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100 Revista Alpha, Patos de Minas, 18(1):100-117, jan./jul. 2017 © Centro Universitário de Patos de Minas Imaginário sobre corpos desviados no jornal Folha Universal WELLTON DA SILVA DE FATIMA Mestrando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (LAS/CAPES). e-mail: [email protected] INTRODUÇÃO ste trabalho se fundamenta no aparato teórico-metodológico da Análise de Discurso de linha francesa inaugurada a partir dos estudos de Michel Pêcheux. A proposta principal é produzir uma reflexão sobre o imaginário que se constitui sobre corpos não heterossexuais e não cisgêneros, o qual se mate- rializa nos dizeres da coluna “Antes e depois” do jornal Folha Universal, tendo pres- supostas as noções do funcionamento discursivo do/no religioso na mídia quando os temas em questão são gênero e/ou sexualidade. Para tanto, fazemos uma breve discussão sobre o funcionamento do dis- curso religioso e da religiosidade na mídia, trazemos algumas questões sobre as igrejas neopentecostais, especificamente sobre a Igreja Universal do Reino de Deus e sua crescente apropriação das mídias. Em seguida, destacamos alguns elementos que contribuem para a reflexão a respeito do gênero e sexualidade em uma pers- pectiva discursiva. Finalmente, procedemos à análise do corpus, o qual se constitui de enunciados recortados de uma edição do jornal Folha Universal, da Igreja Uni- versal do Reino de Deus, em que se tematizam gênero e sexualidade em forma de narrativa e de relato de experiência. REFLEXÕES ACERCA DO OBJETO 1. A IGREJA E O JORNAL A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) pode ser considerada uma fiel representante da corrente cristã neopentecostal brasileira, não somente por ser a primeira igreja no país a se caracterizar de acordo com essa nova proposta de re- lação com o divino, mas por ser, ainda hoje, uma das maiores instituições religiosas do país ainda em potencial de crescimento. E

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IMAGINÁRIO SOBRE CORPOS DESVIADOS NO JORNAL FOLHA UNIVERSAL

100

Revista Alpha, Patos de Minas, 18(1):100-117, jan./jul. 2017

© Centro Universitário de Patos de Minas

Imaginário sobre corpos desviados

no jornal Folha Universal

WELLTON DA SILVA DE FATIMA

Mestrando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense

(LAS/CAPES). e-mail: [email protected]

INTRODUÇÃO

ste trabalho se fundamenta no aparato teórico-metodológico da Análise de

Discurso de linha francesa inaugurada a partir dos estudos de Michel

Pêcheux. A proposta principal é produzir uma reflexão sobre o imaginário

que se constitui sobre corpos não heterossexuais e não cisgêneros, o qual se mate-

rializa nos dizeres da coluna “Antes e depois” do jornal Folha Universal, tendo pres-

supostas as noções do funcionamento discursivo do/no religioso na mídia quando

os temas em questão são gênero e/ou sexualidade.

Para tanto, fazemos uma breve discussão sobre o funcionamento do dis-

curso religioso e da religiosidade na mídia, trazemos algumas questões sobre as

igrejas neopentecostais, especificamente sobre a Igreja Universal do Reino de Deus

e sua crescente apropriação das mídias. Em seguida, destacamos alguns elementos

que contribuem para a reflexão a respeito do gênero e sexualidade em uma pers-

pectiva discursiva. Finalmente, procedemos à análise do corpus, o qual se constitui

de enunciados recortados de uma edição do jornal Folha Universal, da Igreja Uni-

versal do Reino de Deus, em que se tematizam gênero e sexualidade em forma de

narrativa e de relato de experiência.

REFLEXÕES ACERCA DO OBJETO

1. A IGREJA E O JORNAL

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) pode ser considerada uma fiel

representante da corrente cristã neopentecostal brasileira, não somente por ser a

primeira igreja no país a se caracterizar de acordo com essa nova proposta de re-

lação com o divino, mas por ser, ainda hoje, uma das maiores instituições religiosas

do país ainda em potencial de crescimento.

E

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A igreja dispõe atualmente de diversos canais de mídia dentre os quais des-

tacamos o Jornal Folha Universal, objeto de nosso estudo, canais de rádio, e até uma

emissora de TV aberta, a Rede Record, que, embora não esteja registrada no nome

da IURD, tem como dono Edir Macedo, o principal nome e maior autoridade reli-

giosa da instituição.

Entendemos, a partir disso, que a IURD considera as mídias importantes no

seu fazer religioso que, por sua vez, consiste na prática da evangelização: “todas

as pessoas do mundo têm que conhecer a Palavra de Deus”. A comunidade religi-

osa se amplia na medida em que se conquistam mais fiéis, seja tendo a mídia como

ferramenta, seja pelo corpo a corpo nas ruas, por exemplo, em que os fiéis proce-

dem à distribuição das edições semanais do jornal somado a um convite de visita

à IURD mais próxima.

Essa relação com as mídias, no entanto, não se inaugura com a IURD. É pos-

sível afirmar que a relação de que tratamos encontra uma memória na Reforma

Protestante como acontecimento discursivo1. Basta lembrar que popularizar a leitura

da Bíblia (entendida aqui como uma entrada para a ampla comunicação) era um

dos carros-chefes do movimento que inaugura as igrejas evangélicas, como hoje

são compreendidas.

A respeito disso, afirma-se que

a história dos evangélicos está ligada, desde o seu início no século XVI, mais que a

dos católicos romanos, às novas tecnologias de comunicação social. Surgindo como

uma força minoritária dentro do campo religioso católico romano, e aliados à mo-

dernidade, os evangélicos precisaram criar, desde cedo, estratégias para ganhar

adeptos e aumentar seu rebanho na guerra contra outras modalidades de cristia-

nismo […] (Campos, 2003, p. 148).

