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1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL SÃO PAULO AÇÃO CIVIL PÚBLICA C/ PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA Processo nº 053.00.027139-2 O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Promotor de Justiça do GAESP - Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor que essa subscreve, com fundamento e legitimado pelos arts. 1º, inciso III, 3º, 5º, caput e § 2º, 6º, 127, caput, 129, incisos II e III, 196 da Constituição Federal; arts. 1º, caput e 25, inciso IV, alínea a, da Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); arts. 91, caput, 97, III e parágrafo único, 217 e 219 da Constituição do Estado de São Paulo; arts. 1º, caput e 103, incisos I, VII, alínea a e VIII, da Lei Complementar Estadual n.º 734/93

Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

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Page 1: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 6ª

VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL –

SÃO PAULO

AÇÃO CIVIL PÚBLICA C/ PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

Processo nº 053.00.027139-2

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE

SÃO PAULO, por seu Promotor de Justiça do GAESP - Grupo de Atuação

Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor que essa subscreve,

com fundamento e legitimado pelos arts. 1º, inciso III, 3º, 5º, caput e § 2º,

6º, 127, caput, 129, incisos II e III, 196 da Constituição Federal; arts. 1º,

caput e 25, inciso IV, alínea a, da Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica

Nacional do Ministério Público); arts. 91, caput, 97, III e parágrafo único,

217 e 219 da Constituição do Estado de São Paulo; arts. 1º, caput e 103,

incisos I, VII, alínea a e VIII, da Lei Complementar Estadual n.º 734/93

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(Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo); arts. 1º,

inciso IV, 5º, caput, 12 e 21, da Lei Federal n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil

Pública); art. 6o. da Lei n. 7853/89; arts. 81, Parágrafo único, incisos I, II e

III, 82, inciso I, 113, 116 e 117 da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de

Defesa do Consumidor); arts. 2º, caput, 5º e 6º da Lei n.º 8.080/90 e art. 2º,

caput e o seu § 1º, da Lei Complementar Estadual nº 791/95, vem ajuizar a

presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, observando-se o procedimento

comum ordinário, em face ESTADO DE SÃO PAULO (FAZENDA

ESTADUAL), que deverá ser citado na pessoa do Excelentíssimo

Procurador Geral do Estado, na Avenida São Luiz, n. 99, 4o. andar, nesta

Capital, pelos motivos de fato e de direito a seguir descritos.

I - DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição Federal, em seu artigo 129, II,

determina competir ao Ministério Público, zelar pelo efetivo respeito dos

Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos

assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias a

sua garantia.

O Art. 197 do texto constitucional determina

que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, assim

esclarecendo: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde,

cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua

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regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita

diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa jurídica de

direito privado”.

Portanto, da análise conjunta dos dois dispositivos

constitucionais mencionados, conclui-se que um dos objetivos pretendidos

foi o de efetivamente possibilitar a atuação do Ministério Público frente aos

Poderes Públicos e aos particulares que executam serviços de relevância

pública em prol da sociedade.

A situação produzida pelo requerido é dramática,

distante da lei e da Constituição Federal, porque os usuários estão

desprovidos da prestação de um serviço essencial, circunstância que

somente tem como conseqüência o agravamento da condição do autista e

sua falta de perspectiva para o futuro.

O direito constitucional de acesso à saúde

pressupõe um serviço digno e com condições satisfatórias de higiene,

segurança, pessoal e organizacional, fatores imprescindíveis ao

desempenho do serviço essencial em questão. No caso, nada é destinado

aos autistas.

Sempre é bom lembrar que a população é titular

do interesse transindividual à prestação adequada dos serviços públicos

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essenciais, tendo os prestadores o dever de executá-los. Não podem estes,

sob qualquer pretexto, simplesmente ignorar as normas existentes, normas

também de origem constitucional.

Pondere-se que a Constituição Federal,

igualmente, em seus artigos 127, caput, 129, inciso III; a Constituição do

Estado de São Paulo, em seu artigo 91; a Lei Federal nº 8.625, de 12 de

fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) em seu

art. 25, inciso IV, alínea “b”; e a Lei Complementar Estadual nº 734, de 26

de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de

São Paulo), em seu art. 103, inciso VIII, cometem ao Ministério Público

legitimação para o ajuizamento da ação civil pública para a defesa, em

juízo, dos interesses difusos e coletivos, sendo que o Código de Defesa do

Consumidor complementou tal quadro protetivo.

Ademais, são direitos fundamentais das pessoas

portadoras de deficiência, dentre outros, receber atendimento especializado,

treinamento para o trabalho, acesso aos bens e serviços coletivos e a

integração social (arts. 227, § 1º, II e 244 da Constituição Federal), sendo

que as Leis Orgânicas Nacional (Lei n. 8625, art. 25, IV, “a” e VI) e

Estadual do Ministério Público de São Paulo (Lei Complementar Estadual

n. 734/93, art. 103, I, VII, IX e X) impõe a prestação de assistência e

prestação das pessoas portadoras de deficiência. Da mesma forma, a Lei n.

7853/89 indica que o poder público e seus órgãos devem assegurar às

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pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos,

inclusive os concernentes à educação e à saúde, dentre outros.

A conclusão da Organização Pan-americana da

Saúde e do Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde,

enumerada na Série Direito e Saúde nº 1 - Brasília, 1994, firmou que “O

conceito de ações e serviços de relevância pública, adotado pelo artigo

197 do atual texto constitucional, norma preceptiva, deve ser entendido

desde a verificação de que a Constituição de 1988 adotou como um dos

fundamentos da República a dignidade da pessoa humana. Aplicado às

ações e aos serviços de saúde, o conceito implica o poder de controle, pela

sociedade e pelo Estado, visando zelar pela sua efetiva prestação e por sua

qualidade. Ao qualificar as ações e serviços de saúde como de relevância

pública, proclamou a Constituição Federal sua essencialidade. Por

“relevância pública” deve-se entender que o interesse primário do Estado,

nas ações e serviços de saúde, envolve sua essencialidade para a

coletividade, ou seja, sua relevância social. Ademais, enquanto direito de

todos e dever do Estado, as ações e serviços de saúde devem ser por ele

privilegiados. A correta interpretação do Artigo 196 do texto

constitucional implica o entendimento de ações e serviços de saúde como

conjunto de medidas dirigidas ao enfrentamento das doenças e suas

seqüelas, através da atenção médica preventiva e curativa, bem como de

seus determinantes e condicionantes de ordem econômica e social. Tem o

Ministério Público a função institucional de zelar pelos serviços de

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relevância pública, dentre os quais as ações e serviços de saúde, adotando

as medidas necessárias para sua efetiva prestação, inclusive em face de

omissão do Poder Público”.

Dessa forma, está o Ministério Público

legitimado para a propositura da presente ação civil pública.

II - DOS FATOS

a - Autismo: conceito e características.

Depreende-se dos diversos elementos angariados

no inquérito civil anexado à presente petição inicial que o autismo é uma

incapacidade complexa do desenvolvimento mental que tipicamente

aparece durante os três primeiros anos de vida, é o resultado de um

desarranjo neurológico que afeta o funcionamento do cérebro, sendo um

dos mais graves distúrbios da comunicação humana. Doença grave,

crônica, incapacitante, caracteriza-se por lesar ou diminuir o ritmo do

desenvolvimento normal de uma criança, a qual apresenta reações anormais

quando deparam com sensações como ouvir, ver, tocar, degustar, etc. De

origem grega a palavra “autos” significa “si mesmo”. Costuma-se dizer que

os autistas vivem em um mundo interior, particular, praticamente

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indevassável. Sua incidência é de 4 a 5 em um universo de 10000 nascidos

conforme referências internacionais, porquanto não são conhecidos os

dados brasileiros. Assim, percentualmente a sua incidência na população

deve girar em torno de 0,04 a 0,05%. Grande maioria dos autistas é afetada

por aparente retardamento mental. Os especialistas espanhóis utilizam o

termo aparente porque é difícil valorar alguém que ignora os testes

tradicionais de coeficiente intelectual, vivendo em um mundo reservado. O

autismo é considerado por alguns uma doença mental especial proveniente

de alguma anomalia que desafia os cientistas. Sua manifestação ocorre de

formas diversas. Com efeito, alguns autistas são considerados de “alto

funcionamento” possuindo grandes habilidades para certas atividades como

decorar listas telefônicas e letras musicais ou realizar cálculos matemáticos,

mas não conseguem tal desempenho em todas as ações, mesmo algumas

muito simples. Há também autistas de “baixo funcionamento”. Estes

mostram uma grande dificuldade de comunicação. Conforme a presidente

da “Casa do Autista” um autista não tem autonomia social e noção de

perigo, muitas vezes não expressa a dor, não possui noções de higiene,

pode ser muito agressivo, não apresenta comunicação verbal adequada, é

hiperativo e pode apresentar crises convulsivas. Conclui-se, pois, que o

convívio com um autista é sem dúvida marcado por intenso desgaste de

seus familiares. O autista não atinge o normal desenvolvimento do cérebro

nas áreas de interação social e habilidades ligadas à comunicação. Crianças

e adultos com autismo tipicamente têm dificuldades na comunicação verbal

e não verbal, interação social e atividades que exigem o contato com

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fatores externos. Em alguns casos agressividade ou auto-lesões estão

presentes. Pessoas com autismo podem exibir movimentos repetidos do

corpo, comportamentos não usuais, sendo que também costumam atirar

objetos e apresentar resistência para mudar sua rotina. Uma minoria

insignificante de autistas leva uma vida normal, praticamente nenhum

chega ao casamento ou mostra interesse por outro sexo, mesmo porque não

possui iniciativa. O restante, ou seja, a grande maioria, precisa de cuidados

integrais e especiais. Em suma, o autismo leva a um relacionamento não

usual com pessoas, eventos ou coisas, indicando um comprometimento

orgânico do sistema nervoso central.

b - Tratamento

Evidências mostram que a intervenção desde cedo

resulta em progressos para crianças de pouca idade com autismo.

Internacionalmente várias “pré-escolas” modelo enfatizam diferentes

componentes de programas, todos concordando na ênfase da rápida,

apropriada e intensiva intervenção nos âmbitos da saúde e educacional

especializada nas crianças. Portanto, o tratamento existe, sempre em

evolução não só na área educacional, mas na área médica, de psicoterapia.

A abordagem psicoterapeutica visa a reeducação, facilitando o contato

interpessoal, propiciando no indivíduo uma melhor aceitação da

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problemática. Utilizam-se técnicas comportamentais visando induzir uma

normalização de seu desenvolvimento e ensinando noções básicas de

funcionamento, tais como vestir, comer, higiene, como refere o especialista

E. Christian Gaudener (fls. 34 e seguintes). São empregadas também

técnicas especiais de educação. O uso de medicamentos também ocorre

para tentar normalizar os processos básicos comprometidos. A utilização da

denominada “medicação sintomática”, objetivando um maior controle do

comportamento das crianças, encontra-se muito desenvolvida. O

importante mesmo é a atenção especializada, considerada particularmente

para cada autista. Existem, por exemplo, métodos envolvendo educação

física, musicoterapia e exercícios aquáticos de coordenação motora. Ainda

são usados segundo o caso: tratamento neurosensorial (integração sensorial,

estimulação e aplicação de padrões, estimulação auditiva, comunicação

facilitada e terapias relacionadas à vida diária); psicodinâmico (terapia dos

abraços e psicoterapia); “condutual” e bioquímico. Bom de ser ressaltado

que o tratamento adequado, segundo entendimentos conceituados, passa

pela denominada “residência terapêutica”, isto é, os profissionais devem

acompanhar o dia a dia do autista em clínicas especializadas, sempre com o

concurso de psicólogos, fonoaudiólogos, psicoterapeutas, pedagogos,

musicoterapeutas, neurologistas entre outros.

A questão, portanto, assim deve ser colocada:

mesmo que a família do autista tenha disponibilidade de pessoalmente

prestar cuidados, o que quase nunca ocorre, tal não é suficiente porquanto o

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autista “tratado domesticamente” não lhe vê confiado o imprescindível

tratamento especializado, que lhe possibilite melhorar gradativamente e,

por exemplo, abrandar-lhe a violência a níveis mais suportáveis, enfim,

propiciar uma melhor adequação do autista ao seu meio.

Segundo o dizer da Presidente da “Casa do

Autista”, os autistas de “baixo funcionamento” são os que mais

dificuldades encontram para conseguir o tratamento adequado porque o

Estado não cumpre a sua obrigação na área, sendo que o existente é

particular e “caro” para a grande maioria da população. Realmente, tais

autistas precisam de atendimento individualizado e com uma multiplicidade

de profissionais, numa carga horária intensiva ou integral. “Estes

tratamentos alcançam excelentes resultados na modalidade de residência

terapêutica” (fls. 05). “À classe pobre resta ficar implorando bolsas nas

instituições, e, quando consegue, fica eternamente à mercê de tê-las

retiradas, ficando reféns das instituições que, muitas vezes, obrigam as

famílias a vender carnês, que nada mais são do que o pagamento de

mensalidades de forma disfarçada”. Colocou ainda a Presidente que é

preciso entender que a família não dispõe de preparo para lidar com a

complexa questão do autismo. Necessário se torna o tratamento

especializado e orientação aos pais paralelamente aos cuidados

direcionados ao doente. Complementou a Presidente, também mãe de uma

criança autista: “a Casa do Autista tem se colocado à disposição da

Secretaria Estadual de Saúde para colaborar na implantação de

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residências terapêuticas, sem ter tido, por parte deste órgão, qualquer

retorno, quanto à disponibilidade de colaboração. Foram várias reuniões

com a equipe de saúde mental, sem qualquer resultado efetivo” (fls. 06).

C – Sobre alguns elementos constantes nos autos de inquérito

civil.

Por sorteio, foram notificadas a comparecer na

Promotoria de Justiça parentes e responsáveis de autistas visando a

obtenção do quadro real da situação.

