreja. No caminho, como sempre, encontramos Vovó Loca e Marlene que também iam a missa nesse mesmo horário. Juntamo-nos a elas e fomos fazer nossa obrigação cristã.

Por determinado tempo até esqueci minhas preocupações com o bilhete, afinal tinha quase certeza de que meus pais o tinham recebido.

A tarde como de costume fomos visitar minha tia Regina, que morava em outro bairro e só voltamos para casa quando a noite estava começando a cair.

Ao chegar próximo vimos que o portão estava aberto e minha tia comentou.

- O velho já chegou! Era como ela carinhosamente chama-va meu tio.

Mas ao chegarmos ao portão vimos minha Irmã Helen e minha prima Clara sentadas em um pequeno banco que meu tio colocara sob o velho chorão, que gigante e frondoso nos cobria com sua sombra durante o verão.

Na segunda-feira como prometi á Mario, as levei até a Empresa.

Uma semana depois Helen e Clara estavam trabalhando e jun-tas fazíamos milhões de planos em relação as nossas famílias.

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Lay Faggundes

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Esperamos o final daquele ano, pois teríamos que arranjar colégio para os pequeninos, e queríamos que eles acabassem o ano letivo no vilarejo.

O mês de dezembro chegou. Meus irmãos já estavam em férias, agora poderíamos pensar em trazer todos para a cidade. Alugamos uma pequena casa próxima à casa de meus tios. A casa era pequena tinha três dormitórios, sala e uma grande cozinha, acredito que a cozinha era o maior cômodo da casa. No lado de fora da casa ficava um banheiro e a área de serviço com um grande tanque para lavar roupas. No meio do pátio havia um grande forno á lenha para assar pães. Minha mãe ao ver o forno ficou maravilhada.

Compramos alguns móveis para dar um pouco mais de comodidade a todos. O quarto ao lado da sala ficou para meus pais, o quarto ao lado da cozinha que era o maior, para as me-ninas e o quarto atrás da cozinha para os meninos. Hoje quan-do penso sobre aqueles primeiros tempos na cidade, muitas vezes, não consigo entender como vivíamos todos naquela pequena casa.

Agora precisávamos, colocar os pequenos no colégio, minha irmã e eu separamos algum dinheiro e conseguimos comprar al-gumas roupinhas e calçados novos para cada um, e lá foram eles estudar para se tornar, não grandes homens e grandes mulheres, mas com certeza “grandes seres humanos”.

Hoje tenho orgulho deles e de toda a minha família, que com grande alegria consegui manter unida até hoje, não os dei-xei perdidos naquele vilarejo, um lugar que não evoluiu, e que provavelmente não traria nenhum beneficio a nenhum deles.

Ainda não consegui realizar o sonho do meu Avô, ser pro-fessora, como hoje estou fazendo um curso de Inglês, eu ain-da imagino realizá-lo um dia dando aulas particulares, e então tudo estará completo.

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Meu pai logo em seguida começou a trabalhar e meu irmão Toni e minha irmã Emily também. Meu irmão Marquinhos aos 12 anos também já dava sua contribuição lavando copos em uma lancheria. Bety, Elyene, Julio, Angela e Vander, bom, essa turminha, vieram para a família no tempo das “vacas gordas” mas enfim todos deram e dão até hoje suas contribuições.

No final de cada mês dividíamos as despesas entre todos os que tinham renda e assim começamos nossa vida na cida-de, uma família muito grande num pequeno espaço, com mui-ta colaboração entre todos e, sobretudo, com muito amor.

Naquele verão, tive minha primeira preocupação, com re-lação as minhas “imaginações”. Depois de um banho de sol, senti que alguma coisa não estava normal com meu seio direi-to, uma pequenina mancha vermelha, que a princípio pensei que fosse devido ao excesso de sol, mas que dias depois quan-do desapareceu o vermelhidão, tornou-se um pequeno ponto endurecido, um pequeno nódulo.

Quando o vi lembrei-me imediatamente do dia em que ganhei meu primeiro sutiã, ou melhor, da noite em que eu o experimentei.

No dia seguinte chegando à empresa para trabalhar corri ao centro médico, e marquei uma consulta com o médico que atendia os funcionários. Já o conhecia e chegando ao consultório falei:

- Dr. João encontrei algo no meu seio, quero saber o que é? E ele falou.

- Bom dia Lay! Que correria é essa menina! Calma!!!!- Mas doutor eu sonhei que ....- Você sonhou o que? Sente-se aqui e contem-me que so-

nho foi esse que a deixou tão preocupada!Sentei-me na cadeira em frente sua mesa e contei o que

tinha acontecido à quase oito anos atrás quando tinha 12 anos e ganhei meu primeiro sutiã.

- Meu Deus!!!! Falou Dr. João.

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- Pela sua ansiedade eu julgava que esse sonho havia acon-tecido na noite passada!!!! E começou a rir.

Quando sentiu que eu estava mais calma falou:- Vamos ver que coisa horrível e essa!!Examinou-me com cuidado e falou:- Querida pela minha experiência, posso afirmar que se

trata de excesso de hormônios, nada que cause nenhuma pre-ocupação, mas é claro, vamos acompanhar e ver a evolução do quadro.

Depois daquela consulta tentei não pensar mais em mi-nhas imaginações, e não pensar mais que havia encontrado aquele nódulo no meu seio. Dr. João disse-me que teríamos que aguardar, porque a tendência nesses casos era o desapare-cimento em pouco tempo.

Evitei comentar com minha família, e nem mesmo com mi-nha prima, com a qual não costumava ter nenhum tipo de se-gredo, visto que passamos juntas praticamente toda nossa ado-lescência. Mas eu não queria preocupar ninguém, muito menos mamãe, pois essa já tinha preocupações e trabalhos demais.

Sempre que pensava em contar essa estória, pensava em escrever um capítulo dedicado a minha mãe e minha heroína e que esse capítulo se chamaria:

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Capítulo especial Dona Maura

Sei que não vou surpreender muitas pessoas com o que vou contar sobre minha mãe. Dona Maura não foi e

não é diferente de muitas mães daquela época, e talvez não é diferente da sua própria mãe.

Minha mãe nasceu em uma família de seis filhos, foi a se-gunda mulher em uma família de quatro mulheres e dois ho-mens. Meu avô e minha avó moravam no vilarejo onde eu nasci, e consequentemente onde minha mãe também nasceu. Eram agricultores e os filhos os ajudavam com os trabalhos da agricultura. Cultivavam o essencial para o sustento da famí-lia, não comercializavam os produtos.

Dona Maura começou sua vida em contato com a terra, e como ela sempre diz segurando um cabo de enxada. Foi uma moça mui-to bonita, segundo as pessoas que a conheceram. Casou-se com meu pai aos dezenove anos e um ano depois eu nasci.

Meu pai era um autodidata, como falei no início, e uma pessoa com visões avançadas para a época. Politizado, enten-dia um pouco de tudo, era um pouco mais velho que mamãe, mais vivido e um homem muito bonito.

Minha mãe era daquelas pessoas que nascem para ser mãe. Por esse motivo na minha infância e adolescência a vi grávida enumeras vezes, e talvez por causa disso, muitas vezes eu tive a impressão de que mamãe estivera eternamente grávida.

Enquanto isso meu pai era daqueles homens que dava a sua colaboração apenas no momento da fecundação. Pois dos nove partos de minha mãe, ele estivera, não presente, mas em casa, em apenas dois deles.

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Papai era igual a todos os homens de sua época, não dava nenhuma colaboração com os pequenos, não tinha jeito nem mesmo para segurar uma criança nos braços, e era daqueles homens que gostavam de receber tudo nas mãos, até mesmo um simples copo d’agua. Muitas vezes penso que minha mãe teve sua parcela de culpa nessas manias de papai.

Quando mudamos para a cidade pensei que mamãe seria a pessoa mais beneficiada com essa mudança, teria menos tra-balho, mas isso não aconteceu.

Papai e nós, os filhos adultos, trabalhávamos o dia inteiro, enquanto isso minha mãe ficava em casa com os pequenos, e todos tinham horários a cumprir, inclusive as crianças.

Mamãe que no vilarejo tinha trabalhado como poucas mu-lheres trabalharam até hoje, agora na cidade além do trabalho, ela agora precisava observar horários com os quais ela não se preocupava no campo. Naquela casa agora tinham seis pes-soas que trabalhavam em empresas diferentes e em horários diferentes. Essas pessoas tinham que, encontrar independen-te de seus horários, muitas vezes a refeição servida sobre a mesa, pois era a única maneira possível para não chegarem com atraso de volta a jornada de trabalho. Além, disso haviam as crianças que precisavam ser vestidas alimentadas e encami-nhadas para a escola.

Depois de um ano, morando na pequena casa alugada, com algumas economias e com o valor apurado por meu pai com a venda de algumas cabeças de gado que tínhamos no vilarejo, conseguimos comprar um terreno. Papai desmontou a velha casa de madeira do vilarejo e a trouxe para ser montada no terreno da cidade.

A casa ficou pronta, não era maior que a primeira. Lem-bro-me que quando á vi pronta senti falta de alguma coisa que não conseguia identificar mas sabia que estava faltando algo e só um tempo depois lembrei-me que estava faltando a

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O terreno era grande, com mais ou menos, 600 metros quadrados. E foi ali que meu pai construiu a Vila Fontoura.

Naquela época muitas pessoas do Vilarejo, primos, paren-tes mais distantes e até vizinhos, começaram a procurar ser-viços nas fábricas onde nossa família trabalhava, e para cada um que chegava, papai construía um pequeno cômodo para que aquela pessoa pudesse se acomodar, muitas vezes com mulher e filhos.

Quando chegavam, papai que trabalhava como encarrega-do de fábrica, os conduzia até as empresas para se inscre-verem para as vagas existentes e para que fossem chamados a trabalhar o mais rápido possível. Meu primo Ademar, que também era seu afilhado, quando chegou do vilarejo, meu pai o abençoou, tirou-lhe a pequena mala de roupas da mão, e no mesmo instante o conduziu até a fábrica em que ele trabalha-va e no dia seguinte Ademar já estava trabalhando também.

Quando cheguei á noite do trabalho o pobre rapaz reclamava:- Lay! É claro que estou contente! Pasme menina!!! Vou co-

meçar a trabalhar amanhã!!!! Você acredita que meu padrinho não me deu nem tempo de ir conhecer o centro da cidade!!!!

Todos começaram a rir, e ele falou:

pequena varanda, ela ficava na frente da porta da sala, tam-bém de madeira, com uma proteção que lhe dava um charme todo especial, um gradeado de madeiras que formavam pe-quenos losangos. Perguntei então a meu pai sobre a pequena varanda e ele falou:

- Ahh filha, as madeiras daquela varanda estavam muito fracas, pela a exposição constante ao sol e quando tentamos desmontá-la a pobre ficou em pedaços.

Acabei me conformando porque afinal mesmo sem a va-randa agora tínhamos nossa própria casa, e o melhor e mais importante, sobraria o valor do aluguel e ele com certeza aju-daria muito.

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- Gente!!!! Isso não é coisa para rir!!!! Isso é coisa para cho-rar!!! Terei que esperar até o final de semana para conhecer a cidade que vou morar!!!! É mole!!!!

- Eram todos conhecidos e pessoas muito simples, formá-vamos naquela república uma grande família e o mais impor-tante, uma grande família feliz!!!

- Mamãe continuava cuidando da alimentação de todos, muitas vezes da alimentação dos próprios moradores da repú-blica. Quando cismava que alguém estava se alimentando mal, repartia nossa própria alimentação para suprir a necessidade dessa pessoa.

Tem uma frase que minha mãe sempre repetia e que jamais vou me esquecer, onde comem dois comem dez.

Às vezes penso que tanto nossa família como as pessoas que vieram para a cidade depois de nossa família, fizeram esta escolha no momento certo. E que graças a isso todos que aqui chegaram muitas vezes carregando na mala não mais que uma ou duas mudas de roupas, hoje tem suas próprias casas, seus filhos estudando em ótimos colégios, ou até mesmo formados.

Penso sempre, que todas essas coisas boas, como a nossa formação e a formação de nossos próprios filhos, devemos a Dona Maura e a meu pai.

Mamãe ficou viúva aos 53 anos, muito jovem, mas não quis refazer sua vida, o que hoje penso que foi seu maior erro, ficou como o mastro principal de uma família que hoje é com-posta por mais de 50 pessoas, entre filhos, netos e bisnetos.

Dona Maura está hoje com 78 anos de vida, com saúde, saúde esta, que até poderia ser melhor, se ela tivesse se preo-cupada mais com ela própria, e com sua própria vida.

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No dia seguinte ao chegar ao trabalho corri até a enferma-ria e procurei marcar uma consulta.

Quando o Dr. João ao chegar viu que eu estava na sala de espera brincou:

- Então menina teve outro sonho? E me mandou entrar.- Contei a ele, que havia pegado muito sol no dia anterior,

e queria que ele me examinasse.- Depois do exame ele disse-me exatamente o que tinha fala-

do nas vezes anteriores para ele não se tratava de nada grave.- Conversamos um pouco e ele falou que para me tranqüi-

lizar iríamos fazer uma biopsia. Concordei e marcamos para a próxima semana.

