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Insanatório, Andie Prado

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Primeiros capítulos do livro "Insanatório", publicado pela Editora Mor

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Copyright © 2012 Andie PradoTodos os Direitos Reservados pela Editora Mor.

Nenhuma parte desta publicação deverá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da editora.

Produção Editorial

Presidente: André C. S. dos SantosPublisher: Aline Cintra CarrascoEditoração: Nilza SantosRevisão: Aline CarrascoImpressão: Gráfica Hedra

Editora Mor Ltda.R. Fritz Johansen, 160, Pq. Boturussu, São Paulo-SPTel.: (11) 2047-3720Contato: [email protected]

“Dando raízes aos seus sonhos”

A543i Prado., Andie Insanatório. / Andie Prado — São Paulo:Editora Mor, 2012. 674 p. ; 23cm.

ISBN: 978-85-914547-0-9

1. Literatura Brasileira. I. Título

CDD B869.3 CDU 869.0

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“Ha sempre uma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.”

Friedrich Nietzsche

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Agradecimentos

Aos meus pais e avó Jovelina, que me ensinaram a não desistir dos meus sonhos. Em especial à minha mãe, sua insistência em me manter com um livro sempre enfiado nas mãos e a sua famosa

frase “quem lê sabe mais”. Ao meu tio Mieceslau, que me deu o primeiro livro da saga Harry Potter e me fez ter vontade de ser como J. K. Rowling, e escrever minha própria história.

À Luciana Katto, que “sem querer querendo” me deu a sementinha da ideia de Insanatório, e teve a paciência e cuidado de ler e criticar cada capítulo que eu mandava, assim que terminava de escrever a última linha.

Aos meus amigos e todas as amizades que conquistei ao longo do tempo graças a essa história, em especial minhas companheiras de CDA; à Larissa Costa, dona dos melhores comentários, e Celine Campos, que foi minha beta compan-heira.

À todas as pessoas que direta ou indiretamente estiveram envolvidas no desenvolvimento de Insanatório, em especial à Editora Mor, que me deu uma chance de ouro e transformou meu sonho em realidade, bem como prometeu.

E por último, mas não menos importante, aos fiéis fãs de Insanatório, ainda da saudosa época de fanfic de um site da internet, que atendia pelo nome de Psicose. Um obrigada parece simplório demais para expressar toda a minha gratidão, porém é sincero e verdadeiro. Obrigada pelas palavras de elogio, incen-tivo e carinho, que em momentos de dificuldade e solidão, foram capazes de me fazer uma pessoa mais feliz. Obrigada pelos surtos nas redes sociais e na famosa “caixinha de comentários”, pois sem que eu ao menos percebesse, me faziam sor-rir olhando para a tela do computador. Obrigada pelas críticas, pois sem elas eu jamais teria evoluído. Obrigada, até mesmo, pelas confusões e brigas em defesa de Psicose, porque sem elas não teria sido tão divertido. Obrigada por acolherem meus personagens, e até mesmo se transformarem neles (oi, pessoal do twitter!),

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por amarem o “psicopata” e odiarem o “doutor”. Obrigada pela paciência que tiveram comigo quando eu era insegura demais com algum capítulo e demorava séculos para aparecer com ele. Obrigada por me fazerem acreditar no meu sonho, acreditar que ele era possível, e me apoiarem até o fim quando eu decidi persegui-lo e torná-lo realidade. Obrigada, acima de tudo, por amarem essa história, as-sim como eu mesma a amo, e a acompanharem até o seu momento máximo de glamour. É um livro, galera, a gente pode comemorar! Porque se não fosse por vocês, afinal, Insanatório jamais existiria.

andiE Prado

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st. Marcus InstItute

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Durante toda a infância e adolescência, Melissa Parker foi bastante questionada sobre a profissão que seguiria carreira no futuro. O pai, dedicado, porém pouco ativo, escondia o desejo de ver a filha

formada em contabilidade, seguindo seus próprios passos, dando a entender que incentivaria Melissa em qualquer escolha que fizesse. A mãe, ao contrário, pouco dedicada, porém extremamente ativa, gostava sempre de lembrar que não aceita-ria menos do que uma filha “doutora”.

Na infância, Melissa se permitia devanear nos sonhos de ser uma bai-larina. Quando o inconveniente da frequência escolar passou a atrapalhar suas brincadeiras, preferia dizer que jamais trabalharia na vida, para desespero da mãe e preocupação do pai. Aos doze, a rebeldia da pré-adolescência dominava suas ideias, e a descoberta do significado do sarcasmo levou a arredia Melissa a res-ponder que seria apenas adulta. Quando completou quinze, tomada pela fantasia destemida da adolescência, tudo o que mais queria era fazer parte da Scotland Yard – resultado dos milhões de vezes em que se perdeu nos romances de Sher-lock Holmes.

Ao chegar o ano em que, de fato, Melissa teria que fazer a escolha, já não tinha muita ideia de qual caminho seguir. Portanto, como na maior parte da sua vida, por pura pressão da mãe, no formulário de aplicação para a candidatura a uma vaga na Universidade Oxford, a opção escolhida foi Medicina.