O jornal Folha Universal, portanto, se constitui como um desses meios pelos

quais a IURD pretende disseminar a sua doutrina e angariar mais fiéis para suas

igrejas.

A prática da evangelização é o meio pelo qual os fiéis tomam as ruas para

falar ao próximo a Palavra de Deus. A Palavra a ser entregue, tradicionalmente, no

meio cristão, vem adjunta a uma forma impressa: um panfleto ou um santinho.

Compreendemos que o jornal funciona como uma espécie de panfleto, pois é du-

rante as evangelizações nas ruas e nas portas das igrejas que ocorre a sua distribui-

ção de maneira gratuita e deliberadamente relacionada a difundir as ideias da

1 Pêcheux (2015 [1983]) define essa noção como o “ponto de encontro de uma atualidade e

uma memória” (p. 16). Para nós, a Reforma Protestante irrompe deslocando o funciona-

mento do religioso e possibilitando novas discursividades.

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igreja, aquilo que ela prega.

Muitos estudos em Análise de Discurso têm se dedicado à compreensão do

discurso jornalístico em suas modalidades. Destacamos, para auxiliar na reflexão

pretendida, um deles pela importância e atualidade que a ele se pode conferir.

Nele, Mariani (1996) discute a relação entre narrativa, memória e discurso jorna-

lístico com o intuito de observar a eficácia dessa relação no âmbito do político a

respeito do comunismo e dos comunistas.

Sobre essa modalidade de discurso, a autora diz que “[...] o discurso jorna-

lístico, enquanto forma de manutenção de poder, atua na ordem do cotidiano, pois

além de agendar campos de assuntos sobre os quais os leitores podem/devem pen-

sar, organiza direções de leituras para tais assuntos” (Mariani, 1996, p. 106). Para

a autora o poder de que se fala é, em grande medida, o poder político. Para nós,

sobretudo, esse poder está relacionado a certo estatuto pelo qual se busca atualizar

a veracidade da narrativa religiosa e dos riscos (por parte dos sujeitos) da não ade-

quação à doutrina que se prega.

O jornal Folha Universal, nessa perspectiva, funciona organizando os assun-

tos e as direções desses assuntos para o seu leitor. Resta dizer que o leitor cotidiano

desse jornal possui uma relação de identificação com ele: pode ser um fiel da pró-

pria IURD, ou de outras igrejas, ou alguém interessado em conhecer/seguir a dou-

trina religiosa.

A IURD mantém por meio do jornal e de outras mídias uma relação pela

qual se presentificam para os fiéis/leitores a narrativa religiosa e os valores morais

da igreja sem, no entanto, precisar obrigatoriamente enunciar a questão religiosa.

Desse modo, o jornal versa sobre muitos assuntos, dentre eles, moda, vida cotidi-

ana, tecnologia e artes. No entanto, os dizeres que circulam nessas notícias, artigos

etc., embora não enunciem de forma explícita a lógica religiosa cristã, também não

a confrontam – resguardadas as contradições.

Isso nos faz compreender que a identificação que se dá entre o leitor e o

jornal ocorre por vias da prática da evangelização. Não obstante, essa prática se

encontra diluída nos dizeres ali enunciados, tal como é pressuposto no funciona-

mento do discurso jornalístico.

No dia-a-dia, o leitor comum nem sempre tem como perceber os processos de fili-

ação de sentidos, i. e., os deslocamentos e re-alocamentos de memória, reforçando

a ilusão de unidade e transparência na relação das multiplicidades do presente e

das indicações do que pode vir a ser (Mariani, 1996, p. 106).

Os dizeres do jornal funcionam ideologicamente inscritos no domínio do

religioso, embora seu funcionamento seja imaginariamente projetado como o dis-

curso jornalístico, igualmente autoritário em sua tipologia (Orlandi, 1987), em que

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fala a voz do especialista, portanto, incontestável. Nesse caso, o especialista (a co-

lunista do jornal) também fala em nome de Deus, pois fala em nome da IURD que,

por sua vez, se apresenta como representante do divino no plano temporal.

Sobre os temas abordados pelo jornal, interessa-nos especificamente o mo-

mento em que se enuncia sobre gênero e sexualidade – questões contra as quais a

religiosidade, principalmente a cristã, historicamente tem se colocado, em virtude

de sua moralidade específica. Sem a pretensão de recuperar a forma como essa

relação se deu na história, contentamo-nos em salientar na análise alguns pontos,

para nós, importantes.

Partiremos do pressuposto de que a relação entre Igreja e sexualidade não

se dá de forma harmônica, mas marcada por um confronto ideológico acentuado

e não menos contraditório. É dessa forma também que a sexualidade aparece enun-

ciada no jornal Folha Universal.

Ao colocar a sexualidade como tema, mesmo sendo um tabu histórico no

âmbito do religioso, o jornal atua no direcionamento dos sentidos, organizando-os

sob a lógica pela qual funciona a instituição religiosa que assina o folhetim, no caso,

a IURD. Essa organização, no entanto, não se dá de forma neutra, ela é parte inte-

grante da leitura possível, já que atua nos processos de circulação dos sentidos. A

respeito desse processo, destacamos que

encontra-se, no discurso jornalístico, uma discursivização do cotidiano que se

apaga para o leitor […] e é nesta discursivização – um falar sobre de natureza ins-

titucional – que os mecanismos de poder vão tanto distribuindo os espaços de di-

zeres possíveis como silenciando, localmente, o que não pode e não deve ser dito.

(Mariani, 1996, p. 106).

Ao organizar esses mecanismos do que pode e não pode ser dito, conse-

quentemente o jornal atua ainda no estatuto da relação com os objetos simbólicos

que os fiéis, na condição de leitores, mantêm no fazer da interpretação.