- Não estava nervosa, mas ansiosa, fizemos o procedimen-to e o material colhido foi enviado para um laboratório de analise na Capital. O resultado viria dentro de um mês no máximo disse-me o Dr. João.

- Realmente depois de um mês fui chamada no ambulató-rio da Empresa, encontrei Dr. João com uma folha de papel na mão. Quando me sentei a sua frente, ele jogou o papel sobra a mesa e rindo falou:

- Mandei que fosse impresso em papel especial! E concluiu:- Para que você possa colocar em uma moldura! Pendure

acima da sua cama, olhe para ele sempre e não me incomode mais, falei para você que estava tudo bem. Deu-me um beijo na face e mandou entrar o próximo paciente.

VOLTAM AS PREOCUPAÇÕES

Naquele verão depois de voltar da piscina na casa de uma amiga, notei que meu seio direito estava avermelhado no local onde se concentrava o pequeno nódulo, então tomei a decisão de procurar o Dr. João para uma nova consulta.

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O Casamento

Foi nessa mesma Empresa onde trabalhei e realizei tantos sonhos e objetivos que conheci meu marido.

Fernando trabalhava em outro setor da fábrica e foi numa destas comemorações de final de ano que nos conhecemos. Fernando era uma pessoa simples, como eu, e também sim-ples era sua família, composta da mãe Dona Doninha, um irmão que morava na Capital e Cissa, que na época era uma menina muito bonita, quando a vi pela primeira vez ela usava trancinhas nos cabelos, que lhes dava um charme todo espe-cial. Descobrimos que fazíamos aniversário no mesmo dia. Somos cancerianas e ela sempre foi uma das minhas melhores amigas.Cissa hoje também tem um casal de filhos Fernanda e Junior e três netos lindos.

Depois de três anos entre namoro e noivado Fernando e eu nos casamos. Foi nesse período que aprendi muitas coisas com minha sogra como fazer pratos especiais por exemplo, pois como sempre trabalhei fora, não tive muito tempo para artes culinárias, então se hoje sei fazer alguma coisa na cozinha devo isso a Dona Doninha que infelizmente não está mais conosco, mas sei que nos protege sempre de onde estiver.

Depois de um ano de casados nasceu nosso primeiro filho, um lindo menino o nosso Alê.

Bom, nosso casamento como todos os casamentos teve al-tos e baixos, mas penso que as coisas boas predominaram e por isso estamos juntos até hoje, construindo a nossa história.

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No entanto seis anos depois engravidei novamente e veio nosso caçula, outro menino, que até hoje agradecemos a Deus, porque completou nossa família e até hoje os dois nos dão enormes alegrias.

Depois de alguns anos de muito trabalho muitas alegrias, e também algumas tristezas, como a morte súbita de meu pai, por problemas cardíacos, mudamos para a Capital.

Meu marido teve uma oferta de trabalho em uma grande Empresa da capital, o salário era compensador e pensamos também nos estudos dos meninos, que teriam maiores chan-ces, maiores opções de escolas, universidades, etc ...

Alê, nosso filho mais velho, estava entrando na fase de adolescência e talvez por isso sua adaptação tenha sido mais difícil, devido à separação dos parentes e amigos quando dei-xamos nossa cidade. Rodrigo teve uma rápida adaptação, em poucos dias tinha feito seus próprios amigos tanto no condo-mínio onde morávamos, como na nova escola, como aconte-ce com a maioria das crianças aos seis ou sete anos de idade, o mesmo acabou não acontecendo com Alê.

Só que esse é um capítulo a parte, muito importante, e que to-dos os pais deveriam prestar muito atenção, quando muitas vezes, dependendo do seu tipo de trabalho, trocam de cidade de estado e de país, esquecendo que junto com isso trocam seu modo de vida, trocam as suas amizades e o pior, e mais importante, trocam o ambiente e as amizades de seus próprios filhos.

Casada e com um filho eu continuava trabalhando, agora em outra Empresa. Não pensávamos em ter outros filhos já que o primeiro nasceu no ano seguinte ao casamento e nós precisávamos trabalhar para adquirir nossa casa própria e de-mais bens que um casal sonha para si.

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A mudança e os 1º problemas

Porque esse é um capítulo à parte? Porque quero que pres-tem muita atenção? Por que foi um período que nos trouxe muito sofrimento, preocupação, que deveria ter a atenção por parte de todos os pais que vivem migrando de um lado para o outro durante suas vidas.

Alê tinha completado 13 anos, sempre foi um menino mui-to ativo, alegre e carinhoso, era uma criança muito curiosa e interessada em saber, ou aprender tudo que estava ao seu alcance. Aos três ou quatro anos de idade, fazia perguntas so-bre todos os assuntos. Muitas vezes bastava olhar para o céu à noite e ver a lua corria e perguntava:

- Mamãe! Mamãe! Porque o sol também não está no céu durante a noite?

Muitas delas não sabíamos como responder, principal-mente quando ele queria saber como os bebes nasciam. Lem-bro que certo dia eu conversei com o seu pediatra sobre as “perguntinhas” curiosas de Alê. O pediatra achou um pouco precoce, tentarmos explicar estas curiosidades. Dr. Ricardo era uma pessoa de nossa inteira confiança, e acompanhava a saúde de Alê desde o seu nascimento. Recomendou-nos a tentar disfarçar sua atenção quando isso acontecesse, sem dar respostas bobas, que muitas vezes levam a criança ficar ainda mais curiosa. No caso desses questionamentos se repetirem, teríamos que explicar de maneira simples, de maneira que ele pudesse entender as coisas sem se chocar.

Isso funcionou durante algum tempo, mas de repente co-meçaram novamente as “perguntinhas”. Lembro que meu marido, não sabia o que fazer e dizia:

- Filho, mamãe sabe explicar melhor essas coisa para você, pergunte a ela.

Ele corria para meu lado e eu tinha que me virar.

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Alê, como já falei, era uma criança muito ativa, adorava brin-car, fazia amizade com facilidade, e tinha o privilégio de termos muitas crianças de sua idade no bairro onde morávamos.

Ingressou na pré escola aos 5 anos e no 1º ano fundamen-tal aos 6 anos.

Adorava esportes radicais, fazia verdadeiros malabarismos com sua pequena bicicleta, não tinha medo de nada, caia, le-vantava e continuava as brincadeiras, enquanto muitos de seus amiguinhos no 1º acidente corriam para casa, queixando-se aos prantos.

Aconteceram alguns episódios que marcaram sua infância que ficaram marcados e que ficaram marcados também para nós como pais. Um deles foi quando o vi chegar com barro até a cabeça e perguntei:

- O que aconteceu filho? Como você consegue sujar-se desta maneira?

Alê respondeu com uma pergunta.- Mamãe porque você acha que eu não me machuco? E

com uma carinha muito séria completou:- Porque eu aprendi a cair!Com 8 anos Alê reunia seus amiguinhos e com eles cons-

truía rampas para saltar com a sua bicicleta. Um belo dia vol-tou para casa com a pequena bicicleta dividida em duas. Por causa disso foi o 1° do bairro a ganhar uma bicicleta para prática DO CROSS.

Com essa bicicleta ele começou a participar de pequenas competições com crianças de sua idade, ficava sempre entre os primeiros colocados o que para ele não era muito impor-tante, pois o que valia era participar das competições.

Aos oito anos Alê queria aprender violão, seu primo e melhor amigo tocava muito bem, meu cunhado Adão pai de Rogi, fazia parte de uma banda musical de nossa cidade, por isso o menino, começou muito cedo o aprendizado com o pai.

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Lembro-me que Rogi e Alê adoravam ficar um na casa do outro durante esse período. Meu cunhado nos incentivou a colocá-lo em uma escola de violão e nos falou brincando:

- Ele tem jeito para a coisa! Vai aprender com facilidade o problema é que não tenho tempo para ensiná-los e quando os dois ficam juntos aqui a barulheira é tanta que os vizinhos já estão reclamando.

Todos começaram a rir!Seu pai comprou o violão e eu o matriculei na escolinha de

música, e não deu outra, Alê em menos de três meses estava tocando igual à seu primo.

Hoje sei que isso foi uma coisa muito importante para seus problemas futuros, ora atrapalhando e ora ajudando muito.

Alê passeou pelo ensino fundamental, passava de ano por média, e nas 7ª e 8ª séries fui chamada a escola porque a Diretora queria me informar que ele estava dispensado, de participar das aulas, pois como não precisava mais de nota, ficava o tempo todo fazendo brincadeiras e desconcentran-do os colegas.

Quando mudamos de nossa cidade para a capital, Alê con-cluía a 8ª serie do ensino fundamental. Ficamos muito felizes com essa transferência porque em nossa cidade não havia esco-las com cursos profissionalizantes, e sempre pensamos em dar a melhor formação tanto a Alê como ao irmão casula que na-quele momento ingressava na 1ª série do ensino fundamental.

Nossas vidas transcorriam dentro da normalidade, para uma família de classe média.

Alê, como combinado não freqüentaria e ensino médio normal, mas faria um curso que englobasse algum curso pro-fissionalizante.

Escolhemos o Colégio e o curso que mais o interessou foi o de Técnicas em Eletrônica, então o matriculamos.

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O nosso pequeno Ro foi matriculado em um colégio muito bom há três quarteirões de onde morávamos.

Logo comecei a trabalhar novamente, encontrei uma ami-ga que morou em minha cidade no interior, casada também e com uma filha, que queria arranjar um trabalho que não a tirasse de casa totalmente e com horários mais flexíveis, e esse também era o meu desejo, pois precisava acompanhar as crianças que naquele momento estavam adaptando suas vidas, em outra cidade, em outra escola e principalmente fazendo amiza-des com outras pessoas.

Conversando chegamos à conclusão que isso só seria pos-sível se montássemos um negócio juntas, onde pudéssemos conciliar horário, nossos maridos que na época trabalhavam juntos na mesma empresa, nos deram muito apoio, e como trabalhavam em uma empresa que estava implantando tercei-rização de alguns serviços, nos deram a idéia de qual ramo de serviço seguir. A terceirização de serviços não essenciais e que não teriam a necessidade de serem feitos pela própria empre-sa, estava começando a todo o vapor nessa época, pensamos que realmente seria um bom negócio, visto que podíamos contar com a ajuda dos dois para nos assessorar.

Minha amiga Liz não tinha nenhuma formação especifica, mas eu tinha meu Curso Técnico Contábil e já tinha experi-ências tanto na área de contabilidade como de pessoal. Como pretendíamos trabalhar terceirizando mão-de-obra, vimos que daria certo e realmente deu certo. Tínhamos horários flexíveis para ficar com nossos filhos e principalmente não tínhamos chefe. Combinamos que Liz trabalharia na parte da manhã enquanto sua filha freqüentava a escola e eu na parte da tarde enquanto os meninos também estavam em suas escolas.

Alugamos uma sala, abrimos a Empresa e começamos um trabalho que se não nos deu muito dinheiro, fez com que nos

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sentíssemos uteis e ao mesmo tempo com tempo para cuidar de nossos filhos.

O tipo de trabalho que minha amiga Liz e eu começamos juntas merece algumas considerações.

Eu costumo falar sempre que as coisas aconteceram muito cedo em minha vida. Sai de casa aos 12 anos de idade e fui morar numa cidade que nunca tinha visto antes, com pesso-as que até aquele momento não sabia quem eram, quais seus costumes, como eram a suas vidas. Encontrei neles a minha segunda família.

Aos 19 anos consegui trazer sob minha responsabilidade para a cidade, uma família composta de 12 pessoas sem ter a menor idéia se tudo daria certo, era um sonho realizado, mas nem todo o sonho tem a obrigação de dar certo e graças a Deus meu sonho deu muito certo.

Agora aos 35 anos com dois filhos e numa cidade diferente novamente, eu montava uma empresa, numa época em que as mulheres tinham dificuldades até mesmo de serem contrata-das para trabalhar, onde o homem estava sempre em primei-ro lugar. Uma empresa para prestar um tipo de trabalho que era administrado normalmente por homens. Nossa Empresa trabalhava fazendo terceirização de mão-de-obra, e pasmem, não trabalharíamos prestando nenhum tipo de serviço feito por mulheres, nós iríamos trabalhar prestando mão-de-obra especializada na área técnica. Começamos alocando para grandes empresas, mão-de-obra nos cargos de técnicos em instrumentação e engenharia elétrica. Contratávamos os fun-cionários e os colocava em diversas empresas que na época preferiam terceirizar esses tipos de serviços.

Normalmente eu fazia os primeiros contatos com as empre-sas e alguns casos estranhos aconteceram. Muitas vezes quando me apresentava na portaria de uma empresa e falava que queria apresentar o Curriculum da minha empresa e tipos de serviços

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que prestávamos encaminhavam-me para a gerência de limpeza e conservação, quando então eu falava que queria falar com a gerência do Setor Técnico e de Engenharia, a atendente dizia:

-“Aé” a Sra. me desculpe!Conseguimos administrar uma empresa diferente, onde to-

dos os nossos funcionários eram homens, onde tivemos o re-conhecimento de um bom serviço prestado e muito respeito.

