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verificar medidas da capa/lombada
Na sua vasta maioria, as presentes crónicas são textos do autor, publicados no Diário as Beiras, durante os três últimos anos e no seguimento de um acordo estabelecido entre este jornal e as Lojas de Saber / Exploratório CCVC. Embora aparecendo no jornal na secção “Opinião” com a designação complementar de “Lojas de Saber: recordar e recrear”, não se trata de opiniões, mas de crónicas e relatos ficcionados. O aparecimento destas crónicas faz parte de uma lista de ações, nascidas na criação das Lojas de Saber e destinadas a incentivar os mais velhos a executarem tarefas motivadoras. A pouca adesão à escrita de crónicas, neste contexto, por parte dos idosos ligados às Lojas de Saber, acabou por fazer caír nos ombros do autor a tarefa de não deixar morrer a ideia. Esta veio a transformar-se numa iniciativa que mostrou ser do agrado dos leitores e ter a vantagem complementar de divulgar a existência das Lojas de Saber / Exploratório CCVC. A maioria destas crónicas tem uma base real e algumas delas a vivência pessoal dos factos. Talvez seja demasiado, da minha parte, desejar que o leitor tenha o mesmo prazer ao lê-las que eu senti ao criá-las mas, mesmo assim, faço esse voto.
JOÃO JOSÉ PEDROSO DE LIMA é Lic. em Ciências Físico-Químicas pela Univ. de Coimbra (1957), é Doutorado em Física pela Univ. de Manchester (1970), foi Prof. Cat. na FCTUC (1982) e Professor Cat. de Biofísica na FMUC (1986). É Doutor Honoris Causa pela Univ. de Aveiro (2004) e pela Univ. do Algarve (2011). Foi Presidente do Conselho Directivo do Departamento de Física da FCTUC, Director do Serviço de Biofísica/Biomatemática da FMUC, Presidente do Conselho Directivo do IBILI, membro do Conselho de Administração do AIBILI e Presidente do Conselho Científico da ESTESC. Foi o principal responsável pelo Projeto PET iniciado em 1994, financiado pelo programa Praxis XXI, que levou à criação do ICNAS, tendo sido o Presidente da Comissão Instaladora. Foram-lhe atribuídos 22 prémios científicos. É autor de 5 livros, co-autor de 11 livros, tem mais de 300 trabalhos publicados em revistas nacionais e internacionais, foi conferencista convidado em mais de 60 reuniões nacionais e internacionais. A sua jubilação ocorreu em Setembro de 2004.
Série Documentos
Imprensa da Universidade de Coimbra
Coimbra University Press
2015
CRÓN
ICAS AO ACASO
J. J. Pedroso de Lima
J. J. Pedroso de Lima
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA2015
9789892
610771
RÓNICAS AO ACASO
Versão integral disponível em digitalis.uc.pt
edição
Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail: [email protected]
URL: http//www.uc.pt/imprensa_ucVendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt
coordenação editorial
Imprensa da Univers idade de Coimbra
conceção gráfica
António Barros
imagem da capa
By Ildar Sagdejev (Specious) (Own work) (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0-3.0-2.5-2.0-1.0)],
via Wikimedia Commons
infografia
Mickael Silva
execução gráfica
Simões e Linhares, Lda.
iSBn
978 -989 -26 -1077 -1
iSBn digital
978 -989 -26 -1078 -8
doi
http://dx.doi.org/10.14195/978 -989 -26 -1078 -8
depóSito legal
402029/15
© novemBro 2015, imprenSa da univerSidade de coimBra
Versão integral disponível em digitalis.uc.pt
J. J. Pedroso de Lima
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA2015
RÓNICAS AO ACASO
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S u m á r i o
Prefácio .................................................................................................... 7
Introdução.............................................................................................. 11
Os fatos verdes ...................................................................................... 13
Ossos ..................................................................................................... 15
Sobre champôs ....................................................................................... 17
Alex ........................................................................................................ 21
A voz ...................................................................................................... 25
Adorar Mahler ........................................................................................ 27
A igreja verde......................................................................................... 31
Estou perdoado ...................................................................................... 35
Coisas estranhas ..................................................................................... 39
Mergulhão, meu filho! ............................................................................ 41
Fédor ...................................................................................................... 45
O acampamento ..................................................................................... 49
Caçada na Inhaca ................................................................................... 53
Noite inesquecível em Paris ................................................................... 57
Jana ........................................................................................................ 59
As árvores de Vale de Canas .................................................................. 61
A Avó ..................................................................................................... 65
A aula do aldeído................................................................................... 69
Senta -te aí .............................................................................................. 73
O caso Damião ....................................................................................... 75
O concerto ............................................................................................. 77
O esqueleto ............................................................................................ 81
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6
Os ingleses ............................................................................................. 83
Leonor .................................................................................................... 87
Página de um Diário ............................................................................. 91
A pior das viagens ................................................................................. 93
Preto e vermelho.................................................................................... 95
Os inventores de brinquedos ................................................................. 99
O adagietto .......................................................................................... 101
Asas por uns segundos ........................................................................ 105
Cobra ................................................................................................... 107
Coerência ............................................................................................. 111
Dina e a macaca ................................................................................... 115
Os meus demónios ............................................................................. 119
Eletricidade vegetal .............................................................................. 123
O chapéu ............................................................................................. 125
Fugas .................................................................................................... 129
Recordar e recrear ............................................................................... 133
A minha prima Sofia ............................................................................ 137
Prima Sofia II ....................................................................................... 139
O desafio dos velhos ........................................................................... 143
Recordando um amigo ......................................................................... 147
Pensamento sobre Eindhoven .............................................................. 151
O abraço .............................................................................................. 153
O monte ............................................................................................... 155
A necessidade é mestra da vida ........................................................... 159
Mal se via ............................................................................................. 161
A família do Sales ................................................................................ 165
Viagem até ao Rio ................................................................................ 175
Drama internacional ............................................................................. 177
Nina ..................................................................................................... 179
Carlos ................................................................................................... 183
O som da desilusão.............................................................................. 187
Ignorâncias .......................................................................................... 189
A tempestade ....................................................................................... 191
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p r e f á c i o
Quando o Prof. Pedroso de Lima, cunhado e amigo, me dirigiu o
honroso convite de prefaciar o seu livro, compilação das crónicas
que foi escrevendo e publicando, confesso a minha alegria, mas
também não escondo a minha apreensão face à responsabilidade
da tarefa. Interpretei este presente como sendo o reconhecimen-
to da minha identificação com o que escreveu, e eu li, estudei
e analisei, com tal atitude criteriosa, como se de textos meus se
tratasse. A afinidade e o empenho, não seriam maiores.
