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Nº 14 - 17 de Julho de 2012 folha informativa Quando o teatro mostra o que fazer U ma ideia enunciada há dias durante o Espectá- culo de Honra, Que fazer? (o regresso), ensombrou de terror primordial os espíritos mais distraídos ou em negação: a de o sofrimento dos Homens estar estampado no rosto dos recém- -nascidos, como um espelho do que a Humanidade ainda é, apesar de todo o Pensamento e de toda a Arte. E no entanto, as palavras de Raoul Vaneigem (nosso contemporâneo, um homem nascido em 1934), bem como as de Maupassant ou de Flaubert, duras e sem panos quentes como a melhor literatura se deve, não impediram o público da edição de 2011 do Festival de Almada de eleger Que fazer? o melhor momento de Teatro no ano passado – assegurando a sua repetição este ano. Mais: Que fazer? continua este ano a votação na lista de espectáculos elegíveis a re- gressar a Almada no ano que vem – para grande alegria dos franceses do Théâtre Dijon Bourgogne, que no início dos ensaios da peça estavam longe de imaginar que ela poderia transformar-se em tamanho caso sério de popularidade. Pois embora baseada em textos teóricos, de alcances sempre imponderáveis em sociedades grandemente entregues aos entretenimentos televisivos e tecnológicos, Que fazer? tem sabido tocar os públicos nas suas perplexidades humanas, demonstrando a que ponto o Teatro participa activamente da História – a peça tornou-se aliás obra de repertório em França, onde em 2013 será levada em digressão ao longo de vários meses. Razão tinham os actores de Que fazer? quando, no colóquio com o público na esplanada do Festival, lembraram que “o co- nhecimento dá de comer a to- dos”, sendo a sua popularidade razão de ser e essência: chegar a todos, sendo capaz de “gerar momentos raros e importantes em Teatro”. Sarah Adamopoulos © Bruno Simão Carlos Paulo e Álvaro Correia A COMUNA ENCERRA O FESTIVAL NO PALCO GRANDE Quem são os outros? E m 1550 uma questão agi- tou os cristãos e as hierar- quias da Igreja: quem eram os índios? Seres inferiores, que era preciso dominar e converter, ou homens iguais aos outros? Entre o que defendiam o teórico Juan Gines de Sepúlveda e o re- ligioso missionário Bartolomeu de Las Casas era preciso deci- dir: o primeiro defendia a guerra e as atrocidades levadas a cabo em nome de Deus nas Novas Terras da América, o segundo a luta contra a escravatura dos índios. O ideário de Sepúlveda, que visava a conciliação das suas ideias com as da Teologia e do Direito canónico, espelha a triste verdade histórica que a generalidade das colonizações afirmariam até à segunda meta- de do século XX. Por outro lado, e embora a tese de Sepúlveda seja hoje indefensável, há nas palavras legadas pelo espanhol quinhentista (um dos mais con- siderados latinistas do seu tem- po) qualidades que põem em evidência a complexidade do pensamento racional humano. Dominar, evangelizar A controvérsia de Valladolid re- toma factos ocorridos em Espa- nha no século XVI, naquela que viria a ser a capital castelhana durante os primeiros anos do século XVII, tendo-se a corte ali instalado oficialmente a partir de 1559. Em 1543 o helenis- ta espanhol Sepúlveda (1490- 1573) publicara em Roma uma obra intitulada Democratas Al- ter, ou as justas causas da guer- ra, versando sobre as razões das guerras travadas contra os índios, na qual o autor fez a defesa da supremacia das civi- lizações ditas superiores sobre os povos inferiores a elas sub- metidos – gentes de costumes canibais e sacrificiais, acusa- vam os colonizadores racistas, empenhados na evangelização dos ‘selvagens’ como única forma de humanizá-los, salvan- do-os de um destino indigno de Deus. A concepção civilizadora da época conferia aos domi- nadores o direito a evangelizar como única forma de elevar os dominados ao patamar de hu- manidade. Contributos de Valladolid A intenção de publicação em Espanha de Democratas Alter enfrentaria a oposição dos do- minicanos das universidades, sobretudo depois de o texto de Sepúlveda ter sido objecto de um controverso debate num convento em Valladolid: uma reunião de teólogos no Verão de 1550, em que Sepúlveda en- frentou Frei Bartolomeu de las Casas, filantropo defensor da causa dos indígenas e da ces- sação das conquistas militari- zadas nas Américas. A disputa opôs os dois homens durante vários dias, mas nenhuma de- cisão foi tomada relativamen- te aos índios. Apesar disso, o debate de Valladolid teve ainda assim impactos significativos na evolução do pensamento re- lativo aos direitos humanos. Jean-Claude Carrière A controvérsia de Valladolid (1992), de Jean-Claude Carrière, centra o debate na questão re- manescente do reconhecimen- to do Outro diferente. Foi desta forma que o historiador e anti- go colaborador de Luis Buñuel e de Peter Brook abordou o tema, adaptando um aconte- cimento histórico para falar de problemáticas mais vastas. Se a religião está no centro da con- trovérsia original, é a Humani- dade inteira que é questionada por Carrière, num texto que põe em cena o perpétuo confronto histórico entre os povos, e que a Comuna mostra amanhã no Palco Grande às 22h00, no es- pectáculo de encerramento do 29º Festival de Almada. O público do Festival elege amanhã o Espectáculo de Honra 2013, a partir da lista de espectáculos a votação. Um boletim será entregue antes da peça A controvérsia de Valladolid e o resultado é anunciado no final do espectáculo Excepcionalmente este ano, e tendo em conta várias solicitações do público, o es- pectáculo Que fazer? (o regresso), pelo Théâtre Dijon Bourgogne, volta a integrar a lista. Além deste, podem ser eleitos os seguintes espectáculos: A idade de ouro, de Pedro G. Romero (A Negro Producciones), Herodía- des, de Jorge Silva Melo (Artistas Unidos), Enquanto Vivermos, de Pedro Gil (ANAPEREIRA.PEDROGIL), Para Louis de Funès de Philip Boulay (Wor(l)ds...Cie), Hábito, de Roberto Bacci e Anna Stigsgaard (Fondazione Pontedera Teatro), Fantasia Fausto, de Peter Stein (Peter Stein), Lisboa, de Anna Stigsgaard (Fondazione Pontedera Teatro), Dois de nós, de Ana Pepine e Paul Cimpoieru (Passe-Partout Dan Puric Company), e O Sr. Ibrahim e as flores do Corão, de Miguel Seabra (Teatro Meridional). Espectáculo de Honra 2013 eleito amanhã pelo público