Meu marido levava e trazia Alê do seu colégio e eu en-carregava-me do pequeno Ro que estudava numa escola na mesma rua em que morávamos, e o deixava no portão de sua escola com o coração apertadinho, e pensava todos os dias.

- Meu Deus! Ele é tão pequeno e a partir daquele enorme portão estaria sozinho, ali era o seu pequeno mundo e ali ele teria que lutar por sua vida, seus direitos e seus objetivos, as-sim era a vida, infelizmente eu não poderia acompanhá-lo, eu não poderia ir além daquele portão para protegê-lo.

O primeiro ano que ficamos na capital correu tudo bem, estávamos ganhando alguns clientes importantes, e as crian-ças estavam bem no colégio, passaram de ano e chegou as tão esperadas férias de verão.

Notei que Alê tivera maior dificuldade de adaptação, mui-tas vezes falava que gostaria de morar com a Vó na antiga cidade do interior. Mas continuava aquele garoto responsável, estudioso e inteligente. Agora se dedicava mais ao violão e ha-via deixado os esportes radicais de que tanto gostava. Por isso naquele final de ano seu presente de Natal foi uma Guitarra Elétrica, que ele adorou.

Liz e eu combinamos que dividiríamos os meses de férias das crianças, Janeiro para uma e Fevereiro para a outra. Na-quele primeiro ano como seu marido tinha férias em fevereiro eu fiquei com o mês de Janeiro.

As crianças estavam ansiosas pelas férias e nesse ano não queriam ir para nenhuma praia, queriam mesmo voltar para a

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antiga cidade, rever os amigos e comer a gostosa comidinha da vovó. Principalmente Alê. Combinamos então que passa-riam nossas férias em casa de parentes naquele verão.

Foi durante essas primeiras férias que notei a insatisfação de meu querido Alê. Eu notava diariamente sua alegria em estar junto com seus amiguinhos de infância e a cada dia ele dava-me sinais de como era feliz junto deles. Nesse momento eu notava que sua adolescência seria mais feliz e tranqüila se ele continuasse com eles, mas agora tínhamos uma nova vida, um novo trabalho, uma nova cidade, e muitos novos amigos e não poderíamos deixar tudo e voltarmos para uma cidade onde teríamos que começar tudo outra vez.

Ao terminar o período de férias, como eu imaginava, Alê não queria voltar, ficou de beiço e chegou de volta a Capital revoltado.

Com o inicio do ano letivo as coisas foram novamente se ajus-tando foi mais um ano de trabalho, as finanças estavam bem, conseguimos vender nossa casa no interior e compramos um apartamento na capital. Encontramos nesse novo condomínio mais conforto inclusive para os meninos, mas nele não moravam muitas crianças e adolescente e os que moravam eram do tipo ”filinhos de papai” com pouco interesse em amizades novas. Em compensação, e graças a Deus, sempre temos as compensações, encontramos um casal, que embora mais jovens que meu marido e eu, conhecê-los foi uma benção em nossas vidas, foram as pes-soas mais importantes nessa nova fase de nossas vidas.

Ric e Elis tinham um filho, o pequeno Bruno, mais tarde nasceu o caçula Guilherme, uma graça de criança, nossa ami-zade se tornou muito importante, eles estavam começando uma vida, que inclui filhos e todos os seus problemas. Uma febre em um dia e no outro dia uma alergia. Nós estávamos com um filho entrando na adolescência, uma das fases mais complicadas da vida.

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Bruninho era uma criança muito inteligente, lembro-me que aos dois aninhos de idade ele identificava todos os cartões de crédito do pai, e sabia falar o nome do banco emissor de cada um deles, era muito experto.

Nosso pequeno Ro estava agora com oito anos, e Bruni-nho era a única criança com a qual ele dividia seus brinquedos e até os liberava, para que Bruno brincasse sozinho enquanto ele faria suas lições de casa.

Nesse quesito meus dois meninos eram completamente diferentes.

Alê sempre foi mais agitado, mais desorganizado com seus brinquedos, com suas coisas em geral. Liberava seus brinque-dos a qualquer amiguinho e não se importava se os quebras-sem ou danificassem. Muitas vezes até trocava um brinquedo novo por outro velho e até quebrado. Então eu tinha que ir falar com os pais de seu amiguinho para destrocá-lo.

Muitas vezes isso aconteceu.Ro ao contrário sempre foi uma criança muito calma, e

quando saia para brincar na casa de algum amiguinho, tinha o maior cuidado com seus brinquedos. Era também muito or-ganizado com seu material escolar e principalmente com suas roupas. Minha irmã Elyene morou por um tempo conosco enquanto fazia um curso, e muitas vezes a peguei chorando depois que chegava do curso.

Uma noite perguntei se tivera algum problema na rua, e ela, com os olhos cheios de lágrimas, falou.

- Não aconteceu nada Mana, era assim que ela chamava-me, eu tenho que chorar quando vejo como essa criança orga-niza suas roupinhas para dormir! E apontou para o cantinho do quarto que ela dividia com Ro e Alê.

Sua roupa estava dobrada sobre a banqueta e os tênis sob a mesma com um par de meias, limpinhas, sobre os tênis, que usaria no dia seguinte.

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Naquele momento minha irmã e eu choramos juntas.Alê ao contrário não se preocupava com esses detalhes,

sabíamos que havia chegado do colégio quando entravamos pela porta da sala de estar. Ao ultrapassar a porta estavam seus tênis, sobre à mesa de jantar sua mochila do colégio, e sobre alguma poltrona seu abrigo escolar. Ao entrarmos em seu quarto sabíamos se ele estava no banho, apenas olhando ao redor. A calça com a cueca amassadas ao chão, porque ele não a tirava normalmente, abria o zíper e a deixava cair, com os pés acabava de tirá-la, e a pobre calça ficava ali pisoteada.

Depois do banho, dificilmente lembrava-se de colocar a roupa na máquina de lavar, esquecia a toalha molhada sobre a cama ou o banheiro molhado e vice versa.

Até hoje me pergunto como podemos educar dois filhos da mesma maneira e perceber em cada um deles, toda essa diferença.

Mais um período de férias estava para começar.Os dois meninos passaram de ano como sempre sem

problemas.Neste verão convencemos Alê e Ro a passarmos uma sema-

na na praia antes de irmos para a casa de parentes no interior do Estado. Alê aceitou com a condição de levar seu primo junto.

Foi exatamente nestes dias, nessa semana de praia, que co-meçaram nossas primeiras preocupações.

No final da semana estava programado um show de uma banda de Rock, que os dois adoravam, e queriam muito assis-tir. O Show seria a beira mar e com livre acesso ao público. Levamos Alê e seu primo Vander para assistir ao show e os recomendamos que ao final do mesmo, eles deveriam ligar para que fossemos buscá-los.

Esta foi nossa primeira noite de pesadelo de muitas que viriam depois. Eram 2:00h da manhã, estávamos olhando um filme e aguardando seus telefonemas para buscá-los, quando

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um carro parou em frente ao prédio. Dele desceu seu primo Vander e o carro partiu. Vander entrou bastante nervoso e falou que Alê havia se afastado dele na hora do Show e que o procurara até aquela hora sem sucesso, então encontrou um conhecido e o pediu que o levasse até em casa.

Alê tinha deixado seu telefone com Vander e naquele mo-mento não tínhamos nenhum tipo de comunicação com ele.

Numa hora dessas, não sei por qual motivo só nos vem á cabeça tragédias e coisas ruins. Junto com Vander, saímos a sua procura, fomos ao local do show onde já não havia mais ninguém. Seguimos uns dois quilômetros a beira mar nas duas direções, e encontramos alguns casais de namorados, mas nenhum deles tinha estado com Alê.

Fomos então a uma delegacia de polícia e lá também não tinham nenhuma ocorrência que o envolvesse. Da delegacia fomos até o hospital e não havia também nenhuma ocorrên-cia de afogamento ou qualquer outro tipo de incidente que pudesse ser relacionado á nosso filho.

Quando já estava amanhecendo voltamos para casa na es-perança de encontrarmos Alê em casa mas isso não aconte-ceu. Os visinhos já sabiam o que havia acontecido e tentavam nos acalmar contando enumeras estórias de adolescentes que depois de deixar seus pais em pânico foram encontrados dor-mindo à beira da praia.

Aguardamos mais 2 horas e resolvemos sair para novas buscas, eram quase onze horas da manhã. Quando passáva-mos por um terminal de ônibus vimos Alê descendo de um coletivo que vinha da cidade vizinha.

Paramos o carro e corremos em sua direção, ele estava vivo e ele estava bem era o que importava. O colocamos no carro e fomos direto para casa. Em casa, perguntado sobre o que aconteceu, Alê disse que Vander tinha ficado com o dinheiro e o telefone e que ele não conseguia se comunicar e também

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estava sem dinheiro para um taxi, que tinha conseguido uma carona no coletivo através de um policial. Até hoje não sabe-mos se foi isso mesmo que aconteceu. O fizemos tomar um bom banho e o colocamos para dormir.

Deitei-me a seu lado e ele aos 15 anos, como quando era criança, dormiu o tempo todo segurando minha mão.

Tínhamos mais dois dias para ficar na praia, mas resolve-mos voltar no dia seguinte.

Chegamos a nossa casa e depois de organizar algumas coi-sas viajamos para casa de parentes no interior, Alê e Ro esta-vam radiantes.

Mas aquelas férias seriam atípicas, já estavam sendo atí-picas desde o episódio da praia. Tudo corria normalmente quando na última semana Alê me pediu para ficar morando com a Avó. Falei que não teria condições para isso, pois ele estava matriculado no Colégio e cursando um curso especial profissionalizante que não era ministrado na Cidade onde mi-nha mãe morava. Alê ficou muito revoltado e não queria en-tender meus argumentos.

Naquele final de semana pediu-me para ir a uma boate com os primos e como estávamos em uma cidade do interior, mais calma e tranqüila não me opus. Estava na casa de minha mãe, e naquela madrugada vi um carro chegar frente ao prédio e ouvi vozes dos meninos intercaladas com vozes de adultos que eu não conseguia definir, olhei pela janela e vi que se tratava de um carro da polícia local. Vi também que meu irmão que nessa época era de maior idade, estava junto com eles.

Levantei-me rapidamente e fui ao encontro deles, o policial me informou que os três menores tinham sido encontrados com toxico, (maconha), e conduzidos a delegacia, e que Júlio, meu irmão e tio dos meninos, poderia explicar-me melhor aquela situação.

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Quando foram detidos e com medo de represália dos pais eles ligaram para Júlio ir buscá-los e assinar um termo de res-ponsabilidade na Delegacia. Júlio me informou de que have-ria uma investigação para saber de onde os meninos tinham comprado a droga.

Depois do episódio com a polícia, Alê não falou mais em ficar com a avó, então voltamos na outra semana para capital, porque faltavam poucos dias para o início do ano escolar.

Minha preocupação agora era maior, deveria dobrar minha atenção sobre Alê e a primeira coisa que faria era levá-lo co-migo para o trabalho, seu horário escolar era pela manhã, e a tarde ele ficaria comigo, afinal estava com 15 anos e poderia ajudar-me com os serviços de Banco.

As coisas pareciam ter se ajustado, 6 meses depois fomos chamados para uma conversa perante o juizados de menores sobre o episódio daquele verão. Alê e os primos ouviram com atenção os conselhos do juiz e prometeram não repetir o erro.

Alê foi sempre uma criança muito precoce, e agora, ao com-pletar dezesseis anos, tínhamos consciência de que se tornara um adolescente precoce. Não aceitava que o pai o buscasse em festas de amigos e quando isso acontecia ficava irritado. Essas irritações eram freqüentes e foi aí que as aulas de violão, aos oito anos de idade, foram importantes. Sempre que acontecia alguma coisa que o irritava ele se fechava no quarto e ficava du-rante horas tocando sua guitarra e com isso relaxava. Alê nunca foi de guardar mágoas se tínhamos alguma discussão em pouco tempo ele estava conversando normalmente.

Até hoje não sei se isso era bom ou ruim.Certo dia, depois de voltar do serviço de banco entrou no

escritório acompanhado de uma menina, que me apresentou como amiga, depois de alguns dias percebi que Bel não era apenas sua amiga e quis saber algumas coisas sobre ela e sua

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família. Descobri que tinha 19 anos, embora não parecesse, mas que vinha de uma família humilde, mas era uma família simples e honesta.

Bel era filha adotiva e seus pais eram pessoas de certa idade, tinha um irmão casado, bem mais velho que ela e dois sobri-nhos. Acabara de concluir o ensino médio e trabalhava como demonstradora de produtos em uma rede de supermercados.

Conversamos meu marido e eu sobre a diferença de idade en-tre os dois, Alê com 16 anos e Bel 19 anos. Tínhamos muita pre-ocupação e achamos que a companhia de uma menina mais velha traria a ele e principalmente a nós uma maior tranqüilidade.