Sabendo que o prefacio é precioso para suscitar no destinatá‑
rio a vontade de ir em frente na leitura de um livro, como afirma
Carlos Ceia no seu dicionário de termos literários, pode acontecer
que Calíope, a musa da eloquência, me inspire, reconhecendo em
mim o imperioso desejo de proceder a uma justa valorização do
conteúdo desta obra.
Na vida, há horas felizes. Foi numa dessas horas que Pedroso
de Lima resolveu escrever crónicas, verdadeiras historias bem
contadas, que dão prazer de ler, pois são escritas quer sobre
aquilo de que se gosta, quer sobre o que se sabe, porque se vi-
veu. Passe embora a hipérbole propositada, já Oscar Wilde dizia
que qualquer pessoa podia fazer história, mas apenas um grande
homem sabia escrevê ‑la.
Através desta sua escrita de terapia, [versus a escrita cientí-
fica, profunda de quem procura alcançar o objetivo de todo o
verdadeiro cientista /investigador, “descobrir e usar oportunidade
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de progresso, conhecer e aprofundar uma área do saber”* e que
dominou com maestria!] podemos descortinar o homem multiface-
tado, produto dos ensinamentos que a sua vida, rica, recheada de
“diferenças”,lhe proporcionou. Assim, viu na redação de crónicas,
mais uma forma de cumprir objetivos sobretudo de natureza social;
crónicas marcadas pelas recordações da infância, da juventude, do
adulto; crónicas de opinião, marcadas pela reflexão, pela crítica
sociopolítica, pelo inconformismo, pelo registo de valores; cróni-
cas marcadas pelo humor e ironia, mas sobretudo a elevação da
Amizade, sentimento constante, como sendo uma bandeira sempre
hasteada no mastro da Vida.
Este título, Crónicas ao Acaso, e não por acaso, creio ter muito
a ver com a facilidade com que os temas de conversa, as recor-
dações mais diversas surgem na cabeça do autor duma forma tão
espontânea, tão aleatória no que diz respeito à cronologia, com a
mesma facilidade as passa ao papel, no que se distancia de Isaac
Singer ao afirmar que o caixote do lixo é o melhor amigo de um
escritor. Pedroso de Lima domina a Língua materna, brinca com
as palavras, e com as mesmas nos faz orgulhar de reparar como é
possível transmitir ideias, sentimentos, duma forma tão genuína,
tão conformemente rigorosa e convincente…
”Aprendi que a arte de sentir o sentir dos outros, pode tornar
um descampado num jardim” [Crónica Os Ingleses];
“Senti -me num mundo diferente como se tivesse subido a
um patamar do espírito que não conhecia.” [Crónica A Igreja
Verde];
“ Nunca haverá ninguém mais meu irmão do que o Jana!
Nunca houve amigo mais dentro da minha alma, que o Jana!
Quem tem Jana como amigo, só irá ter um amigo!” [Crónica Jana];
“…daqueles que sabem que não sabem e agem como se
soubessem”[Crónica Ignorâncias].
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Tive o privilégio e a oportunidade de me encantar com es-
tas crónicas à medida que iam sendo publicadas no Diário das
Beiras. Estou certa de que o mesmo acontecerá ao público leitor,
que dificilmente irá resistir e a voracidade da leitura é inevitável:
contagiará todos.
Maria Laura Mendes
*Professor Doutor Adriano Oliveira
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o a c a m p a m e n t o
Não podia deixar de comover o pequeno grupo a generosidade
dos donos da propriedade onde tinham acampado, sem licença, e
que lhes mandava, no mesmo dia, um presente de dois grandes
cestos com uvas para o jantar. O grupo era constituído por oito
jovens colegas de um curso de agronomia da Universidade de Trás
os Montes e Alto Douro e a propriedade, uma vasta faixa de terreno
situada ao longo da margem Norte do Douro.