Após anos de esforço, dedicação e sofrimento, o título de doutora Me-lissa Parker foi conquistado. Para alegria da mãe e orgulho sempre comedido do pai. Com a formatura, entretanto, vieram novos desafios a serem superados. Uma especialização era necessária, e levada apenas por sua falta de capacidade de entender a própria cabeça, a psiquiatria foi a escolhida. E se tornou uma paixão. Depois, o primeiro emprego era necessário. Em meio a uma crise econômica, qualquer oportunidade era válida. E eventualmente, Melissa acabou encontran-do o que procurava. Teria que deixar Oxford e a família, enfrentar um novo e mais árduo desafio, porém achava estar, de qualquer forma, preparada.

Seu destino era o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico St. Mar-cus Institute. A denominação era longa e intimidadora. Melissa, no entanto, pre-feriu não se deixar abalar. O St. Marcus Institute estava localizado em um lugar esquecido e desconhecido pelo mundo, mas gloriosamente abençoado por Deus. O isolamento ali era uma dádiva. De outro modo, obviamente, não se poderia

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manter uma instituição que cuidava de criminosos com problemas mentais e psicológicos. Os piores dentre os piores. Aqueles tão profundamente dominados pela psicose, perdidos em suas mentes alucinadas, tomados pela insanidade, que não havia alternativa, senão trancafiá-los ali.

A pequena cidade de Winchelsea, aproximadamente 400 habitantes, em East Sussex, Inglaterra, fora meticulosamente escolhida para dar sede a tal ins-tituição. Quanto menos pessoas ao redor, melhor. E, de fato, sabendo ou não o que aquela pequena cidade de construções medievais guardava aos seus arredores, quase ninguém se aproximava. Aqueles que sabiam, no entanto, faziam mesmo questão de se manter o máximo de quilômetros distante. Era perigoso.

O caminho até lá era longo, sinuoso e cansativo. O céu estava cinzento, como quase todos os dias do ano na Inglaterra interiorana. O verde do gramado que emoldurava a estrada era vibrante. A paisagem, bucólica e encantadora. Um cartão-postal.

Melissa levava consigo um diploma recém-conquistado, que ainda chei-rava a papel novo, uma carta de recomendação no bolso do pesado casaco de lã, algumas barras de chocolate e o amor pela psiquiatria. Ainda se recordava do olhar de pânico da mãe quando contou que seu primeiro emprego era um cargo de psiquiatra do St. Marcus Institute. O local não possuía boa fama, era óbvio, e a senhora Parker parecia não ser capaz de conceber a imagem de sua querida filha trancafiada em um lugar como tal. O pai, por sua vez, lançou o característico meio sorriso de “bom trabalho”, ignorando o surto da mulher e agradecendo aos céus pelo corte no número de bocas a alimentar.

Melissa olhou no relógio, presente de despedida do pai - um lembrete para que não perdesse a hora – constatando que estava no horário programado. Sorriu sozinha, como um falso alento que tentava acalmar os nervos. Poderia fingir para quem quisesse: para os pais, os dois irmãos mais novos ou as amigas, mas certamente não poderia fingir para si mesma. Estava com medo.

Os pacientes que tratara na residência não eram nada se comparados aos criminosos frios e cruéis que encontraria no St. Marcus. O que eram alguns qua-dros de depressão se comparados a psicopatias capazes de levar um ser humano a cometer crimes cuja crueldade ultrapassa o limite do humano?

Melissa, a inexperiente e assustada psiquiatra, ainda não tinha certeza de seu preparo emocional. Talvez não tivesse adquirido a frieza necessária para passar todos os minutos de seu dia em um local dominado por sentimentos tão

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pesados e negativos. No entanto, não poderia se dar ao luxo de recusar um tra-balho quando vinha de tão bom grado. O salário, pelo menos, era razoavelmente alto, livre de comida e acomodação, disse a moça ao telefone. Aprenderia a lidar com toda aquela nova estranha realidade, não havia qualquer outra solução.

Um solavanco anunciou indelicadamente que o ônibus havia parado, tirando Melissa de seus devaneios. O motorista anunciou entediado que estavam em Winchelsea. Melissa foi a única a se levantar, esticando os músculos tensos pelo tempo sem exercício. O homem que dirigia, atarracado e de feições estra-nhas, que sustentava suspeitas olheiras de quem não dormia há dias, ajudou-a com as três malas guardadas no bagageiro. Seus demais pertences seriam manda-dos ainda naquela semana pela mãe, via correio.

Foi somente quando o ônibus sumiu de vista, que Melissa percebeu que não teria mais volta, que já estava presa ali por, pelo menos, três dias – tempo que levava para passar o próximo ônibus.

Após um longo suspiro, respirando pela primeira vez o ar da pacata Win-chelsea, olhou em volta, analisando a cidade que dali em diante chamaria de lar. Sentiu como se tivesse voltado oitocentos anos no tempo, mergulhando de cabeça e sem aviso prévio na Idade Média. Todas as construções ao seu redor possuíam traços elegantes e medievais, intercalados com toques de modernidade proporcionados por alguns carros estacionados aqui e ali. Era simples, porém de muito bom gosto.

O restaurante na frente do qual saltara estava lotado naquele momento. Melissa pensou se talvez aquele não fosse o único num raio de alguns considerá-veis quilômetros. O New In, como anunciava o elegante letreiro, tinha sede em uma linda e imponente, também dotada de traços antigos, casa branca. Passava um ar aconchegante e caseiro. A comida parecia boa, se julgada pelo cheiro deli-cioso que atravessava a rua e vinha tentar suas narinas e seu estômago. Era plena hora do almoço. Melissa olhou no relógio, constatando que precisava estar no St. Marcus em quinze minutos. E nem fazia ideia de como chegar até lá, principal-mente com aquelas três pesadas malas.