De fato, Luis Fatimo Fernandes de Almeida (fls.

89), pai de criança autista, foi claro ao mencionar que o Estado não

proporciona qualquer tratamento especializado aos autistas. Tal tratamento,

essencial, geraria uma maior possibilidade do autista adequar-se melhor e

gradativamente ao meio social. Concluiu que “autistas pertencentes a

famílias de menor nível social e econômico encontram-se totalmente

desamparados, em situação calamitosa. O pai do autista sente-se no interior

de um vácuo de informações, não existindo instituição governamental que

confira alguma direção a tomar, algum caminho a percorrer”.

José Marques Inácio Júnior, ouvido a fls. 90/91,

irmão de autista e dentista de pessoas que padecem de tal problema,

afirmou que qualquer que seja o tipo de autismo é necessário um

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acompanhamento especializado, isto é, a própria família, por si só, não tem

condições de cuidar adequadamente. Aduziu que em camadas menos

instruídas da população é comum segregar o autista em um “cercadinho”,

não lhe possibilitando qualquer progresso. Confirmou inexistirem órgãos

públicos que forneçam à população serviço especializado para o tratamento

do autista, bem como desconhece a existência de qualquer convênio

firmado por órgãos públicos com unidades particulares. Esclareceu que em

geral uma instituição em tempo integral é o ideal para as pessoas que

padecem de tal problema, isto considerando exclusivamente o bem do

autista e deixando em segundo plano os sentimentos familiares de

saudades, por exemplo.

André Luiz Mancuzo também foi ouvido (fls.

144/5). Trata-se de pai de criança autista e foi presidente de uma associação

especializada no tratamento de tal tipo de enfermidade. Esclareceu que,

sem dúvida, o autista necessita de acompanhamento e cuidados

especializados. Explicou que, por si só, a família não detém os

conhecimentos necessários para fornecer adequado tratamento ao autista.

Aduziu: “(...) tem conhecimento que nas periferias e nos lugares mais

pobres existem autistas vivendo em condições sub-humanas, não lhes

sendo propiciado qualquer progresso”. Disse que não existe entidade

estatal que forneça o tratamento especializado ao autista, sendo que,

eventualmente, o Estado repassa verbas para algumas entidades não

governamentais. Porém, esclareceu que tais valores são ínfimos, pelo que

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insuficientes para manter o funcionamento das instituições que se valem de

outras fontes de renda. Asseverou que dependendo do caso, considerada a

gravidade da doença, é que se decide sobre a adequação do período de

tratamento, ou seja, integral ou não. Finalizou: “(...) o tratamento a ser

dispensado a um autista não é o mesmo que é devido a um deficiente

mental padrão, ou seja, o autista necessita de tratamento especial,

multidisciplinar, envolvendo as áreas de Saúde, Educação e Assistência”.

Todos os depoentes, pondere-se, referiram que o

diagnóstico e o tratamento especializado desde uma tenra idade são fatores

essenciais para uma melhor adaptação do autista ao meio social. Bem se vê

que a omissão do Estado vem prejudicando sobremaneira os direitos de tais

pessoas, privando-as dos possíveis progressos factíveis com o

acompanhamento especial.

É importante destacar que o tratamento especial

reclamado pelo autista como essencial não se identifica com qualquer um

dos existentes em matéria de saúde-mental no âmbito público, seja

Municipal, seja Estadual.

No apenso ao presente inquérito civil há uma fita

de vídeo com cópia de episódio do programa “Fantástico” da Rede Globo

de Televisão. Em tal programa estabeleceu-se o que seria o autismo, qual o

tratamento adequado, sendo que teve como razão de ser o ocorrido com

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uma senhora que, por falta de orientação e opção, abandonou o seu filho

autista. Há também um álbum de fotografias de uma festa “caipira” onde se

verifica que o autista acompanhado tem chances de uma melhor adaptação

ao seu meio.

Relevante também foi a contribuição do

especialista em autismo infantil, o Dr. Raymond Rosenberg, (CREMESP

18045 – Rua Sampaio Vidal, 256, Tel/Fax 282-2088 – 282-2929 – 852-

9696 – Jardim Paulistano – São Paulo). Este médico é “Fellow da

American Academy of Child Psychiatry, Alumnus da Meninger

Foundation, Ex-Diretor da Henry Schumaker Children`s Unit e Ex-

Residente do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, pelo que

fala com propriedade sobre o assunto (fls. 146/7). Esclareceu: “a) o

autismo infantil é uma alteração de desenvolvimento humano, sereva, que

se inicia antes dos três anos de idade. As áreas atingidas são: socialização,

comunicação, desenvolvimento de padrões no uso dos objetos. Tais

alterações são extremamente incapacitantes pois impedem a aquisição de

repertório comportamental condizente à adaptação nas atividades da vida

diária. b) não podemos classificar os ‘tipos de autismo’. Porém, podemos

ter graus severos, moderados e leves. Esta gradação irá depender do grau

de inteligência, capacidade de fala (mesmo que não comunicativa), nível

de enfermidade(s) orgânica(s) concomitante, nível sócio-econômico dos

pais e capacidade de continência que estes últimos têm em relação ao filho

autista. c) o diagnóstico pode ser feito precocemente, ou seja, já entre os

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14 e 20 meses de idade. d) quanto mais precoce for feito o diagnóstico

mais precoce será a intervenção e mais fácil será a adaptação e o ensino

do autista. e) o autista necessita de tratamento especializado nas seguintes

áreas: comunicação (fonoaudiologia), aprendizado (pedagogia

especializada), psicoterapia comportamental (psicologia),

psicofarmacologia (psiquiatria infantil), capacitação motora (fisioterapia)

e diagnóstico físico (neurologia). f) Dependendo das cidades há algumas

salas de educação especial no ensino Público. São raras e posso

mencionar São José do Rio Preto e São Vicente. A grande maioria está nas

APAEs, que cuidam dos autistas muitas vezes confundindo-os com retardo

mental. O Poder Público auxilia direta ou indiretamente as APAEs. g) sem

atendimento especializado o indivíduo autista não tem condições de

desenvolver-se. Embora muitas famílias sejam continentes dos

comportamentos “bizarros” apresentados e amem o indivíduo autista, elas

não têm capacidade de “normalizar” o desenvolvimento alterado. h) o

indivíduo autista de família pobre é amado, porém o seu comportamento é

tão desviado que ele não recebe dos pais uma atenção em tempo adequado

pois todos os membros da família necessitam estar envolvidos na captação

de renda. Muitas vezes, para não dizer na totalidade dos casos, o autista é

deixado em casa sozinho ou sob o cuidado de alguém (familiar que não

participe na captação de recursos pelos ... ou vizinho que é caridoso) que

não tem treino para cuidar do mesmo. Com a falta de preparo e a

incompreensão das dificuldades do indivíduo autista, os cuidadores

acabam por negligenciá-lo e até, às vezes, abusá-lo nas tentativas leigas de

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“educá-lo” (...)”. Por fim o renomado especialista colocou-se à disposição

daqueles que têm como missão dar ao indivíduo autista seu direito de

cidadania.

De concluir-se pois, sobre a necessidade de

conferir tratamento gratuito especializado ao autista, bem como da

insuficiência da atenção estatal na área.

Ademais, o Estado de São Paulo (Secretaria de

Saúde) foi instado a se manifestar sobre a representação inicialmente

ofertada (fls. 44/45 e fls. 04 – “e”), mas não providenciou qualquer

resposta, o que demonstra o seu desinteresse em corrigir a situação,

ensejando inegavelmente a necessidade de acionar o Poder Judiciário.

II - DO DIREITO

A - Do dever constitucional e legal do Estado fornecer atendimento

especializado aos autistas

Evidentemente a questão central encontra-se

dentro do âmbito dos problemas de saúde vividos pela população,

porquanto seja lá como for capitulado o autismo (doença mental,

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17

deficiência mental, etc.), o certo é que diz respeito à prestação de serviços

de saúde. O próprio problema educacional especial encontra-se ligado

intrinsecamente à área da saúde, pois ele muitas vezes consubstancia

grande parte do cuidado a ser conferido. O autista necessita de tratamento

multidisciplinar específico, pelo que a Constituição Federal é sábia ao

referir que a saúde é dever do Estado e direito de todos, garantindo

mediante políticas sociais e econômicas o acesso universal igualitário às

ações e serviços objetivando a promoção, proteção e recuperação (Art. 196

da Constituição Federal).

A Carta Magna também estabelece no Art. 198

que as ações e serviços de saúde devem garantir um atendimento integral

(inciso II).

De maneira idêntica a Constituição Estadual

delibera sobre a saúde (Art. 219). Em seu Art. 222 estabeleceu-se, dentre

outros princípios, que o sistema único de saúde deve ser organizado ao

nível do Estado considerando a gratuidade dos serviços prestados e a

universalização da assistência de igual qualidade com instalação e acesso a

todos os níveis, dos serviços de saúde à população urbana e rural. O Art.

223 do mesmo diploma legal indica que compete ao sistema único de saúde

a assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de

todos os seguimentos da população, o que é muito relevante quando

consideramos o tema específico do autismo. Compete-lhe ainda, cabe

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referenciar, a implantação de atendimento integral aos portadores de

deficiência, abrangendo desde a atenção primária, secundária e terciária de

saúde, até o fornecimento de todos os equipamentos necessários à sua

integração social.

A Lei n. 8080/90 prescreve que a saúde é um

direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições

indispensáveis ao seu pleno exercício (Art. 2o.). O Parágrafo único do Art.

3o., de outra parte, estabelece a amplitude dos fatores determinantes da

saúde, incluindo que também dizem respeito à matéria as ações que, por

força do disposto no Art. 2o., se destinam a garantir às pessoas e à

coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. O Art. 7o. ,

incisos I e IV, estabelece como princípios a serem adotados nas ações e

serviços de saúde a universalidade de acesso em todos os níveis de

assistência e a igualdade da assistência à saúde. No caso dos autistas,

pondere-se, as condições particulares são mais graves, posto que não

existem instituições públicas que propiciem o necessário serviço. O Art. 43,

de sua parte, estabelece a gratuidade das ações e serviços de saúde.

Mas as normas que regem a matéria não se

resumem ao que até agora foi exposto. De fato, o próprio Código de Saúde

do Estado de São Paulo, Lei Complementar n. 791/95, declarou que a saúde

é umas das condições essenciais da liberdade individual e da igualdade de

todos perante a lei, sendo que o direito à saúde é inerente à pessoa humana,

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constituindo-se em direito público subjetivo (Art. 2o., “caput” e Parágrafo

1o

). Complementando, o Art. 3o. do referido diploma coloca que o estado

de saúde, expresso em qualidade de vida, pressupõe assistência prestada

pelo Poder Público como instrumento que possibilite à pessoa o uso e gozo

de seu potencial físico e mental (inciso III). Pressupõe também, vale trazer

à colação, o reconhecimento e salvaguarda dos direitos do indivíduo, como

sujeito das ações e dos serviços de assistência à saúde, possibilitando-lhe

exigir, por si ou por meio de entidade que o represente e defenda os seus

direitos, serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz,

bem como o tratamento por meios adequados e com presteza, correção

técnica, privacidade e respeito (inciso IV, “a” e “c”). A gratuidade é

característica dos serviços assistenciais (“d”). No bojo do Art. 12 repetiu-se

as diretrizes básicas do “SUS” envolvendo a universalidade de acesso do

indivíduo às ações e aos serviços em todos os níveis de atenção à saúde,

igualdade de atendimento, eqüidade e integralidade da atenção,

significando atendimento pleno ao indivíduo em vista da proteção e do

desenvolvimento do seu potencial biológico e psicossocial (inciso I, letras

“a”, “b”, “c” e “d”). A mesma Lei Complementar, já no Art. 32, inciso III,

prescreve que o sistema único de saúde manterá em funcionamento

atendimento integral aos portadores de deficiências, em todos os níveis de

complexidade, incluindo o fornecimento dos equipamentos necessários à

sua plena integração social. Nas disposições finais (Art. 74) foi previsto,

sem prejuízo da atuação direta do SUS, que o Poder Executivo deve adotar

as medidas necessárias para a execução continuada de programas

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20

integrados referentes à proteção especial ao deficiente, dentre outros

destinatários. Importante referir - porquanto a tutela liminar pretendida

vale-se de tal previsão - que o Estado, pelos seus órgãos competentes

poderá celebrar convênios com a União, outros Estados-membros, os

Municípios e com entidades públicas e privadas, nacionais, estrangeiras e

internacionais, objetivando a execução dos preceitos específicos e

Estatuídos no mencionado Código de Saúde do Estado de São Paulo (Art.

72).

A própria Declaração dos Direitos do Deficiente

Mental, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas de 20 de

dezembro de 1971, estabeleceu que “a pessoa mentalmente retardada tem

direito à atenção médica e ao tratamento físico que requeira seu caso,

assim como à educação, à capacitação, à reabilitação e à orientação que

lhe permitam desenvolver ao máximo sua capacidade e suas aptidões”. Tal

direito foi deliberado para que nos planos nacional e internacional haja a

sua efetiva proteção.

Depreende-se, pois, que os entendidos indicam o

tratamento especializado ao autista uma necessidade, apontando a

residência terapêutica como uma solução viável, inclusive visando a

humanização do atendimento e a reintegração social adequada. A Portaria

n. 106, de 11 de fevereiro de 2000, no entanto, criadora dos serviços

residenciais terapêuticos, além de não ter sido implementada no Estado de

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21

São Paulo, não responderá aos anseios dos defensores dos direitos dos

autistas. Realmente, tal forma de tratamento foi criada para cuidar dos

portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de

longa permanência. Ora, os autistas estão totalmente desamparados, sem

acesso a quaisquer instituições públicas especializadas. Isto significa que

também não terão direito às denominadas residências terapêuticas,

infelizmente.