É dessa forma que buscamos compreender os pontos aqui levantados em

uma edição do Jornal Folha Universal, na qual há uma matéria específica em que os

sentidos sobre gênero e sexualidade se inscrevem. Antes disso, no entanto, trare-

mos alguns pontos que interessam a este trabalho no que se refere às questões de

gênero e sexualidade sob o ponto de vista discursivo.

2. OS CORPOS: O GÊNERO E A SEXUALIDADE

Trabalhamos a noção de corpo na perspectiva da interpretação, isto é, de

como um determinado corpo e suas características, inscrito em uma rede de me-

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mória, é capaz de produzir significação sendo, portanto, um objeto simbólico pas-

sível de ser interpretado. Tal como são pensados os conceitos, por exemplo, de

língua, de gestos e até de voz na Análise de Discurso, refletimos sobre o corpo em

seu aspecto material, bordado pelo simbólico e passível de significância.

Compreendendo que a formação social em que estamos inscritos é majori-

tariamente constituída pela ótica da heterossexualidade e da cisgenereidade2, e que

essas, pela forma como a história se inscreve, se apresentam como normas sociais

a serem seguidas, partimos do pressuposto de que os corpos dos sujeitos, no exer-

cício de sua sexualidade, se constituem em relação à heteronormatividade: identifi-

cando-se com ela, ou rompendo, ainda que minimamente, com seu modo de ope-

rar. Na perspectiva da Antropologia, Foster (2001) diz que

por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heteros-

sexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade con-

jugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s)). Na esteira das impli-

cações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compulsório, sendo que, por

esse último termo, entende-se o imperativo inquestionado e inquestionável por

parte de todos os membros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimi-

dade às práticas heterossexuais (p. 19 apud Miranda, 2010).

No esquema posto pela heteronormatividade excluem-se muitas das pos-

sibilidades de vivência da sexualidade e de relação com a identidade de gênero

que possa existir para o sujeito. Ela pressupõe a lógica binária de gênero, segundo

a qual homem e mulher são categorias estanques, defendendo que no caminho

entre essas categorias não há possibilidades outras.

Essa lógica binária é também dada a partir de efeitos de sentido, ou seja, a

diferença entre os gêneros é construída discursivamente, “efeito de um processo

de interpelação complexo e contraditório” (Zoppi-Fontana, 2013) e é também atra-

vés desse complexo e contraditório modo pelo qual os sujeitos são interpelados

que refletimos sobre os sentidos produzidos no que se refere à sexualidade.

Há, no funcionamento das instituições, defesas deliberadas da hegemonia

da heterossexualidade. Compreendemos, portanto, que as instituições, tais como

as igrejas, que aqui mais nos interessam, se constituem a partir de um regime he-

terossexista, isto é, funcionando pela manutenção da heterossexualidade como

sentido hegemônico no que se refere ao desejo sexual.

2 Um termo relativamente novo nos estudos de sexualidade que está sendo utilizado para

designar pessoas não transexuais. Aquelas cujo gênero está identificado com o sexo de

nascimento.

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Esse regime [de gênero das sociedades ocidentais contemporâneas] é heterosse-

xual, e implica coerção, condicionamento, repressão a partir do momento em que

se acha ameaçado. As instituições velam por ele, chamando, segundo os casos e os

momentos, de “pecado”, “crime”, “doença mental”... O feminismo do final do sé-

culo XX resume tudo isso com a palavra “heterossexismo” (Bard, 2013, p. 140, col-

chetes nossos).

Derivando do modo como se compreende a construção discursiva dos sen-

tidos sobre as identidades de gênero e sobre as sexualidades, postulamos que há,

na perspectiva do trabalho simbólico de interpretação, o funcionamento eficaz de

um imaginário que, ao longo da história, vai se constituindo sobre os corpos dos

sujeitos. Os corpos em sua materialidade e dissintonia, portanto, são elementos

importantes para a compreensão de como um determinado sujeito é significado

em determinada formação social. Se, por um lado, esse imaginário se projeta sobre

os sujeitos heterossexuais e cisgêneros de maneira heterogênea, como se daria essa

projeção imaginária sobre aqueles corpos que funcionam segundo uma lógica afas-

tada do semanticamente estável, convocando para a interpretação um sentido que

era, até pouco tempo, imprevisível?

Para refletir um pouco sobre o objeto que propomos analisar, é necessário

retornar a alguns elementos que remontam aspectos da constituição dos sujeitos

não heterossexuais e não cisgêneros e, ainda, dos sentidos sobre eles/elas.

Alguns autores têm se dedicado à questão da sexualidade na perspectiva

discursiva, dentre eles, é possível destacar, para o entendimento de uma história

recente, Ferrari (2006), analisando o imaginário sobre os homossexuais nas revistas

em uma pretensa relação com a AIDS.

O autor diz que “naquela década, para se falar do sujeito homossexual e do

seu estilo de vida, falava-se, necessariamente, em doença, em pecado e em crime”

(Ferrari, 2012, p. 10). Essa época são os anos 1980, período ao qual o autor se dedica

a analisar.

Compreendemos que essas dimensões que aponta Ferrari (a da doença, a

do pecado e a do crime) funcionam discursivamente através de uma memória que

constitui o imaginário do que é ser homossexual. A medicina, a religião e o jurídico,

respectivamente, são discursos pelos quais os corpos não-heterossexuais ganham

significação.

O imaginário de que falamos se constitui na contradição da lógica binária

de gênero que, por sua vez, se constitui na ilusão da homogeneidade do que é ser

um homem ou uma mulher e, ainda, na ilusão de que não há nada para além des-

sas duas possibilidades.