Marcos, o chefe do grupo, logo na manhã do dia seguinte, foi à
casa da propriedade para pedir desculpa por terem acampado sem
pedir licença e agradecer as uvas.
O proprietário era um jovem que não devia ter mais de trinta
anos. Agradeceu as palavras de Marcos mas disse -lhe que, embora
proprietário, em termos oficiais, sempre achara que a terra não
era, de facto, de ninguém e que não tinha lá nenhuma tabuleta a
proibir o acampamento.
Só pedia é que, depois de terem saído, quando ele fosse ao
terreno onde tinham acampado, ficasse com a certeza de que
o respeito que ele tinha pela terra, fora compreendido pelo grupo.
Marcos percebeu a mensagem e quando regressou contou a
história aos seus companheiros, reforçando a regra de não estra-
garem nada nem deixarem qualquer lixo no terreno. Mas a atitude
do jovem proprietário despertou a admiração de todos do grupo.
Foi então que Marcos teve uma ideia para agradecer ao proprietário
de uma forma original e dentro da linha de especialidade do grupo.
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- Vamos arranjar oito ciprestes, tantos quanto o pessoal do grupo
e plantamo -los ao longo do limite da propriedade, suficientemente
espaçados, num local de onde se veja bem. Assim, quando aqui
passarmos não nos esquecemos destas férias. Nem o proprietário,
disse alguém.
Foram comprar as árvores e plantaram -nas com toda a ciência
que já tinham aprendido. Nada disseram ao senhor e, no dia se-
guinte, deixaram a propriedade e prosseguiram na sua viagem ao
longo do rio Douro.
Naturalmente, este acontecimento foi rapidamente esquecido por
aquelas cabeças jovens, perante tantas coisas interessantes que se
passaram naquelas férias!
Uns dez anos depois, Marcos, agora engenheiro agrónomo, com
a sua esposa e dois filhos, num passeio de fim de semana passaram
no local. Toda a cena lhe veio à cabeça. Os ciprestes estavam altís-
simos, mas, para surpresa de Marcos, não eram oito mas, dezenas
deles, ao longo de toda a propriedade. O efeito era excelente e
beneficiava muito todo o aspeto.
Marcos contou à esposa, com um certo orgulho, o que se tinha
passado há dez anos atrás, mas viu pela sua reação que havia
qualquer coisa que não lhe tinha agradado. Passados uns instantes,
esta disse: Acho tudo excelente, a ideia ótima, oportuna, etc. Só
não gosto é da árvore escolhida. Parece o limite de um cemitério.
Marcos não reagiu logo. Uma crítica com dez anos de atraso já
não produz grande efeito, mas acabou por responder, um tanto desi-
ludido: - Isso são preconceitos que, naquela altura, já não tínhamos.
Marcos resolveu ir cumprimentar o proprietário da fazenda. Levou
algum tempo até encontrá -lo, depois de muitas perguntas para o
localizar, na enorme propriedade. Reconheceu Marcos de imediato.
Depois dos cumprimentos, mandou chamar a esposa. Sandra era
uma senhora alta, bem parecida e de grande simpatia. - Então este
é um dos heróis dos ciprestes? Perguntou, efusivamente e ficaram
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logo todos apresentados. Falaram sobre os seus percursos naqueles
anos depois do acampamento e, finalmente, falaram nos ciprestes.
Sabe, disse o proprietário, depois de se terem ido embora, quando
vi as árvores que plantaram senti uma alegria enorme. Comovi -me
mesmo, foi um gesto extraordinário e conto muitas vezes que foi
a melhor prenda que alguém alguma vez me deu. Gostei tanto que
resolvi limitar toda a propriedade com ciprestes. Agora chamam -lhe
a Quinta dos Ciprestes. A vocês o devo.
- Penso que talvez tivesse ficado melhor se se tivessem lembrado
de usar outra árvore, o cedro por exemplo, em vez do cipreste, disse
a mulher de Marcos, que dificilmente se dá por vencida. Sandra
riu -se e disse: Algumas pessoas daqui também disseram isso, de-
fendem que o cipreste simboliza a morte. A simbologia das coisas,
porém, varia com o tempo e local.
Por exemplo o cedro já simbolizou o envelhecimento, pelo menos
é o que Eça de Queiroz sugere, nos Maias.
Na Europa antiga, o cipreste símbolisava o duelo e por isso orlava
os cemitérios. Na tradição cristã, porém, o cipreste é um símbolo
das virtudes espirituais.
Para nós, eu e o meu marido, simboliza as virtudes de um grupo
de rapazes bem formados, que nunca esqueceremos.
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c a ç a d a n a i n h a c a
O grande acontecimento daquelas férias de 1972 foi a visita do
Capitão Santos. Era conhecido de um dos do grupo da caça submarina
e, segundo este, tinha vasta experiência de mergulho na "metrópole".
Apareceu com uma lancha com uns seis metros, dois potentes
motores e dois soldados. Equipamento do melhor. Ao contrário de
nós, só mergulhava com garrafa.
Era um indivíduo de estatura média, ar de comando, Rollex e
anel de brasão.