E o tratamento ao autista não pode ser igual a de

um doente mental padrão. Mesmo esta parcela da população, no entanto,

experimenta deficiências graves, havendo crianças e adultos vivendo em

condições sub humanas em cárceres privados. Passagem jornalística

importante é a colocada por L. F. Barros (educador, escritor e presidente do

Projeto Fênix – Associação Nacional Pró-Saúde Mental, in Jornal da Tarde,

24/10/98, artigo “A Saúde Mental e a Cereja”): “Quem quer que se meta a

calcular o custo/benefício de uma doença, há de se deparar com a

necessidade de calcular qual é o custo de uma vida humana. Quanto vale a

vida dos que se suicidaram por falta de tratamento psiquiátrico? Se

alguém for capaz de realizar este cálculo, pode se considerar incluído no

rol dos que precisam de tratamento”.

Importante é mencionar que a Lei n. 7853/89

estabelece uma série de direitos e obrigações do Estado no que se refere às

pessoas portadoras de deficiência, ou seja, contempla também o universo

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22

autista. O Art. 2o. prescreve que o poder público e seus órgãos têm o dever

de assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus

direitos básicos, inclusive, dentre outros, os relativos à saúde e à educação,

estabelecendo que deve a administração dispensar tratamento prioritário e

adequado. Na área da educação estabeleceu-se a denominada “Educação

Especial”, bem como a inserção no sistema educacional das escolas

especiais. Como obrigação, prescreveu-se a obrigatoriedade da oferta e a

gratuidade da Educação Especial. No âmbito da saúde indicou-se a

necessidade e a obrigação da criação de uma rede de serviços

especializados em reabilitação e habilitação, bem como a garantia de

acesso das pessoas portadoras de deficiência aos estabelecimentos de saúde

público e privado, e de seu adequado tratamento neles, sob normas técnicas

e padrões de conduta apropriados. Por fim, há preconizado o

desenvolvimento de programas de saúde voltados para as pessoas

portadoras de deficiência, os quais lhes ensejem a integração social.

B – Da Jurisprudência e da Doutrina

Como se vê, o apresentado não se trata de um

conjunto de normas programáticas. As Constituições e as leis asseguram a

efetividade social ao direito à saúde, em toda a sua amplitude,

reconhecendo-o como direito público subjetivo. E, neste contexto, o

Page 23: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

23

instrumento processual de defesa em Juízo de tais direitos é a ação civil

pública.

No âmbito Constitucional, Ives Gandra Martins

ensina que “na competência comum da União, dos Estados e dos

Municípios, além do Distrito Federal, está a tarefa de cuidarem da saúde e

assistência pública, além da proteção das pessoas portadoras de

deficiência. Cuidar da saúde pertence à vocação maior do Estado, de

rigor, a meu ver voltada para ofertar segurança pública interna e externa,

administração da justiça, saúde, educação e assistência social latu sensu”

(Comentários à Constituição do Brasil, vol. III, 1988, pág. 382). Mais

adiante, complementa: “É também da competência comum cuidar da

assistência pública. A expressão assistência pública, em sua amplitude,

deve ser entendida não apenas à assistência social ´stricto sensu´ mas a

toda a espécie de assistência que o Estado deve ofertar aos mais carentes,

desde a saúde, previdência até a orientação (...)”. “Por assistência pública

não se deve apenas entender a assistência social, mas também toda a

assistência que o cidadão ou residente merece do Estado, por nele viver. A

parte final do discurso legislativo supremo é apenas reiterativo dos

princípios anteriores, visto que ao cuidar o Estado da assistência pública

ou da saúde, dela não pode excluir as pessoas portadoras de deficiência.

O que talvez tenha pretendido o legislador foi realçar a necessidade de

cuidado maior com as pessoas que têm menores condições físicas,

destacando a relevância que tal tratamento jurídico e humanitário deva

Page 24: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

24

merecer da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O pleonasmo

enfático do discurso constitucional pode, inclusive, ser interpretado como

devendo o Estado cuidar mais de tais pessoas que dos demais cidadãos,

posto que são mais dependentes e possuem limitações a serem supridas

pelo Poder de forma mais acentuada” (ob. cit. pág. 384/385 – grifo nosso).

Sempre é bom ter em vista que se encontram

elencadas na Constituição Federal a cidadania e a dignidade da pessoa

humana como fundamentos do Estado Democrático (Art. 1o.). Foram

arrolados como objetivos principais (Art. 3o.) a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento da nação; a

erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades

sociais e regionais, bem como, importante para a questão presente, a

promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim, deve o Estado

criar as condições que gerem o desenvolvimento do povo, tornando viável a

vida, o que também significa medidas preventivas e corretivas no âmbito da

saúde individual e coletiva. Foi exatamente por tal motivo que à saúde foi

conferido tratamento especial na Carta Magna, erigidos seus serviços e

ações como de relevância pública (Art. 196 da CF). O tema ainda ganhou

constitucionalmente seção própria e foi abordado dando-se ênfase ao

acesso universal e igualitário às ações e serviços.

Page 25: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

25

Com efeito, encontra-se em causa a proteção ao

“mínimo existencial” de que cuida a Declaração Universal dos Direitos do

Homem (1948): “Art. 25 – Toda pessoa tem direito a um nível de vida

suficiente para assegurar a sua saúde (....)”. Sem saúde, ou melhor, sem a

adequada prestação dos essenciais serviços de saúde não há liberdade e

igualdade. Ora, o gozo das liberdades clássicas só é possível com um

mínimo de bem-estar, envolvendo a saúde. Neste sentido, mencionando o

parecer do Digno Promotor de Justiça José Jesus Cazetta Júnior no

Mandado de Segurança n. 743/053.00.011924-8 (11a. Vara da Faz.

Pública): “Sensata, portanto, a observação de Isaiah Berlin: ‘É um fato

que proporcionar direitos ou salvaguardas políticas contra a intervenção

do Estado no que diz respeito a homens que mal têm o que vestir, que são

analfabetos, subnutridos e doentes, é o mesmo que caçoar de sua

condição: esses homens precisam de instrução ou de cuidados médicos

antes de poderem entender ou utilizar uma liberdade mais ampla (cf.

“Quatro Ensaios sobre a Liberdade”, Brasília: Ed. Universidade de Brasília,

1981, pág. 138). Em tom menos candente, mas substancialmente igual,

John Rawls advertiu que, entre constrições definitivas da liberdade, figura

‘a ausência generalizada de meios’ (CF. “A Theory of Justice”, Oxford:

Oxford University Press, 1980, pág. 204)”. É exatamente por tal motivo

que a Carta Magna atribui ao Estado a responsabilidade pela assistência

terapêutica integral e gratuita, questão básica para se atingir as outras

liberdades e a própria Democracia.

Page 26: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

26

Interessante é ainda trazer à colação o constante

no V.Acórdão, oriundo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos

Territórios (Relator Waldir Leôncio Júnior), citando a r.sentença analisada

e o mestre José Afonso da Silva: “A saúde é um direito social conforme

entende o art. 6o. da Constituição e como direito fundamental do cidadão

não é norma programática, não encerra somente uma promessa de

atuação do Estado, mas tem aplicação imediata. Na lição do insigne

constitucionalista José Afonso da Silva ‘os direitos sociais, como dimensão

dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais,

enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores

condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a

igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se

conexionam com o direito da igualdade. Valem como pressupostos do gozo

dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais

propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez,

proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da

liberdade’. Não é despiciendo registrar ainda que se insere entre os

objetivos fundamentais da República Brasileira ‘estabelecer uma

sociedade livre, justa e solidária’, tendo-se em vista a realização da justiça

social, ou seja, busca a nação a promoção do ‘bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas

de discriminação’”. Mais adiante, asseverou, mencionando outro

V.Acórdão, que a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores é pacífica

no sentido da observância dos dispositivos constitucionais, no que concerne

Page 27: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

27

ao ‘direito à saúde’. A proteção, como já visto, também é ampla no caso

das pessoas portadoras de deficiência.

Na apelação cível n. 22.786-0, analisando

questão individual, a Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de

São Paulo, decidiu que “se o Estado não pode proporcionar tratamento

adequado a todos os menores deficientes, deve promover este tratamento

por outros meios, às suas expensas. Jamais utilizar a falta de estrutura

como justificativa para sua omissão”. A questão do autismo é idêntica. Os

autistas têm direito ao recebimento de atendimento especializado e também

de não ingressar em mera fila de espera da superação da inércia estatal. Isso

não é tratamento adequado. Se o Estado não pode proporcionar diretamente

tal tratamento aos autistas, deve promover e financiar este cuidado

essencial por outros meios, ou seja, às suas expensas, inclusive sob pena de

multa suficientemente alta para inibir e desencorajar o Estado em

descumprir mandamento judicial, porquanto fosse ela fixada de forma

menos gravosa aos cofres públicos, haveria o risco de deixar o autista

entregue ao criminoso critério do custo-benefício quando o valor da multa

pelo descumprimento for inferior a uma diária em obra adequada ao

tratamento especializado, o Estado certamente estará tentado a descumprir

a decisão judicial.

Conforme cópias que acompanham a presente

(fls. 08/17) já foi ajuizada, visando resguardar os direitos de autista,

Page 28: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

28

ação ordinária de obrigação de fazer, com pedido de antecipação de tutela,

contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Em decisão judiciosa e

lúcida o Eminente Magistrado da 2a. Vara da Fazenda Pública

deliberou:”(...) 2. Defiro a antecipação da tutela requerida. Em

conseqüência fica a Fazenda do Estado de São Paulo obrigada a arcar

com os custos de tratamento e internação do autor em entidade

especializada, próxima a residência do mesmo, até que sejam construídas

unidades especializadas no tratamento, acompanhamento e internação

especializado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 3. A tutela

antecipada é concedida na forma acima exposta pois há verossimilhança

nas alegações ofertadas, tendo em vista os documentos juntados com a

petição inicial, e considerando os seguintes dispositivos Constitucionais e

legais: artigos 6o., 23, II, 196, 197 e 198 da Constituição da República; e

artigos 219, parágrafo único, “2”, e 223, I e II, alínea “f”, e inciso IX, da

Constituição Bandeirante. Acrescente-se que o sentido da expressão

‘acesso universal e igualitário’, inserido nos artigos 2o., parágrafos 1

o. e

7o., inciso IV, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90) é precisamente o

de garantir à população o acesso aos serviços e ações de saúde, de forma

indireta, sem privilégios de qualquer espécie. 4. Além disso, existe também

o ‘fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação’ (artigo 273,

inciso II, do CPC) em face das características da enfermidade do autor. 5.

Observo, ainda, que não há perigo de irreversibilidade do provimento

antecipado. (...)” (fls. 18 e fls. 07).

Page 29: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

29

Por fim, cabe asseverar que a tutela jurisdicional

à saúde tem sido considerada tão ampla que até tratamentos médicos

especializados no exterior têm sido objeto de ações que geraram a

obrigação do poder público em ressarcir o particular. Para exemplificar, de

mencionar-se o “AC 96.01.10504-2/MG – Apelação Cível, Juiz Hilton

Queiroz – Quarta Turma do TRF”, nos seguintes termos: “A indenização

por gastos efetuados com tratamento de saúde de filho menor, no exterior,

funda-se no cumprimento do artigo 196 da Constituição Federal, ficando

afastada a alegação de ofensa aos artigos 2o. e 167-II da mesma

Constituição, pois o Juiz apenas decidiu o caso concreto, no exercício de

jurisdição contenciosa, nem, com sua sentença, elaborou lei

orçamentária”.

C – Licitação e previsão orçamentária, em face do

pedido de tutela antecipada a ser realizado.

Por primeiro, apenas por excesso de zelo, deve

ser referenciado que a Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000,

estabelecedora de normas de finanças públicas voltadas para a

responsabilidade na gestão fiscal, denominada Lei de Responsabilidade

Fiscal, não impede qualquer atuação judicial tendente a reparar a situação

de perigo à vida e à saúde, já que tal possibilidade encontra nascedouro e

amparo diretamente na Constituição Federal. Assim, considerando que a lei

em comento foi idealizada para defender as finanças públicas dos

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30

administradores irresponsáveis, ela visou obviamente a lisura

administrativa para a consecução do bem comum, porquanto as finanças

não constituem um valor em si. Desta forma, toda a discussão sobre

eventual impossibilidade de realização de despesa cai por terra. Ora, na

hipótese, são direitos constitucionais os que estão sendo aqui discutidos.

Devido à existência de tais direitos é que se pretende a tutela (à vida, à

saúde, à assistência), isto é, a própria razão de ser da lisura administrativa.

Caso contrário, situação fática levada a Juízo cuja decisão teria como

conseqüência a vida ou a morte do interessado, encontraria a absurda

resposta da impossibilidade da tutela.

O debate sobre licitação e prévia previsão

orçamentária, o que envolve também a Lei de Responsabilidade Fiscal, é

importante principalmente tendo em vista o pedido de tutela antecipada que

será realizado.

Sobre o tema, em questões semelhantes, já se

manifestaram os Tribunais:

“O Judiciário não desconhece o rigorismo da

Constituição ao vedar a realização de despesas pelos órgãos públicos além

daquelas em que há previsão orçamentária; este Poder, todavia, sempre

consciente de sua importância como integrante de um dos Poderes do

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31

Estado, como pacificador dos conflitos sociais e defensor da Justiça e do

bem comum, tem agido com maior justeza optando pela defesa do bem

maior, veementemente defendido pela Constituição – A VIDA –

interpretando a lei de acordo com as necessidades sociais imediatas que

ela se propõe a satisfazer” (Apel. Cível n. 98.006204-7, Santa Catarina,

Rel. Nilton Macedo Machado, 08/09/98).

