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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
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1
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
LAS OLIVATO
Insurgncia impressa:
Uma anlise do periodismo no primeiro
movimento de independncia mexicano (1810-1814)
So Paulo
2012
2
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Insurgncia impressa:
Uma anlise do periodismo no primeiro movimento
de independncia mexicano (1810-1814)
LAS OLIVATO
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Histria
Social do Departamento de Histria da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo.
ORIENTADORA: Prof Dr GABRIELA PELLEGRINO SOARES
So Paulo
2012
3
4
NOME: OLIVATO, Las
TTULO: Insurgncia impressa:Uma anlise do periodismo no primeiro movimento de
independncia mexicano (1810-1814)
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Histria
Social do Departamento de Histria da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo.
Aprovada em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ..............................................................................................................................
Instituio ...........................................................................................................................
Julgamento ..........................................................................................................................
Assinatura ...........................................................................................................................
Prof. Dr. ..............................................................................................................................
Instituio ...........................................................................................................................
Julgamento ..........................................................................................................................
Assinatura ...........................................................................................................................
Prof. Dr. ..............................................................................................................................
Instituio ...........................................................................................................................
Julgamento ..........................................................................................................................
Assinatura ...........................................................................................................................
5
Agradecimentos
O desenvolvimento desta dissertao tornou-se possvel graas a colaborao e ao afeto
de inmeras pessoas com quem eu dividi ideias, pensamentos, angstias e conhecimentos nos
ltimos trs anos. Gostaria de agradecer tanto aqueles que acompanharam de perto as
dificuldades do trabalho de pesquisa acadmica e seus frutferos resultados, assim como os
que, com diferentes interesses e generosidades, tornaram mais prazeroso esse processo.
Primeiramente agradeo minha orientadora, Prof Gabriela Pellegrino Soares, pelo
acolhimento constante. Suas leituras minuciosas, as crticas, as discusses, a motivao, a
compreenso e, principalmente, a amizade foram imprescindveis para minha formao.
Prof Maria Lgia Coelho Prado que fez parte da minha trajetria acadmica desde a
Graduao. Suas aulas e seu entusiasmo pela Histria da Amrica Latina foram fundamentais
para minhas escolhas na ps-graduao. Com ela aprendi a me apaixonar cada dia mais pelo
estudo da Histria e pelo povo latino-americano.
Aos amigos historiadores e pesquisadores, Vanessa Pacheco, Renan Perondi, Bruno
Galeano, Marcio Botelho, Lucas Jorge de Freitas, Lorena Leite, Andr Navajas Madio, Rafael
Viegas, Marina Garcia de Oliveira, Camila Souza Lima, Gyrgy Henyei Neto e Caio Pedrosa
da Silva interlocutores fiis dessa pesquisa. Foram bons companheiros e, ocasionalmente,
revisores detalhistas de meus textos.
Vivian Krauss e Camilla Fontes, pelas madrugadas dedicadas a preciosas discusses
historiogrficas, a paixo pelo mundo e ao cultivo da amizade. So pessoas inesquecveis.
s ex-alunas, Livia Orsati e Giovanna Crescitelli, que me ensinaram sobre a
importncia de ser professora em momentos de dvidas e crises profissionais. Obrigada pelos
6
sorrisos, pelas palavras de afeto, pelo reconhecimento, pelos momentos ldicos e pelo
conhecimento dividido.
Aos meus colegas de trabalho, que compartilham diariamente o gosto pela profisso e
pelo debate acadmico, Patrcia Andrade da Silva, Carolina Gabriel de Paula, Valter Roitman,
Bruna Renata Cantele, Vanessa Sobrino, Mirtes Timpanaro e Paulo Ramirez.
Ao meu grande amigo Roberto do Valle, por toda a ajuda tcnica no trabalho com as
fontes documentais da pesquisa. Pelo carinho, disposio e ateno fundamentais para a
concluso deste trabalho.
s minhas amigas, Mayara Zaneli, Fernanda Nogueira e Talita Medinilha pela
pacincia, compreenso e amor que s os piracicabanos entendem.
minha irm Luiza Olivato, eterna companheira de vida. Obrigada pelas sugestes
assertivas, bom-humor, revises e pacincia em todos os momentos.