Havia, a umas milhas da costa da ilha, já fora do banco de co-
ral, um local muito especial, o “rack”. Era a carcaça de um enorme
cargueiro, afundado na segunda guerra mundial. Era um local
privilegiado para a caça submarina. Na maré baixa, ficava fora de
água uma parte do casco ferrugento, com alguns metros de altura.
Quando se mergulhava na zona e não se via peixe, já se sabia,
havia tubarão.
Quando chegou, o Capitão organizou um “briefing”, como ele
disse, para se estudar uma estratégia. Iríamos até ao “rack”, an-
corávamos o barco e mergulhávamos aí. Com a lancha facilmente
perseguíamos a bóia, se arpoássemos um peixe de grande porte.
Com as armas de CO2, o arpão não fica ligado à arma mas a uma
bóia que permite seguir o peixe até este ser capturado.
A seu conselho, o grupo verificou minuciosamente o equipa-
mento, como numa operação militar: as barbatanas, as armas, as
máscaras, os tubos e as facas.
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Para o capitão o mesmo, mas agora, tudo de alta qualidade.
Tudo a postos, lá partimos. Chegados ao ponto combinado, os
soldados lançaram a âncora. Os quatro do grupo, mais o Capitão,
saltámos para a água e mergulhámos.
Peixe não se via quase nenhum. Nadámos contornando o “rack”.
Deixámos de ver a lancha, tapada pela carcaça. Tínhamos nadado
uns oitenta metros contra uma forte corrente, quando Álvaro, o
experiente, deu o aviso:
- Alto! Tubarões! Juntem -se.
O que vi a seguir, uns metros abaixo, jamais esquecerei. Deviam
ser cinco tubarões grandes e, pelo menos, três mais pequenos.
O maior devia ter mais de quatro metros.
O poder que se adivinha naqueles animais, o seu deslizar ele-
gante e todo o passivo de histórias ouvidas, tornavam aqueles
momentos hipnotizantes.
Álvaro mandou o grupo ficar à superfície, em círculo, a observar o
cardume, armas preparadas. Não era fácil com a corrente que se sentia.
Os tubarões deslocaram -se num sentido e depois voltaram atrás,
praticamente por baixo do grupo.
Mas algo começou a acontecer. O Capitão estava a afastar -se
levado pela corrente. Aterrorizado, hirto, o Capitão era arrastado
executando movimentos mal coordenados dos braços e pernas,
incapaz de dominar a corrente.
- Ninguém sai do grupo! Disse Álvaro. Se houver alguma coisa
é só com ele.
O Capitão largou a garrafa, largou a arma e fazia perigosos
movimentos descoordenados, certamente visíveis pelos tubarões.
A certa altura começou a pedir socorro, afastando -se com a corrente.
Em baixo, os tubarões pareciam não ligar aos acontecimentos,
mantendo -se praticamente na mesma posição.
Pensei numa estratégia. Nadar até a um ponto em que fosse visto
pelos soldados da lancha e chamá -los para ajudarem o Capitão.
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Não me interessei com o insulto de Álvaro quando nadei com
o máximo de velocidade, saindo do grupo.
Não demorei muito a ver a lancha e comecei a chamar os soldados
com gestos. Em breve, estes perceberam e dirigiram a lancha para
mim que lhes apontei o Capitão. Dirigiram -se para lá e puxaram o
Capitão para bordo. Depois, um a um içaram os restantes elementos
do grupo, terminando comigo. Os tubarões já tinham desaparecido,
possivelmente afastados pelo ruído do barco.
O Capitão estava mal, vomitava e demorou algum tempo até
articular algumas palavras. Foi uma desculpa safada: – As cãibras
lixaram -me.
Ninguém se riu, talvez por compaixão.
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p r e t o e ve r m e l h o
Foi na tropa que conheci o Carlos. Era um Aspirante Miliciano
com cara de menino e era também o indivíduo com maior ha-
bilidade natural para o desenho que alguma vez conheci. Era
quase absurdo como nasciam as formas, quando, com um lápis
qualquer, desenhava o que lhe vinha à cabeça. Ficavam as ca-
ras das pessoas, as suas expressões, os objetos, tudo dentro de
uma perspetiva real, surpreendente, quase mágica. Só desenhava
quando lhe apetecia e era escusado tentar que o fizesse, noutra
altura. Era um antimilitarista assumido e nenhum graduado gostava
dele. Nunca dizia nada que os ofendesse, mas tinha uma coleção
de expressões sarcásticas e irritantes que mantinha, sem alterar,
quando tentavam convencê -lo do interesse da tropa. Quando o
Capitão falava e via uma dessas expressões, entrava verdadeira-
mente em órbita e conseguia, garantidamente, depois dalguns
insultos, mudar -lhe a expressão, para outra, ainda pior. – Vai pôr
no relatório que me castigou porque queria que eu lhe fizesse
uma cara bonita, meu Capitão? Perguntou uma vez, depois de
uma cena do género.
Tentei ajudá -lo, sem sucesso, a ultrapassar as suas insuficiências
militares e ele ficou reconhecido. Tornámo -nos bons amigos.
Uma vez perguntei -lhe por que é não aproveitava melhor a sua
arte. Ele respondeu que o seu problema era como é que os outros
a iriam aproveitar e não ele. Preferia gastar a fortuna que herdou
dos pais até ao último cêntimo e, depois, pensar em negociar as
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suas capacidades. Só a necessidade o poderia justificar e, mesmo
assim, teria de ser nos seus próprios moldes.