Melissa olhou ao redor, procurando viva alma. Parecia, no entanto, que a cidade toda se encontrava enfiada naquele restaurante. Ela agradeceu, no en-tanto, quando de um daqueles poucos carros estacionados, saiu um rapaz. Um bonito rapaz, Melissa não pôde deixar de constatar. Era alto e tinha os ombros largos. Seu rosto fino era emoldurado por cabelos negros cuidadosamente pen-teados. Suas íris carregavam um brilho esverdeado, que parecia faiscar em meio à paisagem cinzenta. A barba por fazer lhe dava um ar relaxado e estranhamente encantador. Ele caminhava na direção de Melissa, como se soubesse que ela viria.

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Um sorriso simpático se abriu nos lábios do rapaz e, de repente, o dia pareceu menos cinzento.

— Você por acaso é Melissa Parker? — sua voz firme indagou. — Sim, sou — ela confirmou com a cabeça, sendo suficientemente edu-

cada para corresponder a simpatia do sorriso. — Sou Brian Peters — o rapaz estendeu a mão em sua direção, a qual

Melissa apertou em cordialidade. Era forte e macia ao mesmo tempo. — Vim buscá-la. O St. Marcus te aguarda.

— Mal posso esperar — Melissa suspirou. Brian riu brevemente, e pequenas linhas de expressão se formaram ao

redor de seus olhos. Melissa achou aquilo extremamente encantador. Ele parecia um maldito galã de Hollywood! O que fazia ali naquele fim de mundo?

— Quer ajuda com isso? — Brian apontou as malas. — Por favor — Melissa sorriu agradecida. Os dois braços fortes do rapaz, cobertos por uma camisa social branca,

pegaram sem muito esforço suas duas malas mais pesadas e a carregaram até o porta-malas de seu carro.

— Posso saber o que trás uma moça tão bela e delicada a um lugar como esse? — Brian perguntou, enquanto entravam no carro.

Melissa se acomodou no banco do passageiro, tentando disfarçar as bo-chechas coradas em razão do elogio.

— Eu... Precisava de um emprego — ela deixou que seus olhos o enca-rassem. — Precisava muito de um emprego — e sorriu incerta.

— Entendo perfeitamente — Brian sorriu também e por alguns instan-tes voltou os olhos para Melissa. — Estive nessa mesma situação três anos atrás.

— Não sei se aguento três anos aí. — Era o que eu pensava no meu primeiro dia. E, três anos depois, olha

onde eu estou! — Quer dizer que não deve ser tão ruim quanto parece, certo? — Às vezes pode ser até pior do que parece, mas... eu não acho que teria

uma vida fora daqui. Já virou a minha casa. — Não imagino essas palavras saindo da minha boca. — Quem disse que eu imaginava três anos atrás? E, mais uma vez, olha

onde eu estou! Melissa riu, imaginando como estaria sua vida dali três anos. Se seria

capaz de sobreviver naquele lugar esquecido pelo mundo durante todo aquele tempo. Para quem estava acostumada com vida agitada em Oxford, a mudança brusca de rotina poderia ser um problema. Embora achasse impossível faltar dis-

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tração quando um bando de loucos trancafiados a aguardava.A estrada de terra que levava ao St. Marcus Institute subia uma pequena

colina. Era rodeada de árvores e grama baixa, levemente amarelada por um ou-tono que tomava cada vez mais espaço. Era uma distração e tanto. Era bonito. Melissa não encontrava muito desses cenários em Oxford, e isso era um presente, afinal.

No alto da colina, após poucos quilômetros percorridos, já se destacavam os altos e imponentes muros do St. Marcus Institute. A visão era sombria e pouco agradável. Do lado de fora, parecia que o local era constantemente circundado por nuvens negras e uma neblina úmida e opaca.

Brian teve que chamar a atenção de Melissa, quando o carro parou na frente do portão de ferro negro que guardava as entradas do St. Marcus. Estava distraída demais tentando controlar o enjoo que tomou conta da sensibilidade de seu estômago.

— Está tudo bem? — ele perguntou. — Sim — Melissa confirmou com a cabeça, forçando um sorriso. — Só

estou com fome. — Tudo bem, podemos almoçar assim que conhecer as instalações do

hospital. Melissa assentiu, voltando a analise do St. Marcus. Os muros eram de

um concreto escurecido pelo tempo. O ferro negro do portão se retorcia, acima das lanças que ostentavam nas extremidades, para formar em letras garrafais os dizeres:

“Saint MarcuS inStitutE”.

Ao lado de cada um dos muros, havia uma torre, e sobre elas, pelo menos três atiradores, trazendo nos braços pesados rifles. Ao lado dos portões, ainda havia mais cinco guardas, todos também munidos de armas e cara de poucos amigos. Cercas elétricas, câmeras e detectores de metal, todos convivendo em ex-trema harmonia, incrementavam e finalizavam o pesado esquema de segurança.

— Bem vinda — disse Brian, no mesmo instante em que a entrada era autorizada e dois guardas abriam o portão.

As dobradiças enferrujadas pelo tempo provocaram um rangido mór-bido, que causou arrepios em Melissa. Aquele lugar era um perfeito cenário de filme de terror. Seu terror pessoal.