Aos meus pais, Luiz e Renata Olivato, minhas referncias sempre. Incentivaram-me a
seguir meus sonhos e a superar adversidades com amor.
Por fim, no posso deixar de citar o acolhimento dos mexicanos em viagem para
pesquisas ao Mxico. Era o primeiro dia do ano de 2010, quando encontrei uma senhora
indgena muito simples em frente Catedral na Cidade do Mxico. Ela disse viajar de muito
longe para poder assistir a primeira missa do ano com todos os milhares de mexicanos que ali
estavam. Pediu que eu permanecesse ao seu lado para sentir, naquele pas estrangeiro, a fora
de seu povo.
7
Ao povo mexicano.
8
Resumo: A imprensa insurgente encomendada por Miguel Hidalgo e por Jos Morelos,
durante o movimento de independncia da Nova Espanha, marcou uma ruptura com a
imprensa oficial no incio do sculo XIX. Ao levantar os problemas sociais do Vice-Reino e
estratgias para combat-los, configurou um novo espao de debate poltico que respondia
prioritariamente s urgncias de notcias da guerra e publicao de constantes manifestos em
que se justificava a causa separatista. Analisar o desenvolvimento dos impressos durante a
independncia constitui um mecanismo para compreendermos a formao de espaos de
sociabilidade num momento de debate intenso sobre a formulao de uma identidade
mexicana. Os jornais revolucionrios podem ser lidos, a partir desta perspectiva, no apenas
como um lugar de discusso, mas como um elemento que se vincula a outras instncias de
ao social e estabelece uma comunicao a fim de formar opinies polticas.
Palavras Chave: Independncia da Nova Espanha Histria do Mxico periodismo
insurgente
9
Abstract:. The insurgent press demanded by Miguel Hidalgo and Jos Morelos, during the
independence movement of New Spain, established a rupture with the official media from the
early 19th
century. When putting through the light the social problems of the Vice-Reign and
the strategies to fight against it, a new space for political debate was created, answering
mainly to the urgency of the news from the war and the publication of constant manifests in
which the independence is a mechanism for us to understand the formation of places for
sociability in a moment of intensive debates on the construction of a Mexican identity. The
revolutionary newspapers can be read, through this perspective, not only as a place for
arguments, but also an element connected to other social practices and establish a
communication with the mission to create political opinion.
Key words: Independence of New Spain - Mexican History insurgence periodism
10
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. p. 13
1: A escrita da independncia
1.1 O grito de Dolores ........................................................................................... p. 21
1.2 Novos debates e perspectivas ..........................................................................p. 36
2: Revoluo impressa
2.1 A imprensa na Nova Espanha ......................................................................... p. 53
2.2 Construo do periodismo insurgente ............................................................. p. 64
2.3A mediao das ideias polticas na construo da luta .................................... p. 79
3: As ideias insurgentes
3.1 A dinmica simblica .......................................................................................p. 90
3.2 O rei oculto versus a Ptria Americana ........................................................... p. 91
3.3 A proteo da Virgem e as luzes da razo .....................................................p. 102
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...........................................................................p. 114
ANEXOS .......................................................................................................................... p. 121
11
ndice de imagens
Figura 1:
Mapa com as principais localidades citadas no texto ..........................................................p. 12
Figura 2:
Vicente Riva Palacio, Julio Zrate (1880) "Mxico a travs de los siglos" Tomo III: "La guerra
de independencia" (1808 - 1821) p. 20
Figura 3:
Semanrio Americano, nmero vinte e trs do dia 20 de dezembro de 1812.......................p. 52
Figura 4:
El Correo Americano del Sur nmero quatro do dia 18 de maro de 1813..........................p. 89
12
13
Introduo
As reflexes aqui apresentadas buscam compreender a formao dos canais de
mediao poltica e cultural entre os lderes rebeldes e a populao da Nova Espanha durante
o primeiro movimento de independncia mexicano. Por meio da anlise de uma srie de
jornais publicados entre 1810 e 18141, possvel traar um panorama da formao do dilogo
entre diferentes grupos sociais no contexto de ruptura com o Antigo Regime para a
configurao de uma dinmica popular luta emancipacionista.
A insurgncia iniciada h duzentos anos pelo Padre Miguel Hidalgo de Costilla e,
posteriormente, continuada por Padre Jos Maria Morelos y Pavn e Igncio Lpez Rayn
coloca o problema da construo de um espao de debate e de uma nova conscincia poltica.
