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O Joaquim Benite não desdenhava de aprender com os mais novos, não se coibia de ensinar aos mais velhos. Nº 11 | DOM 14 DE JULHO António Pescada C om o passar do tempo, os en- contros nas vá- rias edições do Festival parecem ter acontecido numa única edição. Uma senha de café cra- vada na esplanada da Escola D. António da Costa, uma conversa em portunhol antes do espectáculo começar ou uma série de miradas repartida com portu- gueses e estrangeiros por igual, a partir da Casa da Cerca, parecem ter tido lugar e ocasião numa entidade mítica transtemporal que seria o Festival de Almada. Não me posso alongar neste espaço sobre as noitadas a dobrar folhe- tos, os banhos de mar matinais ou os almoços tardios que constituem o festival paralelo, por falta de caracteres, não de carácter. As noites fundem-se umas nas ou- tras, e os dias parecem apenas uma cola viscosa que nos junta aos outros por breves momentos. Com o passar do tem- po, os espectáculos, as conversas, os colóquios, os copos, entram nos sonhos a cavalo da noi- te, e podem até nunca ter acontecido, que nos lembraremos deles para sempre. Jorge Louraço Falsas memórias Alinha amarela S aara Turunen é uma estre- la em ascensão na drama- turgia finlandesa, tendo as suas peças sido traduzidas em inúmeras línguas e estrea- das em vários países. História de um coração partido trata da dificuldade de conciliar a dedi- cação à arte com os ideais de liberdade, felicidade e... iden- tidade. É que o Pai Natal não existe, nem mesmo na Finlân- dia. As questões de definição A linha amarela do eu, as adversidades na rela- ção com o outro e as opções de pertença a um grupo e/ou clas- se social são temas explorados, directa ou indirectamente, nes- te texto. Uma escrita aparen- temente naïf, com referências recorrentes a contos infantis e à cultura pop, compõe o retrato dos jovens artistas e cidadãos da Finlândia, em tudo seme- lhantes aos demais europeus de vinte e poucos anos. Se tirarmos o sol da meia-noite S obe ao palco amanhã A linha amarela, o resultado de um projecto de coope- ração internacional entre o Te- atro de Braunschweig (Alema- nha) e o Teatro Z/K/M (Croá- cia), escrita por duas dramatur- gas alemãs (Juli Zeh e Charlotte Roos) e encenada pelo director croata Ivica Buljan. Esta peça distingue-se sobre- tudo pela forma original como problematiza a contempora- neidade, servindo-se de dois símbolos fundamentais: a vaca Yvonne – a vaca que, no Verão de 2011, fugiu da quinta onde vivia há seis anos e se refugiou nas florestas do sul da Alema- nha (e que fez notícia um pou- co por todo o mundo, inclusi- vamente em Portugal, sendo considerada heroína nacional, cuja causa alguns grupos do Facebook apadrinharam) – e a linha amarela, aquela que de- limita fronteiras nos aeropor- tos e noutros equipamentos públicos. A primeira, volvida símbolo de um espírito livre e inconformista; a segunda, representante do sem número de constrangimentos sociais que nos cercam. “A linha amarela toma o pulso da sociedade actual globalizada e descobre corajosamente to- das as suas doenças.” Doenças graves, que começam a afec- tar-nos o juízo. Sem ele, ou com um já muito atordoado, somos incapazes de perceber a limi- tação da liberdade individual no seio de um sistema global, manipulador e repressivo. Ou a “hipocrisia do humanismo e o conformismo ocidentais, a falta de sentido da designada “arte de protesto”, as consequências da exploração capitalista”. Numa peça cheia de humor e sarcasmo, o que se constrói (ou desconstrói?) é, no fundo, a relação nós-vós e eu-eles. A escritora Juli Zeh comenta a propósito: “A crise económi- ca é o problema mais urgente. Mas, por detrás dele, está o pro- blema de não sabermos como queremos viver juntos na Euro- pa. (…) Aprendemos a compor- tar-nos como amigos durante as últimas décadas, mas quando surgem os problemas, os velhos preconceitos e antagonismos voltam à tona.Onde termina a ordem e co- meça o controlo? Onde acaba a preocupação e tem início a manipulação? Por entre garga- lhadas, pensaremos em coisas sérias. História de um coração partido

Falsas memórias Alinha amarela - ctalmada.pt · * Na gíria teatral, diz-se que os actores “carregam na farinheira” quando exageram. Nós carregamos na farinheira quando a realidade

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Page 1: Falsas memórias Alinha amarela - ctalmada.pt · * Na gíria teatral, diz-se que os actores “carregam na farinheira” quando exageram. Nós carregamos na farinheira quando a realidade

O Joaquim Benite não desdenhava de aprender com os mais novos, não se coibia de ensinar aos mais velhos.