Carlos tivera uma irmã que adorara e que morreu de doença
grave, aos dezasseis anos. A sua morte abalou -o ao ponto de lhe
alterar profundamente a personalidade, segundo vim a saber, al-
gum tempo depois. O desaparecimento dos pais também ajudou
nesta alteração.
Quando fui a casa de Carlos, no Ribatejo, numa quinta de tirar
a respiração, apesar de um pouco desprezada, é que me apercebi
da dimensão do choque que devia ter sido para ele, o desapare-
cimento da irmã.
Uma das coisas que esperava ver, naquela casa, eram os qua-
dros que sabia que Carlos pintava e que se dizia, só muito poucos
tinham visto.
Naquele estúdio que devia ter perto de trinta metros e mais
parecia um templo, tive uma surpresa. Ali estavam alinhados,
pelo menos vinte cavaletes, com quadros de diferentes tama-
nhos, tapados com panos de várias cores, todas escuras. Carlos
destapou -os, um a um.
Eram quadros pintados só com duas cores: o preto e o vermelho,
quase sempre vermelho -vivo, todos eles retratos de uma jovem, a
falecida irmã, nos mais diversos ângulos, poses e enquadramen-
tos. Apesar do invulgar das cores, os quadros tinham uma beleza
e uma expressão dramática que me emocionou profundamente
e mostravam o incrível talento do autor. Fiquei hipnotizado com
aqueles quadros mas Carlos não me deu muito tempo para os ver,
pois, um a um repôs os panos sobre eles.
Resisti a perguntar -lhe alguma coisa sobre as cores.
Não lhe perguntei, mas ele disse, indiretamente: - É assim que
eu a vejo sempre. Ainda não pintava quando ela morreu e não fi-
quei com as suas cores na minha cabeça, depois do que se passou.
As cores que uso é o que me sugerem as recordações da altura.
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A expressão que vi na sua cara era qualquer coisa que poderia
ser profundo desgosto, desânimo, ou loucura.
Pensei que a vida é muito estranha pois, muitas vezes, mistura
com o génio enormes potencialidades para o anular.
Não voltei àquele lugar e perdi o rasto de Carlos.
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o S i n ve n t o r e S d e B r i n q u e d o S
Num dos passeios que às vezes faço, pelas ruas da cidade, menos
frequentes do que deviam ser, parei junto de uma escola. Estavam
no recreio. A gritaria e as correrias eram o mote. Do outro lado
da grade, um garoto com orelhas de abano fez -me uma careta,
empurrou o colega do lado, puxou o cabelo de uma pequena que
passava e fugiu aos saltos.
Maravilhosa esta energia, pensei a sorrir. Afinal ela é o nosso
armazém de futuro, a nossa reserva de esperança.
Um pouco fora da algazarra, três garotos brincavam com uma
espécie de paraquedas improvisado. Uns pedaços de fios de igual
comprimento com uma das pontas atadas a um pano e a outra a
uma pedra. Atiravam aquilo ao ar que lá se desenrolava e descia
depois com movimentos pendulares, tal e qual um paraquedas.
Corriam desalmados a apanhá -lo, depois, uns metros mais longe,
disputando o próximo a atirar.
A minha imaginação de avô fez -me pensar num brinquedo ba-
seado no jogo que acabava de presenciar.
Um arco e uma flecha. Esta, especial e sem ponta afiada, teria,
próximo do extremo, uma fina caixa cilíndrica onde se encontra
dobrado um pequeno paraquedas com um pequeno peso de chumbo
na ponta. O arco projeta a flecha no ar e mal esta começa a descer,
abre -se uma porta no cilindro e sai o paraquedas.
Antes do lançamento é colocado no solo um disco branco, num local
arbitrário mas não muito distante do ponto de lançamento. A finalidade
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do jogo é que o lançamento seja feito de modo a o paraquedas cair
sobre o disco ou, pelo menos, o mais próximo possível do seu centro.
Com vários atiradores o vencedor é quem ficar mais próximo
do centro do disco.
Mas... confesso -vos que a flecha que quero disparar aqui, é outra.
Destina -se este texto a acordar nos leitores, avós e avôs, uma
faculdade inconsciente, que na sua maioria desenvolveram com o
tempo, naquelas horas com os netos à frente, uns dias a seguir aos
outros, vezes sem conta. Despertar a vossa capacidade, nascida da
prática, de inventarem brinquedos e jogos para meninos!
Vós sois os verdadeiros inventores de brinquedos, guardiões diplomados
de uma arte única, esquecida, ignorada, apagada, reformada de reformados!
“Vamos lá ver quando cai tudo!”, “Tira o ursinho do balde.”, “Alto,
olha que tens de saltar para a casa a seguir”, “Faz uma fila com os bone-
cos”, “Vamos ver quem ganha!”, “Quem é que acerta mais vezes?”… mil
frases de outros tantos pensamentos, milhares de combinações possíveis
onde podem estar ideias para mil jogos, mil brincadeiras originais!
Quantos jogos não terás já pensado, não terás já inventado, sem
nunca te aperceberes disso?