Mais adiante, neste mesmo decisório: “Com

relação à previsão orçamentária para o custeio dos medicamentos

específicos, basta relembrar que já há, no orçamento do Estado, dotação

apropriada; da mesma forma não pode o apelante pretender eximir-se de

suas responsabilidades sob a alegação de que enfrenta sérios problemas

financeiros, em face da escassez de recursos, o que soa falso em face dos

gastos publicitários que se vê nos meios de comunicação, apregoando

obras e realizações governamentais (...)”. Citando Celso de Mello em caso

também relativo à saúde: “A singularidade do caso (...), a

imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo Poder Judiciário

do Estado de Santa Catarina (...) e a impostergabilidade do cumprimento

do dever político constitucional que se impõe ao Poder Público, em todas

as dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a proteção à

saúde (CF, art. 6o., c.c. art. 227, Parágrafo 1

o.) constituem fatores, que,

associados a um imperativo de solidariedade humana, desautorizam o

deferimento do pedido ora formulado pelo Estado de Santa Catarina (...).

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como

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32

direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da

República (art. 5o., caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa

fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo –

uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica

impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à

vida”.

Destaque-se que a atual ausência de

estabelecimentos adequados para tratamento dos autistas afetam seus

direitos indeclináveis à saúde e à vida, posto que, desamparados,

permanecem, sabe-se lá como, no interior de casas, de favelas ou pelas ruas

sem qualquer tratamento que gere pelo menos uma esperança de um futuro

melhor, com a adaptação ao meio social e físico de forma gradativa.

Ainda no que respeita à necessidade ou não de

licitação, para o cumprimento da tutela preliminar pretendida (e mesmo, ao

final), tem-se que a própria Lei de Licitações (n. 8666/93) dispensa a

necessidade de licitação, sempre que caracterizada a urgência do caso. É o

que prescreve o Art. 24, inciso IV, do referido diploma legal: “(...)é

dispensável a licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública,

quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa

ocasionar prejuízo à segurança da pessoa”. Sobre tal tema, assim se

posicionou Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e

Contratos Administrativos, 4a. ed., Aide Editora, pág. 152): “o dispositivo

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33

enfocado refere-se aos casos onde o decurso de tempo necessário ao

procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas

indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Quando fosse concluída

a licitação, o dano já estaria concretizado. A dispensa de licitação e a

contratação imediata representam uma modalidade de atividade

acautelatória do interesse público”.

Aliás, acertadamente, em todos os casos

ajuizados por este Grupo de Atuação perante os Excelentíssimos Juízes da

Fazenda Pública não houve decisões contrárias a tais preceitos.

Irrelevante se mostra eventual falta de prévia

dotação orçamentária que possibilite o cumprimento da antecipação da

tutela. Consoante enfatiza com lucidez João Angélico (Contabilidade

Pública, Ed. Atlas, pág. 35): “Durante a execução orçamentária, o Poder

Executivo pode solicitar ao Legislativo, e este conceder, novos créditos

orçamentários. Eles serão adicionados aos créditos que integram o

orçamento em vigor. Por essa razão, denominam-se créditos adicionais.

Os créditos adicionais aumentam a despesa pública do exercício, já fixada

no orçamento”. De qualquer forma, a obrigação de não excluir os autistas

de serviços especializados de saúde e educação é dever do Estado, já que

assim deve agir indistintamente, para com todos os cidadãos (AI n.

96.010901-3 – TJ-SC).

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34

Importante o decidido com total propriedade pelo

Des. Xavier Vieira, no V.Acórdão referente ao agravo de instrumento n.

96.012721-6: “sendo a saúde direito de todos e dever do Estado (CF, art.

196, CE, art. 153), torna-se o cidadão credor desse benefício, ainda que

não haja serviço oficial ou particular no País para o tratamento

reclamado. A existência de previsão orçamentária própria é irrelevante,

não servindo tal pretexto como escusa, uma vez que o executivo pode

socorrer-se de créditos adicionais. A vida, dom maior, não tem preço,

mesmo para uma sociedade que perdeu o sentido da solidariedade, num

mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e insensível. Contudo, o

reconhecimento do direito à sua manutenção (...), não tem balizamento

caritativo, posto que carrega em si mesmo, o selo da legitimidade

constitucional e está ancorado em legislação obediente àquele comando.

Além do mais, não há necessidade de procedimento licitatório em casos de

emergência, quando caracterizada urgência de atendimento de situação

que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas,

obras e serviços” (vide também Apelação cível n. 98.001145-0 e

98.001146-9, Santa Catarina, Relator Des. Newton Trisotto).

José Cretella Júnior, na obra “Comentários à

Constituição de 1988”, vol. III, pág. 4331, citando Zanobini asseverou que

”nenhum bem da vida apresenta tão claramente unidos o interesse

individual e o interesse social, como o da saúde, ou seja, do bem-estar

físico que provém da perfeita harmonia de todos os elementos que

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35

constituem o seu organismo e de seu perfeito funcionamento. Para o

indivíduo saúde é pressuposto e condição indispensável de toda atividade

econômica e especulativa, de todo prazer material ou intelectual. O estado

de doença não só constitui a negação de todos estes bens, como também

representa perigo, mais ou menos próximo, para a própria existência do

indivíduo e, nos casos mais graves, a causa determinante da morte. Para o

corpo social a saúde de seus componentes é condição indispensável de sua

conservação, da defesa interna e externa, do bem-estar geral, de todo

progresso material, moral e político. As pessoas doentes representam ônus

e perigo contínuo para a sociedade: ônus, na medida em que não lhe

trazem nenhuma contribuição de trabalho e exigem cuidados e assistência

que comprometem meios econômicos e atividades de outras pessoas;

perigo, pela possibilidade da propagação da doença a outras pessoas e,

em alguns casos, à propagação rápida, de caráter epidêmico”. Nota-se,

pois, o interesse até mesmo econômico do Estado em regularizar as

situações relativas à saúde. Autista sem atendimento especializado não

progride, adoece em “cercadinhos” como se fosse um animal, o que, com o

tempo, implica na realização de outros gastos por parte do Estado.

O Supremo Tribunal Federal, reitere-se dada a

importância, através do eminente Ministro Celso Mello, apreciando pedido

de suspensão de liminar formulado pelo Estado de Santa Catarina, em

petição n. 1246-1, concluiu: “Entre proteger a inviolabilidade do direito à

vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela

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36

própria Constituição da República (art. 5o., caput), ou fazer prevalecer,

contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e

secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que

razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível

ação: o respeito indeclinável à vida”.

Assim, a mais elevada Corte de Justiça do país

considerou que as decisões judiciais na área da defesa da saúde e da vida

contra a omissão do Estado, longe de caracterizar ameaça à ordem pública

e administrativa, traduz-se em gestos digno de reverente e solidário apreço

à vida dos destinatários dos serviços de saúde como os autistas (vide

Agravo de Instrumento n. 97.002948-9, Santa Catarina, Des. Relator

Gaspar Rubik).

Eventuais alegações do Estado, de forma cômoda

defendendo intransigentemente o respeito à previsão orçamentária

elaborada pela Casa Legislativa, no sentido de que não possui verbas para

custear as despesas advindas dos pedidos liminar e principal, carecem de

fundamento. Com efeito, a previsão orçamentária é passível de alterações.

Interessante também é referir que a ação civil

pública e a ação popular são meios à disposição de entidades, do Ministério

Público e dos cidadãos para fiscalizar o orçamento e sua execução. De

outra parte, vale dizer, a lei orçamentária é norma programática. Mesmo

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37

sendo lei, como visto, não possui coerção típica de uma lei. É possível o

seu não cumprimento, já que o interesse público não é estático e pode ser

modificado. Sobre a utilização da ação civil pública para adequar a conduta

do administrador, ressalte-se novamente que isso não representa ingerência

alguma, porquanto é a própria Constituição Federal (Art. 129, inciso III) e

as leis que lhe especificam que admitem tal proceder. Colocadas tais

premissas mostra-se inviável se acenar com falsos argumentos como a falta

de previsão orçamentária. Aliás, neste aspecto, importante é trazer à

colação parte do V. Acórdão proferido no Agravo de Instrumento n.

82.036-5, da Oitava Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo, Rel. José Santana, tratando sobre o fornecimento de

medicamento especial em ação intentada em face da Fazenda Pública: “A

respeito, cabe ver que a Portaria n. 21, de 21.3.95, do Ministério da Saúde,

já recomendava a utilização da combinação de novos medicamentos com o

então conhecido AZT, de modo que, somente atribuível à incúria da

Administração não ter ela já licitado, - inclusive com previsão

orçamentária – de modo a permitir, de modo continuado, o fornecimento

de tais medicamentos aos dele necessitados, em quantidades adequadas.

Portanto, não socorre a agravante o argumento de necessidade de

licitação prévia ou previsão orçamentária, muito menos cabe-lhe colocar

em dúvida a eficácia dos remédios em questão, os quais, aliás, são sempre

receitados pelos médicos”.

Page 38: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

38

III – Da Discricionariedade Administrativa

O Estado sempre procura safar-se de suas

obrigações alegando que o Poder Judiciário ao conferir as medidas

necessárias para regularizar a situação caótica, está em verdade invadindo a

discricionariedade administrativa, não respeitando a divisão de poderes,

não observando os critérios da conveniência e oportunidade do

administrador.

Sem razão, porém. A teoria clássica da

repartição de funções estatais dentre vários órgãos independentes, cujos

contornos iniciais surgiram com Aristóteles, reservou ao Poder Executivo

as funções de gerenciamento da “res” pública e prestação de serviços à

comunidade. Contudo, para o bom desempenho dessas funções e o alcance

efetivo de suas finalidades, a Administração Pública tem assegurada uma

posição de supremacia em relação aos administrados com a existência de

diversos poderes da administração. Essa posição hierarquicamente superior

da Administração Pública deve coadunar-se com as regras básicas de um

Estado de Direito e vislumbra, sempre, o interesse público, não podendo

confundir-se com arbítrio.

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39

Relevante ponderar que a Administração Pública

deve, assim como todos os administrados, total obediência ao primado da

Constituição e da legalidade.

Dessa maneira, os poderes exercidos pelo

administrador público são norteados e regrados pelas normas

constitucionais e legais, mesmo nas hipóteses em que o ordenamento

jurídico permite uma maior interação da vontade subjetiva da

administração na formação do ato administrativo.

Segundo lição de Hely Lopes Meirelles, poder

discricionário não se confunde com poder arbitrário. Discricionariedade e

arbítrio são atitudes inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade

de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é

ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, quando autorizado

pelo direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido

(Direito Administrativo Brasileiro, Editora Revista dos Tribunais, 1991,

página 98). Ademais: “só a Justiça poderá dizer da legalidade da invocada

discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo” (obra

citada).

O que é aqui tratado, pondere-se de passagem,

não cuida de mera opção do administrador, mas total omissão que afronta

as normas constitucionais e legais. O administrador, por óbvio, não pode

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40

optar pelo nada fazer e observar passivelmente o sofrimento alheio, agindo

de forma omissa e ineficiente.

Quando o Magistrado em sua função jurisdicional

determina a observância das condições necessárias para reverter quadro

prejudicial à saúde da população, não se encontra à evidência exorbitando.

O Estado sim, é que exorbita, ao negar até o básico. Com certeza, repise-se,

não se encontra no âmbito da conveniência e oportunidade do

administrador dar ou não o básico, ou seja, fazer ou não permanecer

situação que pode levar ao dano irreparável à saúde e à vida de várias

pessoas! O pedido na espécie, pois, visará o básico necessário para evitar

ocorrências lesivas à saúde e ao progresso dos autistas, destinatários

também dos serviços de saúde pública, assistenciais e educacionais, pelo

menos deveriam ser.

Não tem sido outro o posicionamento

jurisprudencial: “não pode ser aceita a alegação da agravante, de que não

tem condições imediatas de resolver o problema e que a ação significa

indevida intromissão do Judiciário no Poder Executivo. Após a concessão

da liminar, algumas providências foram adotadas pela Municipalidade, o

que demonstra que de fato havia uma situação de perigo e que impossível

não é a solução do problema. E, convenha-se, o direito à saúde e ao

saneamento é garantia constitucional e sua preservação pelo Judiciário

não significa interferência no Executivo” (g.n.) (Agrav. de Instr. N.

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41

204.059-1 – Terceira Câmara do Tribunal de Justiça – Relator Gonzaga

Franceschini).

Pondere-se ainda que “dúvida não sucede no

tocante às limitações do conteúdo discricionário da Administração a fim

de harmonizá-lo com o superior princípio constitucional da moralidade, e

possibilitar-lhe a missão de servir ao bem comum do povo. Enfim, a opção

que cabe ao administrador adotar é a tendente a alcançar soluções

enquadradas na legalidade, com vistas postas no interesse público, máxime

se difusos e correlacionados com incontornável interesse social, ad instar

da espécie sob exame. Vale dizer: a execução do ato administrativo é

vinculada à obrigação legal imposta ao Poder Público” (g.n.). (Agrav. de

Instr. n. 221.677-1 – 2a. Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo – Rel.

Vasconcellos Pereira).

De referir-se também o Acórdão da Oitava

Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

(Agravo de Instrumento n. 86.815-5 – São Paulo): “Sequer se pode falar

em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, consagrado na

Constituição da República. É que, por força de preceito constitucional, é

assegurado a todos o acesso à Justiça, impondo-se ao Judiciário o dever

de apreciar todas as questões que lhe forem apresentadas. Assim sendo,

como bem decidiu o eminente Desembargador Nigro Conceição, ´se é

assegurado a todos, indistintamente, o acesso à Justiça, a fim de assegurar

Page 42: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

42

direitos postergados ou violados, inegavelmente, não tem o Judiciário,

para cumprir sua sagrada missão de julgar, outra alternativa senão a de

apreciá-los, em face das normas que os concedem ou asseguram, para

garantir-lhes o exercício ou eficácia. Limitar a atuação do Judiciário,

nesse campo, data maxima venia, é obstar o próprio cumprimento da Lei

Maior quando assegura o acesso à Justiça, sempre que exista um direito

violado ou na iminência de o ser`”.

Aliás, o executivo não tem o poder de vida e de

morte sobre os administrados, de forma que não lhe cabe a opção entre

realizar ou não obras e serviços que minimizem os riscos à saúde, que

propiciem serviços especializados à parcela necessitada da população.