Naquela mesma noite tive uma de minhas visões ou se pre-ferirem, uma das minhas imaginações.

Estava em um corredor com paredes de vidro e subita-mente Alê aparecia atrás do vidro com lágrimas correndo em seu rosto. Vi que não eram lágrimas de tristeza, porque ele me parecia muito feliz. Por isso não dei muita atenção ao episódio e não falei a ninguém sobre o mesmo.

A partir de seu relacionamento com Bel não ficava mais revol-tado quando seu pai ia buscá-lo no final das festas e estava indo bem no colégio. Tinha passeado pelo ensino médio como tinha feito no ensino fundamental e no próximo ano se formaria em Técnicas em Eletrônica. Este último ano faria as cadeiras técnicas e seria um ano muito importante para a sua formação.

Nossas expectativas em relação a Bel, infelizmente não se confirmou, no início parecia estar tudo bem, logo depois, começaram as briguinhas de ciúmes da parte dela e cada vez que isso acontecia, Alê queria ir para boates e festinhas, e não queria que o buscássemos no fim da noite.

Meu marido e eu sempre procuramos dar limites a nossos filhos, no caso de saírem para rua não marcávamos um ho-

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rário para que retornassem, fazíamos o contrário, pedíamos a eles que nos informassem a que horas iriam voltar. Feito isso ficava combinado que se por qualquer motivo não fos-sem chegar no horário marcado, deveriam ligar para dizer se estava tudo bem e a hora que iriam voltar.

Com Alê essa tática dificilmente funcionava, se por algum motivo não conseguia voltar na hora combinada, exatamente naquele dia nenhum telefone funcionava.

Quando perguntávamos pelo telefonema ele tinha sempre uma desculpa:

- Mãe eu tentei ligar! Só que dentro da boate tinha muito barulho e o telefone lá fora estava quebrado.

E isso nos fazia passar noites e noites de estresse e preocu-pações. Muitas vezes, como a maioria dos pais de adolescen-tes, meu marido e eu, só conseguíamos dormir, depois que a porta de entrada batia, então percebíamos, ele está em casa!

Depois da última briguinha com a namorada teve uma fase de tóxicos novamente, dava para perceber, procuramos dar bastante atenção a ele, mas percebíamos que quando saia com algum amigo acabava fumando maconha, e isso se podia per-ceber até mesmo nas roupas que usava.

Um mês depois da briguinha com Bel, aconteceu no Rio de Janeiro no palco do Maracanã, um dos grandes shows dos Rolling Stones no Brasil. Alê era apaixonado por Rock Holl, e dizia:

- Mãezinha!!! Essa é uma oportunidade única! Eu tenho um amigo, que vai para São Paulo de carona com o seu tio, o tio do Fábio é caminhoneiro e prometeu nos deixar na Rodoviária em São Paulo, só precisamos tomar um ônibus para o Rio.

Na mesma noite conversei com meu marido e contei a ele os planos de Alê, por sorte nossa, o tio de Fábio era uma pessoa de nossas relações, uma pessoa de confiança, se prontificou a levá-los realmente até a Rodoviária de São Paulo e comentou:

- Não se preocupem, levo os dois sem problemas!

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Fábio tinha dezoito anos e Alê com dezesseis anos preci-sou de uma autorização nossa para viajar.

Era verão e como sempre naquela época estávamos todos na casa de praia. Alê e Fábio viajaram e fizemos muitas recomenda-ções, pedimos que nos ligassem todos os dia para dar notícias, mas pensávamos que essas recomendações eram infundadas pois Alê nunca tivera muita preocupação com as notícias.

Para nossa surpresa, na primeira parada que fizeram, Alê ligou para o pai contando as aventuras da viagem e dizendo que estava tudo bem e que estava muito feliz.

Durante todos os dias passados no Rio, Alê ligou, não ape-nas uma vez ao dia, mas várias vezes ao dia. Meu marido e eu sentimos que a distância mudara seus hábitos, talvez porque aquele era o único elo que ele poderia ter conosco e isso o deixava mais seguro.

Um dia depois do Show dos Rolling Stones, e durante um telefonema de Alê, Fabio pegou o telefone e falou comigo dando gargalhadas.

- Tia! Vou colocar um ”orelhão” nas costas de Alê, porque desde que chegamos aqui ele para em cada telefone público que encontra para falar com vocês.

Rimos muito!E ao fundo ouvíamos Alê bravo, falando que Fábio estava inventando estórias.

Ficamos muito felizes quando dias depois, Alê ligou cha-mando o pai para buscá-lo na Rodoviária de nossa cidade, falamos quase que simultaneamente:

- Que coisa maravilhosa!! Ele está bem, ele esta em casa e agradecemos a Deus.

Depois de dois meses de briguinhas Alê e Bel voltaram a ficar juntos, então pensamos:

- Vai ser bom, com isso ele ficaria mais calmo, o que real-mente aconteceu, só que as conseqüências dessa nova faze de namorico, nos trariam mais preocupações e sofrimentos.

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Alguns meses depois descobrimos que a menina estava grávida e nossas preocupações que até aquele momento era imensa, dobrou.

Alê acabara de completar 17 anos, apesar de não querer parecer, era uma criança, era a minha criança, como seria para qualquer mãe, aquela criança que eu levantava toda noite para ver se estava coberto em seu leito. O chão parecia sumir sob meus pés.

Para melhor explicar toda aquela situação, incluo aqui uma ob-servação; nossa vida estava estabilizada financeiramente e nosso sonho sempre foi ter uma menina, naquele momento estávamos decidindo se tentaríamos ter uma filha legítima ou se adotaría-mos uma menina, talvez com dois ou três anos de idade.

Bom, não preciso falar que a confusão na minha cabeça era imensa, queria uma filha e aos 38 anos de idade, de repente poderia cair uma neta de pára-quedas na minha vida. Isso re-almente era cedo demais.

Nos primeiros dias, ficamos um pouco desorientados, mas aquela era uma situação consumada e não poderia ser mudada ou alterada.

Bel contou a seus pais e a princípio eles falaram que os dois deveriam se casar, com o que eu não concordei, pois sabia que uma relação naquela situação não poderia dar certo. Os con-venci de que casar ou não, era uma decisão que eles deveriam tomar no momento em que os dois tivessem absoluta certeza que seria algo duradouro.

A família de Bel como já falei era muito simples, tinham pouco espaço para acomodá-los, pensamos que em nosso apartamento, eles teriam mais conforto, então transformamos o quarto de Alê em um quarto de casal, com cama de bebê e tudo o mais.

Nosso pequeno Ro estava com dez anos e isso parecia não alterar em nada seu ritmo de vida, isso era uma coisa que nos

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dava tranqüilidade, no meio de tantos problemas que sabía-mos que enfrentaríamos a partir dessas mudanças todas.

A gravidez de Bel correu tranquilamente.Alê teve alguns problemas no decorrer daquele ano letivo,

como era de se esperar, mas no final alcançou média e con-cluiu seu curso de ensino médio e profissionalizante no final daquele ano.

O Bebê, uma menina, nasceria em março, exatamente quando tínhamos programado o inicio de seu cursinho pré-vestibular.

No mês de fevereiro fomos todos para a praia e quando voltamos, havia uma correspondência emitida pelo colégio de Alê pedindo para que ele comparecesse ao colégio, para tratar de uma vaga para estágio.

Alê conseguiu estágio em uma das maiores empresa de copiadoras do país. Tentamos que ele recusasse ao estágio e se dedicasse ao cursinho pré-vestibular, mas ele não aceitou.

Minha neta, ou filha, como quiserem, nasceu no final do mês de março, como estava previsto.

No dia do seu nascimento, fiquei no hospital acompanhan-do Bel enquanto Alê iria buscar Dona Paula, a mãe de Bel, que morava do outro lado da cidade.

A menina nasceu durante esse período em que ele saiu para buscar a mãe de Bel, como só estava eu no hospital na-quele momento falei com as enfermeiras que me deixaram entrar no berçário para ver a menina. Minha neta era muito linda e saudável, tomei-a em meus braços e estava acariciando seus cabelos cacheados, quando ouvi uma pequena batida no vidro do berçário.

Olhei em direção ao corredor e ao vidro e qual foi minha surpresa!

Atrás do vidro visualizei Alê chorando, as lágrimas corren-do em seu rosto, exatamente como eu o tinha visto na minha visão, que relatei anteriormente. Naquele momento, lembrei

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das visões que tinha desde os 12 anos de idade e pensei; tenho que dar mais atenção a elas!

Como prevíamos a relação de Alê e Bel não foi duradoura. Quando Moh tinha três aninhos aconteceu a separação.

Bel resolveu voltar para casa dos pais e tivemos que nos separar da pequena Moh, então a menina passou a ficar co-nosco e o pai durante os finais de semana.

Alê nessa época, já havia montado sua própria empresa e trabalhava para a fábrica de Copiadoras na qual fizera o está-gio, estava agora com 20 anos e toda uma vida pela frente.

Recebia um bom salário e acabara de comprar seu próprio carro 0KM. Cumpria rigorosamente com seus compromissos de pensão alimentícia para a filha, como fora acertado na separação.

Eu sentia que ali estava começando uma nova fase, que tanto poderia ser de tranqüilidade como de preocupação.

Não demorou muito tempo para sabermos o rumo que seguiria a carruagem, como dizia a minha mãe.

A velha guitarra foi trocada por uma novinha e em pouco tempo uma banda de Rock estava montada.

Alê tinha passado três anos de sua vida com responsabili-dades de pai e qualquer pessoa poderia imaginar que um dia ele iria recuperar esse tempo e viver intensamente a fase da adolescência perdida.

As preocupações com tóxicos voltaram. Sabíamos que o ambiente era propício para isso acontecer

e naturalmente aconteceu. Além da preocupação com as dro-gas agora tínhamos mais a preocupação com as noitadas, com o trânsito, pois agora ele tinha seu próprio carro.

Tivemos novamente noites de sono perdido, daquelas em que só conseguíamos dormir quando ele entrava em casa. Mas continuamos firmes ao seu lado, dando-lhe conselhos e apoio sempre que precisasse. Penso que isso foi fundamental para que ele ultrapassasse aquela fase.

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Foram quatro anos de sobressaltos.Semanas inteiras fora de casa, onde muitas vezes depois de

dias ligava para dizer:- Oi mãezinha! Está tudo bem, estávamos no interior com

a banda, estou trabalhado.Certo dia depois de uma ou duas semanas fora de casa, vi-o

entrar pela porta e quase não o reconheci. Com o cabelo “ras-tafári”, umas roupas estranhíssimas e com aspecto de quem passou um bom tempo sem banho, nos abraçou com a alegria de sempre e nos comunicou que pretendia partir, não estava pe-dindo a nossa opinião, estava comunicando um fato decidido.

Quando Alê quis deixar a empresa e partir com a banda para outro estado em busca do que ele dizia era o seu sonho, transformar a pequena Banda de Rock em um grupo musical de sucesso, e sabendo que aquele era realmente, apenas um sonho, resolvi desfazer minha sociedade com Liz e assumir com meu marido a Empresa de Alê.

Procuramos retardar um pouco seu sonho e para isso o pedimos para nos acompanhar na administração da Empresa nos primeiros meses, pois precisávamos contratar um técnico para substituí-lo.

Foi quando um anjo apareceu em sua vida e nas nossas vidas, uma menina linda com 18 anos, uma pessoa incrível, que apesar da idade era e é até hoje uma pessoa com os dois pés fincados no chão.

Alê se apaixonou por essa menina e por causa dela mudou seus planos, acabou deixando a Empresa, e hoje é funcionário público federal em uma das maiores universidades do País.

Dê e Alê estão juntos a mais de 10 anos, mas ainda não tiveram filhos, às vezes penso que a primeira experiência o traumatizou.

Moh hoje é uma adolescente linda, vai completar daqui alguns meses 17 anos a mesma idade que tinha o pai quando ela nasceu.

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Hoje é cômico observar, pois pai e filha brigam como se fossem dois irmãos.

Outro dia depois de um final de semana com Alê, Moh ligou-me desesperada e falou:

- Vó! Você não imagina o que meu pai fez essa semana!- O que aconteceu minha querida! Controlando-me para

não começar a gargalhar.- Ele apagou todas as músicas do iPod que o Vô me deu.- É verdade querida? Vou falar com ele! Respondi.Chorosa pediu.- Fala com ele Vozinha porque tem mais. Ele falou que eu

tenho que trocar meu estilo musical!!!!!Não consegui me controlar e caí na gargalhada. Ela ficou furiosa.Encerrando esse “capítulo à parte” deixo uma mensagem

aos pais de adolescentes do mundo todo.Prestem muita atenção a seus filhos, principalmente quando

os carregarem para lugares que eles não escolheram e muitas vezes, nem mesmo foram consultados se gostariam de estar, afastando-os de seus parentes, de sua cidade, de seu estado, do seu País e principalmente do convívio de seus amigos.