O caminho de ladrilhos tomado pelo musgo os levou até um pequeno prédio de três andares, ainda naquele mesmo estilo medieval da cidade de Win-

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chelsea. Uma placa branca, maltratada pelo tempo, com letras padrão vermelhas, informava que ali era a administração. Brian contornou o prédio com o carro, chegando ao estacionamento.

— Você pode se apresentar na recepção. Estão te esperando por lá. Eu levo suas malas até seu quarto — informou o rapaz prestativo e Melissa fez o que ele disse, despedindo-se com um aceno simpático.

Os outros três prédios que formavam o complexo da instituição lhe cha-maram a atenção, e por ali Melissa ficou perdida alguns segundos. Cada um deles tinha quatro andares, mas as colunas eram altas, dando a impressão de que o número de andares era, pelo menos, o dobro. Um deles era vermelho e, ao longe, pintado em preto, Melissa pôde ler a letra ‘A’. O da ponta esquerda era verde, identificado com um grande ‘B’. Em meio aos dois, estava um cinza escurecido, do mesmo tom dos muros, e o ‘C’ que o marcava era, diferentemente dos demais, pintado em vermelho sangue. Melissa não soube o porquê, mas aquele prédio provocou leves calafrios. Por isso resolveu parar de encará-lo e ir procurar quem quer que estivesse à sua espera.

No prédio da administração era tudo claro e organizado, pintado em tons de bege e ocre. Cheirava a sala de dentista e café com chocolate. O tapete vi-nho da entrada também lhe dava boas vindas. A cara de poucos amigos da moça no balcão de mármore da recepção, não.

— Sou Melissa Parker. Acredito que estejam esperando por mim — in-formou, tentando parecer simpática.

O olhar de peixe morto da recepcionista, todavia, não a incentivava a tanto.

— É, estou sabendo — respondeu a loira mosca-morta estourando uma bola de chiclete.

Nada educado. Melissa ficou pensando na qualidade dos funcionários que trabalhavam por ali. Nem todos tinham na simpatia um cartão de visitas como Brian Peters.

— Então... — Melissa gesticulou com as mãos. — Onde está a pessoa que me espera?

— Fim do corredor, última porta da direita — informou a recepcionista, sem muita vontade, apontando o corredor que se estendia à sua direita.

Melissa nem se deu ao trabalho de agradecer e fez seu caminho. Bateu na porta, recebendo de uma voz masculina o aval para entrar.

Um homem de idade, cabelos ralos e brancos, a recebeu, sentado em uma imponente cadeira de couro preto. Tinha um bigode que mais parecia uma escova de limpar sapatos lhe escondendo a boca. Nenhum fio dali tinha outra cor

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que não um intenso preto. Seu gabinete era coberto por prateleiras e mais prate-leiras de livros, do chão ao teto. As cortinas, que não deixavam nenhum facho de luz se atrever a iluminar o local, eram de um verde intenso.

O homem sorriu simpático, apontando uma cadeira na frente de sua mesa abarrotada de papéis e pastas, iluminada unicamente por uma potente lu-minária moderna. O local tinha um ar ligeiramente assustador, como todo o restante daquele intrigante lugar. Melissa sentou-se como lhe foi indicado.

ù Senhorita Melissa Parker, estou certo? — Sim senhor. — Sou o doutor Thompson — ele falou estendendo a mão enrugada, a

qual Melissa apertou com extremo cuidado. Parecia que qualquer força a mais seria o suficiente para transformá-lo em pó. — É um prazer conhecê-la.

Melissa preferiu esconder o descontentamento por ter sido chamada de senhorita, e não de doutora. Todos os anos sofridos de Medicina deviam pelo menos valer o título.

— O prazer é todo meu, doutor Thompson. — Acredito que tenha a carta de recomendação do doutor Hale? — Sim — ela confirmou, já buscando o pedaço de papel timbrado de

Oxford que guardava com cuidado no bolso. O doutor Thompson pegou a carta e com uma lentidão irritante a abriu,

lendo na mesma lentidão as poucas linhas ali escritas que elogiavam Melissa. — Ah, quantas saudades do meu velho amigo Charles! Como ele anda? — A última vez que o vi foi na minha formatura, enquanto me entregava

meu diploma. Estava muito bem. — Melissa sorriu. — Vejo que você era uma aluna muito querida — o velho deixou a carta

de lado, alisando o papel meticulosamente enquanto encarava Melissa com aque-les olhos cansados. Eram de um verde claro cativante. – Espero que corresponda as expectativas que meu velho amigo levantou.

- Tenho certeza de que não vai se decepcionar comigo, doutor Thomp-son – Melissa soou com voz firme e confiante, lançando ao velho doutor um olhar de mesmo tom.

— Bem, segundo o doutor Hale, você costuma se sair muito bem quan-do trabalha sob pressão. Antes de tudo, gostaria de lembrá-la que esse é um hospital psiquiátrico de custódia, essa é a realidade da psiquiatria forense. Não é nada como nas aulas ou na especialização. Deve saber que o mundo real é muito mais cruel e complexo do que a teoria. Parece ser uma moça esperta — ele cruzou as mãos sobre a mesa, erguendo as duas espessas sobrancelhas. — Gostaria de ver o que você faz com alguns pacientes nossos que eu diria que são bem difíceis de

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lidar. — Eu gosto de desafios — Melissa balançou a cabeça em concordância,

tentando passar a ideia de que era uma pessoa corajosa. — Você deve saber que a vaga que está preenchendo agora antes era ocu-

pada por um médico que foi morto por um dos pacientes — o doutor Thompson adotou um tom que, desafortunadamente, foi bastante sombrio.