O questionamento soberania poltica, s hierarquias sociais, ao problema da liberdade de
imprensa e subordinao da populao indgena aparecem em evidncia nessa conjuntura.
O momento foi crucial para favorecer a mobilizao dos setores populares. Com a
captura de Fernando VII pelos franceses, instaurou-se em todo o Imprio uma discusso sobre
o papel da populao como instncia soberana de exerccio do poder. Na Nova Espanha, o
movimento de Hidalgo e Morelos dialogava diretamente com essa questo.
Durante a trajetria da luta, os curas ilustrados contaram com a ajuda de homens
letrados que apoiaram a insurgncia e publicaram textos para formular um ponto de encontro
possvel entre o discurso promovido por criollos em relao aos anseios dos setores
populares, considerando sua participao neste momento. Atuando como mediadores polticos
e culturais, os editores dos jornais insurgentes produziram um interessante material impresso
1 El Despertador Americano (Guadalajara, 1810-1811), El Ilustrador Nacional (Sultepec, 1812)
substitudo pelo El Ilustrador Americano (1812-1813), Semanario Patriotico Americano (Huichapa y
Tlalpujahua, 1812, 1813), Gazeta del Gobierno Americano, en el Departamento del Norte (Yuriria, 1812) e o
Correo Americano del Sur, (Oaxaca, 1813).
14
que evidenciava os principais debates polticos do momento de formao da luta
emancipacionista. O dilogo destes com os setores populares foi capaz de unir os diferentes
setores sociais, que permaneceram afastados durante os sculos da colonizao.
Nos ltimos anos, os estudos sobre populaes indgenas nas Amricas tm se
desenvolvido numa perspectiva histrico-antropolgica que tende a valorizar os ndios como
sujeitos ativos dos processos histricos nos quais se inserem2. Assim, ao longo desta
dissertao, pretendo explorar o dilogo entre os editores ilustrados e a populao como
fundamental na formao da rebelio. Para tanto, necessrio traar um quadro panormico
sobre como os mestios indgenas se integraram ao movimento inicialmente liderado por
Hidalgo e o momento histrico que permitiu a ampliao da participao popular.
De antemo, considero que o processo de emancipao da Nova Espanha se distingue
dos demais movimentos hispano-americanos por trs motivos centrais. Primeiro, foi iniciado
no interior de uma provncia do vice-reinado e no na capital. Segundo, seus principais lderes
eram sacerdotes que conduziam uma populao rural. Por ltimo, o carter eminentemente
popular que teve a insurreio em sua primeira etapa 1810-1815. Alm disso, importante
destacar que neste processo o dilogo entre religio e poltica esteve muito estreito, muitas
vezes confundindo seu papel na formao discursiva do movimento. Para a compreenso
dessas especificidades, a dissertao est dividida em trs partes centrais.
No primeiro captulo, A escrita da independncia, o movimento de independncia foi
analisado luz dos novos debates historiogrficos que surgiram em ocasio das
comemoraes do bicentenrio no ano de 2010. Alm de contribuio para o avano das
pesquisas acadmicas, a utilizao poltica do evento para a formao de uma memria
2 Essa forma de anlise foi trabalhada por John Monteiro, para quem os avanos recentes nos estudos
etno-histricos, no entanto, vm minando (...) perspectivas arraigadas desde h muito introduzindo uma nova
conjuno entre pesquisa documental e perspectivas antropolgicas para produzir um renovado retrato das
respostas ativas e criativas dos atores indgenas que, apesar de todas as foras contrrias, conseguiram forjar
espaos significativos na histria colonial, de modo que no mais admissvel omiti-los do registro histrico.
MONTEIRO, John Revista Histria 149, 2 - 2003, 109.
15
histrica mexicana merece destaque para a compreenso da conjuntura atual. No dia 18 de
setembro, em ocasio destas festividades, o presidente do Mxico, Felipe Caldern declarou
que:
O ano de 2010 ser, sem dvidas, tempo de jbilo e alegria. Em cada
lugar, em cada escola, em cada bairro ou praa pblica, viveremos
intensamente o orgulho de sermos mexicanos, o orgulho de prover desse
nosso passado rico em complexidade, dramatismo e glria, porm
celebraremos tambm o orgulho de nosso futuro. Um orgulho que
construiremos juntos, com a firme determinao de engrandecer cada dia
nossa Ptria, como foi o ideal de nossos libertadores; porque, finalmente, a
Ptria de todos, a Ptria para todos3.