Faz renascer em ti essas agradáveis experiências e escreve, relata
os jogos, brincadeiras ou brinquedos que tenhas inventado!
Esta é uma proposta das Lojas de Saber. Queremos que colabores
connosco, que atives e aproveites as tuas capacidades. Queremos o
teu brinquedo na nossa montra!
Podemos transformar o teu depoimento numa peça com possi-
bilidades de divulgação e, quem sabe, se das vossas propostas não
vão fazer nascer jogos que farão a felicidade de muitas crianças!
Ou, talvez da tentativa nasça a descoberta de uma capacidade
em ti, secreta talvez, mas tão capaz de te dar a oportunidade de
mais uma realização!
Claro que os direitos de autor e todas as defesas de propriedade
serão respeitadas, mas... apressa -te, por favor! Há crianças à espera...
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o a d a g i e t t o
Depois de nos termos encontrado várias vezes, contactos sempre
agradáveis, resolvemos convidar Ruth para jantar em nossa casa.
Era inglesa, professora na Universidade de Hull e encontrava -se em
Coimbra, numa curta estadia, por razões profissionais.
Devia andar perto dos cinquenta. Alta, sobre o forte, loura, e,
apesar de não ser propriamente bonita, era agradável no conjunto.
Sobretudo, era de uma extrema simpatia.
Viemos a saber que Ruth, para além da projeção que já tinha,
no plano científico, tinha sido pianista com mérito reconhecido.
Fora mesmo considerada uma intérprete de nível superior de alguns
modernos. Deixara de tocar, subitamente, após o falecimento da
sua mãe, há cerca de dois anos atrás.
Foi um jantar muito agradável e passámos depois à sala de estar.
Como não podia deixar de ser, Ruth reparou nas minhas colunas
de som, volumosas, no fundo da sala. Mostrou interesse em ouvir.
Perguntei -lhe se queria que pusesse alguma coisa, em especial.
Deu -me a escolher. Pensando na pessoa que era, resolvi pôr uma
das melodias que mais gosto e que me parece impossível alguém
não gostar: o adagietto da Sinfonia No. 5 de Gustave Mahler, um
andamento só para cordas, de encanto subtil, concebido como
um hino ao amor.
O que se passou a seguir foi absolutamente confrangedor. Pouco
depois de se ouvirem os primeiros acordes, Ruth desatou num
choro convulsivo, acompanhado com “I am sorry, I am sorry”. Não
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sabíamos o que fazer, de todo. Parei a música, fomos buscar um
copo de água, perguntámos se era preciso chamar um médico, etc.
Quando a senhora acalmou, algum tempo depois, tentou explicar
o que se passara. A sua mãe morrera, de morte súbita, um dia
à noite, depois de terem ido a um concerto, onde a obra tocada, de
maior relevo, foi exatamente a Sinfonia No. 5 de Gustave Mahler.
Não resistira à comoção que estas recordações lhe trouxeram.
Estávamos a tentar ultrapassar o incidente, mudando o tema da
conversa, agora sem música, quando Ruth me pediu para voltar a
pôr a música que tanto a tinha comovido. Desta vez não chorou
e ouviu tudo com os olhos fechados. Pareceu -me vislumbrar um
vago sorriso na sua face, ao desaparecerem os últimos acordes.
Não imaginam o que estes momentos maravilhosos estão a pro-
duzir em mim, disse.
Depois de regressar a Inglaterra, Ruth retomou, imediatamente,
o piano e também a alegria de viver, segundo afirmou.
Alguns anos sobre esta estranha cena musical, recebemos, por
uns dias, Robert, um velho amigo, também inglês, vizinho e com-
panheiro dos meus tempos de Manchester. Vinha passar uns dias
connosco a Coimbra, como se tinha tornado hábito, aliás, desde
há alguns anos. Desta vez, e tristemente, viera só, pois Alice, a
esposa, falecera há algum tempo. Doença pulmonar de uma fu-
madora inveterada.
As sessões musicais que fazíamos, quando se encontravam con-
nosco, eram dos acontecimentos que estes amigos mais gostavam
e logo no dia da chegada, Robert quis uma sessão.
Não sei porquê resolvi começar pelo adagietto da Sinfonia
No. 5 de Gustave Mahler. Vi então o meu amigo dobrar -se no sofá,
pôr a cabeça entre as mãos e percebi que soluçava, em silêncio.
Não me deixou parar a música e, no fim, explicou. À noite, na
véspera da morte de Alice, tinham estado o ouvir a Sinfonia No.
5 de Mahler...
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Não lhe contei o episódio de Ruth, mas não deixei de achar
surpreendente a incrível coincidência.
Mais surpreendido fiquei, quando recebi, uns escassos meses
depois, um convite para o casamento de Robert; um encantamento
súbito, como escreveu...
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Pensou então na sua enorme ignorância sobre a Polónia e sobre
quase tudo, também. Que horror, da Polónia só se lembrava do
Jerónimo Martins. Que vergonha se ela tivesse aceite falar consigo!
Carlos olhou para o relógio. Já estava atrasado, tinha de ir para
a manifestação.
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o S o m d a d e S i l u S ã o
Nos seus dezasseis anos Lira era uma autêntica estampa mas
cheia de presunção e de sentimentos de superioridade. Filha de
um médico famoso, com linhagem vinda da mãe, usava um per-
fume que ficava e todos os seus gestos eram estudados.