Melissa engoliu em seco e forçou um sorriso amarelo. Ninguém havia dito nada sobre mortes e pacientes que matavam psiquiatras.

— Na verdade, estou sendo informada disso agora... — Espero que não seja um problema. Quer dizer, não é um hábito no

St. Marcus Institute a morte de funcionários. É um local difícil de trabalhar, você deve entender isso. No geral, acidentes são raridades. A morte do dr. Jones foi uma fatalidade que todos lamentamos muito.

— Entendo, eu... sinto muito — Melissa pigarreou. De repente sua mão passou a suar. — A julgar pela coragem que tem de vir trabalhar no St. Marcus tão

cedo, logo no início de sua carreira, acho que pode dar certo aqui — o doutor Thompson sorriu amigável. – Se gosta mesmo de desafios, como disse, acho que vai gostar de ter uma conversinha com os pacientes que separei para você.

— Trabalho é trabalho — ela deu de ombros. — Que bom que pensa assim — o velho acenou satisfeito com a cabeça.

— Agora vou chamar o doutor Peters. Ele é o chefe do setor em que eu coloquei você para trabalhar e um ótimo rapaz, com certeza será muito prestativo em tudo o que precisar. Pode ir, ele vai mostrar todas as instalações do St. Marcus para você.

— Obrigada pela oportunidade, doutor Thompson — Melissa agrade-ceu.

O doutor Thompson lançou um último sorriso, antes de se virar para o telefone antigo que se postava sobre sua mesa e discar em uma calma terapêutica alguns números. Conversou com Brian, porém Melissa não tomou conhecimen-to das palavras que dizia. Sua cabeça se perdia no medo que começava a se apos-sar de cada uma de suas células.

Menos de cinco minutos depois, o sorriso simpático e encantador do doutor Peters iluminava aquele gabinete depressivo, então Melissa foi capaz de respirar aliviada por alguns instantes.

— Queira fazer a gentileza de apresentar à senhorita Melissa o nosso querido St. Marcus — o doutor Thompson falou.

Brian chamou Melissa com um aceno e ela se despediu cordialmente do

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velho doutor, antes de sair no encalço do outro. O jovem doutor a guiou pelo corredor, até chegarem a uma escada que

os levou ao andar superior. Uma grande porta com os dizeres “ARQUIVO” se destacou à frente deles.

— Essa é a sala do arquivo. É aqui que você pega as fichas dos seus pa-cientes — Brian explicou com calma e simplicidade.

Abriu a porta de madeira e acendeu a luz, que piscou precariamente antes de se firmar por completo. A sala era enorme, lotada de arquivos de metal pintados de cinza, e cheirava a mofo. A poeira podia ser sentida no ar como se fosse uma parede invisível.

Melissa seguiu Brian até uma mesa postada ao fundo da sala, onde ele juntou algumas pastas e as depositou sobre os braços de Melissa.

— Esses são os seus pacientes — informou, enquanto já se apressava a sair da sala.

Melissa também apressou o passo, assustada pelo peso que aquela sala de repente depositou sobre seus ombros. E não era dos arquivos de seus mais novos pacientes que Melissa estava falando.

— Não gosto de entrar no arquivo — Brian comentou casualmente, caminhando ao lado de Melissa pelo corredor. — Parece que tem alguém te ob-servando o tempo todo quando está ali.

— Parece que tem alguém te observando o tempo todo em qualquer lugar por aqui — Melissa riu.

— Talvez... — Brian abriu um meio sorriso. — Como Thompson tratou você?

Caminhavam para fora do prédio do administrativo. A moça loira de cabelos ruins ainda mascava seu chiclete cor de rosa quando passaram pela re-cepção.

— Muito bem, na verdade. Ele é um grande amigo de um professor mui-to querido da Universidade. Acho que gostou de mim. — Melissa sorriu satisfei-ta, seguindo Brian através do estacionamento. — Embora tenha me designado alguns pacientes que me parecem ser bastante rebeldes.

— Você foi contratada porque ninguém mais aqui consegue lidar com eles, é preciso carne nova — Brian sorriu, e Melissa tentou corresponder, apesar do incômodo que aquela declaração lhe causou. — Mas não precisa se preocupar.

— Um médico foi morto. Tem certeza que eu não preciso me preocupar? — sua ironia foi nervosa.

— O prisioneiro que matou o dr. Jones nunca mais deixará sua cela. Foi uma fatalidade que ninguém pôde prever. Os demais ainda são controlados pelos

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remédios e sessão de terapia. Não há motivo para pânico. — Seu otimismo é motivador — Melissa comentou com um sorriso

ainda nervoso pintando seus lábios. Nesse momento, saíam em um elegante caminho de pedras. O destino

parecia ser os prédios do St. Marcus que abrigavam os pacientes. — Posso perguntar onde foi que se formou? — Brian perguntou, na

clara tentativa de descontrair a conversa. — Oxford. Brian arregalou os olhos impressionados para Melissa. — Bem, talvez nem precisasse ser bem recomendada — ele sorriu. —

Oxford fala por si mesma. — Onde você se formou? — Cambridge. — Cambridge também fala por si mesma. — Sim, fala, mas eu não tenho um par de seios, olhos inocentes e cabelos

compridos. Melissa não teve como segurar o riso, parabenizando Brian pela tentativa

de acalmá-la. Ao se aproximar dos grandes prédios, a primeira coisa que viu foi um belo jardim, tomado de grama verde. Dois carvalhos se espalhavam pelo es-paço. Havia bancos postados sob eles. As flores, que provavelmente na primavera davam um colorido diferente, agora estavam em sua maioria opacas, mas ainda sim belas.