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Nº 14 - 17 de Julho de 2012 folhainformativaQuando o teatro mostra o que fazer

Uma ideia enunciada há dias durante o Espectá-

culo de Honra, Que fazer? (o regresso), ensombrou de terror primordial os espíritos mais distraídos ou em negação: a de o sofrimento dos Homens estar estampado no rosto dos recém--nascidos, como um espelho do que a Humanidade ainda é, apesar de todo o Pensamento e de toda a Arte. E no entanto, as palavras de Raoul Vaneigem (nosso contemporâneo, um homem nascido em 1934), bem como as de Maupassant ou de Flaubert, duras e sem panos quentes como a melhor literatura se deve, não impediram o público da edição de 2011 do Festival de Almada de eleger Que fazer? o melhor momento de Teatro no ano passado – assegurando a sua repetição este ano. Mais: Que fazer? continua este ano a votação na lista de espectáculos elegíveis a re-gressar a Almada no ano que vem – para grande alegria dos franceses do Théâtre Dijon Bourgogne, que no início dos ensaios da peça estavam longe de imaginar que ela poderia transformar-se em tamanho caso sério de popularidade. Pois embora baseada em textos teóricos, de alcances sempre imponderáveis em sociedades grandemente entregues aos entretenimentos televisivos e tecnológicos, Que fazer? tem sabido tocar os públicos nas suas perplexidades humanas, demonstrando a que ponto o Teatro participa activamente da História – a peça tornou-se aliás obra de repertório em França, onde em 2013 será levada em digressão ao longo de vários meses. Razão tinham os actores de Que fazer? quando, no colóquio com o público na esplanada do Festival, lembraram que “o co-nhecimento dá de comer a to-dos”, sendo a sua popularidade razão de ser e essência: chegar a todos, sendo capaz de “gerar momentos raros e importantes em Teatro”.

Sarah Adamopoulos

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ãoCarlos Paulo e Álvaro Correia

A COMUNA eNCerrA O festivAl NO PAlCO GrANde

Quem são os outros?

em 1550 uma questão agi-tou os cristãos e as hierar-quias da igreja: quem eram

os índios? seres inferiores, que era preciso dominar e converter, ou homens iguais aos outros? entre o que defendiam o teórico Juan Gines de sepúlveda e o re-ligioso missionário Bartolomeu de las Casas era preciso deci-dir: o primeiro defendia a guerra e as atrocidades levadas a cabo em nome de deus nas Novas terras da América, o segundo a luta contra a escravatura dos índios. O ideário de sepúlveda, que visava a conciliação das suas ideias com as da teologia e do direito canónico, espelha a triste verdade histórica que a generalidade das colonizações afirmariam até à segunda meta-de do século XX. Por outro lado, e embora a tese de sepúlveda seja hoje indefensável, há nas palavras legadas pelo espanhol quinhentista (um dos mais con-siderados latinistas do seu tem-po) qualidades que põem em evidência a complexidade do pensamento racional humano.