Assim, o Judiciário não só pode, como deve, impedir que a atividade

administrativa ou a omissão, reveladoras de um descaso ou esquecimento,

sejam nocivas à saúde pública, à assistência social e aos direitos dos

deficientes.

Não se pode negar que a Administração, na

implementação de seus desideratos ligados ao bem comum, tem obrigações

e deveres variados, da mesma forma que é investida de direitos e

faculdades. Quando atua ou se omite, o administrador, por vezes, equivoca-

se, divorciando-se do bem comum, mantendo-se na contemplação

distorcida da verdade social, omitindo-se e negligenciando uma situação

grave. Aí é que surge a possibilidade de correção da omissão ou do desvio

Page 43: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

43

praticado por intermédio dos mecanismos de controle da administração,

entre os quais destaca-se o Poder Judiciário. A tutela jurisdicional, repise-

se, não representa uma interferência indébita que contraria a regra da

divisão de Poderes. É cediço que a harmonia entre os Poderes exige uma

interdependência recíproca. Sob tal ângulo de apreciação, os norte-

americanos construíram a teoria dos freios e dos contrapesos (“checke and

balances) que permite a ingerência de um Poder na vida do outro de

maneira a propiciar o necessário equilíbrio do Estado. Ora, ante a

inviabilidade de exclusivismo e isolamento, não há negar a

interdependência dos poderes, em virtude do que a teoria dos poderes pode

e deve, técnica e cientificamente, ser caracterizada como a teoria da

interdependência dos poderes (vide Aderson de Menezes, in Teoria Geral

do Estado, 1984, p. 258).

Assim, quando o Poder Judiciário atua na

avaliação de determinados interesses públicos, o faz na condição de revisor

da violação de direitos subjetivos e coletivos que deles derivam, impedindo

omissões e desvios administrativos. Desnudados os limites da

discricionariedade, não pode o Judiciário, a pretexto de garantir o equilíbrio

do Estado, furtar-se de sua função de órgão revisor da violação de direitos,

mas deve pronunciar a cada caso o Direito. A Carta Federal, pondere-se,

estabeleceu o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. A ação

civil pública, em tal contexto, busca a submissão da Administração à

legalidade.

Page 44: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

44

O direito à saúde e à vida, bem como a tutela de

tais bens, devem ser tratados com prioridade, inclusive porque a

Constituição em seu Art. 197 colocou, de forma singular, as ações e

serviços de saúde como de relevância pública, ou seja, estabeleceu-se,

constitucionalmente, a prioridade com que deve ser tratada a questão.

Em suma, o caso cuida de inércia injustificável,

não se trata de poder de eleição pelo autor ou pelo Judiciário de diretrizes

governamentais, mas de reverter situação calamitosa e dramática. Portanto,

não há ingerência indébita no poder executivo. Não há violação ao disposto

no Artigo 2o. da Constituição Federal.

Como salientado por Tomás-Ramón Fernández

deve-se “conceder à administração – nos limites casuisticamente

permitidos pela Constituição – tanta liberdade quanto necessite para o

eficaz cumprimento de suas complexas tarefas” (Arbitrariedad y

discrecionalidad. Barcelona: Civitas, 1991, p. 117).

Ora, o administrador não tem a

discricionariedade, em conseqüência, para deixar de cumprir suas tarefas

constitucionalmente previstas, não existe liberdade neste aspecto mas dever

do Estado e direito do cidadão.

Page 45: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

45

Verifica-se, portanto, a necessidade do Poder

Judiciário (CF, art. 5o., XXXV), em defesa dos direitos fundamentais e

serviços essenciais previstos pela Carta Magna – vida, dignidade da pessoa

humana, saúde – garantir a eficiência dos serviços prestados, inclusive

responsabilizando as autoridades omissas, porquanto conforme leciona

Alejandro Nieto: “quando o cidadão se sente maltratado pela inatividade

da administração e não tem um remédio jurídico para socorrer-se, irá

acudir-se inevitavelmente de pressões políticas, corrupção, tráfico de

influência, violências individual e institucionalizada, acabando por gerar

intranqüilidade social, questionando-se a própria utilidade do Estado” (La

inactividad material de la administración. Madri: Documentacion

administrativa n. 208, 1986, p. 16).

Consigne-se, por fim, que o tratamento ao autista

constitui serviço essencial de saúde e assistencial, pelo que deveria ser

contínuo. A prestação devida à sociedade pelo Estado, coloca-os na

condição de consumidor e prestador (vide Art. 2o. da Lei n. 8078/90). Ora,

nos exatos termos do Art. 22 dessa mesma Lei os órgão públicos são

obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos

essenciais, contínuos, sendo que nos casos de descumprimento, total ou

parcial, das obrigações mencionadas, serão as pessoas jurídicas compelidas

a cumpri-las e a reparar os danos causados.

Page 46: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

46

V – Do Autista como pessoa portadora de deficiência – da Criança e do

Adolescente Autista

A “Convenção Interamericana para Eliminação

de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de

Deficiências”, realizada na Guatemala, quando da Assembléia Geral da

Organização dos Estados Americanos – OEA (Convención Interamericana

para la eliminación de todas las formas de discriminación contra las

personas com discapacidad, apobada em la primera sesión plenária,

celebrada el 7 de junio de 1999), firmou que “deficiência” significa uma

restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória,

que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais à vida

diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Nos termos

de tal Resolução os autistas vêm sofrendo certa discriminação em nosso

âmbito porque se estabeleceu que esta atitude contra “as pessoas

portadoras de deficiência significa toda diferenciação, exclusão ou

restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência

de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada,

que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento,

gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus

direitos humanos e suas liberdades fundamentais”. Ora, a discriminação no

caso ocorre de forma institucionalizada porque, apesar de ser do

conhecimento do governo o problema dos autistas, muitos deles vivendo

como animais completamente desamparados, sem quaisquer perspectivas,

Page 47: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

47

jogados à sua própria sorte, não ocorre a disponibilização dos serviços,

ensejando sérios prejuízos à liberdade fundamental do indivíduo.

Especificamente, neste contexto, a tutela Constitucional é ampla, inclusive

determinando a prestação assistencial objetivando sua integração à vida

comunitária (art. 203, IV), sendo que o art. 208, inciso III, prevê o dever do

Estado de prestar educação especial aos portadores de deficiência. Segundo

já foi assinalado anteriormente, a Lei n. 7853/89, principalmente em seu

art. 2o., estabelece a obrigação do Estado fornecer tratamento prioritário,

educação especial e serviços de saúde aos portadores de deficiência,

estabelecendo como uma garantia o oferecimento de estabelecimentos de

saúde para os cuidados adequados (“sob normas técnicas e padrões de

conduta apropriados”).

O Art. 227, “caput”, por outro lado, dispõe

sobre o dever do Estado de dar proteção especial às crianças e aos

adolescentes portadores de deficiência. Isso para não falar de todos os

direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Importante é ter

isso em mente porque, embora não esgote o campo dos destinatários dos

serviços de saúde e especiais na área do autismo, o universo infantil e

adolescente compreende significativa parcela do todo. O Art. 3o. (ECA)

prescreve que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana, com proteção integral,

assegurando-lhes todas as oportunidades para o desenvolvimento físico,

mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. O

Page 48: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

48

Art. 4o. estabelece que é também dever do Poder Público assegurar, com

absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes, dentre outros, à

vida e à saúde. A garantia compreende a precedência de atendimento nos

serviços públicos ou de relevância pública. O Art. 7o. determina: “a

criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a

efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o

desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

Importante mesmo é o disposto no Art. 11, “caput”: “É assegurado

atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único

de Saúde, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços

para promoção, proteção e recuperação da saúde. $ 1o. A criança e o

adolescente portadores de deficiência receberão atendimento

especializado. $2o. Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente

àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos

relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.”.

No próprio corpo do “Tomo 1 Caderno 4 do

Fórum São Paulo Século XXI” (fls. 121/142v. dos autos de inquérito civil),

publicado em suplemento no Diário Oficial do Estado no dia 6 de junho de

2000, sob responsabilidade conjunta da “Assembléia Legislativa de São

Paulo”, do “Seade – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados”, do

“Fórum Século XXI” e do “Governo do Estado de São Paulo” ficou

consignado (fls. 86 do suplemento – fls. 130v.) que a Constituição Federal

de 1998 determina que é competência comum da União, dos Estados, do

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49

Distrito Federal e dos municípios cuidarem, da educação e da saúde das

pessoas portadoras de deficiência, garantindo-lhes assistência e proteção,

tanto para as moradoras de áreas urbanas, quanto para as de áreas rurais.

Definiu ainda deficiência como “perda total ou parcial de estrutura ou

função fisiológica ou psicológica”, aduzindo conceitos de “incapacidade” e

de “desvantagem”. Apesar de tal reconhecimento, verifica-se que o Estado,

como já afirmado, não vem fornecendo o necessário cuidado aos autistas.

Da mesma forma, em novo suplemento do Diário

Oficial do Estado, Seção I do Poder Executivo, datado de 08 de agosto de

2000, comemorativo dos 10 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente,

sob responsabilidade do “Governo do Estado de São Paulo” e da

“Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social” (fls. 113/120v.) há o

reconhecimento de forma plena, com base no Art. 4o. da Lei n. 8069/90,

que é dever do poder público assegurar com absoluta prioridade a

efetivação dos direitos referentes, dentre outros, à vida, à saúde e à

educação. Em seu parágrafo único estabeleceu-se que a prioridade absoluta

compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer

circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços públicos ou de

relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas

sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas

relacionadas com a proteção à infância e à juventude. A fls. 04/05 do

suplemento, o próprio Estado reconhece como direitos a promoção, a

proteção e a recuperação da saúde com acesso universal e igualitário a

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50

todas as ações e serviços (art. 11 do ECA). Outrossim, especificamente

afirma ser direito das crianças e dos adolescentes a prestação de

atendimento médico especializado e outros recursos para tratamento,

habilitação ou reabilitação de portadores de deficiência (fls. 05 do referido

suplemento).

O Art. 54 do ECA e o mencionado suplemento

editado pelo Governo do Estado indicam que é dever do poder público

assegurar “atendimento educacional especializado aos portadores de

deficiência”.

Agora sob a égide dos diplomas internacionais de

mencionar a “Convenção sobre os Direitos da Criança”, adotada pela

Resolução n. L.44 – XLIV, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20

de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990,

que, em seu Art. 23 estabelece o reconhecimento pelos Estados-partes do

direito da criança deficiente física ou mental de uma vida plena e decente,

estabelecendo como princípio a gratuidade da assistência, visando

assegurar o acesso à educação, à capacitação, aos serviços de saúde, aos

serviços de reabilitação, etc. Esta Convenção, bom de ser esclarecido,

conceituou criança todo ser humano menor de 18 anos de idade (art. 1o.).

VI – DA LEGITIMIDADE PASSIVA – DO ESTADO DE SÃO PAULO

Page 51: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

51

Primeiramente, cabe referenciar que o Art. 4o.

Parágrafo 1o., da Lei Complementar n. 791, de 9 de março de 1995,

estabelece que “por serem de relevância pública, as ações e os serviços

públicos e privados de saúde implicam co-participação do Estado, dos

Municípios, das pessoas e da sociedade em geral, na consecução de

resultados qualitativos e quantitativos para o bem comum em matéria de

saúde”.

Devemos salientar que o serviço a ser deferido aos

autistas é especializado porque envolve diversas disciplinas seja no campo

da saúde, seja no educacional, isto é, trata-se de sistema de alta

complexidade, de responsabilidade da gestão estadual, nos termos do inciso

VI do Artigo 15 da mencionada Lei Complementar. Além do mais, em seu

§ 1º encontra-se prescrito que o Estado é responsável pelas ações e serviços

de saúde nos Municípios, no limite das deficiências locais. O Artigo 17,

inciso I, da mesma forma, confere responsabilidade à direção estadual do

“SUS” nas ações e serviços de assistência integral à saúde. O inciso II deste

artigo (letra “a”) prescreve de forma clara que lhe compete, em articulação

com os Municípios, “as medidas de proteção especial à criança, ao

adolescente, ao idoso, ao portador de deficiência e à pessoa acometida de

transtorno mental”. Importante mesmo é o teor da letra “b” que confere

outras responsabilidades ao Estado: “o atendimento integral aos portadores

de deficiências, de caráter regionalizado, descentralizado e hierarquizado

Page 52: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

52

em níveis de complexidade crescente, abrangendo desde a atenção primária

de saúde até o fornecimento dos equipamentos necessários à sua integração

social”. Assim, de ponderar-se que como o Estado recebe recursos do

“SUS” deve responsabilizar-se também quanto à omissão neste âmbito.

Além do mais, a omissão encontra-se no âmbito estadual.

Em igual direção encontra-se o Art. 17 da Lei n.

8080 de 19 de setembro de 1990.

A própria Constituição Estadual estabelece

responsabilidades conjuntas do Estado e dos Municípios que deverão

garantir, mediante o acesso universal e igualitário, o direito à saúde com

atendimento integral do indivíduo, abrangendo a promoção, preservação e

recuperação (Art. 219, “2” e “4”). Tanto é verdade que o Artigo 222,

“caput” e incisos IV e V estabelecem respectivamente: “As ações e os

serviços de saúde executados e desenvolvidos pelos órgãos e instituições

públicas estaduais e municipais, da administração direta, indireta e

fundacional, constituem o sistema único de saúde, nos termos da

Constituição Federal, que se organizará ao nível do Estado de acordo com

as seguintes diretrizes e bases:

IV – universalização da assistência de igual qualidade com instalação e

acesso a todos os níveis, dos serviços de saúde à população urbana e

rural;

Page 53: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

53

V – gratuidade dos serviços prestados, vedada a cobrança de despesas e

taxa, sob qualquer títuto”.