— Esse — Brian chamou a atenção de Melissa, apontando com o dedo o prédio vermelho identificado com o grande A —, é a ala feminina. E aquele — Brian apontou o prédio mais distante. O verde que tinha o grande B o iden-tificando —, é a ala masculina. O último, que fica entre os outros dois, é o mais importante.. – Brian apontou aquele cinzento que dava calafrios em Melissa. — É o prédio C. Chamamos de helvete. Inferno, em sueco.

— Por que sueco? — Porque um dos primeiros donos desse prédio era um sueco, que ironi-

camente depois de um tempo ficou maluco, matou a família toda e ganhou uma cela especial por lá. Morreu de inanição, porque se recusava a comer. Dizia que a comida tinha minhocas, ou qualquer loucura desse tipo — Brian deu de ombros.

— Interessante. Todo lugar tem sua história. — O St. Marcus tem mais história que a maioria dos lugares, na verdade.

Muitas coisas ruins aconteceram por aqui, você deve imaginar. Um lugar fica marcado pelos eventos que acontecem nele — ele abriu um sorriso esperto em seguida. — Dizem que o fantasma do velho sueco dá uns passeios pelos jardins

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à noite. Melissa riu, rolando os olhos. Brian acompanhou seu riso. — Quem fica no helvete, afinal? — A nata da sociedade do St. Marcus. — Que são...? — Os assassinos. Não os comuns. Os que cometeram crimes que cho-

caram profundamente a comunidade e esse papo todo — Brian abanou a mão com desinteresse, no momento em que chegavam finalmente às entradas dos três prédios.

As dos prédios A e B eram bem acessíveis, bonitas e arrumadas. A do pré-dio C, entretanto, era precedida por uma escada com um número considerável de degraus e guardas armados até os dentes.

Nos jardins que circundavam os prédios A e B, estavam espalhados os homens e mulheres que ali viviam, todos vestidos nos mesmos trajes cinza e pe-sados casacos negros. Uns agiam, exatamente, como loucos. Falavam sozinhos, encaravam o céu com interesse que passava longe do saudável, outros conver-savam com objetos, e poucos realmente mantinham uma conversa entre si. E, ainda sim, o assunto não parecia ser lá dos mais normais.

Melissa observava com cuidado e atenção cada uma das pessoas ali pre-sentes. Suas peles brancas e macilentas, suas olheiras negras que rodeavam olhos opacos e sofridos, suas expressões abatidas e sem esperança. Eram aparências pouco saudáveis. Sem qualquer aviso prévio, no entanto, todo esse mundo mar-cado pela insanidade humana desapareceu. Foi uma sensação esquisita, de que o mundo girava rápido demais e então caía impiedosamente sobre sua cabeça.

Aconteceu no momento em que aquele belo par de olhos azuis a fitou. Eram absolutamente intrigantes, instigantes e encantadores. O brilho era fosco, carregado de uma negatividade que provocou arrepios imediatos em sua espinha. No entanto, pareciam faiscar por sobre a neblina, brilhando como dois faróis em meio ao breu. Pertenciam a um rapaz que, aparentemente, tinha mais ou menos a idade de Melissa. Ao contrário dos demais, ele usava uma calça de agasalho. E aquela era a única peça de roupa que vestia, além do moderno par de tênis Nike.

Ela se permitiu fitar o restante do rapaz por um breve instante. E ficou perdida no movimento que seus músculos saltados e bem definidos faziam na medida em que ele se abaixava para pegar um tanto de lenha que se acumulava no chão. As tatuagens que se espalhavam por suas costas e braços eram encanta-doras como todo o resto. Formavam linhas negras e coloridas, em desenhos be-los, porém bastante perturbadores. Enquanto ele se movia, as tatuagens pareciam encará-la.

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O rapaz, de repente, como se tivesse percebido a atenção de Melissa, parou sua atividade e soltou os pedaços de madeira que se acumulavam em seus braços. Ele limpou uma fina linha de suor que escorria por sua testa e se pôs a observar Melissa. Sua atenção era minuciosa e ela passou a caminhar em um mo-vimento absolutamente automático a partir dali.

Os traços dele eram fortes e angulosos. Os lábios naturalmente verme-lhos, as maçãs do rosto também. Sua expressão era dura e, ainda assim, capaz de deixar Melissa esquecida do fato de que deveria respirar. Os cabelos esvoaçavam no ritmo do vento, e ele levou a mão até os fios rebeldes para tirá-los da frente de seus olhos. O movimento pareceu a Melissa ser completamente realizado em câmera lenta, pois estava encantada demais com o que via à sua frente.

Se Brian Peters parecia um galã de Hollywood, Melissa não saberia dizer de que mundo perfeito aquele prisioneiro havia saído.