Ro e sua tranquilidade

Bom, vocês devem querer saber, como foi a adolescência de nosso pequeno Ro. Todos os pais que tiveram mais de um filho devem saber; se tivermos 10 filhos, um nunca será igual ao outro, pois cada um é uma pessoa distinta.

Ro ao contrário do irmão sempre foi uma criança muito tranqüila, nunca teve as curiosidades de Alê.

Para dar um exemplo, lembro que certo dia Ro foi visitar uma feira rural com o colégio, estava com 10 anos, e quando chegou do passeio, me chamou com uma carinha de terror e disse.

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- Mãe você não sabe o que nós vimos hoje!Vi que ele estava assustado e falei.- Vem aqui meu amor! O que vocês viram?- Vimos os porquinhos nascendo! Eu nunca imaginei que

fosse assim! Exclamou.- É mesmo? Como você imaginava Querido? Perguntei.- Eu pensava que quando eles estavam prontos para nas-

cer o veterinário abria a barriga da mamãe porca e tirava os porquinhos.

Imaginei então que se ele não sabia como os porquinhos saiam dali, provavelmente também não saberia como eles te-riam entrado ali.

Esperei uma pergunta sobre isso, mas quando o olhei ele já estava tranqüilo, olhando algum desenho na TV.

Sua adolescência foi tranqüila igual sua infância. Teve todo o nosso carinho igual ao que sempre demos a seu irmão.

Ro sempre ouviu e seguiu nossos conselhos, e quando concluiu o ensino médio, começou imediatamente um curso pré-vestibular e no ano seguinte ingressou na universidade. Escolheu o curso de Administração e Comércio Exterior e naquele mesmo ano também ingressou no Exercito para o serviço militar obrigatório.

Tornou-se Oficial do Exercito e três anos depois recebeu a patente de Primeiro Tenente R2.

Permaneceu no exército por quase oito anos e nesse período concluiu seu curso na Universidade e iniciou o Pós Graduação.

Hoje nosso pequeno Rô é Gerente Administrativo na área de Logística em uma grande Empresa Multinacional. Casado com Juci, uma menina linda, filha de nossos mais queridos amigos Jorge e Salete e irmã de Loni, que todos chamamos de mano, uma família abençoada, que hoje temos a impressão de tê-los conhecido desde sempre e que consideramos todos parte de nossa própria família. Ro nesse momento está viven-

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do aos 29 anos a grande emoção de ser pai. Seu primeiro filho nasceu há dois meses, é um menino lindo, chama-se Arthur, é a coisinha mais fofa que ganhamos de Deus e a Ele agradece-mos todos os dias. Hoje ao contrário de 17 anos atrás, quando Moh nasceu, eu estou me sentindo apta a ser avó.

Lembro-me o que senti na primeira vez que o levei ao Ae-roporto para seu primeiro vôo internacional.

Senti naquele momento o mesmo aperto no peito de quan-do o deixava no portão do colégio e pensei:

Naquele momento, ele teria de enfrentar, não o convívio de um colégio, mas o Mundo e como quando ele tinha apenas 6 anos, eu só poderia levá-lo até o portão de embarque.

Começa mais uma luta

Bom, depois dessas lembranças que acabei de colocar, para que todos os que lerem esses relatos, saibam a importância do carinho e da atenção que devemos dispensar aos nossos filhos, volto ao relato da minha própria vida, das lembranças, dos problemas, de visões que desde os 12 anos de idade, con-vencionei chamar de minhas imaginações.

Aos 35 anos eu iniciei talvez por causa do meu sonho de adolescência e também pelo pequeno nódulo que havia retira-do do meu seio no passado, a preocupar-me com minha saúde e rigorosamente fazia todos os controles, a cada ano procura-va meu ginecologista e fazia todos os exames solicitados.

A partir de 2003 comecei a ter de fazer além da mamo grafia, um complemento com uma ecografia mamária, por so-licitação do laboratório e do meu médico.

Minha preocupação, embora pequena agora, voltou a par-tir daquele ano.

Nossa vida corria normalmente. Os filhos formados e cada um cuidando de sua própria vida. Meu marido aposen-

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tado, embora ainda continuasse trabalhando e eu nessa época trabalhava como representante comercial.

No meus exame de rotina no ano de 2004, fiquei um pou-co apreensiva porque meu médico, me pediu para repetir os exames em seis meses, exames esses que eram feitos anual-mente. Voltei seis meses mais tarde e ele me passou direto para consultar um mastologista.

Na primeira visita ao meu novo médico, tive uma surpresa, Dr. Rafael era a pessoa mais incrível que tive o prazer de co-nhecer, um excelente profissional, que mesmo não parecendo ser um médico, pois para mim era igual a qualquer um de meus filhos, tinha aspecto de componente de Banda de Rock, me confidenciou já haver feito parte de uma banda algum tempo atrás na época da faculdade, usava o cabelo arrepiado, muito gel, como meus filhos e sempre tinha um sorriso no rosto.

Apaixonei-me, por essa pessoa que me transmitiu, desde o primeiro momento, uma confiança tão grande que jamais en-tregaria minha vida nas mãos de nenhum outro profissional, mesmo se fosse um desses médicos, renomados e brilhantes, que por ventura me apresentassem.

Conversamos durante muito tempo, naquela primeira consulta, conversamos como dois amigos ou de repente como mãe e filho.

Depois de um exame minucioso ele verificou meus últimos exames feitos seis meses atrás, mamografia e ecografia mamária. Notei que Rafael percebeu imediatamente que tínhamos naque-le momento, ele e eu um problema complicado para resolver. A princípio fiquei tensa e senti que um calafrio me percorreu todo o corpo, então lembrei do meu sonho, e por incrível que pareça, naquele momentos eu sentia as mesmas sensações da-quele dia ou daquela noite em que experimentei meu primeiro sutiã. Rafael notou minha angustia e tentou me acalmar.

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- Lay você não deve se preocupar agora, nós temos muita coisa a pesquisar, não vamos nos preocupar antes da hora, calma confie em mim.

- Hoje, pelo que estou percebendo nós temos duas pos-sibilidades, e dois caminhos a seguir, continuarmos com o controle semestral ou até trimestral, ou fazermos uma biópsia e então podemos saber imediatamente do que se trata, você decide o que fazer e o que achar melhor para você. Deixo com você esta decisão. O que você acha?

Minha cabeça naquele exato momento girava como se eu ti-vesse acabado de sair de uma montanha russa ou algo parecido. Estava sozinha, meu marido estava no trabalho e meus filhos cuidando de suas próprias vidas. Minha família, mãe e irmãos moravam em uma cidade do interior, mas naquele momento todos sem exceção estavam juntos no meu pensamento, ou gi-rando junto ao meu lado, era como um filme passando, sem que você tenha a possibilidade de apertar a tecla stop.

Não tenho idéia por quanto tempo aquela sensação per-maneceu, acredite, para mim pereceu séculos.

De repente percebi que o Dr. Rafael esperava uma respos-ta minha e como num sopro falei.

- Quero fazer a biópsia, sim é isso que decido!!- Pois então minha querida é isso que faremos, falou Rafael.A partir daquele momento minha vida tomava uma nova

direção, um rumo novo que eu não poderia imaginar qual se-ria. A única certeza que eu tinha naquele momento é que mui-tas coisas iriam mudar, era uma nova etapa, um novo espaço de tempo, que eu a partir deste dia teria que administrar.

Enquanto eu pensava, Dr. Rafael agia, quando voltou a falar comigo, ele tinha em mãos vários formulários, naquele momento eu teria que voltar a realidade para entender as suas determinações. Depois de ouvi-lo dei graças a Deus por ter contratado à alguns anos atrás, um bom plano de saúde incluindo toda a família.

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Por causa dessa atitude, que muitas vezes as pessoas pen-sam ser dispensável, e que só vão lhes ocasionar mais despe-sas em seus já apertados orçamentos domésticos, eu percebia que essa seria uma preocupação a menos para minha vida, e para toda aquela confusão que se formava em minha cabeça naquele momento.

Saí da Clínica com muitos papéis nas mãos e com mais que pa-péis muitas decisões a tomar e muitos problemas para resolver.

O primeiro, mais importante e inadiável era comunicar o que estava acontecendo a minha família, e essa era uma mis-são que para mim se tornava dolorida, pois sempre procurei não levar minhas preocupações e meus problemas a eles.

Estava com o telefone na mão para ligar para uma de mi-nhas irmãs, quando decidi falar primeiro com Rafael.

Então liguei para o celular que ele gentilmente tinha deixa-do comigo para qualquer emergência.

- Alô! Rafael? Aqui é Lay!- Oi! Falou Rafael com sua voz de anjo.- Como você está? Algum problema querida?- Não, nenhum problema comigo estou preocupada com

minha mãe.- O que tem sua mãe? Perguntou com voz preocupada.- Nada! Mas não sei como vou contar esses meus proble-

mas para ela.Rafael riu e falou.- Minha querida eu já falei para você outro dia e vou repetir

agora. E com voz grave acrescentou.- Você precisa para de carregar o mundo nas costas. Você

precisa pensar apenas em você agora. Está na hora de preocu-par-se apenas com a sua vida.

- Rafael minha mãe tem quase 80 anos. Falei e ele respondeu.- Não fale nada! Diga que vai fazer uma redução de seio e

conte apenas quando estiver tudo resolvido.

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- Acho que você realmente tem razão, obrigada querido.Desliguei o telefone e o coloquei novamente no gancho.Decidi que naquele momento comunicaria o problema

apenas a meu marido e filhos, morávamos em cidades dife-rente de todo o resto da família e por isso pensei que seria essa a melhor decisão no momento.

A biópsia estava marcada para dois dias depois, eu não ti-nha muito tempo e por isso resolvi que os reuniria e comuni-caria a todos juntos no dia seguinte, seria mais fácil, pensei.

Comuniquei o que estava acontecendo e o que eu havia de-cidido. Meu marido e meus dois filhos tentaram me acalmar e falavam que poderia não ser nada grave, mas eu sabia que não seria assim e pedi para eles não tentarem se enganar por que eu acreditava que isso seria muito pior para eles.

Prevendo minha ansiedade e que isso iria trazer-me uma ter-rível insônia, Rafael receitou-me um tranqüilizante e me orientou a tomar uma pequena dose para conseguir dormir, na primeira noite relutei, mas naquela noite sabia que iria precisar dele.

Lembro-me que naquele dia, depois de conversar com meu marido e meus filhos, fui fazer meu pequeno passeio diário com meu cãozinho de estimação, quis manter minha rotina normal-mente, mas naquele dia tudo estava incrivelmente diferente.

As ruas pareciam mais arborizadas, as calçadas estavam mais limpas, os canteiros estavam mais floridos, por alguns momentos procurei esquecer meus problemas, para olhar toda a beleza daquele passeio, daquele dia.

Percebi, então, que todas aquelas coisa, a rua, as calçadas, os canteiros, eles estiveram sempre ali, eu é que não os via, não os percebia, tinha sempre uma preocupação que de repente me tornava sega para as belezas que estavam ao meu redor.

Aquele dia era diferente, talvez porque no dia anterior eu era uma mulher cheia de saúde, hoje estava com uma doença terrível e amanhã poderia morrer.

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Uma conclusão estranha que me fazia naquele momento querer engolir o mundo.

Dois dias depois como ficara marcado fui a clínica para fazer a biópsia.

Rafael já tinha se comunicado com a médica, quando che-guei à clínica ela já sabia de todo o meu problema.

Dra. Bia era uma pessoa tranqüila, tinha mais o menos a minha idade. Comunicou-me que a biópsia seria feita através de punção, e explicou-me todo o procedimento o que me deixou mais calma.

Então examinou os exames de ecografia e mamografia que eu tinha em mãos, e me acalmou ainda mais dizendo que era um “achado” bastante pequeno e que provavelmente isso seria de grande importância para todos os procedimentos futuros.

Depois de uma pequena dose de anestesia, mostrou-me através do aparelho ecográfico o local em que faria a punção. Feita a punção ela me indicou o laboratório de sua confiança onde eu deveria levar o material para exames.

Esse dia parecia não ter fim, cheguei ao laboratório e a atendente me informou que o resultado sairia em até 15 dias. Bom teria que esperar.

No dia seguinte, tive a confirmação de um dito popular, que minha mãe usava, e que eu ouvia desde criança, quando meu pai sumia pelo mundo, dizendo que estava fazendo com-pras para o armazém.

Muitas vezes preocupada questionava se não poderia ter lhe acontecido algo e ela respondia.

Não se preocupe minha filha! Notícia ruim chega rápido! O telefone tocou, quando atendi, logo reconheci a voz da

atendente do laboratório, aquela voz tinha ficado gravada na minha mente.

- Gostaria de falar com Dona Lay!- É ela! Respondi.

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- Aqui é do Laboratório. Gostaríamos de avisar que o re-sultado de sua biópsia está á disposição.

Agradeci e desliguei o telefone.Pensei, minha mãe sempre tinha razão.Estava sozinha, aguardava minha cunhada que viria do in-

terior naquele dia, pois meu marido a havia chamado para que me fizesse companhia.