Patente, pois, a responsabilidade do Estado

quanto à matéria, bem como sua legitimidade passiva. Além do mais, a

ausência de atuação Municipal na área enseja a obrigação de suprimento

por parte do Estado de São Paulo, mesmo porque se trata de questão de

saúde (educação e assistencial) de alta complexidade.

Por sua vez, a Norma Operacional Básica –

SUS/1992, anexo I à Portaria n. 234-SNAS, de 07 de fevereiro de 1992,

expressou em termos claros e precisos, a divisão das atribuições entre as

instâncias do Sistema Único de Saúde, atribuições essas determinadas nos

artigos 16, 17 e 18 da Lei n. 8080/90: “Traz (a Lei n. 8080/90), de forma

muito clara, como incumbência primária do Município, a exceção das

ações e a gestão dos serviços de saúde. Atribui aos Estados, neste

particular, apenas o que o nível municipal for incapaz de assumir, e ao

Ministério da Saúde apenas o que estiver acima do nível estadual de

competência”. Depreende-se, pois, que sistemas mais complexos são de

direta responsabilidade do Estado.

Importante, também, abordar a questão atinente

ao “financiamento da Saúde”, previsto na Constituição Estadual e nas Leis

ns. 8080/90 e 8689/93. Tais normas especificam quais os recursos

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54

destinados, em cada esfera de governo, ao custeio da seguridade social, em

cuja área se insere a saúde.

Existe, assim, em cada instância política, um

determinado orçamento, com destinação de recurso à área da saúde,

pertencente à seguridade social.

Portanto, a matéria pode ser sistematizada da

seguinte maneira: a) a responsabilidade quanto à saúde é do poder público,

através do sistema único de saúde; b) o sistema único de saúde é informado

pelo princípio de ‘descentralização’ com direção única em cada instância

de Governo; c) compete à direção nacional do sistema único de saúde,

primacialmente, o estabelecimento das diretrizes gerais; d) a execução

propriamente dita das ações e serviços de saúde ficaram a cargo das

instâncias ‘estadual e municipal’ do sistema único de saúde; e) cabe à

direção ‘estadual’ do sistema único de saúde, executar ‘supletivamente’

ações de saúde, ou seja, as mais complexas e nas quais haja omissão dos

Municípios.

Na hipótese em comento, portanto, tem-se

caracterizada uma execução supletiva da instância estadual do sistema

único de saúde, por se tratar de matéria complexa, consistente na

disponibilização de serviço de assistência (saúde e educacional) aos

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55

autistas, providência esta que se torna inviável para cada um dos

municípios e deve ser suportada pelo Estado de São Paulo.

Por último, a sanar todas as eventuais indagações,

a Constituição Federal estabelece que é competência comum da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidarem da educação e da

saúde das pessoas portadoras de deficiência. Aqui, obviamente, a questão

encontra solução de forma mais explicita, porquanto tratamos do conjunto

deficiência, saúde e educação (Art. 23, II, da Constituição Federal).

V – DA COMPETÊNCIA E DA COISA JULGADA

A Lei da Ação Civil Pública e a Lei n. 9494/97

confundiu os efeitos da sentença com a jurisdição. O legislador não soube

distinguir competência de coisa julgada. Ora, a imutabilidade de uma

sentença não guarda relação com a competência do Magistrado que expede

a sentença. Porém, os dispositivos sobre a matéria trazidos pela Lei n.

9494/97 são absolutamente inócuos, máxime porque o Código de Defesa

do Consumidor não sofreu qualquer alteração em tal aspecto, já que a sua

aplicação é integrada em relação à Lei da Ação Civil Pública.

Assim, o objetivo deste tópico, matéria que

certamente é do conhecimento de Vossa Excelência, é explicitar que a

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56

competência do Juiz que aprecia e julga a causa não tem relação com os

efeitos e conseqüências que uma sentença produz fora da Comarca em que

foi proferida. Desta forma, exemplificando, uma sentença que proíba a

fabricação e o comércio de um produto em todo Estado, terá efeito a nível

estadual, o que não se confunde com a competência do Juiz para proferi-la

que, no caso, seria o da Capital do Estado em que se concretizou o dano.

A questão do autismo, tratada está no âmbito

estadual, a omissão e os danos conseqüentes ocorridos encontram-se em tal

alçada, motivo pelo qual competente para aprecia-la é de um dos Juízes da

Capital do Estado, mais especificamente de um dos Magistrados de uma

das Varas da Fazenda Pública. Aliás, neste aspecto é totalmente aplicável o

inciso II, do Art. 93 da Lei n. 8078/90. Outra coisa será o efeito de seu

r.decisório, ressalte-se.

Por último, para melhor exemplificar a matéria,

deve ser trazida à colação a seguinte passagem da obra de Hugo Nigro

Mazzilli, “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, Ed. Saraiva, fls.

148): “Enfim, não custa insistir, não se podem confundir os efeitos que

uma sentença pode produzir em todo o País, com a jurisdição, que o juiz

pode não ter sobre todo o território nacional. Assim, para proibir a

comercialização ou a fabricação de um medicamento no país, será preciso

ajuizar ação no Distrito Federal; mas para impedir a fabricação de um

produto onde atualmente esteja sendo produzido, a ação será ajuizada na

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57

Comarca onde se situe a empresa produtora; em ambos os casos, porém,

os efeitos das sentenças vão ser sentidos em todos os lugares do País”.

VI - DO PEDIDO

Diante de todo o exposto, o Ministério

Público do Estado de São Paulo requer a citação do ESTADO DE SÃO

PAULO (FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL DE SÃO PAULO), na

pessoa do Excelentíssimo Procurador-Geral do Estado, em seu Gabinete

localizado na Av. São Luiz, n. 99, 4o. andar, nesta Capital, para que,

conteste, no prazo legal, a presente ação, sob pena de suportar os efeitos da

revelia (CPC, art. 319), que deverá ser julgada inteiramente procedente,

para condenar o ESTADO DE SÃO PAULO (Fazenda Pública Estadual de

São Paulo) às obrigações de fazer, nos seguintes termos:

# 1 - arcar com as custas integrais do tratamento (internação especializada

ou em regime integral ou não), da assistência, da educação e da saúde

específicos, ou seja, custear tratamento especializado em entidade adequada

(não estatal, portanto, já que não existe com tais características uma única

no âmbito do Estado) para o cuidado e assistência aos autistas residentes no

Estado de São Paulo que, por seus representantes legais ou responsáveis,

comprovem mediante atestado médico tal condição (de autista),

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58

documento este que deverá ser juntado a requerimento endereçado ao

Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede da Secretaria

de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento

(endereço: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, n. 188). A partir da data do

protocolo ou do recebimento da carta registrada, conforme o caso, terá o

Estado o prazo de trinta (30) dias para providenciar, às suas expensas,

instituição adequada para o tratamento do autista requerente. A instituição

indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá ser a mais próxima

possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo

do requerimento poderá constar a instituição de preferência dos

responsáveis ou representantes dos autistas, cabendo ao Estado

fundamentar a inviabilidade da indicação, se for o caso, e eleger outra

entidade adequada. O regime de tratamento e atenção em período integral

ou parcial (ou internação especializada) deverá ser especificado por

prescrição médica no próprio atestado médico antes mencionado, devendo

o Estado providenciar entidade com tais características. Após o Estado

providenciar a indicação da instituição deverá notificar o responsável pelo

autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento. Tudo

isso até que o Estado, se o quiser, providencie unidades especializadas

próprias e gratuitas (e não as existentes para o tratamento de doentes

mentais “comuns”) para o tratamento de saúde, educacional e assistencial

aos autistas, em regimes integral ou parcial (ou internação especializada),

porquanto o Ministério Público e o Poder Judiciário não podem indicar os

modos e os meios pelos quais o Poder Executivo deverá cumprir tais

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59

obrigações. No caso, está-se apenas, considerada a clássica divisão dos

poderes do Estado estabelecida constitucionalmente, reconhecendo a

existência de um direito e da obrigação conseqüente. Os modos e os meios

de cumprimento (convênios – inclusive com municípios -, organização de

entidades estatais que prestem os serviços especializados diretamente,

pagamentos individualizados, “ONGs” etc) devem ser eleitos pelo poder

executivo, dentro do âmbito - agora sim tem cabimento tal forma de

argumentação - da denominada discricionariedade administrativa. O que

não pode permanecer inalterada é a omissão estatal, já que o Estado ora

nega eficácia a normas legais e constitucionais. Fornecer diretamente ou

através da iniciativa particular é opção do Estado; que, no entanto, não tem

a opção de não fornecer, de forma gratuita, o serviço especializado tão

essencial.

# 2 - ao final, nos termos do Art. 11 da mencionada Lei, deferido o

pedido, requer-se seja o requerido condenado ao cumprimento das diversas

obrigações de fazer já especificadas, determinando-se o cumprimento das

atividades devidas, sob pena de cominação de multa diária no valor de

R$50.000,00 (cinqüenta mil reais) em caso de descumprimento de

quaisquer das obrigações antes mencionadas, quantias que deverão ser

revertidas para o fundo de reconstituição dos interesses metaindividuais

lesados, criado pelo Art. 13 da Lei Federal n. 7347/85.

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60

O atendimento aos autistas guarda estreita

relação com a manutenção da vida e da saúde, o que é sempre relevante e

urgente. Diante da urgência reclamada pela hipótese, aguarda-se a

concessão liminar da antecipação da tutela pretendida, inaudita altera

parte, nos termos do disposto no artigo 273, inciso I do CPC e artigo 84,

Parágrafo 3o., do Código de Defesa do Consumidor, aplicável por força do

artigo 21 da Lei n. 7347/85.

A antecipação da tutela urge e impera, porquanto

o provimento da pretensão a final poderá ser inócuo para prevenir os danos

causados aos autistas, muitos deles no momento vivendo em “cercadinhos”

como se fossem animais, despidos de qualquer possibilidade de progresso e

tratamento. Relevante é o fundamento da lide, pois presentes estão o

“fumus boni juris” e o “periculum in mora”.

Presentes a aparência do bom direito e o perigo

da demora. Conforme já foi exaustivamente ressaltado, a prestação do

serviço de saúde é de relevância pública, e por isto o requerido deve prestá-

lo de modo apropriado aos usuários. Antes de tudo, porém, o poder público

deve oferecer o serviço e não deixar uma parcela da população

desamparada. A obrigação da prestação adequada desse serviço essencial é

princípio que deve ser cumprido plenamente a satisfazer a demanda. Neste

sentido o art. 22 da Lei n. 8078/90, conforme já colocado, segundo o qual

“Os órgão públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,

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61

permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são

obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos

essenciais, contínuos. Parágrafo único – Nos casos de descumprimento,

total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas

jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na

forma prevista neste Código”.

O perigo da demora também está suficientemente

ressaltado nesta petição inicial. Existe justificado receio de ineficácia do

provimento final, razão pela qual é preciso que seja concedida

liminarmente e com urgência a medida pleiteada. Há sério risco à vida e à

saúde dos autistas, não é possível deixar perpétua a situação exposta, pois

os danos estão ocorrendo a cada momento, seja com relação aos autistas há

muito tempo diagnosticados positivamente – porquanto perdem a

oportunidade de uma melhor adaptação com o meio e os conseqüentes

progressos e qualidade de vida – seja com relação a crianças que no

momento estão sendo entendidas como tal e que não dispõem de qualquer

opção pública de tratamento adequado.

É por tais motivos, ou seja, em situações

dramáticas como a presente, que o Código de Processo civil fornece meios

ao Juiz para antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela objetivada.

Page 62: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

62

Conforme leciona Cândido Rangel Dinamarco

(“Tribunal da Magistratura”, 337, Caderno de Doutrina/julho e agosto

1998): “Como por diversos modos o tempo pode conduzir à frustração dos

direitos das pessoas que buscam tutela através do processo, variados são

também os instrumentos que ao longo dos séculos se excogitaram para

neutralizar esses efeitos perversos. Há direitos que sucumbem de modo

definitivo e irremediavelmente quando a tutela demora, mas há também

situações em que, mesmo não desaparecendo por completo a utilidade das

medidas judiciais, a espera pela satisfação é fato de insuportável desgaste,

em razão da permanência das angústias e incertezas. Há também o

desgaste do processo mesmo, como fator de pacificação com justiça, o que

sucede quando o decurso do tempo atinge os meios de que ele precisa

valer-se para o cumprimento de sua missão social (prova e bens). Desde a

complicação das formas, excesso de atos e de recursos, até a simples

demora judicial na tramitação dos feitos e oferta da tutela – tudo conjura

contra a efetividade do sistema e, para o combate a cada uma dessas

causas, certas medidas são bastante conhecidas e algumas são também

antigas (...)” . “ Um direito é mortalmente atingido, quando as demoras do

processo impedem qualquer utilidade do provimento que ele produziria”.

Page 63: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

63

Na hipótese em apreço, caso não seja concedida a

antecipação da tutela pleiteada, a pretensão dos autistas e de seus familiares

será mortalmente atingida, pois sendo os primeiros destinatários de serviços

especiais de saúde, educacional e assistencial especializados, não podem

aguardar o lento tramitar do processo para somente a final, se a ação for

julgada procedente, vencidos todos os recursos, obter o benefício.

Incalculável o prejuízo que seria alcançado, seja no que concerne ao

progresso pessoal, à integração, à saúde, à educação, enfim, à vida.

Em caso do deferimento da tutela antecipada, não

havendo atendimento integral por parte do requerido dentro do prazo

fixado, aguarda-se a cominação de multa diária de R$ 50.000,00, ou outro

valor a ser arbitrado por Vossa Excelência, na forma do Parágrafo 2o. do

Artigo 12 da Lei n. 7.347/85 (Parágrafos 3o. e 4

o. do Art. 84 do Código de

Defesa do Consumidor).

Requer-se, por fim, que as intimações do

Ministério Público sejam realizadas pessoalmente (Promotor do GAESP),

na forma da lei, na Rua Riachuelo, n. 115, 1o. andar, salas 38 e 39, Centro,

São Paulo.