O discurso de Caldern evidencia um imaginrio social sobre a independncia que
percorre o Mxico at os dias de hoje, alm de fazer parte da idealizao sobre a construo
da identidade nacional de seu povo. O fato de no representar apenas a separao com a
Espanha, mas tambm o momento fundador da Ptria recuperado constantemente pelo
discurso poltico. Em decorrncia das festividades oficiais do governo e da relevncia do tema
para os mexicanos, o nmero de publicaes, acadmicas ou no, sobre o movimento iniciado
em 1810 aumentou significativamente. Muitos historiadores tm se debruado sobre tarefa de
reinterpretar esse passado, seja criticamente, ou para torn-lo mais herico.
Em uma entrevista dada em 2011 ao Peridico y Agencia de Notcias Imagen del
Golfo4, o historiador Enrique Florescano alertou que as comemoraes pelo Bicentenrio
produziram uma nova historiografia oficial que se preocupou em apagar as diversidades
regionais do pas por trs de um discurso de unidade nacional que serviria para atender s
exigncias polticas do momento histrico do pas atualmente. Contudo, temos que reconhecer
3 http://www.bicentenario.gob.mx/index.php?catid=68:arco-bicentenario&id=259:discurso-del-
presidente-felipe-calderon-hinojosa&option=com_content&view=article acessado em novembro de 2010.
(Optou-se por traduzir as citaes das obras historiogrficas originalmente em espanhol para facilitar a leitura do
texto) 4 Entrevista com Enrique Florescano Disponvel em
http://www.imagendelgolfo.com.mx/resumen.php?id=234538 acessado em maro de 2011.
http://www.bicentenario.gob.mx/index.php?catid=68:arco-bicentenario&id=259:discurso-del-presidente-felipe-calderon-hinojosa&option=com_content&view=articlehttp://www.bicentenario.gob.mx/index.php?catid=68:arco-bicentenario&id=259:discurso-del-presidente-felipe-calderon-hinojosa&option=com_content&view=articlehttp://www.imagendelgolfo.com.mx/resumen.php?id=234538
16
a existncia de uma produo historiogrfica acadmica de peso que, buscando analisar as
especificidades dos acontecimentos do Mxico em 1810, vem questionando a utilizao de
antigos mtodos e fontes de uma antiga histria oficial. A partir desse debate, possvel
reconstruir um breve panorama histrico dos principais eventos que cerceiam as distintas
produes historiogrficas que analisaram a luta de Hidalgo e Morelos como uma parte
constituinte da cultura poltica5 do pas nos ltimos anos.
No segundo captulo da dissertao, Revoluo impressa, delinearei o percurso dos
jornais insurgentes produzidos durante a luta poltica do incio do sculo XIX. El Despertador
Americano (Guadalajara, 1810-1811), El Ilustrador Nacional (Sultepec, 1812) substitudo
pelo El Ilustrador Americano (1812-1813), Semanario Patriotico Americano (Huichapa y
Tlalpujahua, 1812, 1813), Gazeta del Gobierno Americano, en el Departamento del Norte
(Yuriria, 1812) e o Correo Americano del Sur, (Oaxaca, 1813) 6 atuaram como intermedirios
nesse debate entre letrados e populares, mundo urbano e o rural dos indgenas e, inclusive,
entre uma ilustrao especfica da Nova Espanha e as tradies populares.