Olhei o relógio, 14:20h, pensei tenho tempo de ir ao labo-ratório e ainda levar o resultado até a clínica, apenas precisava saber se Rafael estava lá aquele dia.

Liguei para o seu celular, atendeu prontamente, disse que acabara de sair de uma cirurgia, e me confirmou que estaria na clínica em uma hora.

Não tinha certeza se estaria em condições de dirigir naque-le momento de ansiedade, mas era a única maneira de loco-moção rápida para dar um fim aquele pesadelo.

Entrei no carro e quando comecei a me preocupar com o trânsito, relaxei. Em 30 minutos estava estacionando em fren-te ao Laboratório de análise.

Quando entrei a mesma atendente do dia anterior e que também tinha me telefonado à alguns minutos, tinha um pe-queno envelope branco LACRADO nas mão.

Dona Lay? Perguntou.Acenei que sim, com a cabeça e ela me entregou o envelope.Entrei novamente no carro, coloquei o cinto de segurança,

liguei o motor do carro e meus olhos, como se aquele enve-lope estivesse dotado de um tipo de imã, não se desviavam dele, que estava sobre o banco do carona. Desliguei o carro e peguei o envelope. Olhei o lacre e pensei preciso abri-lo. Descolei o lacre com cuidado e abri o envelope.

Com letras maiores o título:

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“EXAME ANATOMOPATOLÓGICO”

Material:

Nódulo da união dos quadrantes superiores da mama di-reita, (biopsia).

Exame Macroscópico:

Quatro fragmentos filiformes de tecido, cinzentos e elásti-cos, medindo o maior 1,1 x 0,1cm.

Conclusão:

Carcinoma ductal infiltrante.

Dra. Silvia .......

Então pensei novamente, realmente minha mãe tinha ra-zão! Notícia ruim chega cedo mesmo!!!

Naquele momento minha cabeça girava, e com ela giravam todas as minhas lembranças. Não podia sair dirigindo assim, então me recostei no banco e liguei o FM. Precisava de algu-ma coisa para relaxar e nada melhor do que ouvir uma música para isso.

Não sei quanto tempo fiquei ali, de repente ouvi uma buzi-na, percebi então que outro carro com um casal estava dando sinal para estacionar na minha vaga.

Arranquei o carro e pensei, espero que eles tenham mais sorte que eu.

Em trinta minutos estava em frente à Clínica do Dr. Rafael. Entrei e a atendente que já me conhecia, veio ao meu encon-tro com seu sorriso de sempre. Não sei se vocês já percebe-

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ram que existem pessoas certas para esse tipo de trabalho, até hoje não sei se elas são moldadas, para fazerem esse tipo de atendimento, se essas pessoas nascem com essa vocação ou se moldam automaticamente através do sofrimentos das pes-soas que passam cada dia por suas vidas.

- Oi Lay! Falou Soninha. O Dr. está a sua espera.Aquele sorriso acendeu uma luz na escuridão que eu me

encontrava, desde que saí do laboratório e a partir daquele sorriso eu decidi que, a partir daquele momento, não impor-tava o que acontecesse, eu não deixaria que nenhuma pessoa me olhasse com CARA DE PIEDADE.

Quando atravessei a porta do consultório de Rafael, estava calma sem saber o motivo.

- Oi menina! Falou Rafael.- Obrigada pela menina!!! Respondi.Naquele momento me dei conta que desci do carro a uma

quadra da clínica e carreguei o envelope na mão, quando o certo era colocá-lo na bolsa.

Entreguei o envelope a Rafael e falei:- O diagnostico eu já sei, só estou aqui atrás da cura.- Esse é um bom começo! Disse Rafael sorrindo. E abriu

o envelope.Rafael me tranqüilizou, disse que não era um tipo de câncer

muito agressivo e o mais importante o nódulo era bem pequeno o que sempre faz muita diferença para qualquer tratamento.

Como da primeira vez que nos encontramos, ficamos qua-se duas horas conversando, e quando saí tinha nas mãos re-quisições para vários exames. Precisávamos saber se eu não tinha metástase em outra parte do corpo.

Quando cheguei em casa encontrei minha cunhada Cissa e meu marido preocupados, só então lembrei-me que tinha esque-cido, que deveria apanhá-la duas horas atrás na Rodoviária.

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Procurei explicar a eles o que tinha acontecido e a conversa com Dr. Rafael. Notei que estavam nervosos mas tentavam se controlar. Minha cunhada com a desculpa de comprar algo convidou meu marido para irem ao um supermercado. Perce-bi que os dois queriam ficar a sós e falei que estava cansada e que não os acompanharia. Quando voltaram tentavam disfar-çar, mas percebi que haviam chorado.

No dia seguinte começaram uma serie de exames, ecogra-fias, RX, análises de sangue. Muitas vezes brincava com as enfermeiras.

- Meninas um dia vocês ainda vão me deixar sem sangue!!!!- Aqui tem muitos vampiros e precisamos alimentá-los!

Elas falavam e caiamos na risada.Comecei a compreender que a alegria me fazia bem, e que

só procurando manter aquela alegria eu conseguiria fazer com que aquela fase fosse o menos dolorosa possível e penso que esse foi meu primeiro passo em busca da CURA.

Foram dias de correria, dias agitados, dias de muitas apre-ensões. Quando estava com todos os exames completos liguei para Dr. Rafael que pediu-me que os levassem à clínica. Ele falou que me reservaria o ultimo horário.

Rafael pegou todos os exames e foi analisando cada um separadamente e à medida que o fazia notei que seu rosto se iluminava, no final levantou os olhos e falou sorrindo.

- Melhor impossível!!!! Não foi observado nada que possa nos preocupar!

E concluiu.- Você está em ótimo estado de saúde, nenhuma anemia,

nenhum motivo que impeça de marcarmos a cirurgia. - O que você acha de marcarmos para a próxima semana?

Perguntou.- Sem problemas Dr.! Sem problemas! Respondi.

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Escolhemos juntos o Hospital e o melhor dia, pois Rafael queria sua equipe toda junta. Principalmente Dra. Bia, e um patologista de sua confiança, do laboratório de análise, o mes-mo que analisou o material da biópsia.

Depois de tudo acertado, a cirurgia ficou marcada para cinco dias depois uma quarta-feira.

Saí da clínica novamente com muitos papéis na mão e a cabeça rodando, não tanto como da 1ª vez, mas rodando.

Além dos documentos para encaminhamento ao plano de saúde, Rafael me descreveu todos os passos que deveria seguir na véspera e no dia da cirurgia. Eram quase duas páginas com tudo que deveria fazer antes de nos encontrarmos no Hospital.

PROCEDIMENTOS PRÉ-CIRURGICOS

Terça-feira: Alimentação leve á noite

Quarta-feira: Jejum total.

Quarta-feira: 08:00h –Estar no laboratório para mamogra-fia e ecografia mamária.

Quarta-feira: 08:30h – Encontro com a Dra. Bia para análi-se da mamografia e eco mamária. Logo após injeção de “con-traste” na mama, para posterior ”agulhamento” e determina-ção exata do local da cirurgia.

“Contraste”! ... “Agulhamento”! O que seria isso! Pensei.

Isso eu saberia no dia, estava cansada e queria voltar para casa. Quarta-feira: 10:30h – Estar no Hospital para a Cirurgia

em jejum até mesmo de água.

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Preciso estar rapidamente em casa porque só de pensar estou morrendo de sede. Entrei no carro e dei a partida.

Acordei as 04:00h da manhã naquele dia, e não consegui mais dormir, mesmo tendo tomado uma boa dose de relaxan-te na noite anterior.

Aquele era um dia que poderia definir minha vida e ele (o dia) começaria com procedimentos como “Contraste e agu-lhamentos através de ecografia”! Recostei-me na cama e fiquei imaginando o que seriam aqueles procedimentos. Quando tentava dormir, acordava novamente com a sensação de que estava com dezenas de agulhas espetadas na minha mama.

Levantei-me as 6:00h, e ao sair do banho percebi que es-tava com as unhas por fazer, e pensei:

- Vou fazer as unhas isso será um meio fácil de relaxar! Não vou ficar pensando que não poderei beber água e com isso não sentirei sede.

Acendi a luz da sala de estar, com esmaltes e tudo mais nas mãos e comecei a lixar as unhas. Neste momento ouvi barulhos no quarto de hospedes. Minha cunhada Cissa e Ione minha ami-ga desde a adolescência que viera no dia anterior para me dar uma força, ouviram minha movimentação e levantaram também. Ficamos conversando e o tempo passou rapidamente.

Bom antes de qualquer coisa preciso falar um pouquinho sobre minha amiga IONE. Essa é realmente uma pessoa es-pecial, uma pessoa que poderei chamá-la de amiga, e sei que durante toda a minha vida poderei contar com sua amizade, e também com a amizade de sua família, uma grande família como a minha e com muitas semelhanças. Conhecemo-nos na adolescência, trabalhamos juntas, moramos no mesmo bairro algum tempo, e compartilhamos muitos momentos de felici-dades e alegrias. Casou-se e teve uma filha linda. Lú sua filha, hoje é casada com Cesar e os dois deram a minha amiga uma

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netinha linda que se chama Isadora e chamamos de ISA, essa coisinha fofa trás a todos nós grandes alegrias.

Quando entrei na clínica Dra. Bia já estava me aguardando com aquele sorriso de sempre. Explicou os procedimentos que me angustiaram tanto naquelas últimas 15 h.

Contraste: Seria injetado um tipo de droga que se localiza-ria nos lugares afetados pelas células cancerígenas.

Agulhamento: Com o contraste e através de ecografia se-ria feito o agulhamento, que marcaria o lugar exato onde seria retirado a parte afetada da mama.

Coisas simples para os médicos e apavorante para qualquer leigo.

Uma hora depois eu saia da Clínica com uma enorme haste metálica espetada na mama e com uma sensação de que um caminhão teria passado sobre mim.

Estava tensa e toda dolorida, acredito que tudo isso por causa do nervosismo das últimas horas.

Então ao entrar na saleta de espera brinquei com meu ma-rido que me esperava, já a mais de uma hora, e com certeza com a mesma tensão.

- Poxa! Esqueci de anotar a placa do caminhão que me atropelou! Você conseguiu?

Meu marido riu e saímos da Clínica.Dei entrada no hospital as 9:40h, e logo depois de entrar

no quarto entrou uma enfermeira com uma bandeja de mate-riais nas mãos e falou.

- Bom dia! Vou preparar você para a cirurgia.Olhou para minhas mãos e pés e sorrindo disse.- Peninha! Estão tão bonitas!!!!E lá se foi o meu belo esmalte e todo o meu trabalho da-

quela madrugada.

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Quando entrei no centro cirúrgico, Rafael estava acabando de colocar a touca, então brinquei com ele.

- Hoje você não está com o cabelo arrepiado, meu roquei-ro preferido!

E ele sorrindo falou.- Como está a minha paciente preferida?- Penso que minha pressão está um pouco alta! FaleiEle apontando para uma médica que estava um pouco

afastada e parecia estar grávida, falou.Vou apresentar a você uma pessoa que é especializada em

baixar pressão!Essa médica era a anestesista do bloco naquele dia, depois

fiquei sabendo que ela era sua esposa e que realmente estava grávida do seu primeiro filho e pensei, ele estava com toda a família junto a mim.

Dra. Bia e o patologista que faria a pesquisa da glândula senti-nela que seria retirada da minha axila e os demais exames necessá-rios acabaram de entrar no Centro Cirúrgico naquele momento.

Lembro-me de cumprimentá-los e sentir uma pequena es-petada no meu braço esquerdo e mais nada.

Quando acordei na sala de recuperação, como no meu sonho aos 12 anos, estava ao meu lado uma pessoa de vestes branca, não era um médico, mas uma enfermeira, que me falava.

- Como está se sentindo? - Estou bem! Respondi.- Vou avisar o Dr. Rafael que você acordou. E se afastou.Minutos depois a porta se abriu e Rafael com seu sorriso

franco, se aproximou e disse:- Muito bem querida! Foi tudo muito bem mesmo!!! Os exa-

mes confirmaram que foi retirada toda a parte afetada e o mais importante a pesquisa da glândula sentinela deu negativa!!!

- Isso quer dizer o que? Perguntei.

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- Quer dizer que sua axila está livre e que você não vai precisar se submeter à quimioterapia. Aconteceu exatamente o que eu falei para você aquele dia na Clinica, e com carinho pegou a minha mão.

- Você tem grande chance de estar curada, contudo como conversamos, você vai ter que se submeter á radioterapia e a um tratamento de 5 anos com medicamentos e concluiu, se todas as mulheres agissem como você, cuidando da sua saúde e fazendo exames preventivos regularmente, evitaríamos mi-lhares de mortes. Vejo você no quarto mais tarde, e fazendo uma careta saiu pela porta.

Fiz uma pequena oração, de agradecimento, e voltei a dormir.Quando entrei no quarto, ainda meio tonta pela ação da

anestesia de poucas horas atrás, encontrei todos reunidos, meu marido, meus filhos, minha cunhada e minha amiga.