No entanto, na forma como são discursivamente construídas as posições de

homem e mulher há elementos para refletir sobre como outras manifestações de

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gênero e sexualidade podem ser significadas, ditas ou mal ditas. Bard (2013), ao

refletir sobre a virilidade no espelho das mulheres, diz que “sua eficácia (a do es-

pelho) repousa na interiorização precoce das normas de gênero, que modelam em

seguida o desejo” (Bard, 2013, p. 116). Nesse sentido, embora orientação sexual e

identidade de gênero sejam questões distintas e independentes uma da outra, no

imaginário que se tem sobre gênero e sexualidade elas se constituem juntas e são

interdependentes, de acordo com o modelo hegemônico cisgênero e heterossexual.

Todavia, sendo a sexualidade uma das formas pelas quais o desejo se co-

loca em prática, no decorrer da história há deslocamentos na maneira de pensá-la

que advém da percepção de outra posição, da insurgência de novos sentidos pos-

síveis. Essas novas possibilidades de significar o corpo surgem, em grande medida,

a partir dos movimentos de mulheres que colocam no âmbito do público e da dis-

cussão coletiva a pauta dos seus corpos e de sua sexualidade. “No final do século

XX, uma outra maneira de ver o gênero – que se torna conceito central do pensa-

mento feminista – aparece: dissociando mais fortemente do que no passado o sexo

e o gênero, assim como o sexo e a sexualidade [...]” (Bard, 2013, p. 117).

É perpassando esses movimentos, então, que vão se tornando possíveis ou-

tras maneiras de se perceber o gênero e a sexualidade para além da determinação

da medicina, do jurídico e do religioso. No entanto, os sentidos sobre a doença, a

criminalidade e o pecado, conforme demonstramos na nossa análise, continuam

constituindo o imaginário do que é estar fora da lógica heteronormativa.

Tendo exposto algumas breves reflexões iniciais acerca da nossa aborda-

gem do gênero e da sexualidade em uma perspectiva discursiva, explicitaremos o

aparato teórico-metodológico pelo qual propomos esta análise.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A Análise de Discurso, conforme expõem seus principais teóricos, é uma

disciplina que se constitui no entremeio das ciências humanas e sociais, mobili-

zando três regiões do conhecimento (Linguística, Marxismo e Psicanálise), em prol

de uma nova proposta de leitura na qual há um deslocamento de algumas concep-

ções, tais como língua, sujeito e história. Conforme disserta Mariani (1996),

a AD se propõe a discutir e a definir a linguagem e a natureza da relação que se

estabelece com a exterioridade, tendo em vista seu objetivo principal de compre-

ender os modos de determinação histórica dos processos de produção dos sentidos

na perspectiva de uma semântica de cunho materialista (Mariani, 1996, p. 21).

A língua, portanto, é pensada a partir de sua relação com aquilo que vem

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da história, ou seja, como os sentidos são produzidos e inscritos em uma determi-

nada materialidade. Essas noções são atravessadas pela psicanálise no sentido de

propor conceitos que pressuponham o funcionamento do inconsciente. Para a

Análise de Discurso não há um sujeito pleno, dono de seu dizer, pois este é afetado

pela instância do inconsciente.

Ao colocar-se na perspectiva materialista, a teoria também trabalha com a

noção de interpelação pela Ideologia, conforme propõe Althusser (1974). Pêcheux,

em seu esforço teórico, trabalha a noção de Ideologia como estrutura-funciona-

mento, fornecendo para o sujeito as evidências na construção dos sentidos. De

acordo com o autor:

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais 'todo mundo sabe' o que é um

soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc... evidências que

fazem com que uma palavra ou enunciado 'queiram dizer o que realmente dizem'

e que mascaram, assim, sob a 'transparência da linguagem' aquele que chamare-

mos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados (Pêcheux, 1995

[1975], p. 160).

É através do funcionamento da Ideologia que “todo mundo” sabe o que é,

por exemplo, um homem e uma mulher. É dessa forma que a noção de discurso, à

diferença de outras disciplinas de interpretação, se define como “efeitos de senti-

dos (e não transmissão de informação) entre os interlocutores” (Pechêux, 2014

[1969], p. 82). Orlandi, relendo Pêcheux (1988 [1975]), diz que “essa relação se com-

plementa com o fato de que […] não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem

ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a lín-

gua faz sentido” (Orlandi, 2013, p. 17).

Nessa proposta de leitura, somos levados a pensar, mediante a interpelação

pela ideologia, sobre o estatuto da interpretação. A respeito disso, Orlandi diz que

o fato mesmo da interpretação, ou melhor, o fato de que não há sentido sem inter-

pretação, atesta a presença da ideologia. Não há sentido sem interpretação e, além

disso, diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a interpretar, colo-

cando-se diante da questão: o que isto quer dizer? (Orlandi, 2013, p. 45).

Dentre diversos conceitos e noções importantes, destacamos algumas que

serão preciosas para a reflexão que pretendemos. Ainda sobre a Ideologia, a Aná-

lise de Discurso compreende que seu funcionamento também se dá em caráter “re-

gional”, em sua concretude, através das formações ideológicas.

Compreende-se, então por que em sua materialidade concreta, a instância ideoló-

gica existe sob a forma de formações ideológicas [...] que, ao mesmo tempo, possuem

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IMAGINÁRIO SOBRE CORPOS DESVIADOS NO JORNAL FOLHA UNIVERSAL

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um caráter 'regional' e comportam posições de classe: os 'objetos' ideológicos são

sempre fornecidos ao mesmo tempo que a 'maneira de se servir deles' – seu sentido

[...] (Pêcheux, 1995 [1975], p. 145).

As formações ideológicas, portanto, organizam a forma concreta do funci-

onamento da Ideologia. Afetados pela ideologia no nível regional das formações

ideológicas, os sujeitos podem ou não, por exemplo, identificar-se com outras for-

mas de expressão do gênero para além de homem e mulher, a depender de como

se constitui essa lógica em sua formação social.