Nº 11 | Dom 14 De Julho

António Pescada

Com o passar do tempo, os en-contros nas vá-

rias edições do Festival parecem ter acontecido numa única edição. Uma senha de café cra-vada na esplanada da Escola D. António da Costa, uma conversa em portunhol antes do espectáculo começar ou uma série de miradas repartida com portu-gueses e estrangeiros por igual, a partir da Casa da Cerca, parecem ter tido lugar e ocasião numa entidade mítica transtemporal que seria o Festival de Almada. Não me posso alongar neste espaço sobre as noitadas a dobrar folhe-tos, os banhos de mar matinais ou os almoços tardios que constituem o festival paralelo, por falta de caracteres, não de carácter. As noites fundem-se umas nas ou-tras, e os dias parecem apenas uma cola viscosa que nos junta aos outros por breves momentos. Com o passar do tem-po, os espectáculos, as conversas, os colóquios, os copos, entram nos sonhos a cavalo da noi-te, e podem até nunca ter acontecido, que nos lembraremos deles para sempre.

Jorge Louraço

Falsas memórias

Alinha amarela

Saara Turunen é uma estre-la em ascensão na drama-turgia finlandesa, tendo

as suas peças sido traduzidas em inúmeras línguas e estrea-das em vários países. História de um coração partido trata da dificuldade de conciliar a dedi-cação à arte com os ideais de liberdade, felicidade e... iden-tidade. É que o Pai Natal não existe, nem mesmo na Finlân-dia. As questões de definição

A linha amarela

do eu, as adversidades na rela-ção com o outro e as opções de pertença a um grupo e/ou clas-se social são temas explorados, directa ou indirectamente, nes-te texto. uma escrita aparen-temente naïf, com referências recorrentes a contos infantis e à cultura pop, compõe o retrato dos jovens artistas e cidadãos da Finlândia, em tudo seme-lhantes aos demais europeus de vinte e poucos anos.

Se tirarmos o sol da meia-noite

Sobe ao palco amanhã A linha amarela, o resultado de um projecto de coope-

ração internacional entre o Te-atro de Braunschweig (Alema-nha) e o Teatro Z/K/m (Croá-cia), escrita por duas dramatur-gas alemãs (Juli Zeh e Charlotte Roos) e encenada pelo director croata Ivica Buljan.esta peça distingue-se sobre-tudo pela forma original como problematiza a contempora-neidade, servindo-se de dois símbolos fundamentais: a vaca Yvonne – a vaca que, no Verão de 2011, fugiu da quinta onde vivia há seis anos e se refugiou nas florestas do sul da Alema-nha (e que fez notícia um pou-co por todo o mundo, inclusi-vamente em Portugal, sendo considerada heroína nacional, cuja causa alguns grupos do Facebook apadrinharam) – e a linha amarela, aquela que de-limita fronteiras nos aeropor-tos e noutros equipamentos públicos. A primeira, volvida símbolo de um espírito livre e inconformista; a segunda, representante do sem número de constrangimentos sociais que nos cercam.“A linha amarela toma o pulso da sociedade actual globalizada

e descobre corajosamente to-das as suas doenças.” Doenças graves, que começam a afec-tar-nos o juízo. Sem ele, ou com um já muito atordoado, somos incapazes de perceber a limi-tação da liberdade individual no seio de um sistema global, manipulador e repressivo. ou a “hipocrisia do humanismo e o conformismo ocidentais, a falta de sentido da designada “arte de protesto”, as consequências da exploração capitalista”.Numa peça cheia de humor e sarcasmo, o que se constrói (ou desconstrói?) é, no fundo, a relação nós-vós e eu-eles. A escritora Juli Zeh comenta a propósito: “A crise económi-ca é o problema mais urgente. Mas, por detrás dele, está o pro-blema de não sabermos como queremos viver juntos na Euro-pa. (…) Aprendemos a compor-tar-nos como amigos durante as últimas décadas, mas quando surgem os problemas, os velhos preconceitos e antagonismos voltam à tona.”onde termina a ordem e co-meça o controlo? onde acaba a preocupação e tem início a manipulação? Por entre garga-lhadas, pensaremos em coisas sérias.