Para estabelecer a relao desses mediadores polticos e a populao durante o
processo de construo da luta poltica, utilizei as cartas pessoais dos lderes insurgentes,
especificamente uma antologia documental de cartas enviadas por Morelos, publicadas por
5 Marta Abreu prope uma definio pertinente do conceito de cultura poltica no livro Cultura poltica e
leituras do passado. Para a autora, o interesse pelo conceito se deve ao fato que ele permite explicar ou
compreender o comportamento poltico de atores individuais e coletivos, privilegiando suas prprias percepes,
lgicas cognitivas, memrias, vivncias e sensibilidades. Considerado "um sistema de representaes, complexo
e heterogneo", o conceito torna-se til ao historiador que rejeita anacronismos e no deseja estabelecer
interpretaes normativas ou unvocas. De modo geral, pode-se dizer que as culturas polticas tm formas pelas
quais se manifestam e se evidenciam mais frequentemente, como um projeto de sociedade, de Estado ou uma
leitura compartilhada de um passado comum. Tm igualmente algumas instituies-chave, como a famlia, os
partidos, os sindicatos, as Igrejas, as escolas, embora grupos sociais diversos tambm possam ser importantes
para sua transmisso e recepo. Por outro lado, as culturas polticas exercem papel fundamental na legitimao
e regimes ou na criao de identidades, sendo seus usos extremamentes eficientes e pragmticos. Em todos os
casos, as culturas polticas articulam ideias, valores crenas, smbolos, ritos, vocabulrio, imagens e memrias
em prol de lutas polticas e culturais. ABREU, Marta, SOIHET, Rachel e GONTIJO, Rebeca (orgs) Cultura
poltica e leituras do passado: historiografia e ensino de histria Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 2007. p.
13- 14. 6 Todos os peridicos insurgentes citados ao longo do texto esto disponveis no stio virtual
Antorcha,net.
17
Ernesto Lemoine Villicaa7,
para compreender o dilogo entre esses grupos em meio a um
novo espao pblico na Nova Espanha. interessante observar a distino das duas fontes
documentais utilizadas nesta pesquisa. Enquanto os jornais eram elaborados durante as
batalhas e confrontos militares do movimento e destinados populao da Nova Espanha, as
cartas eram elaboradas cuidadosamente pelos lderes insurgentes antes de serem enviadas aos
seus correspondentes, fossem eles integrantes da luta em outras frentes de combate ou criollos
politizados das principais cidades rebeldes.
Para Roger Chartier, a criao de uma esfera pblica de debate definiu um novo
espao pblico na Europa do sculo XVIII e nos Estados da Amrica Latina do sculo XIX.
Para alm da definio de Jgen Habermas, para quem as novas formas de sociabilidade
ocorriam a partir de encontros entre pessoas privadas que discutiam e criticavam os assuntos
do Estado e das autoridades em cafs, clubes e sales literrios, havia tambm o espao da
sociabilidade escrita, Chartier utiliza o texto O que Iluminismo de Kant para definir o
espao pblico como um local associado produo, circulao e apropriao do escrito.
Conforme o iluminista, o iluminismo mais um processo, uma tendncia, um movimento
que ter concludo quando cada um possa atuar produzindo textos como sbio e recebendo
outros como leitor 8
.
Segundo Franois Xavier Guerra e Annick Lemprire,
pblico nos remete sempre poltica: a concepes da comunidade
como associao natural ou voluntria, ao governo, legitimidade das
autoridades. Longe de ser somente o qualificativo neutro e cmodo de um
espao ou de uma esfera que se ope sempre, implcita ou
explicitamente ao campo do privado, esfera dos indivduos e das
famlias, das conscincias e das propriedades, o pblico ao mesmo tempo
o sujeito e o objeto da poltica: seja a do Antigo Regime (o bem comum, os
7
TORRE VILLAR, Ernesto de la Testimonios Historicos Guadalupanos. Mxico, FCE, 1982 e,
VILLICANA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros testimonios
de la poca Mxico: UNAM, 1965. 8 CHARTIER, Roger Cultura escrita, Literatura e Histria: conversa de Roger Chartier com Carlos
Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit Porto Alegre, Artmed, 2001, p. 64-65.
18
cargos pblicos, a felicidade pblica dos ilustrados) ou a revolucionria (a
salut public dos jacobinos) ou a do constitucionalismo liberal (os poderes
pblicos legitimados pela soberania do povo9
Contudo, interessante notar que a ambio iluminista de tornar a populao mais
sbia com a utilizao da leitura e da escrita no ocorria dessa forma. No sculo XIX, a
valorizao ilustrada da cultura letrada nem sempre contemplava o grande pblico.