Outra noção importante é a de formação discursiva, compreendida como

em consonância, no nível do discurso, das formações ideológicas. Pêcheux define

essa noção como “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de

uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo espaço da luta de

classes, determina o que pode e deve ser dito [...]” (Pêcheux, 1995 [1975], p. 160).

Também é cara ao nosso trabalho a noção de formações imaginárias, pela

qual estão projetadas as relações de sentido, de força e os mecanismos de anteci-

pação. Dessa noção, operando junto ao conceito de tipologia discursiva (Orlandi,

1987), observamos sobretudo as relações de força, através das quais “podemos di-

zer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz” (Orlandi,

2013, p. 39).

Dessa forma, e visando uma proposta de leitura que vá além do conteúdo,

nos colocamos diante dos corpos como objetos simbólicos e, portanto, passíveis de

se inscreverem em redes de memórias e serem interpretados. Aliás “[...] a Análise

de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos,

como ele está investido de significância para e por sujeitos” (Orlandi, 2013, p. 26).

Investigamos a questão do trabalho simbólico principalmente no que se refere ao

caráter material da linguagem, ou seja, através dos enunciados, afinal “a língua,

do ponto de vista da AD, constitui a base material de processos discursivos, que

[…] são processos de produção de significação fortemente articulados com proces-

sos sócio-históricos” (Mariani, 1996, p. 29).

Amparados pelo aparato teórico sobre o qual discorremos, ainda que bre-

vemente, passamos à nossa análise.

ANÁLISE: CORPOS DESVIADOS E O IMAGINÁRIO POSSÍVEL

NA MÍDIA PELO DISCURSO DA IURD

Corpos desviados, para nós, são aqueles cujos gestos, expressões e perfor-

mances não se inscrevem em uma rede de memória própria de uma formação so-

cial majoritariamente cis/heteronormativa e identificada com a lógica binária de

gênero. Ou seja, são corpos desviados do padrão de identidade de gênero e de

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orientação sexual, constituídos fora da ilusão de que não há possibilidade de sen-

tido no caminho, historicamente apagado, entre o feminino e o masculino e vice-

versa.

A questão que nos move ao analisar a matéria “Eu agia como um homem

para me sentir segura” da edição 1150 do Jornal Folha Universal, que circulou entre

20 e 26 de abril de 2014, é compreender como a mídia impressa religiosa, signifi-

cada no religioso e no jornalístico, fornece elementos para a constituição de um

imaginário sobre os corpos desviados.

A matéria, em sua chamada principal, faz um convite para que o leitor

“saiba o que levou a bela Juliana Aires a ser tão agressiva e a ter adotado compor-

tamentos masculinos”. O editorial vem acompanhado de imagens de duas fases

distintas da vida de Juliana: em uma, ela se veste de acordo com o que se entende

por roupas de homem, e na outra, ela se veste de acordo com o que se entende por

roupas de mulher. Um “antes e depois”, respectivamente, tal como pressupõe o

nome da coluna.

Este espaço “Antes e depois” não comparece no jornal todas as semanas.

Apesar de o periódico ser semanal, a coluna é publicada como uma espécie de

editorial especial, embora se encaixe “no modo de dizer ao leitor” que corriqueira-

mente se constitui no interior do jornal. Há algumas repetições em relação a outras

colunas, na forma como a matéria se delineia.

Uma dessas repetições nas quais estamos observando um modo de operar

peculiar do jornal reside na “insistência” em trazer a exposição do referente dis-

cursivo mesclado aos relatos de experiência de quem se fala. Ou seja, o colunista

divide o seu dizer com o dizer de Juliana e com o dizer sobre Juliana, que é de

quem se fala. Os três juntos constituem o dizer da coluna.

Observemos a primeira sequência discursiva recortada da matéria:

SD1: “'Eu te odeio porque você se transformou em um monstro'. Essa foi a gota d'água para

a universitária Juliana Aires, de 25 anos, querer mudar de vida. A sobrinha que ela criou

desde pequena, disse isso depois de ter sido agredida por ela. Com um histórico de carência,

complexo de inferioridade, envolvimento com drogas e agressões físicas, Juliana, em um

momento de raiva, bebeu vinho pensando ser o sangue da própria sobrinha e do namorado

dela. Um episódio que ela lembra com muita dor. 'Ouvi uma voz que falava para matá-la

enquanto ela dormia. Na hora não consegui, mas a voz insistia.' E para não cometer um ato

pior, Juliana decidiu mudar da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, abandonou a fa-

culdade e foi embora para Morro Redondo, cidade próxima, para a casa do tio. Mas, depois

de 'cair na real', a estudante pediu ajuda para a mãe, que, desesperada, levou a filha a um

sanatório.” (Folha Universal, edição 1150, 20-26/04/2014).

Atentemos, na sequência discursiva acima, para a distribuição entre os di-

zeres do colunista e os dizeres da pessoa de quem se fala. Compreendemos que

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IMAGINÁRIO SOBRE CORPOS DESVIADOS NO JORNAL FOLHA UNIVERSAL

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essa prática se dá como um testemunho religioso, uma espécie de relato de expe-

riência em que o fiel conta a provação sofrida ou a benção recebida no intuito de

renovar a fé da comunidade através da experiência vivenciada.

Estando a comunidade representada, nessa circunstância, pelo leitor/fiel, a

organização desses dizeres na forma como eles se constituem atua produzindo o

efeito de verdade: além da voz do jornalista, em que fala o saber do especialista, e

da voz do religioso (a IURD), em que fala a voz de Deus, há também a voz de Juliana,

em que fala a voz da experiência vivida. Esse efeito de verdade decorre da tipolo-

gia discursiva (Orlandi, 1987): o discurso jornalístico e o discurso religioso são mo-

dalidades de discurso autoritário, tendendo a estancar a polissemia e anular a re-

versibilidade de posições (nesse caso em relação ao leitor/fiel). Compreendemos,

além disso, que o testemunho religioso como um relato de experiência, consti-

tuindo-se no interior dessas condições de produção imediatas, caracteriza-se,

igualmente, como um discurso autoritário, fato a partir do qual, para o leitor, é

criado um imaginário de experiência individual, portanto incontentável e inequí-

voca.