A voz de Brian soava ao longe, enquanto ela se perdia em todo aquele turbilhão esquisito de emoções e sensações. O jeito como ele a olhava parecia que via por cada mínimo espaço entre suas células. Fazia sua pele formigar. Era quase invasivo, mas, ao contrário do que a sensatez lhe gritava, não se sentia mal por isso. Melissa imediatamente desejou que ele fosse um de seus pacientes. Sentiu uma imensa vontade de desvendar os motivos por trás daquela escuridão que se destacava por sobre a sua áurea, por sobre a expressão sofregamente maligna.

— Melissa? — Brian estalou os dedos na frente de seus olhos, e ela final-mente foi capaz de quebrar aquele estranho contato visual.

Ainda teve tempo de assistir um mínimo sorriso de escárnio repuxar os lábios absolutamente desejáveis do prisioneiro, antes que ele voltasse ao trabalho.

Fazia muito tempo que Melissa não tinha um namorado. E a abstinência estava começando a causar efeitos negativos. Um paciente de uma instituição para psicopatas ter os lábios desejáveis? Onde diabos ela estava com a cabeça?

Contrariada, Melissa voltou sua atenção a Brian, que sorria incerto à sua frente.

— Sim? — Está tudo bem? — Absolutamente — Melissa forçou um sorriso, que mais lhe pareceu

uma careta.— Podemos continuar, então? — Brian a encarou desconfiado. Seus olhos pousaram sobre o rapaz misterioso por um instante, que vol-

tara a carregar lenha. E então prosseguiu com o caminho. A visita à ala feminina foi bastante agradável. À ala masculina, nem tan-

to. Levando em conta que os pacientes eram deficientes mentais, loucos, ou psi-

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cologicamente afetados, mas ainda tinham testosterona pra dar e vender, é de se imaginar o tipo de coisa que Melissa escutou por lá. O helvete, ela agradeceu, não fazia parte do roteiro de visitas. Preferia não ter que colocar os pés naquele lugar.

Por último, de volta ao prédio administrativo, Brian deixou os dormitó-rios dos médicos. Alguns viviam em casas na cidade; outros, moravam no con-fortável e aconchegante alojamento que havia ali. A cama era de casal e macia, o guarda-roupa pequeno, mas Melissa daria um jeito de caber suas roupas ali. O banheiro tinha um chuveiro quente e uma banheira velha.

— É seguro morar aqui? – ela perguntou. Brian olhava distraído pela janela do quarto. — Razoavelmente — ele deu de ombros. — Você viu o tanto de guardas

e enfermeiros que temos por aqui. — Você mora aqui? Brian virou-se para Melissa e sorriu antes de responder: — Duas portas adiante. Se precisar de uma xícara de açúcar, é só bater. — Vou me lembrar disso. — O café é servido todos os dias às sete, no refeitório. Fica ao fim do

corredor dos dormitórios. Não tem erro. O fluxo de pessoas por lá de manhã á bastante intenso.

— Tudo bem. — Bem, eu vou... deixar você se instalar. — Obrigada — Melissa agradeceu, e lançou um sorriso simpático antes

que fosse deixada só. Naquela primeira noite no St. Marcus Institute, o sono veio rápido. Após

as horas que levou para ajeitar o quarto de seu modo e do grande turbilhão de informações do dia, Melissa estava cansada. Os olhos azuis do misterioso prisio-neiro ainda a atormentavam. Antes que fechasse seus próprios olhos, teve certeza de que estava se preparando para uma noite recheada de sonhos com ele.

As farpas que escapavam da madeira cortada se embrenhavam dolorosa-mente na carne de seu braço. Corey não se importava. Tudo o que queria, tudo o que precisava, era de um pouco de dor. Enquanto sua cabeça estivesse ocupada processando as informações daquele sentimento, estaria livre das insanidades que com frequência queriam dominá-la. O simples raciocínio despendido na escolha dos melhores pedaços de lenha era o suficiente para mantê-lo na calmaria que a

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sanidade poderia lhe proporcionar. O frio do outono, que se aprofundava cada vez mais anunciando a pro-

ximidade no inverno, não o atingia exatamente como planejava. Na verdade, sua pele já era tomada por uma leve camada de suor. A ausência de roupa era também um artifício naquela busca masoquista pela dor. Mas não vinha funcio-nando como Corey previa ultimamente. Talvez seu corpo estivesse finalmente se acostumando com a baixa temperatura. Teria que procurar por outro modo de proporcionar o sofrimento da dor em si mesmo.

Se pudesse, teria consigo um daqueles chicotes que fanáticos religiosos utilizam na autoflagelação. Infelizmente, não seria permitido. A estranha amiza-de com o carcereiro chefe do helvete e a ainda útil influência do pai não seriam o suficiente para garanti-lo esse tipo de “regalia”, se é que poderia chamar assim. Era, entretanto, o bastante para permitir passeios fora das dependências frias e depressivas do helvete. Quase ninguém que guardava endereço naquele prédio tinha a possibilidade de deixá-lo em pleno horário do banho de sol das alas me-nos perturbadas.

Corey, de fato, era o único, dentre os sessenta e cinco moradores daque-le privilegiado edifício, que gozava dessa prerrogativa. Era claro que, enquanto estivesse fora, deveria estar trabalhando, fazendo os serviços braçais que nunca antes na vida imaginou fazer, mas não iria reclamar. De forma alguma. Ver algo diferente de dementes assassinos em série, pedófilos, estupradores, era uma opor-tunidade que jamais poderia ser descartada.