Page 64: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

64

Protesta-se pela produção de provas, por todos

os meios admitidos em direito, sobretudo pela juntada de novos

documentos e perícias, além de oitiva de testemunhas e peritos, caso se faça

necessário.

Em virtude de expressa previsão legal de

dispensa de custas, tanto para o demandante quanto para o demandado, e da

vedação constitucional ao recebimento de honorários advocatícios por parte

do Ministério Público, deixa-se de postular nesse sentido.

Dá-se à causa o valor de R$ 50.000,00

(cinqüenta mil reais).

Termos em que,

P. e E.

Deferimento.

São Paulo, 26 de outubro de 2000.

Page 65: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

65

João Luiz Marcondes Junior César Pinheiro

Rodrigues

Promotores de Justiça do Grupo de Atuação Especial da Saúde

Pública e da Saúde do Consumidor – GAESP – Órgão de Execução

do Ministério Público do Estado de São Paulo – Rua Riachuelo, n.

115, 1º andar, salas 38 e 39, Tel. 3119-9090.

Page 66: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

66

6ª Vara da Fazenda Pública

Processo nº 053.00.027139-2 (1679/00)

Vistos.

O Ministério Público do Estado de São Paulo, com qualificação na

inicial, propôs a presente Ação Civil Pública, com pedido de antecipação

dos efeitos da tutela e cominação de multa, contra a Fazenda Pública do

Estado de São Paulo, com qualificação nos autos, objetivando, em síntese,

com amparo nos artigos 196, 198, 227, parágrafo 1º, inciso II, e 244 da

Constituição Federal, artigos 219, 222 e 223 da Constituição do Estado de

São Paulo, nos artigos 2º, 3º, 7º e 43 da Lei federal nº 8080/90, na Lei

Complementar Estadual nº 791/95, a condenação da ré para arcar com as

custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime

integral ou não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou

seja, custear tratamento especializado em entidade adequada (não estatal,

portanto, já que não existe com tais características uma única no âmbito

do Estado) para o cuidado e assistência aos autistas residentes no Estado

de São Paulo que, por seus representantes legais ou responsáveis,

comprovem mediante atestado médico tal condição (de autista), documento

este que deverá ser juntado a requerimento endereçado ao Exmo.

Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede da Secretaria de

Page 67: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

67

Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento

(endereço: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, n. 188). A partir da data do

protocolo ou do recebimento da carta registrada, conforme o caso, terá o

Estado o prazo de trinta (30) dias para providenciar, às suas expensas,

instituição adequada para o tratamento do autista requerente. A instituição

indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá ser a mais próxima

possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo

do requerimento poderá constar a instituição de preferência dos

responsáveis ou representantes dos autistas, cabendo ao Estado

fundamentar inviabilidade da indicação, se for o caso, e eleger outra

entidade adequada. 0 regime de tratamento e atenção em período integral

ou parcial (ou internação especializada) deverá ser especificado por

prescrição médica no próprio atestado médico antes mencionado, devendo

o Estado providenciar entidade com tais características. Após o Estado

providenciar a indicação da instituição deverá. notificar o responsável

pelo autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento.

Tudo isso até que o Estado, se o quiser, providencie unidades

especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes para o tratamento

de doentes mentais "comuns" para o tratamento de saúde, educacional e

assistencial aos autistas, em regimes integral ou parcial (ou internação

especializada). Requereu o deferimento do pedido liminar e, ao final, a

procedência da ação com a condenação da ré ao cumprimento das diversas

obrigações de fazer e das atividades apontadas, tudo sob pena de

cominação de multa diária no valor de R$50.000.00, com valores revertidos

Page 68: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

68

nos termos do artigo 13 da Lei Federal nº 7347/85 (fls.2/36). Juntou

documentos (fls.37/192).

Por determinação do Juízo (fls.193/194 e fls.358/359), a inicial foi

emendada pelo autor (fls. 196/203 e fls.361/366), inclusive com a juntada

de novos documentos (fls.207/357 e fls.367/407).

Recebidos os aditamentos (fls.404) e citada a ré (fls.407), esta

apresentou sua contestação, alegando, em resumo, após tecer considerações

sobre a Síndrome de Kanner, que ao contrário do que afirmava o autor, tem

buscado manter, por si ou por entidades a ela conveniadas, o atendimento

ambulatorial das pessoas portadoras de tais transtornos do desenvolvimento

psicológico, porém, com vagas insuficientes diante da grande demanda.

Motivo pelo qual a Secretaria de Saúde vem ampliando sua capacidade de

atendimento especializado, principalmente em relação aos portadores de

autismo, efetuando levantamento das instituições, contatos telefônicos e

visitas, tudo para processo de formação de convênios pelo SUS, com

encaminhamento de 'recursos por meio da referida Secretaria. Assim, sem

sentido a irresignação do autor, fundada na alegada omissão do Estado, não

podendo a Fazenda concordar com. a disponibilização de verbas para o

custeio de atendimento. de autistas em clínicas particulares, pois vem

atuando para firmar convênio com ditas instituições a fim de proporcionar

o adequado tratamento. Asseverou, também, que pela carência de seus

Page 69: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

69

recursos e ausência de normas especificas para a rede pública de saúde, não

poderia ser obrigada a atender indiscriminadamente todo,e qualquer autista,

pois tinha como obrigação constitucional garantir à população acesso aos

serviços e ações de saúde, sem privilégios de qualquer espécie e, muito

menos, estar sujeita a decisões de outro poder, no caso 0 Judiciário, que

resultariam em co-gestão dos recursos orçamentários, alterando a

destinação do dinheiro público, além de ser descabida a multa diária.

Requereu, ao final, a improcedência da ação (fls.409/428). Juntou

documentos (fls.427/523).

Foi indeferido o pedido liminar de antecipação dos efeitos da tutela

(fls.525/526).

Manifestou-se o autor, em réplica, ratificando os termos da inicial

(fls.528/542).

Intimadas as partes a especificarem suas provas (fls.543), requereu a

ré a produção de prova testemunhal e documental (fls.544), enquanto o

autor pugnou pelo julgamento antecipado (fls.545).

Deferido prazo à ré (fls..546 e 562), esta juntou novos documentos

(fls.547/555 e fls.563/590), do que teve ciência o autor (fls.556 e fls.591),

Page 70: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

70

manifestando-se (fls.558/561 e fls.591,v.).

É o Relatório.

DECIDO.

Trata-se de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do

Estado de São Paulo contra a Fazenda Pública Estadual, objetivando, em

síntese, com amparo nos artigos 196, 198, 227, parágrafo 1º, inciso II e

244 da Constituição Federal, artigos 219, 222 e 223 da Constituição do

Estado de São Paulo, nos artigos 2º, 3º, 7º e 43 da Lei Federal nº 8080/90,

na Lei Complementar Estadual nº 791/95, a condenação da ré para arcar

com as custas integrais do tratamento de interação especializada, em

regime integral ou não, de assistência, de educação e de saúde específicos,

ou seja,.custear tratamento especializado em entidade adequada para

cuidar e dar assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo, até

que a administração Estadual, se o quiser, providencie unidades

especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes para o tratamento de

doentes mentais "comuns") para o tratamento de saúde, de educação e de

assistência aos autistas, em regime integral ou parcial ou de interação,

sempre especializada.

Page 71: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

71

Nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, a

ação comporta o julgamento antecipado da lide, pois as questões suscitadas

são de direito e os fatos encontram-se suficientemente provados pelos

documentos juntados aos autos pelas partes.

A princípio, antes do exame da matéria de mérito, necessário

algumas considerações sobre o Autismo.

Como ensina E. Christian Gauderer, o adjetivo autista foi

introduzido na literatura psiquiátrica em 1906, por Plouller, médico que

estudava o processo do pensamento de pacientes que faziam referência a

tudo no mundo e a sua volta, consigo mesmos, num processo considerado

psicótico (in AUTISMO, Ed.Atheneu., 3ª ed., p.9/10).

Já, em 1943, Leo Kanner, psiquiatra infantil da John Hopkins

University (USA), ao estudar um grupo de crianças gravemente lesadas e

que tinham certas características comuns, entre as quais, a mais notável era

a da incapacidade de se relacionar com as pessoas, utilizou-se do adjetivo

em pregado por Plouller para intitular o seu trabalho de "Autistic

Disturbance of Aflective Contact - Distúrbio Autístico do Contato Afetivo

descrevendo com ele a qualidade de relacionamento destas crianças. Foi

por meio de tal estudo que, em dois anos, Kanner criou o substantivo

autismo para designar tal entidade, sendo que em sua homenagem

Page 72: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

72

chegou-se à denominação de Síndrome de Kanner (in AUTISMO, Ed.

Atheneu, 3ª ed., p.9/10).

Na definição atual da Organização Mundial da Saúde (in Classificação

Internacional de Doenças, 9' ed.), o "Autismo Infantil é uma síndrome

presente desde o nascimento, e se manifesta invariavelmente antes dos 30

meses de idade. Caracteriza-se por respostas anormais a estímulos

auditivos ou visuais, e por problemas graves quanto à compreensão da

linguagem falada. A fala custa a aparecer, e, quando isto acontece, nota-se

ecolalia, uso inadequado dos pronomes, estrutura gramatical imatura,

inabilidade de usar termos abstratos. Há também, em geral, uma

incapacidade na utilização social, tanto da linguagem verbal como

corpórea. Ocorrem problemas muito graves de relacionamento social

antes dos 5 anos de idade, como incapacidade de desenvolver contato olho

a olho, ligação social e jogos em grupo. 0 comportamento é usualmente

ritualístico e pode incluir rotinas de vida anormais, resistência a

mudanças, ligação a objetos estranhos.e um padrão de brinca~

estereotipado. A capacidade para pensamento abstraio simbólico ou para

jogo imaginativo fica diminuída. A inteligência varia de muito subnormal,

a normal ou acima. A performance é com freqüência melhor em tarefas

que requerem memória 'simples ou habilidade vis114 espacial,

comparando-se com aquelas que requerem capacidade simbólica ou

lingüística.

Page 73: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

73

Usa-se como sinônimos da síndrome autista os termos: Autismo da

Criança, Psicose Infantil, Síndrome de Kanner, e o número estatístico é

299.0. Esta classificação ainda cita três outras, sob o título geral de

Psicose com Origem Específica na Infância (299. 0): a Psicose

Desintegrativa (299. 1); a Psicose/outra (299.8) e a Psicose Inespecífica

(299.9). " (in AUTISMO, Ed.Atheneu, 3ª ed., p. 14).

E, foi a partir da década de 60 que firmou-se o diagnóstico do

Autismo pa um transtorno de origem biológica comprometedor do Sistema

Nervoso, sugerido por uma interrupção precoce no desenvolvimento das

células da Região Límbica do Cérebro, pai responsável por mediar o

comportamento social.

Tal transtorno biológico pode ter como fatores o genético (maior

incidência) as doenças infecciosas pré-natais (rubéola, caxumba, sífilis e

herpes) e até intoxicação química ou ambiental, pelo que o autismo não é

uma doença, mas uma síndrome, pois um conjunto de sintomas que podem

termais de uma origem.

E, para o tratamento, conforme se observa da publicação do

Ministério da Saúde, AUTISMO, Orientação para os pais - Casa do Autista

Page 74: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

74

(fls.299), "a variedade t terapias, voltadas para o tratamento do autismo,

se deve às diversas características q~ apresentam à grande diferenciação

na apresentação dos casos. Veremos que cada um atende a urna

necessidade específica. 0 melhor resultado não é o ob tido pela freqüência

de todas as terapias disponíveis. De nada adianta sobrecarregarmos os

autistas com m maratona de tratamentos. Os êxitos virão na medida em

que se puder conciliar necessidades do autista com as de sua família,

sejam necessidades físicas, afetivas, sociais e financeiras.

A psicoterapia tem um papel essencial nos tratamentos desses

quadros recomenda-se, principalmente, o uso de abordagem relacional,

com ênfase no controle emocional, na modificação de comportamento e na

resolução de problemas.

As técnicas psicoterapêuticas utilizadas com autistas geralmente

observam três fases. A primeira fase envolve a superação do isolamento.

Na segunda fase, o terapeuta fornecerá os limites iniciais, ajudando a

criança a desenvolver seus próprios limites. Finamente, na terceira fase,

haverá a tentativa de compreender o conflito que ocasionou a retração. "

(fls. 16/17).

Em resumo, como bem observaram os I. Representantes do

Ministério Público, Dr. João Luíz Marcondes Junior e Dr. César Pinheiro

Page 75: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

75

Rodrigues, "A questão, portanto, assim deve ser colocada: mesmo que a

família do autista tenha disponibilidade de pessoalmente prestar cuidados,

o que quase nunca ocorre, tal não é suficiente porquanto o autista

"tratado domesticamente " não lhe vê confiado o imprescindível

tratamento especializado, que lhe possibilite melhorar gradativamente e,

por exemplo, abrandar-lhe a violência a níveis mais suportáveis, enfim,

propiciar uma melhor adequação do autista ao seu meio.".

Feitas tais considerações, no mérito, malgrado o zelo e o esforço da

Ilustre Causídica da ré, obrigatória a procedência da ação.

A questão é de singelo entendimento.

Como é cediço, a Constituição Federal impôs ao Estado o dever de

prover as condições necessárias ao pleno exercício da cidadania e da

dignidade da pessoa humana, fundamentos da República Federativa do

Brasil (artigo 1º), sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º).

Para tanto, elegeu como direito fundamental do indivíduo,, o seu

direito à vida (artigo 50) e na qualidade de garantia social, o direito à

saúde.

Page 76: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

76

Em especial, para o direito à saúde, expressamente assegurou a todos

dentro do território nacional, independentemente de quaisquer formas de

discriminação, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a

sua promoção, proteção e recuperação, pois é dever do Estado, a ser

garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos (artigo 196).