Gostaríamos de destacar ainda nessa primeira sequência discursiva a forma

como vai se delineando a utilização dos substantivos, dos adjetivos e dos verbos,

os quais esquematizamos no quadro abaixo. Compreendendo que essas três clas-

ses gramaticais são, na ordem da língua, fundamentais para a estruturação sintá-

tica das sentenças; portanto, para a compreensão do texto, entendemos, em conso-

nância com a Análise de Discurso, que a sintaxe não é indiferente ao sentido e que

a forma material dessas classes gramaticais atua no estatuto da interpretação ali-

mentando um imaginário que se fundamenta em memórias sobre o corpo tal como

discutimos no item “reflexões acerca do objeto”.

Observemos, na tabela a seguir, algumas dessas marcas discursivas que se

inscrevem a partir dos processos de substantivação/adjetivação e pelos operadores

verbais seguidos de seus complementos:

medicina/psicologia criminalidade espiritualidade/

religiosidade/sentimento

monstro odeio

transformou carência

complexo de inferioridade ter sido agredida

envolvimento com drogas

bebeu vinho pensando ser o sangue da própria sobrinha lembra com muita dor

momento de raiva ouvi uma voz

agressões físicas

falava para matá-la

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WELLTON DA SILVA DE FATIMA

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Além de organizar a sintaxe, a disposição desses elementos atua no estatuto

da interpretação, alimentando o imaginário que se tem sobre os corpos desviados

através das memórias que retornam da forma como esses corpos foram significa-

dos durante a história. São três os domínios discursivos pelos quais esses corpos

são significados: o domínio da medicina, o domínio do jurídico e o domínio do

religioso.

Um dos primeiros operadores verbais que aparecem na sequência discur-

siva é, justamente, uma conjugação do verbo “transformar”. Além da marca dis-

cursiva que se coloca através do sufixo “trans”, há, no imaginário social, a ideia de

“transformação”, em se tratando de pessoas transexuais. É a ideia de que se nasce

de uma forma para se transformar em outra pessoa, ou seja, em transexual, tal

como pressupõe a lógica heteronormativa.

A transexualidade é, nesse imaginário, um caminho pelo qual as pessoas

vão de um determinado gênero ao outro e não uma característica qualquer como

ocorre com a cisgenereidade. Apesar dessa memória sobre o “transformar”, o que

se segue é um processo, na utilização do substantivo, que se dá através de uma

metáfora. “Você se transformou em um monstro”. Em uma cadeia parafrástica

possível a partir da leitura da matéria, o lugar em que comparece o sintagma no-

minal “um monstro” é um lugar possível para o sintagma nominal “um/uma tran-

sexual”. Isso se dá, sobretudo, pela forma como essa designação é significada na

coluna “Antes e depois”.

De outro modo, com fronteiras não muito bem delimitadas e atravessadas

por outras discursividades, os sentidos sobre a medicina, o jurídico e o religioso

retornam intervindo na leitura dessas materialidades. Agressões físicas e desejo de

homicídio são algumas das materialidades que fazem ressoar os sentidos sobre a

transgressão do jurídico, isto é, sobre o crime. A escuta de vozes misteriosas com-

parece em uma mística característica da religiosidade. Os complexos, de que se

fala, remetem aos sentidos da doença, ou seja, ao domínio da medicina. Há, no

entanto, determinadas materialidades que se constituem no imbricamento dessas

discursividades pelas quais são historicamente significados os corpos desviados.

Quando, na sequência discursiva, se enuncia o “envolvimento com drogas”,

por exemplo, que se pode conferir tanto ao domínio da medicina, pela possibili-

dade da dependência química, quanto ao domínio da transgressão ao jurídico, pela

utilização de ilícito, imbricam-se, sem que fique explícito ao leitor os sentidos sobre

doença e criminalidade ao dizer sobre Juliana. Ademais, a colocação sintática do

sintagma nominal o coloca em um deslizamento metafórico possível que vai da

espiritualidade, perpassa o domínio da medicina, e chega à criminalidade: “carên-

cia”, “complexo de inferioridade”, “envolvimento com drogas e agressões físicas”,

“momento de raiva”, “bebeu vinho pensando ser o sangue da própria sobrinha e

do namorado dela”.

Analisemos, agora, a segunda sequência discursiva na qual o editorial se

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IMAGINÁRIO SOBRE CORPOS DESVIADOS NO JORNAL FOLHA UNIVERSAL

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coloca a contar “como tudo começou”.

SD2: “Com uma vida vazia, sem objetivos, Juliana se isolava de todos à sua volta, 'vivia de

aparência' e aos 10 anos começou a sentir desejo de ser homem e passou a se vestir como tal,

pois assim se sentia segura e protegida. Levando uma vida de mentiras, se envolveu com

pessoas erradas e chegou a ser ameaçada de morte pelo pior traficante do bairro onde morava”

(Folha Universal, edição 1150, 20-26/04/2014).

Nos dizeres do jornal, ao contar a história de Juliana, novamente se entre-

laçam os três domínios que percebemos no funcionamento da SD1. Na SD2, esses

sentidos se materializam no que está dito sobre o isolamento de Juliana, presenti-

ficando sentidos sobre angústia, depressão, além do “desejo de ser homem” signi-

ficado no domínio da psicologia e do comportamento. Comparecem na ameaça de

morte sofrida pelo traficante os sentidos sobre o envolvimento com a criminali-

dade. Por último, presentifica-se a religiosidade em um modus operandi caracterís-

tico da IURD como uma igreja neopentecostal, através da suscetibilidade ao “mal

espiritual” em que encontra Juliana a partir de suas supostas confusões psicológi-

cas e envolvimento com o crime.