O lado de fora do helvete, mesmo que ainda preso entre os muros do St. Marcus, mostrava que ainda havia um mundo sensato, são e belo a se apreciar. Mostrava que ainda havia um sol a brilhar, mesmo que escondido pelas nuvens cinzentas de chuva, que ainda havia o verde da natureza, mesmo que abalados pelo frio do outono. Que ainda havia pessoas boas, pessoas que tinham um mí-nimo de raciocínio lógico e centrado. O mesmo tipo de raciocínio que ele já teve um dia, mas que agora estava, aos poucos, sendo privado.

Corey não gostava da convivência dos loucos das alas A e B, também não gostava da convivência dos enfermeiros, guardas e principalmente dos médicos. Todos o tratavam como se fosse algum tipo de maluco incurável.

Ele não era. Era tão perfeitamente lúcido quanto cada guarda, enfermeiro e médico

ali presente, mas não havia nada naquele mundo que os faria mudar de ideia. Então ele fingia para si mesmo, enquanto carregava a lenha que deixaria seus malditos escritórios aquecidos, que fazia parte daquele mundo em que a loucura era apenas um mal a ser tratado, não uma doença a ser carregada como um fardo

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injusto. Enquanto juntava as lenhas anteriormente cortadas por um funcionário

estúpido do St. Marcus, Corey tentava se concentrar na lentidão sofrida com que uma farpa se enfiava no espaço entre seu dedo indicador e o do meio. O trabalho não demoraria muito a acabar e um leve desespero começava a se apossar dele. Desespero esse que foi brutalmente afastado de seus pensamentos, junto com o prazer que a dor lhe proporcionava enquanto distraía seus sentidos. Sua mente foi dominada, beirando a violência. Seus olhos cansados se perderam sem aviso prévio.

Havia começado a ver anjos e nem ao menos se dera conta disso? Desde quando anjos faziam visitas ao St. Marcus? Aquele era um local certamente esquecido por tal divindade gloriosa.

As faíscas de inocência que emanavam daquele olhar acinzentado só poderiam pertencer a um anjo, no entanto.

Ela era um anjo. Parecia que caminhava em câmera lenta pelo caminho de pedras brancas,

levando seu corpo particularmente alto e esguio, de proporções perfeitas. Os ca-belos negros que lhe caíam até a cintura esvoaçavam graciosamente ao sabor do vento. A forma delicada de cada um dos traços que formavam seu perfeito rosto, pintado por algumas sardas, era algo a ser apreciado. Os olhos cinza brilhavam como estrelas do céu. Os lábios eram cheio e avermelhados. As bochechas eram marcadas por covinhas e o meio sorriso incerto dela era ridiculamente encanta-dor. Corey quis saber imediatamente quem era ela, mas ao enxergar, logo após seu brilho natural, a presença do imbecil do doutor Brian Peters, soube que era a nova médica que o St. Marcus procurava. E o encantamento sobrenatural de segundos antes, foi tão rápido quanto veio.

Ela, porém, ainda continuava a encará-lo, com uma curiosidade intri-gante, enquanto ignorava o idiota do doutor Brian tagarelando em seu ouvido. Corey gostou dessa atitude, todavia, deixando que um sorriso sarcasticamente maligno se formasse em seus lábios, quando ela lançou o último faiscante olhar. Então voltou ao seu trabalho.

Tudo o que conseguia pensar a partir dali era que o corpo de funcionário do St. Marcus Institute estava começando a se tornar interessante.

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a holandesa de caMbrIdge

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O despertador acordou Melissa pontualmente às seis da manhã da-quele primeiro dia no St. Marcus Institute. O primeiro dia de tra-balho de sua vida como psiquiatra. Tinha medo, as mãos suavam,

e uma louca vontade de voltar correndo para casa teve de ser ignorada. “Vai dar tudo certo”, foi o que sua mãe disse ao telefone, quando ligou

para se certificar de que a filha havia conseguido acordar sã e salva naquele lugar violento e perigoso, como gostava de lembrar.

“Vai dar tudo certo” foi o mantra que repetiu para si mesma, enquanto vestia o uniforme branco dos médicos, com o brasão imponente do St. Marcus bordado em linhas verdes e pretas. Seu nome também já estava ali, demonstran-do a eficiência, ainda que antipáticos, dos funcionários da instituição.

O cabelo foi preso em um coque firme no alto da cabeça. Melissa buscou os óculos de armação preta, antes de finalmente se mostrar ao depressivo mundo do St. Marcus. O corredor dos dormitórios estava particularmente abarrotado. A julgar pelo número de pacientes do local, que ao todo contavam cento e cinquen-ta, era razoável no mínimo aqueles quinze médicos que caminhavam com pressa por ali. Lá no fim do corredor, estava a porta de aço que Brian, prestativamente, no dia anterior, informou abrigar o refeitório. E era para lá que todos caminha-vam. Melissa respirou fundo antes de dar os primeiros passos.

A duas portas de distância da sua, do lado direito do corredor, o mesmo doutor Brian Peters do dia anterior sorriu simpático ao reconhecê-la em meio àquele mar de branco. Alguns enfermeiros também se esquivavam por ali em seus uniformes azul claro.

— Como foi a primeira noite? — Brian perguntou, quando Melissa se aproximou, correspondendo seu sorriso.

— Razoável. Tirando alguns gritos que... Nossa! Eles têm um pulmão bem potente, não é mesmo? — ela forçou um sorriso, que tentou disfarçar suas feições assustadas.