Também, em relação à saúde, determinou. serem de relevância

pública tais ações e serviços, para a sua promoção, proteção e recuperação,

cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua

regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita

diretamente, ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou

jurídica de direito privado (artigo 197).

E, ainda, estabeleceu que as ações e serviços públicos de saúde

integrem uma rede regionalizada e hierarquizada e constituam um sistema

único, organizado de acordo com as diretrizes (artigo 198) da

descentralização, com direção única em cada esfera de governo (inciso 1),

do atendimento integral, com prioridade para atividades preventivas, sem

prejuízo dos serviços assistenciais (inciso III) e da participação da

comunidade (inciso III), financiado nos termos do artigo 195, com recursos

do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito

Page 77: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

77

Federal e dos Municípios, além de outras fontes (parágrafo único).

Nessa esteira e de maneira idêntica, fixou expressamente a

Constituição do Estado de São Paulo expressamente ser a Saúde um direito

de todos e um dever do Estado (artigo . 219), garantidos mediante

(parágrafo único) políticas sociais, econômicas e ambientais que visem ao

bem-estar físico, mental e social do indivíduo e da coletividade e à redução

do risco de doenças e outros agravos (1), com acesso universal e i

igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis (2), com

direito à obtenção de informações e esclarecimentos de interesse da saúde

individual e coletiva, bem como de atividades desenvolvidas pelo sistema

(3), para atendimento integral do indivíduo, abrangendo a promoção,

preservação e recuperação de sua saúde (4).

Para as ações e os serviços de saúde, declarou serem de relevância

pública (artigo 220), prestados pelos órgãos e instituições públicas

estaduais e municipais, da administração direta, indireta e fundacional, que

constituem o sistema único de saúde (artigo 222), ao qual compete a

assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de

todos os segmentos da população (artigo 223, inciso I).

Na esfera infraconstitucional, disciplinou a Lei Federai nº 8080/90

ser a saúde um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado

Page 78: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

78

promover as condições indispensáveis para o seu pleno exercício (artigo

2º), garantindo condições ao bem-estar físico, mental e social (artigo 3º), de

acesso universal e igualitário a todos (artigo 7')., sempre gratuitamente

(artigo 43).

No Estado de São Paulo, seu Código de Saúde, Lei Complementar nº

791/95, declarou ser a saúde uma das condições essenciais da liberdade

individual e da igualdade de todos perante a lei, sendo o direito a ela

inerente à pessoa humana, constituindo-se, por isso, em direito público

subjetivo (artigo 2º), assegurado pelo Poder Público como instrumento que

possibilite à pessoa o uso e o gozo de seu potencial físico e mental,

repetindo no mais os mandamentos constitucionais, já elencados acima.

E, por fim, em razão do que dispõe o parágrafo 2º do artigo 5º da

Constituição Federal, quanto à outros direitos fundamentais decorrentes de

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte,

é de se considerar o disposto no artigo 25 da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, pois "toda pessoa tem direito a um nÍvel de vida

suficiente para assegurar a sua saúde", e a Declaração dos Direitos do

Deficiente Mental, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas,

desde 20 de dezembro de 1971, a qual estabeleceu que "a pessoa

mentalmente retardada tem direito à atenção médica e ao tratamento físico

que requeira seu caso, assim como à educação, à capacitação, à

Page 79: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

79

reabilitação e à orientação que lhe permitam desenvolver ao máximo sua

capacidade e suas aptidões”.

Temos dos autos, então, que ao apresentar sua peça de defesa, a ré

não contestou sua obrigação constitucional de prover as condições para a

saúde de todos, inclusive dos portadores de Síndrome de Kanner, nos

termos do artigo 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988, artigos

219 e seguintes da Constituição do Estado de São Paulo e da Lei Orgânica

da Saúde, Lei Federal nº 8080/90.

Tanto o é, que foi clara em afirmar que vem buscando manter, por si

ou por entidades a ela conveniadas, o atendimento ambulatorial e de

internação de pessoas portadoras de tais transtornos do desenvolvimento

psicológico e mental, porém, com vagas insuficientes diante da demanda,

motivo pelo qual a Secretaria de Saúde está buscando ampliar sua

capacidade de atendimento especializado, principalmente em relação aos

portadores de autismo, efetuando levantamento das instituições, contatos

telefônicos e visitas, tudo,para processo de formação de convênios pelo

SUS e encaminhamento de recursos por meio da referida Secretaria

(fls.427/523, fls.547/555 e fls.563/590).

Em conseqüência, nessa parte, é de se reconhecer a hipótese do

inciso II do artigo 269 do Código de Processo Civil, ou seja, houve o

Page 80: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

80

reconhecimento do pedido.

Porém, no que diz respeito a extensão de sua obrigação

constitucional e a forma de atendimento aos pacientes portadores de

autismo, contestou a ação, nos termos do artigo 302, e seus incisos e

parágrafo único, do Código de Processo Civil.

Impugnou o pretendido atendimento indiscriminado e seu custeio,

seja por tratamento ambulatorial, seja por internação, para todo e qualquer

portador da Síndrome de Kanner, independentemente da situação financeira

da família e em entidade particular indicada pelos representantes legais.

Sustentou que a sua obrigação constitucional de garantir à população

acesso aos serviços e ações de saúde, sem privilégios de qualquer espécie,

mediante atendimento gratuito, restringia-se apenas aos que se mostrassem

carentes de recursos.

E, da mesma forma, declarou, em razão do princípio da Tripartição

dos Poderes expresso no artigo 2º da Constituição Federal, não estar sujeita

a decisões de outro Poder que resultassem em co-gestão ou alteração da

destinação de verbas do seu orçamento, pois só seu o dever de gerir a coisa

pública, elegendo, segundo critérios de conveniência e oportunidade, as

Page 81: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

81

diretrizes e as prioridades governamentais. Mesmo porque, em razão da

carência de recursos públicos e ausência de. normas específicas para a rede

pública.de saúde, não poderia aceitar privilégios de qualquer espécie.

Entretanto, para tais impugnações não lhe assiste qualquer amparo

Constitucional ou legal.

A uma, pois despido de qualquer fundamento jurídico e moral, o

argumento trazido, o da falta de dotação orçamentária para tal atendimento

específico, ou seja, para doentes mentais, mesmo que extraordinariamente

caros em razão da especificidade da síndrome, no caso, se autista de "alto

funcionamento" ou de "baixo funcionamento", se de pequena ou de

avançada idade.

Simples seria se o Governo do Estado de São Paulo passasse a

realmente destinar verbas suficientes para programas específicos, em razão

do grande número de pacientes que se encontram em tal situação, pois a

referida síndrome atinge entre 0,04% a 0,05% da população, certamente

desenvolveriam um atendimento decente de amparo à sociedade e, assim,

cumpriria com as diretrizes constitucionais de atendimento integral nos

termos dos princípios da universalidade e da igualdade de acesso aos

serviços de saúde.

Page 82: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

82

Como sugestão, para tanto, poderia dispor daquelas vultosas quantias

desperdiçadas em publicidade, dita informativa à população, mas que, na

maioria das vezes, são verdadeiras campanhas políticas, e que quase

sempre acabam impugnadas e anuladas por meio de ações civis públicas,

como recentemente vem sendo questionada judicialmente a campanha

publicitária do Governo do Estado de São Paulo para a absurda "taxa de

policiamento".

A duas, em conseqüência do acima exposto, deve o Governo do

Estado de São Paulo prover a todos das condições necessárias ao pleno

exercício dos direitos à vida e à saúde, sendo irrelevante a maneira como

será distribuído o serviço.

Porém, a discricionariedade a que se refere a Fazenda Estadual, só é

admitida apenas na escolha da melhor política para satisfazer a demanda,

mas nunca de maneira a impossibilitar o fim almejado pelas apontadas

Normas Constitucionais.

O Poder Discricionário da Administração não é absoluto, pois então

estaria subordinado a critérios aleatórios, culminado com providências

insensatas e desarrazoadas, as quais por certo não atingiriam a finalidade da

Page 83: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

83

lei e não atentariam para o interesse público.

Nesse sentido, é pacifico que havendo falha administrativa no

cumprimento das apontadas Normas Constitucionais e Legais, quando da

condução do Governo, pode sim o Poder Judiciário determinar

providências para atender interesses fundamentais ou sociais, quer de um

indivíduo, quer da coletividade.

A três, pois como comprovado nos autos pelos documentos juntados

pelas partes, apesar da iniciativa da Administração Pública, desencadeada

coincidentemente após as sucessivas citações em ações individuais

propostas por representantes legais de autistas e na presente ação civil

pública, continua o Estado de São Paulo, por seus órgão e Secretarias, a não

atender de forma eficaz e específica a população de portadores da

Síndrome de Kanner, pois vêm apresentando até agora somente medidas

aplicáveis no futuro voltadas para doentes metais em geral, as quais não

podem ser aceitas pelo Juízo como aquelas determinadas pelas

Constituições Federal e 'Estadual, para afastar as que ora estão sendo

reclamadas imediatamente pelo autor, no atendimento para todos que

padecem do autismo.

Em conseqüência, enquanto o Governo do Estado de São Paulo não

colocar à disposição de todo e qualquer autista, efetivamente,

Page 84: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

84

estabelecimentos próprios ou conveniados para o tratamento ambulatorial e

de internação, especializados no atendimento da Síndrome de Kanner, em

decorrência de sua inércia ou de seu descaso para com o mandamento

constitucional, deverá sim responder pelo custeio do tratamento do

referidos pacientes mediante o pagamento das despesas, podendo, em

hipótese alguma, selecioná-los em razão da origem, da raça, do sexo, da

cor> da idade ou quaisquer outras formas de discriminação, inclusive da

situação financeira familiar, cumprindo assim o mandamento constitucional

de prover as condições para a saúde de todos, nos termos do artigo 196 e

seguintes da Constituição Federal de 1988, artigos 219 e seguintes da

Constituição Estadual, da Lei Orgânica da Saúde, Lei nº 8080/90 e da Lei

Complementar Estadual nº 791/95.

Portanto, por qualquer ângulo que se examine a questão, nessa parte,

não há como dar-se guarida à defesa deduzida pela Fazenda Estadual, pois

estão sendo violados os direitos fundamentais da população portadora de

autismo, residente no território do Estado de São Paulo, diante da conduta

omissiva do Poder Público Estadual a partir da Promulgação da

Constituição Federal de 1988 e da Constituição estadual de 1989.

Por fim, plenamente possível a imposição da multa diária para o caso

de descumprimento da obrigação pelo devedor, mesmo quando for a

Fazenda Pública. Ao contrário do que vem sustentando em sua

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contestação, não é o contribuinte quem vai arcar com o Ônus. Para tanto,

basta à FESP tomar as medidas pertinentes, exigindo de seus funcionários

organização e respeito às decisões Judiciais. Porém, se aplicada a multa

deverá responsabilizar o funcionário que gerou o atraso no cumprimento

da ordem judicial, exercendo o direito de regresso, sem prejuízo da ação

por improbidade administrativa.

ANTE O EXPOSTO e o mais que consta dos autos, JULGO

PROCEDENTE a ação civil pública movida pelo Ministério Público do

Estado de São Paulo contra a Fazenda do Pública do Estado de São Paulo,

com fundamento no artigo 269, inciso I, do código de Processo Civil, para

CONDENÁ-LA, até que, se o quiser, providencie unidades especializadas

próprias e gratuitas, nunca as existentes para o tratamento de doentes

mentais “comuns", para o tratamento de saúde, educacional e assistencial

aos autistas, em regime integral ou parcial especializado para todos os

residentes no Estado de São Paulo, a:

I - Arcar com as custas integrais do tratamento (internação

especializada ou em regime integral ou não), da assistência, da educação e

da saúde específicos, ou seja, custear tratamento especializado em entidade

adequada não estatal para o cuidado e assistência aos autistas residentes no

Estado de São Paulo;

II - Por requerimento dos representantes legais ou responsáveis,

Page 86: Inicial da ACP Coletiva para tratamento das pessoas com Autismo

86

acompanhado de atestado médico que comprove a situação de autista,

endereçado ao Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede

da Secretaria de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de

recebimento, terá o Estado o prazo de trinta (30) dias, a partir da data do

protocolo ou do recebimento da carta registrada, conforme o caso, para

providenciar, às suas expensas, instituição adequada para o tratamento do

autista requerente.

III - A instituição indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá

ser a mais próxima possível de sua residência e de seus familiares, sendo

que, porém, no corpo do requerimento poderá constar a instituição de

preferência dos responsáveis ou representantes dos autistas, cabendo ao

Estado fundamentar inviabilidade da indicação, se for 'o caso, e eleger

outra entidade adequada.

V - O regime de tratamento e atenção em período integral *ou

parcial, sempre especializado, deverá ser especificado por prescrição

médica no próprio atestado médico antes mencionado, devendo o Estado

providenciar entidade com tais características.

V - Após o Estado providenciar a indicação da instituição deverá

notificar o responsável pelo autista, fornecendo os dados necessários para o

início do tratamento.

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Para a hipótese de descumprimento das obrigações de fazer dos itens

I a V, fixo a multa diária de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais), destinada

ao Fundo Estadual de Interesses Meta individuais Lesados (artigo 13 da Lei

Federal nº 7347/85), tendo a ré o prazo máximo de 30(trinta dias), a contar

da intimação da presente decisão, para disponibilizar, de forma permanente,

tal atendimento aos portadores de autismo.

Não há custas e despesas processuais a recolher e incabíveis

honorários advocatícios.

Estando sujeita a sentença ao reexame necessário, decorrido o prazo

para processamento de eventual recurso voluntário das partes, subam os

autos à E. Segunda Instância com as anotações de estilo.

Expeça-se, com urgência, mandado para intimação. da Fazenda

Pública.

P. R. I.

São Paulo, 28 de dezembro de

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2001.

Fernando Figueiredo Bartoletti

Juiz de Direito