Fizemos naquele momento uma grande comemoração, uma comemoração à vida, uma comemoração ao reencontro, uma comemoração ao um novo período que estava começan-do naquele momento.

A segunda fase – agora o tratamento.

Depois da cirurgia eu tinha consciência, de que os pro-blemas não acabavam ali, muitos problemas e preocupações viriam, sabia que ali acabava apenas a primeira etapa.

No apartamento duplo do hospital, conheci Maria, uma mulher de classe média, como eu, aparentando 40 anos, e com ela convivi os três dias de internação.

Maria tinha se submetido a uma cirurgia na coluna vertebral (hérnia de disco, me confidenciou) a principio queixava-se de muita dor e chamava a atenção das enfermeiras a todo o mo-mento. Durante aquela primeira noite, fiquei agitada, não con-

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seguia dormir, tive um pouco de febre, então pude observar a movimentação noturna do Hospital, sirenes, pessoas com pas-sos apressados, conversas sussurradas, e, sobretudo, as queixas de Maria, que a todo instante chamava a enfermeira de plantão para pedir-lhe algum medicamento, queixando-se de muita dor. A enfermeira entrava e ficavam conversando. Notei que em al-guns minutos ela se acalmava e falava que já estava sem dor. A enfermeira se afastava e Maria acabava dormindo.

Na manhã do dia seguinte, notei que Maria usava seu tele-fone celular constantemente, falava com várias pessoas, e não me lembro de ouvi-la falar, uma única vez, que estava bem, ela queixava-se de dor, falava que não conseguia caminhar e quem a ouvisse do outro lado da linha, com certeza, imagina-va que ela estava muito mal.

Bom, do meu leito a poucos metros, em não via nada da-quilo que ela falava, Maria tinha um aspecto saudável, e eu não conseguia ver nela tantos problemas. Quando entrava um médico ou alguma enfermeira ela repetia as mesmas queixas.

Começou o horário de visita e minha família veio inteira, meu marido meus filhos e ainda alguns amigos. Meus irmãos que moravam no interior ligaram para saber noticias e falaram que viriam, alguns, no próximo dia e os demais esperariam para visitar-me em casa.

Maria não recebeu nenhuma visita naquele dia e nem mes-mo nos dois próximos dias em que dividi com ela o aparta-mento do hospital. As queixas continuaram e mesmo com a fisioterapia diária não admitia nenhuma melhora, nem para os médicos e enfermeiros e muito menos para as pessoas com quem falava o dia inteiro ao telefone.

Bom, eu tinha feito uma cirurgia delicada para livrar-me de uma doença, um câncer, que a maioria das pessoas, não admi-te ao menos falar sobre essa doença e muito menos admitir que sejam portadoras de um tumor cancerígeno, mas agora

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eu tinha absoluta certeza que ali a poucos metros eu tinha al-guém muito mais doente que eu. Uma pessoa sem esperança, uma pessoa abandonada, uma pessoa sem amigos, uma pes-soa sem família, uma pessoa com uma profunda depressão, e realmente, uma pessoa doente.

Não tive depois disso nenhuma notícia de Maria, mas te-nho comigo, e guardo comigo até hoje, a imagem daquela mu-lher que parecia saudável, mas que sofria de uma doença mais grave que a minha “o abandono”.

Saí do hospital e dias depois estava na minha cidade do interior ao lado de minha mãe e meus irmãos que fizeram questão que eu ficasse com eles naquele momento, eu tam-bém sentia a necessidade daquele convívio, daquele carinho. E talvez por isso a recuperação da cirurgia se deu rapidamente.

Quando voltei para a Capital, fui à clínica e Rafael, depois de elogiar a minha rápida recuperação falou.

- Pois então menina! Tudo muito bem, tudo muito bom, vem mais coisas por aí, depois da total cicatrização começare-mos o tratamento, não vamos esquecer isso?

- É evidente que não! Respondi.Marcamos uma próxima revisão para alguns dias depois e

nos despedimos.No dia marcado retornei à clínica para revisão, Rafael esta-

va radiante, acabara de se tornar papai. No dia anterior nasce-ra seu filho, me contou como foi o parto, e cheio de orgulho mostrou-me na tela de seu telefone celular a foto do pequeno Arthur, ainda com o seu pequeno corpinho sem o primei-ro banho e chorando para a vida, exercitando seu minúsculo pulmão. Dei-lhe os parabéns e pedi que os transmitisse a sua esposa a qual conheci na sala de cirurgia alguns meses atrás.

Depois disso começamos a consulta propriamente dita. Normalmente nossas consultas eram sempre assim, tínhamos algumas estórias para contar antes da consulta e muitas vezes

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riamos junto de alguma coisa engraçada ou por qualquer moti-vo. Aninha minha ginecologista que trabalhava com ele na mes-ma clínica, muitas vezes batia na porta para participar de nossos papos, e saber o motivo dos risos e então riamos todos juntos.

Quando saí da clínica estava com um calhamaço de papéis nas mãos, requisições para exames, e encaminhamentos para o tratamento de Radioterapia que deveria começar dentro de poucos dias.

Rafael teve o cuidado de fazer a indicação de um dos nos-sos melhores hospitais para tratamento de câncer, o Hospital do Câncer Santa Rita que faz parte do conglomerado Santa Casa de Misericórdia, no sul do Brasil.

Uma semana depois, fui até o hospital para exames de ro-tina e agendamento das sessões de radioterapia. Lá conheci mais uma pessoa muito importante para a minha recuperação. Dra. Alice era uma mulher muito calma, com uma alma ge-nerosa que tratava todos os pacientes de maneira igual, não importando a sua classe social ou a sua conta bancária. Dra. Alice acompanhou-me até uma das salas de radioterapia e fez questão de ela mesma me explicar como se daria o tratamen-to. Quais eram os aparelhos e como seriam usados. Todos os cuidados que deveríamos ter para que os efeitos colaterais fossem minimizados.

E eram muitas as recomendações de Alice, para começar a partir daquele dia eu não poderia usar nenhum tipo de creme, perfumes e também não poderia usar desodorante ou qual-quer antitranspirante. Fiquei assustada e quis saber como con-trolaria a transpiração, sem meu desodorante preferido e ela me ensinou a usar sabonetes neutros e como antranspirante deveria usar bicarbonato de sódio.’

- É o melhor antitranspirate que existe, tenho certeza que você vai gostar. Falou Dra. Alice.

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Outra recomendação era em relação ao próprio seio, eu deve-ria ter o cuidado de não usar nenhum tipo de roupa com fio sin-tético, dar preferência sempre as malhas de algodão. Ensinou-me a usar uma proteção para evitar o contato de pele com pele. Ex. Não permitir o contato do seio com a pele do tronco, mesmo sem entender achei que deveria seguir as suas orientações. Só fui realmente entender depois de um mês de aplicação.

Estava um bonito dia de sol quando entrei no hospital aque-le dia, seria meu primeiro dia de tratamento, apesar de que Dra. Alice, falou que nesse primeiro dia eu não faria aplicação. Se-riam apenas feitas as marcações e que eu seria ”tatuada”.

Mais uma vez fiz aquela cara de “ops!!!” como tatuada? Eu que até esse momento não tinha nenhuma tatuagem, nem mesmo uma pequena borboleta na nuca que era o meu sonho, agora seria tatuada!!! Onde? Por que? Por isso minha curiosi-dade era imensa naquele dia.

Identifiquei-me na recepção e imediatamente fui levada a Sala nº 05 onde Dra. Alice me atendeu no primeiro dia.

Ela estava sentada, com a cabeça baixa lendo minha ficha de atendimento, levantou os olhos, sorriu e me cumprimentou.

- Bom dia moça! Seja bem vinda! Sente-se ...Repetiu algumas recomendações da consulta anterior e

pediu-me que vestisse uma avental hospitalar com abertura frontal e fosse até a maca no fundo da sala.

Com uma caneta especial, fez vários traços em meu seio enquanto conversávamos. Quando acabou recomendou-me que não deveria lavar o seio normalmente como de costume, deveria somente tomar duchas e deixar a água apenas cair so-bre o seio, sem fazer fricção e nunca tomar banho de emersão até o fim das aplicações de radioterapia, pois aqueles traços não deveriam ser apagados.

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Pensei, seriam essas as tatuagens das quais ela havia me falado outro dia, menos mal, até aquele momento não tinham me espetado nenhuma agulha.

Dra. Alice mandou que eu levantasse, abriu a porta e cha-mou uma enfermeira que estava na outra sala.

Caminhamos por um corredor até a sala 07 onde estava acesa uma lâmpada vermelha e um aviso:

Não entre – RADIOATIVIDADE.Paramos de fronte esta porta que sem demora abriu-se, dela

saiu uma mulher muito magra, vestida com um avental igual ao meu. A lâmpada vermelha apagou e a lâmpada verde ascendeu-se. A enfermeira fez sinal que eu poderia entrar. O ambiente era escuro, super fechado, mas com uma temperatura agradável.

Dra. Alice entrou logo atrás e começou a mostrar-me como da vez anterior como seriam as aplicações. Uma maca movida eletronicamente baixava na altura em que o paciente conseguisse subir, depois se erguia novamente, nesse momen-to a técnica entrava num pequeno cubículo isolado e movia a máquina, tinha o formado de um fone gigante, e direcionava os raios para o local indicado.

No momento não entendi muito bem todas aquelas infor-mações, mas percebi que não deveria questioná-la, afinal eu acabaria entendendo.

Dra. Alice retirou-se com um sorriso, no momento que a técnica de radioterapia entrava na sala.

Mara era uma moça morena, 28 anos, com um sorriso franco e com aquele jeito doce que é peculiar das pessoas que lidam diariamente com o sofrimento de cada paciente com câncer, que passam por esses locais de tratamento. Quem já passou por isso sabe exatamente do que eu estou falando.

Bom dia Lay! Falou com uma ficha técnica na mão.Apresentou-se, e sorrindo sempre, falou que a partir da-

quele dia nos encontraríamos todas as manhãs.

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Perguntou-me se eu já havia feito alguma tatuagem, res-pondi que não, então Mara falou que ela seria a minha primei-ra tatuadora.

- Pensei naquele momento: Poxa e eu pensei que já estava tatuada!!!

Mara explicou que esse tipo de tatuagem era permanente, mas que seria quase imperceptível, porque seriam apenas três pontinhos, um sob cada axila e um entre os seios, e que servi-riam para um fácil direcionamento das aplicações.

- Tudo bem!!!! Falei então vamos adiante.Não foi tão ruím, mas é uma marca que nos acompanha-

rá até o fim da vida de cada mulher portadora de câncer de mama e que teve que se submeter a RADIOTERAPIA. Por isso somos “mulheres marcadas”.

No dia seguinte cheguei ao hospital as 7:30, me identifiquei novamente na recepção e desta vez fui levada a uma sala de espera, com pessoas de todas as idades e sexo, que convencio-nei a chamar a partir daquele dia de “Sala dos Horrores”.

A sala dos horrores estava sempre superlotada com pes-soas de todas as cidades do nosso estado, pessoas que via-javam horas e horas para chegar até aquele hospital e aliviar um pouquinho de seus sofrimentos. Ali estavam pessoas mutiladas pela doença, pessoas que muitas vezes chegavam deitadas sobre macas ou em cadeiras de roda por não terem mais condições de locomoção própria. E desse jeito chegavam homens, chegavam mulheres e o mais impressionante, chega-vam crianças, crianças inocentes, crianças que com certeza, na suas ingenuidades, não sabiam ao menos porque estavam ali.

Cada dia chegavam mais e mais pessoas diferentes, e cada dia eu me surpreendia porque até então eu não imaginava, eu não tinha a menor idéia de que existiam tantas pessoas com câncer, tantas pessoas sofrendo com essa doença.

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Concluí então, que o câncer não só atacava pessoas adul-tas, que não cuidavam bem de sua saúde, como os fumantes que envenenam seus pulmões diariamente, nem os alcoólatras que deterioram seus fígados, mas que ele atacava sem piedade crianças inocentes, crianças que com certeza não conheciam a gravidade de seus casos e que apesar de seus sofrimentos, sorriam para o mundo, sorriam para as pessoas, sorriam para a vida ou para a pouca vida que ainda lhes restavam.

Ali na “Sala dos horrores” e nas suas proximidades eu vi de tudo um pouco, pessoas sofrendo porque não tinham uma ambulância que as levasse de volta para casa ou para o outro hospital em que estavam internados.

Foi aí que conheci Elza uma mulher franzina debilitada que estava internada em outro hospital da cidade, depois de ter passado por uma grande cirugia para tentar se livrar de um câncer de intestino.

Tinha feito uma cirurgia complicada e carregava junto ao corpo uma “bolsa dreno”, e naquele dia caminhava de um lado para o outro desesperada.

Fui até ela e perguntei:- Elza querida! O que está acontecendo? A ambulância não

vem buscar você hoje? E ela desesperada respondeu:- Me avisaram que não tem nenhuma ambulância disponí-

vel para vir me buscar e vou ter que pegar um ônibus ...- Como pegar um ônibus? Perguntei.- Você não tem nenhuma condição de ir de ônibus até o

outro lado da cidade. Vou tentar arranjar alguém para levá-la, me aguarde aqui.