Na SD2, portanto, através do encadeamento sintático, tal como pressupõe

Mariani (1996), ao teorizar acerca do discurso jornalístico, organizam-se as dire-

ções de sentidos pelas quais é enunciada a condição de Juliana. Ao contar a história

da jovem, o jornal, pela forma que enuncia, possibilita leituras a partir do que não

está dito: o “mal” que se expressa no corpo de Juliana, caracterizando-a como um

homem, advém de seu estado mental instável, de sua relação com o crime e de sua

potencial rendição ao mal espiritual. A possibilidade da transexualidade não é dita,

a não ser pelo “desejo de ser homem”, e fica apagada pela intervenção de sentidos

advindos dos três domínios que até aqui temos comentado.

Na SD3, a próxima sequência discursiva, analisamos a forma como qualquer

possibilidade para além da cis/heteronormatividade vai se estabilizando como

sentido impossível.

SD3: “Toda essa necessidade de se ‘passar’ por homem escondia o fato de que ela era uma

garota carente, sem referência de pai e com uma mãe bastante envolvida com o trabalho, o

que fez com que Juliana convivesse apenas com o seu irmão e amigos dele. Quando sua

sobrinha nasceu, a pouca atenção que recebia da mãe deixou de existir já que ela só tinha

olhos para a neta. Com raiva disso, Juliana chegou a agredir a mãe fisicamente e passou a

agir exatamente como um homem” (Folha Universal, edição 1150, 20-26/04/2014).

A sequência discursiva inicia-se com uma partícula indefinida “toda”, que

funciona também como partícula indefinidora na sentença, ou seja, “toda essa ne-

cessidade” que não se sabe qual é, mas que funciona, pois estamos inseridos no

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plano espiritual, decorre de: carência, ausência de referência de pai e do fato de a

mãe trabalhar, por exemplo. A transexualidade não é um sentido possível de ser

dito, ela fica apagada em um processo discursivo que perpassa o “se passar por” e

não “ser, de fato”. A identidade de gênero para além da cisgenereidade, no imagi-

nário da coluna, é enunciada como farsa.

Os sentidos advindos da heteronormatividade são fortemente presentifica-

dos nessa sequência discursiva. É através dela que, como vimos, funciona a ideia

de família nuclear (pai, provendo o lar; mãe, cuidando do lar; e filhos). O fato de

não haver pai e de a mãe trabalhar, por exemplo, é motivo para que a jovem esteja

suscetível ao mal espiritual que, por sua vez, consiste em “agir exatamente como

um homem”.

A última questão que gostaríamos de observar nessa sequência discursiva,

mas que não se reserva a ela, marcando-se repetidamente ao longo de toda a ma-

téria, é a relação de sentido dentro dos períodos e das orações que se dá por desli-

zamento metafórico. No último período enunciado na sequência discursiva, “Com

raiva disso, Juliana chegou a agredir a mãe fisicamente e passou a agir exatamente como

um homem”, o que se tem é uma relação de sentido possível a partir do encadea-

mento sintático, ou seja, a raiva, a agressão à mãe, e o fato de agir como um homem

funcionam juntos e em uma contiguidade.

Esse efeito de sentido se dá, em grande parte, pelo funcionamento da ora-

ção coordenada: a oração coordenada assindética e a oração coordenada sindética

aditiva possuem uma estrutura muito similar. A utilização de um mesmo sujeito,

de verbos de ação e seus respectivos complementos permite, ainda que a conjun-

ção seja aditiva e devido ao encadeamento sintático que veio se constituindo ao

longo da sequência discursiva, a possibilidade de uma leitura a partir de uma es-

trutura conclusiva, isto é, “chegou a agredir a mãe fisicamente [logo] passou a agir

exatamente como um homem”. Renova-se, dessa forma, a relação da identidade

de gênero com a transgressão ao jurídico através do crime de agressão.

Observemos, agora, a quarta sequência discursiva recortada da coluna

“Antes e depois” com a matéria que temos analisado:

SD4: “Como toda verdadeira mudança não começa de fora para dentro, a estudante precisou

sofrer muito para reconhecer que somente uma transformação interior poderia tirá-la da-

quela vida e foi o que ela fez. Certo dia, sua mãe a levou a uma Universal e, aos poucos, ela

percebeu que as atitudes erradas que antes adotava estavam ficando no passado. E ao apren-

der o que é certo foi se livrando dos ressentimentos de ódio, mágoa, tristeza, angústia, vícios

e do desejo que tinha de tirar a vida das pessoas” (Folha Universal, edição 1150, 20-

26/04/2014).

Nessa sequência discursiva destacamos que, assim como na SD1, reincidem

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IMAGINÁRIO SOBRE CORPOS DESVIADOS NO JORNAL FOLHA UNIVERSAL

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sobre os dizeres formulados, novamente, os sentidos sobre “transformação”. To-

davia, diferentemente do que ocorre no funcionamento dessa materialidade na SD1,

na SD4 fala-se sobre uma transformação espiritual, portanto, interior. Não por

acaso, a estrutura sintática que envolve essa materialidade se inscreve também de

forma diferente. Na SD1, como um verbo transitivo conjugado, a materialidade é

seguida por um complemento que, como mostramos, possibilita um lugar cambi-

ável através de uma cadeia parafrástica. De outra forma, na SD4, ao comparecer em

uma forma nominal, o “atributo de se transformar”, em se tratando de uma trans-

formação anterior, aparece tendendo à monossemia, ou seja, todo mundo sabe que

tipo de transformação é essa e, aparentemente, não há outra possível que seja tão

real e verdadeira quanto essa.