Dominar, evangelizar A controvérsia de Valladolid re-toma factos ocorridos em espa-nha no século Xvi, naquela que viria a ser a capital castelhana durante os primeiros anos do século Xvii, tendo-se a corte ali instalado oficialmente a partir de 1559. em 1543 o helenis-ta espanhol sepúlveda (1490-1573) publicara em roma uma obra intitulada Democratas Al-ter, ou as justas causas da guer-ra, versando sobre as razões das guerras travadas contra os índios, na qual o autor fez a defesa da supremacia das civi-lizações ditas superiores sobre os povos inferiores a elas sub-metidos – gentes de costumes canibais e sacrificiais, acusa-vam os colonizadores racistas, empenhados na evangelização dos ‘selvagens’ como única forma de humanizá-los, salvan-do-os de um destino indigno de

deus. A concepção civilizadora da época conferia aos domi-nadores o direito a evangelizar como única forma de elevar os dominados ao patamar de hu-manidade.

Contributos de ValladolidA intenção de publicação em espanha de Democratas Alter enfrentaria a oposição dos do-minicanos das universidades, sobretudo depois de o texto de sepúlveda ter sido objecto de um controverso debate num convento em valladolid: uma reunião de teólogos no verão de 1550, em que sepúlveda en-frentou frei Bartolomeu de las Casas, filantropo defensor da causa dos indígenas e da ces-sação das conquistas militari-zadas nas Américas. A disputa opôs os dois homens durante vários dias, mas nenhuma de-cisão foi tomada relativamen-te aos índios. Apesar disso, o

debate de valladolid teve ainda assim impactos significativos na evolução do pensamento re-lativo aos direitos humanos.

Jean-Claude Carrière A controvérsia de Valladolid (1992), de Jean-Claude Carrière, centra o debate na questão re-manescente do reconhecimen-to do Outro diferente. foi desta forma que o historiador e anti-go colaborador de luis Buñuel e de Peter Brook abordou o tema, adaptando um aconte-cimento histórico para falar de problemáticas mais vastas. se a religião está no centro da con-trovérsia original, é a Humani-dade inteira que é questionada por Carrière, num texto que põe em cena o perpétuo confronto histórico entre os povos, e que a Comuna mostra amanhã no Palco Grande às 22h00, no es-pectáculo de encerramento do 29º festival de Almada.

O público do festival elege amanhã o espectáculo de Honra 2013, a partir da lista de espectáculos a votação. Um boletim

será entregue antes da peça A controvérsia de Valladolid e o resultado é anunciado no final do espectáculo Excepcionalmente este ano, e tendo em conta várias solicitações do público, o es-pectáculo Que fazer? (o regresso), pelo théâtre dijon Bourgogne, volta a integrar a lista. Além deste, podem ser eleitos os seguintes espectáculos: A idade de ouro, de Pedro G. romero (A Negro Producciones), Herodía-des, de Jorge silva Melo (Artistas Unidos), Enquanto Vivermos, de Pedro Gil (ANAPereirA.PedrOGil), Para Louis de Funès de Philip Boulay (Wor(l)ds...Cie), Hábito, de roberto Bacci e Anna stigsgaard (fondazione Pontedera teatro), Fantasia Fausto, de Peter stein (Peter stein), Lisboa, de Anna stigsgaard (fondazione Pontedera teatro), Dois de nós, de Ana Pepine e Paul Cimpoieru (Passe-Partout dan Puric Company), e O Sr. Ibrahim e as flores do Corão, de Miguel seabra (teatro Meridional).

Espectáculo de Honra 2013 eleito amanhã pelo público

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AGENDA DE AmANHã

21h00 - Psappha ensemblede percussõesesplanada da esc. d. António da Costa

22h00 - A controvérsiade Valladolidesc. d. António da CostaPalco Grande

restAUrANte dA esPlANAdA

- favas c/ entrecosto e enchidos

- Peixe-espada frito- Pataniscas- Panados- Carne assada- Arroz e várias saladas

- tarte de amêndoa- Bolo de Chocolate

- Caril de frango- Bacalhau c/ bacon- Pataniscas- Panados- Carne assada- Arroz e várias saladas

- tarte de amêndoa- Bolo de Chocolate

Hoje

Amanhã

Esplanada da Escola D. António da Costa

Nos bastidores do Festival (Parte 2)

Nada a declararvindos directamente de Birmin-gham, no reino Unido, os ro-menos Ana Pepine e Paul Cim-poieru e a sua equipa chegaram mais do que a tempo e horas para ensaiarem a peça que iam apresentar no Palco Grande do festival: Dois de nós. só que as suas malas – incluindo o cenário da peça – não tiveram a mesma sorte. e foi por apenas um triz (ou seja, apenas um dia) que o pú-blico pôde ver o cenário original da peça de pantomima, uma vez que os cenários só chegaram na véspera do dia do espectáculo.