Ao redor do Hospital, estão sempre saindo e chegando micro ônibus, que alem de carregar os “pacientes” de uma cidade à outra carregam também o logotipo de políticos para que os pobres pacientes não esqueçam em quem devem votar nas próximas eleições se ainda estiverem vivos para isso.

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Corri ao redor do hospital e falei no mínimo com cinco ou seis motoristas dos referidos micro ônibus, nenhum tinha au-torização ou condição de se desviar de seus roteiros para levar Elza ao Hospital. Depois fiquei sabendo que poderiam apenas conduzir as pessoas de suas cidades de origem, talvez porque esses fossem eleitores certos dos candidatos cujos logotipos es-tavam estampados nas ambulâncias ( micro ônibus ), e esse não era o caso de Elza, ela era moradora da Capital.

Nesse momento pensei que aquele ser humano que estava em minha frente não deveria valer apenas um voto, não de-veria ser apenas um potencial eleitor, mas um verdadeiro ser humano, uma pessoa que precisava e deveria ser ajudada.

Como uma providência Divina meu celular tocou.

- Alô mãe sou eu Alê, onde você está? Estou chegando do interior.

- Na Radioterapia querido e estou precisando de você aqui. Você sabe a Elza aquela senhora da qual falei para você outro dia?

- Sim sei? O que aconteceu com ela.- Preciso de sua ajuda para levá-la de volta ao hospital

em que ela está internada, hoje, justamente hoje estou sem carro, querido.

- Estarei aí em 30 minutos.E esse não foi o único dia que vi Elzas, Manuéis, Josés,

Joãos e outro tantos sofrerem com problemas tão grandes ou até maiores que sua própria doença, por puro desinteresse de pessoas e de órgãos públicos incompetentes.

O maior problema que detectei em muitos pacientes foi uma grande depressão, uma grande falta de vontade de viver, uma tristeza infinita, e isso tudo com certeza os levavam a morte primeiro do que a própria doença, primeiro do que o próprio câncer.

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Dona Jane era uma mulher de 68 anos, de origem alemã, não aparentava a idade que tinha, pude ver isso quando a tirei daquela depressão profunda. Era uma mulher bonita para a sua idade, com olhos verdes que quando estava feliz, brilha-vam e se tornavam mais verdes ainda. Um dia falei para ela que deveria fazer uma reconstituição de mama porque ela era uma mulher muito bonita, e tinha muita vida pela frente.

Ela me olhou admirada e falou:- Você é a primeira pessoa que falou que sou bonita!!!!Fiquei apavorada e perguntei:Você está brincando Dona Jane!!!! Seu marido nunca lhe

falou que você é linda?- Não! Nunca falou!No dia seguinte ela chegou muito contente e me contou

que chamou seu marido e perguntou:- Meu Velho você acha que eu sou bonita?Ele começou a rir e respondeu:-Você sempre foi e é a mulher mais bonita que conheci!!!!E com essas palavras ele a ajudou a sair daquela depressão.Eu procurava falar todos os dias com aquelas pessoas, não

conseguia ficar alheia aquele sofrimento todo, e dizia:- Levantem a cabeça, olhem a seu redor por mais difícil que

Dona Jane era uma dessas pessoas, quando chegou ao Hospital para o inicio do tratamento, sentou-se num cantinho da sala, de cabeça baixa, como se não quisesse ver as pessoas ao seu redor, como se não quisesse mais ver a vida. No se-gundo dia de seu tratamento aproximei-me dela e procurei conversar, saber qual era a sua cidade, de onde vinha, no ini-cio notei que ela não estava com disposição para conversas, mas insisti. Descobri que sua cidade ficava próxima da cidade onde moravam a minha família e isso foi o começo para nos tornarmos amigas. Nos próximos dias trazíamos fotografias de nossas famílias para mostrar uma à outra.

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Iniciei minhas aplicações e depois de ver tanto sofrimento, vivendo entre aquelas pessoas sofridas, eu me senti uma pes-soa privilegiada, por ter tido condições financeiras, e, sobretu-do conhecimento, para detectar precocemente aquela doença, que para tantos, notava-se que era fatal, e que muitas pessoas que entravam por aquela porta não tinham mais força e ne-nhuma chance de sobrevivência.

Depois das primeiras aplicações comecei a notar toda a transformação que ocorria com a minha mama, no primeiro momento a coloração da pele, era como se eu estivesse to-mando banho de sol apenas sobre a minha mama direita.

A pele ficou bem mais seca e com uma cor de bronzea-do. Logo depois comecei a perder a sensibilidade da mama e principalmente do mamilo, sensibilidade essa, que já estava prejudicada pela cirurgia, agora piorora consideravelmente.

Depois de um mês de aplicação entendi o porquê de todas as recomendações da Dra. Alice, quando falou dos problemas que poderiam surgir com o decorrer do tratamento. Primeiro a perda de sensibilidade, o ressecamento da pela e por fim a ulceração.

Mesmo tomando todo o cuidado, colocando gases para evitar o contato pele com pele, depois de um mês de aplica-ções diárias, notei uma pequena ardência sob a mama e no outro dia era como se a pele tivesse por um passo de mágica, desaparecido. Tanto a pele do tronco como a da mama que estavam em contato, desapareceram, e uma enorme ulceração tinha se formado, como uma grande queimadura.

Cheguei mais cedo aquele dia para falar com Dra. Alice sobre a ferida aberta sob a minha mama. Dra Alice disse-me que como havia comentado no inicio do tratamento, isso era

seja, vejam a vida lá fora, saibam que ela espera por nós, só precisamos lutar e acreditar, e jamais deixem que alguém os olhe com CARA DE PIEDADE.

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previsível, pelo tamanho de minha mama ela ficava constan-temente em contato com a pele do tronco.

Como era previsível também, Dra. Alice tinha uma poma-da milagrosa para receitar, e cinco dias depois a pele começou a voltar ao normal.

Durante estes dois meses de tratamento, vi ali muita dor, vi ali muito sofrimento, sofrimento que muitas vezes tentava amenizar com palavras, com carinho, e levando aquelas pesso-as um pouco de esperança, um pouco de paz.

Meu tratamento acabou e sai dali, apesar de tatuada ou marcada, com uma nova visão de vida e das pessoas.

Faz cinco anos que tudo isso aconteceu e se minhas visões ou imaginações ainda funcionam, e eu acredito que sim, tenho abso-luta certeza que estou CURADA e a isso dou Graças a DEUS.

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Tatuadas de Vida

Hoje para mim, essas pequenas marcas ganharam na verdade, um grande significado. Elas significam mi-

nha luta, significam estar viva, significam continuar viva, signi-ficam sonhar com coisas novas, significam viver coisas novas, e significam, sobretudo, brilho no olho.

Aquele brilho de vida, que todas nós, mulheres que luta-mos pela vida e contra o câncer, temos no olhar, então com certeza não somos apenas mulheres marcadas, somos mulhe-res que aprenderam a lutar, somos mulheres que aprenderam a valorizar a vida, a valorizar cada pedacinho do nosso tempo, e obviamente, a valorizar cada pedacinho, de nós mesmos.

Somos tatuadas de vida ......

Sobre qualquer doença e especialmente o câncer ...

Do texto “Prioridade viver” – Lay Faggundes

Temos sempre alguma prioridade em nossa vida, e elas, as prioridades, começam cedo, exatamente no momento em que nascemos ...

Choramos, porque a prioridade naquele momento é fazer nosso pequeno e frágil pulmão começar a trabalhar, pois o oxigênio que começaremos a inalar naquele instante, é nossa própria vida, e sem ele não poderíamos viver ...

E assim, como nesse primeiro momento, outras prioridades tão importantes ou mais importantes virão, andar, estudar, tra-

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balhar, amar, conhecer os nossos limites, questionar os nossos limites, ultrapassá-los, infringi-los, mesmo sabendo que a qual-quer momento podemos, por causa disso, quebrar a cara...

E vamos passando por muitas e muitas coisas, que no seu devido tempo são nossas prioridades, até mesmo coisas que muitas vezes nos parecem bobas ... e que pareceriam bobas para qualquer pessoa ....

O tempo passa e em um determinado momento, algo ines-perado acontece, e nossa prioridade é lutar, é ser forte, é mos-trar para nós e o mundo, que podemos, é mostrar que temos capacidade, e que somos realmente fortes, muito fortes, e que apenas precisamos querer...

Com certeza no primeiro momento, é difícil, e nos parece impossível, mas é evidente que vamos conseguir desde que, nossa prioridade seja lutar e vencer, desde que, nossa priori-dade seja viver ...

Sobre a vida a dois .....

Do texto - Verdades adormecidas (Lay Faggundes)

Hoje é um daqueles dias em que a gente só quer e só pre-cisa de um pouquinho de paz...

Sabemos que as discussões, os problemas, e a vida real, estão todos ali adormecidos, e intactos, em seus devidos lugares, ficam quietinhos como se fossem monstros que cercam sua presa...

Temos a certeza de que em algum momento, em um deter-minado espaço de tempo eles voltarão à tona como se emer-gissem das profundezas, e nos abocanham nos sufocam e nos fazem sentir medo... Medo de agir, medo de amar, medo de sentir medo, medo de nós mesmos...

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Então ficamos medindo as palavras, as ações, e até mesmo os movimentos, esperando que os monstros fiquem adorme-cidos e nos deixem em paz...

De repente, uma palavra intercalada e mal colocada em um contexto “nada a ver” faz tudo desmoronar, e os monstros adormecidos, despertam, agridem, machucam, não fisicamente, machucam nossa alma, nossos sentimentos, nosso coração...

Depois disso, os pensamentos, os sentimentos, se transfe-rem, migram de uma pessoa para outra, sem que possamos fazer absolutamente nada para detê-los...

Para pensar ....

Do texto - Coisas inúteis - Lay Faggundes

No momento que construímos uma casa e a organizamos, levamos ou procuramos levar para dentro dela, o necessário. Colocamos cada coisa em seu devido lugar, até mesmo aquele quadro, que penduramos juntos na parede, depois de uma pe-quena discussão, de qual seria o melhor lugar para ele.

Nela colocamos nossos filhos, nossos amigos, nossos so-nhos, nossa vida, e pensamos que com isso ela estará comple-ta e seremos felizes.

E ela realmente está completa e feliz. Mas com o passar do tempo começamos a jogar para den-

tro desta casa, coisas desnecessárias, e a vamos entulhando cada vez mais, cada vez mais.

Então aquela casa que a princípio estava aconchegante e boni-ta torna-se um verdadeiro seleiro, abarrotado de inutilidades.

De repente nela não tem mais lugar para os nossos filhos e não nos demos conta disso, não temos mais lugar para os nossos amigos, não temos mais lugar para os nossos sonhos, e muitas vezes perde-mos, em meio ao amontoado, até aquele gostoso direito de sonhar.

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Quando perdemos esse direito, e quando não temos mais dentro dela, os filhos, os amigo, os sonhos, e nos resta apenas à vida, infelizmente esta vida se torna tão inexpressiva, e tão pequena, que muitas vezes pensamos que ela também acabará perdida, em meio ao amontoado de coisas inúteis.

Sobre a instituição “casamento”

Do texto: Nossa historia é um abraço!!!! Adaptação: Lay Faggundes

...Eu fico pensando, sempre que posso parar, o que fiz a minha vida inteira, o que estou fazendo agora com toda a consideração que merece a nossa história.

Se as irritações são válidas, se as concessões são sábias, se as intervenções são sóbrias, se a maneira de conduzir é a for-ma de tornar tudo isso mais sólido.

E, enquanto reflito, entro em contato com coisas que an-tes não eram tão óbvias: ciúmes, isolamento do resto do mun-do, um cuidado profundo com tudo, um medo do conflito, a restrição do caos, e uma felicidade besta, repentina, no meio da tarde, da madrugada, no meio de tudo.

E eu fico pensando como as coisas funcionam, em que teia elas são tecidas, como são as ligações, quando é que o sentido delas se torna mais evidente...

Fico pensando se não somos tão carentes ao ponto de não viver melhor sem alguém. E há tanto medo de viver achando que essa escolha é uma prisão.

Mas eu lembro-me de nós dois, enquanto penso nisso tudo, na nossa caminhada diária, nessa liberdade quase im-posta de saber-se poder ir embora quando ficar juntos não for mais tão essencial.

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Eu lembro então que se estamos juntos, é porque, todos os dias, ao acordar e nos olharmos nos olhos tão vulneráveis, nós fazemos novamente a mesma escolha de ontem, e cumprimos o resto do dia alimentando esse 'estarmos juntos'.

Eu fico pensando nos nossos ajustes em meio a toda essa tentativa de acertar. E acho que se esse ainda não é o caminho certo, pelo menos, é o mais bonito por enquanto. E o que me deixa mais inteira, a cada passo. E fico pensando enquanto avan-ço: construímos juntos a mesma estrada ... e penso que devemos terminá-la juntos, assim, tranqüilamente em um abraço ....

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