Novamente ressaltamos, através do deslizamento metafórico possível, o

encadeamento sintático da sequência discursiva, em que: vestir-se como homem,

não somente é enunciado como uma atitude errada, mas para se livrar disso foi

necessário se livrar, como em uma injunção, do ódio, da mágoa, da tristeza, da

angústia, dos vícios e do desejo que tinha de tirar a vida das pessoas. No imaginá-

rio que aqui se constitui sobre os corpos desviados através da história da jovem

Juliana, vestir-se como um homem é algo de que se possa livrar tal como do ódio

e do desejo de matar.

Finalmente, em nossa última sequência discursiva, analisamos como se dá

o desfecho da narrativa, quando Juliana, de acordo com o que diz a matéria, já teve

seu contato com a IURD e já teria compreendido que suas atitudes eram erradas.

SD5: “Hoje, Juliana é virtuosa, segura e sem complexos. 'Não tenho mais dúvida em relação

à minha opção sexual. A Juliana agressiva que existia antes não existe mais, nem voltará a

existir. Tenho paz com a minha família e alegria de viver', comenta” (Folha Universal,

edição 1150, 20-26/04/2014).

Se por um lado, os sentidos de identidades de gênero e de suas expressões

para além do modelo cisgênero não se materializam no editorial, por outro lado,

nessa sequência discursiva eles aparecem confundidos com a noção de “opção se-

xual”. Ao trabalhar com a noção de “opção”, convoca-se para o imaginário sobre

os corpos desviados a possibilidade de escolha no que se refere ao gênero e à se-

xualidade. Não obstante, se é uma escolha, uma opção, não se configura como uma

“verdadeira transformação” tal como enunciada na SD4. Enunciar a expressão de

gênero como opção sexual é, mais uma vez, um modo pelo qual funciona o apaga-

mento das possibilidades para além do binarismo de gênero, ou da possibilidade

da transexualidade no jornal.

De outro modo, e retomando os três domínios discursivos pelos quais os

corpos desviados são significados, o imaginário sobre o religioso, o médico e o

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jurídico seguem comparecendo. O domínio da medicina se inscreve a partir da

noção de cura, advinda da expressão “opção sexual” – se o gênero e a sexualidade

são características pelas quais se pode optar, é também algo que se pode reverter,

anular, curar. O domínio do jurídico comparece através da não transgressão, ao

enunciar a “nova Juliana” após o contato com a IURD no que se enuncia: “A Juliana

agressiva que existia antes não existe mais, nem voltará a existir”. Por último, o

domínio religioso se materializa na ideia da “Juliana virtuosa”, portanto gozando

dos atributos de verdadeira fiel e de acordo com a doutrina religiosa após a cura

espiritual proporcionada pelo contato com a IURD.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, gostaríamos de salientar que o objetivo deste trabalho foi uma aná-

lise discursiva sem qualquer pretensão prescritiva. Não nos colocaríamos na posi-

ção de dizer o que, em matéria de identidade e sexualidade, é mais conveniente ou

não para a jovem de quem se fala. Pelo contrário, partimos do que diz o jornal, em

sua materialidade significante, para investigar as leituras possíveis e o imaginário

constituído a partir do que está dito, e também daquilo que não está, mas que sig-

nifica.

Os dizeres da coluna “Antes e depois”, da edição 1150 do Jornal Folha Uni-

versal, funcionam no imbricamento e nas intersecções dos três domínios discursi-

vos pelos quais os corpos desviados vêm sendo significados: o da medicina, o do

jurídico e o do religioso. Em sua forma de dizer específica e em seu caráter autori-

tário, sobreposto por um funcionamento do dizer no religioso, o jornal atua na cir-

culação do imaginário sobre a identidade de gênero e a sexualidade.

O nosso estudo em Análise de Discurso no que se refere às questões de

gênero e sexualidade tem ajudado na compreensão dos modos de significação des-

sas questões historicamente tão controversas no âmbito do religioso, mas que com-

parecem, retornam, como um dizer que não quer se calar.

Compreendemos, na ilusão de finalizar, que essa é uma análise possível,

que mobiliza apenas alguns dos conceitos possíveis no aparato teórico-metodoló-

gico da Análise de Discurso francesa. Esperamos, com essa análise, contribuir para

uma leitura menos conteudística e mais discursiva do funcionamento da lingua-

gem em sua injunção à história e ao sujeito.

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Artigo recebido em 14/06/2017; aprovado para publicação em 11/07/2017

RESUMO: Este artigo está ancorado na Análise de Discurso francesa desenvolvida por

Pêcheux (1995 [1975]), e consiste na análise de uma matéria veiculada na coluna “Antes e

depois” do Jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus. Refletimos sobre

o processo discursivo do jornal, sobre religiosidade, gênero e sexualidade. São analisadas

sequências discursivas da matéria com o objetivo de compreender como se constitui o ima-

ginário sobre o corpo, tendo em vista questões de gênero e sexualidade, considerando

ainda o funcionamento específico do discurso religioso.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso francesa. Folha Universal. Gênero e sexualidade.

ABSTRACT: Based on the French Discourse Analysis developed by Pêcheux (1995 [1975]),

this article consists of an analysis of a piece in the column called "Antes e depois" (“Before

and After”) at Folha Universal, the newspaper of the Igreja Universal do Reino de Deus. We

reflect on the discursive process of the newspaper, church, gender and sexuality. The dis-

cursive sequences are analyzed in order to understand how the imaginary on the body is

formed, considering gender and sexuality issues, and the specific functioning of religious

discourse.

KEYWORDS: Discourse Analysis. Folha Universal. Gender and sexuality.