Augusto só lhe via qualidades. Nem mesmo a atitude dis-
tante que Lira tinha para consigo o fazia afastá -la do seu
pensamento. Tinha a convicção de que cedo ou tarde, tudo
se modificaria.
Foi numa festa de aniversário, mesmo chique, que aconteceram
factos determinantes. Só alguns colegas do aniversariante, de
famílias escolhidas, tinham sido convidados e Augusto, porque
o ajudava, com frequência, nos problemas de matemática. Lira
estava lá.
Era próximo do Carnaval e uns jovens convidados resolveram
fazer uma partida. Colocaram debaixo de uma almofada de um
sofá, um daqueles dispositivos que produzem um som fisiológico
quando alguém se senta sobre eles.
Foi o acaso. Lira, depois de uma valsa, cansada deixou -se cair
abandonada, no dito sofá. Não foi possível evitá -lo. O som pro-
duzido, digno do Guiness, deu origem a uma gargalhada geral.
Lira, lívida balbuciou: - Não fui eu! Recompôs -se, logo a seguir,
levantou -se e disse, com um esgar de raiva que tornaria clássico
qualquer filme de terror: - Vocês não têm categoria nenhuma.
Vou -me embora. Seus parvos!
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-Então, foi só uma brincadeira, disse, apaziguadora, a mãe do
aniversariante. Mas nada a demoveu. Lira saiu imponente pela porta
fora, sem se despedir de ninguém.
Augusto correu em seu auxílio. – Eu acompanho -a a casa, disse
solícito, quando a conseguiu apanhar já a alguns metros da saída.
Lira tinha as lágrimas nos olhos e Augusto sentiu um amor infinito
por tanta beleza dolorida. Ela não respondeu e continuou em passo
acelerado. Não morava longe.
Augusto sentia o seu perfume e, mesmo sem palavras sentia -se
feliz assim, a andar, muito composto, ao seu lado.
Já perto de casa Lira disse: - Devem estar satisfeitos com a hu-
milhação que me fizeram.
Augusto apressou -se a responder: - Não tive qualquer partici-
pação naquilo que, aliás, nem me parece que se destinasse a si.
- Além de oportunista é mentiroso, disse Lira. - Sabe, continuou,
sempre achei que você tinha cara daquilo que se ouviu. Desapareça,
deixe -me em paz!
Augusto pregado ao chão viu -a a afastar -se e pareceu -lhe que
levava agarrados, a arrastarem -se no chão, os belos sentimentos
por uma musa quase perfeita, que tão platonicamente lhe dedicara.
Augusto já nem voltou à festa. Sentia -se desiludido, frustrado,
magoado com a injustiça e com aquelas palavras…
Em casa olhou a sua face ao espelho, longamente.
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i g n o r â n c i a S
Quero contar -vos uma estória que trata de ignorâncias. Não é a
ignorância momentânea do capitão Gancho*, nem a dos velhinhos
a quem o tempo implacável apagou conhecimentos e experiências,
nem a daqueles que não aprenderam e pronto, é a daqueles que
sabem que não sabem e agem como se soubessem. Aqueles para
quem as consequências futuras não contam, ou estão muito abaixo
dos seus interesses e desígnios do presente. Aqueles que aprendem
a enganar mas são incapazes de aprender o resto.
Penso que a saúde é dos poucos assuntos em que a ignorância assusta
o homem. Quando aqueles que conhecemos, capazes de dizerem as
coisas mais incríveis, saídas das bases de dados do seu desconhecimen-
to, se sentem doentes, não dizem nada, reconhecem a sua ignorância
e vão diretos ao médico. Acho que se certas matérias fossem doenças,
as suas análises seriam bem mais credíveis e valeria então a pena ouvir
os seus executores… Mas a estrela desta estória é a Josefa.
A Josefa descobriu que era fácil ter a fotografia no jornal. Escolheu
até aquela em meio perfil que o Zeca lhe tirou com o Ipod. Bastava
escrever um artigo de opinião! Sim, um artigo sobre um tema, de
preferência político para a indignação fazer mais sentido e que já
tivesse sido defendido, pelo menos por duas pessoas, para minimizar
o risco. Novas roupagens, um insulto mais refinado, algum trabalho
com o dicionário de sinónimos e já está. Sorriu e pensou nos seus
direitos. Era bom saber -se que eles se mantinham, não obstante as
nossas intenções. Foi lavar uma roupita, enquanto, mentalmente
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elaborava um esquema para a sua próxima obra. Tinha de ser de
arromba! Gaita, não me posso distrair para não tingir a roupa toda!
Oh Zeca já leste o meu texto? – gritou esganiçada. Ouviu -se a voz
do companheiro, algum tempo depois: - Eh pá tens uma porrada
de erros nesta porcaria! – Oh filho corrige -os se queres ter uma
mulher intelectual! Faz alguma coisa, respondeu indignada.
No quarto ao lado o pai de Josefa, setenta e muitos, lia baixinho
para adormecer a neta de três anos:
Conta -me qualquer coisa, avozinho,
Não quero uma canção de embalar,
quero adormecer devagarinho
com uma história d’encantar.