Pontos de vistasempre que há espectáculo no Palco Grande do festival, onde não há lugares marcados, um senhor faz questão de ficar sem-pre na mesma cadeira, perto da mesa dos técnicos do espectá-culo. e se, porventura, por inad-vertência alguém se senta nessa cadeira, que considera sua, o espectador fica desapontado e tenta convence a pessoa a mu-dar de lugar. A partir de agora, este senhor não vai ter mais de se preocupar: um dos técnicos

Charlot EvadidoCharlot na Rua da Paz e Charlot nas Termasesplanada da esc. d. António da Costa

tornou-se seu cúmplice e guar-da-lhe a cadeira, ‘porque ele ain-da há’ lugares especiais...

O “caça-beberetes” É tradição em Almada, sempre que estreia um espectáculo, haver no final um pequeno be-berete, em que o público pode confraternizar com os actores da peça e “comer qualquer coi-sinha”. No entanto, há já quem se tenha especializado neste tipo de eventos. No dia do es-pectáculo La Valse/A Sagra-ção da Primavera, um senhor chegou à Escola D. António da Costa a perguntar se havia es-pectáculo no Palco Grande. in-formaram-no que, nesse dia, o espectáculo era no teatro Azul mas que àquela hora já teria começado. O senhor não ficou minimamente preocupado e respondeu: “Ah, não faz mal, eu quero mesmo é ir ao beberete”. No dia seguinte, ainda não sa-tisfeito, perguntou a um colega da organização: “vocês fazem beberetes todos os dias? era só mesmo para saber”, disse o senhor, que ficará conhecido como o “caça-beberetes”.

A opinião é unânime: o 29º festival de Almada resistiu à austeridade e

apresentou uma programação de inegáveis qualidade e di-versidade. Quem o diz são os jornais estrangeiros, caso do jornal francês L’Humanité, que publicou este mês um artigo intitulado “Um festival que se dobra mas não quebra”. “Como um vento que contraria as me-didas de austeridade que asfi-xiam Portugal e ameaçam erra-dicar as actividades culturais, o festival de Almada, seriamente fragilizado, não mostra o menor desejo de deixar de ser um lugar de resistência e de partilha (…) A programação contínua ardente”, afirma Marina da Silva.Já em espanha, o El Cultural, suplemento do El Mundo, noti-cia que se trata de “Um Festival contra todos os prognósticos”. “Chegou-se a temer que a cri-se financeira acabaria com o festival de Almada, o certame internacional de teatro mais im-portante de Portugal. Porém, (…) este ano a sua programação exibe força e é atractiva”, escre-ve liz Perales.

Na escócia, o Herald Scotland descreveu o Festival como “um farol cultural numa paisagem artística portuguesa devasta-da pela austeridade”. “Sobre a liderança do seu fundador, o altamente respeitado Joaquim Benite, e do seu incansável di-rector-adjunto rodrigo francis-co, o festival tornou-se parte integrante do calendário inter-nacional de teatro. Navegan-do pelo programa deste ano, encontram-se grandes nomes como o criador suíço Christo-ph Marthaler ou o encenador alemão Peter stein. O extenso programa internacional é com-binado com uma forte montra do teatro português”, escreveu Mark Brown

Almada vistapela imprensa estrangeira

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Marina da Silva acompanha o Festival desde há vários anos

Para além de poder fazer uma refeição no restaurante ou beber uma cerveja no bar, o público do festival tem-se juntado na esplanada para assistir aos con-certos de música ao vivo que antecedem os espectáculos no Palco Grande, e para usufruir da cuidada selecção de filmes que tem exibido todas as noites al-

Finalmente as noites de calor na Esplanadaguns dos mais paradigmáticos filmes da História da comédia clássica. esta noite os filmes na esplanada apresentam Bucha e Estica Toureiros, película de 1945. Amanhã, noite de encer-ramento, o festival oferece um programa triplo: Charlot Evadido, Charlot na Rua da Paz e Charlot nas Termas, todos de 1917.