História de um coração partido

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escola D. António da CostaAvenida Prof. egas monizAlmADA 2804- 503

ReSTAuRANTe DA eSPlANADA

Hoje

Amanhã

AGENDA DE AmANHãeSPeCTáCuloS

ColóquIoS

múSICA

TeATRo FIlmADo

Dia cinzento, homenagem

Catarina Neves na apresentação do seu documentário

* Na gíria teatral, diz-se que os actores “carregam na farinheira” quando exageram. Nós carregamos na farinheira quando a realidade ultrapassa a ficção.

Carregar na farinheira*

SOPA

PRATOS- Coq au vin- Salada de fusili com atum, camarão, ovos e azeitonas

SOPA

PRATOS- entrecosto no fornocom batatas- Bacalhau com natas

21h30: Cada soproTeatro da Politécnica

22h00: A linha amarelaescola D. António da CostaPalco Grande

19h00: maestro João Paulo Santos, director musical de Candideesplanada da escola D. António da Costa

21h00: Quarteto de guitarras de Lisboaesplanada da escola D. António da Costa

00h00: Hughiee Antes do pequeno-almoçoesplanada da escola D. António da Costa

ontem foi um dia de tripla homenagem a Joaquim Benite: a apre-

sentação do livro de maria he-lena Serôdio, Joaquim Benite desafiou Próspero... e inscre-veu o Mundo no seu teatro; de um documentário sobre a sua encenação testamentária, A úl-tima encenação de Joaquim Be-nite – Não basta dizer “não”, de Catarina Neves; e a entrega do prémio de figura homenageada do Festival deste ano. Recebeu--o a sua “companheira de sem-pre”, Teresa Gafeira, das mãos da Presidente da Câmara de Almada, maria emília de Sou-sa. uma homenagem da cidade onde, desde 1978, desenvolveu o corpo da sua actividade tea-tral e artística – onde “escolheu certo”, nas palavras de Rodrigo Francisco.À apresentação do livro, às 10h30 na Casa da Cerca, pela

professora maria João Brilhante, seguiu-se a leitura de depoi-mentos – memórias, saudades – de artistas e personalidades cujo percurso se cruzou com o de Joaquim Benite, ao longo da sua carreira, longa, de cinquen-ta anos, como jornalista, ence-nador, pedagogo e combatente.Às 19h00, na Sala Principal do Teatro que recebeu o seu nome, assistiu-se ao documentário de Catarina Neves, ao último tra-

balho do homem “feliz quando estava a trabalhar”, “debilitado fisicamente”, mas de intacta agudeza mental, defrontando- -se com o que haveria de ser o seu último desafio profissional. Trabalho cujo rigor e a ciência foram reconhecidos por luis miguel Cintra, na sua interven-ção no final da apresentação do filme, e que “a população de Almada não esquecerá”, acres-centou maria emília de Sousa,

o dia de Todos-os-San-tos de 1755 foi extra-ordinário. o mundo

de Kant desapareceu soter-rado sob os escombros da cidade de lisboa e depois varrido pela onda e depois queimado pelas chamas que se lhe seguiram. “Opti-

mismo?” - pergunta Voltaire. “Como assim?”, se morreram homens, mulheres e crian-ças, pios como incréus, bons como maus? que Deus be-nevolente é este que bene-volentemente permite que exista desgraça para permi-tir que venham ao de cima as

melhores qualidades do ho-mem – a coragem, a pieda-de, o amor: “o melhor mundo possível”?questões complicadas, a que a falta de espaço não permi-te, infelizmente, dar resposta nesta folha informativa. Cân-dido, o optimista, canta que

é “um excelente dia para um auto-de-fé”. esperemos que sim, e que se passe uma ex-celente noite de domingo, divertida, no Palco Grande, na companhia da orquestra Sinfónica Portuguesa e do Coro do Teatro Nacional de São Carlos.

em nome da autarquia.“Escolheu-se certo” quando um engano do pessoal da au-tarquia permitiu que o prémio fosse entregue apenas no final de O principezinho – espectá-culo no qual se aprende que é o tempo que perdemos com as coisas que as torna tão impor-tantes para nós. lembrar-nos- -emos que somos “para sempre responsáveis por aquilo que ca-tivámos”, que nos cativou?

Rodrigo Francisco, maria emília de Sousa e Teresa Gafeira

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uana

San

tos