Fala -me de princesas e castelos,
De grandes aventuras e tesouros
Em países longínquos e belos,
Gritos de donzelas, lutas com mouros.
Aquela gritaria da filha fê -lo lembrar -se da Josefa de três anos,
a quem ele tantas vezes adormecera com estórias parecidas.
Pensou que já não entendia nada do que se passava à sua vol-
ta. Os filhos alteram por completo os valores que receberam dos
pais, tudo é dito sem interessar se é verdadeiro ou falso, desde
que atinja, já está certo, avançamos numa floresta de incertezas
geradas por milhares de opiniões diferentes, opostas, forjadas,
sem nexo, tudo vale. Acho que até os analistas já nem acreditam
nas próprias análises.
Subitamente, lembrou -se do seu avô pastor de gado que lia os
Lusíadas para as suas ovelhas.
* Logo a seguir a terem -lhe implantado o gancho, o Capitão esqueceu -se e foi coçar um olho.
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a t e m p e S t a d e
Quando o mar começou a ficar agitado não imaginávamos o
que iria acontecer e até nos divertimos um bocado. Na vasta sala
de jantar, contra o costume, só estava meia dúzia de pessoas
e os criados não conseguiam chegar com os pratos de sopa às
mesas, com os balanços que já se sentiam. Só à terceira tenta-
tiva é que, numa mesa ao lado, a senhora loura de meia idade
viu chegar o seu caldo verde, que teve de comer rapidamente.
Beber pelos copos também era difícil mas lá consegui beber
um copo de vinho branco com o bacalhau à Gomes de Sá que
me serviram.
O navio, o Infante D. Henrique, era um dos maiores e melhores
dentre aqueles que faziam as linhas de África, na década de ses-
senta. Estávamos nas proximidades do Cabo das Tormentas, rumo
a Moçambique. Tinha corrido tudo muito bem até ali, à exceção
dos enjoos dos elementos da família. A filha de quatro anos, teve
mesmo que levar soro, a certa altura.
Pelas dez e meia o estado do mar começou a agravar -se e achei
que esperavam o pior no navio, pois colocaram chapas de ferro de
proteção a tapar as janelas dos camarotes que, como era o caso do
meu, se situavam na parte da frente do navio.
Mal jantei fui para o camarote para dar assistência aos enjoados,
esposa e filhos.
Periodicamente, lá ia com um balde receber os produtos da
aflição.
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Foi pelas onze que as coisas ficaram mesmo feias. As ondas
enormes batiam na proa e vinham cair sobre as chapas de ferro
das janelas, com um barulho alarmante.
Sentia -se o navio a subir em ondas gigantescas e, de repente,
atingido o topo da onda, rodar sobre si mesmo e ir bater com o
casco do outro lado da onda, refletindo e batendo várias vezes,
fazendo um chap chap de arrepiar, até parar e começar logo
a subir, de novo. Tudo rangia à nossa volta, as crianças gemiam, a
esposa apavorada tentava acalmá -las com um “isto já passa”, pouco
convincente. Em boa verdade eu estava tão preocupado como eles
mas ia dizendo que o barco era o melhor, não havia perigo, era
sempre assim no Cabo, etc.
Quando finalmente me deitei, ficava na cama superior de um
beliche, tinha de me agarrar para não cair porque sucedia um fe-
nómeno interessante quando o barco subia nas ondas. Era como
se a gravidade se invertesse. Somos empurrados para cima, a cova
feita pelo corpo no colchão de molas vai diminuindo e, a certa
altura, parece que se projeta para fora e origina desequilíbrio.
A aceleração da onda suplanta a gravidade.
A certa altura comecei a sentir uma fome horrível. Já sabia que
se não comesse ia enjoar que nem uma pescada e isso seria muito
mau para o clã. Decidi levantar -me e ir à cozinha, que sabia onde
ficava, comer qualquer coisa. A minha viagem até lá foi inesquecível,
uma sequência de avanços e recuos, tombos e o agarrar frenético
ao que pudesse, pelos corredores do convés e a ver a dimensão
incrível daquelas ondas. Havia alturas em que o barco estava mui-
tas dezenas de metros abaixo da crista das ondas e só se via mar,
olhando para cima.
Lá consegui chegar à cozinha. Entrei e dei -me com dois cozi-
nheiros horrivelmente enjoados, meio deitados em cadeiras e que
nem olharam para mim. “Queria comer uma frutinha, se fosse
possível” disse eu. O mais novo apontou -me para um frigorífico
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com um gesto de moribundo terminal. Corri para lá, abri -o e dei-
-me com umas uvas excelentes, dependuradas em várias camadas.
Comi até me fartar.
No regresso encontrei um dos oficiais do navio que me disse ser
a pior tempestade a que tinha assistido e que estavam preocupados
com os danos no navio.
Começaram os sinais de acalmia pelas duas e meia da manhã e,
em breve, as crianças exaustas, adormeceram.
O mar serenou com o romper do dia e quando, naquela manhã
de sol, pelas onze e tal, vim até ao convés, fiquei de boca aberta
ao ver os estragos. Ferros torcidos. Peças arrancadas. Barcos salva
vidas desaparecidos.
Mas havia alegria nos rostos das pessoas. Tínhamos dobrado o
Cabo das Tormentas!
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