O papel dos editores dos peridicos insurgentes foi fundamental para a construo dos
canais pelos quais ocorreu a difuso das ideias do movimento. Discutir a trajetria de
personagens como Jos Mara Cos, Carlos Mara Bustamante, Francisco Severo Maldonado e
Andr Quintana Roo compreender uma parte importante da formulao discursiva da luta
poltica travada pelas lideranas populares, assim como o entendimento de que este debate
no permanecia estagnado, mas era constantemente reformulado nos impressos.
O terceiro captulo, As ideias insurgentes, compreende uma anlise discursiva dos
jornais rebeldes. A dinmica de construo do movimento ao longo destes peridicos est
composta de elementos que permitiram a aproximao da populao com os ideais polticos
de Hidalgo e Morelos. O dio aos gachupines10
, o simbolismo do culto Virgem de
Guadalupe, a justificativa moral da luta por meio de argumentos religiosos, a constante
evocao de Fernando VII como guardio do Imprio espanhol e liderana oculta dos rebeldes
eram constantes nos primeiros jornais insurgentes. Aos poucos, esse discurso tradicional
9 GUERRA, Franois Xavier e LEMPRIRE, Annick Los espacios pblicos en Ibereoamrica:
ambigedades y problemas. Siglos XVIII-XIX. Mexico: Fondo de cultura econmico, 1998, p. 7. 10
De acordo com Alfredo vila, "durante o perodo do vice-reinado, os descendentes de espanhis eram
considerados como tal, espanhis, sem importar o lugar em que tivessem nascido. Por essa razo, quando
fizermos referncia aos que nasceram no territrio da atual Espanha, os chamaremos espanhis europeus ou
espanhis peninsulares para distingui-los dos espanhis americanos, nascidos no vice-reinado. Os termos
gachupin e crioulo, que na poca tinham uma carga pejorativa, sero empregados quando fizermos referncia
retrica e tais termos das fontes estudadas. "Crioulo" referia-se ao nascido na Amrico, filho ou descendente de
espanhis europeus, enquanto que "gachupin" era chamado o espanhol europeu que ocupava cargos e empregos
no vice-reinado ou que havia enriquecido na Amrica; ainda que, pouco a pouco, comeou a ser utilizado para
designar qualquer espanhol peninsular." VILA, Alfredo e PUGA, Gabriel T. Do francs ao gachupin: a
xenofobia no discurso poltico e religioso da Nova Espanha, 1760-1821 In: PAMPLONA, Marco A. e MDER,
Maria Elisa (org) Revolues de independncias e nacionalismos nas Amricas - Nova Espanha So Paulo:
Paz e Terra, 2008 p. 120.
19
associado poltica do Antigo Regime foi substitudo por novos debates que permeavam a
discusso por um novo Estado Nacional. A partir de 1813, conforme as fontes documentais, o
separatismo poltico da insurgncia prevalecia diante aos antigos argumentos que, no incio,
haviam permitido uma identificao popular de grande flego com a causa.
A construo do debate poltico sobre a formao do movimento de Hidalgo e Morelos
passava, ento, pelo questionamento das antigas estruturas sobre as quais estavam aliceradas
as caractersticas sociais do Antigo Regime em confronto com literatura ilustrada que chegava
Nova Espanha aos poucos. Coube aos jornais insurgentes sintetizar essas discusses que
estavam no seio da configurao da luta armada e nas balizas polticas do movimento.
20
21
Captulo 1
A escrita da independncia
1.1 O grito de Dolores
Quando em 1808, Napoleo Bonaparte aprisionou Fernando VII e colocou a Espanha
sob os domnios polticos de Jos Bonaparte, o movimento civil de resistncia peninsular
organizou uma Junta Suprema na qual se reuniam os representantes do Imprio Espanhol na
ilha de Len, em frente a Cdiz. O objetivo era formar um governo paralelo que se mantivesse
fiel ao rei cativo. No momento em que as notcias chegaram a Cidade do Mxico, capital do
vice-reinado da Nova Espanha, o vice-rei Jos de Iturrigay passou a conviver com uma crise
poltica que se arrastou por toda a Ibero-Amrica.
Nas reunies, tertlias e textos publicados a partir de 1808, tanto na metrpole, quanto
nas colnias, o tema central era o desaparecimento do rei espanhol. A discusso foi dividida
entre aqueles que defendiam que a soberania tinha sido partilhada com o povo e julgavam,
portanto, ser necessrio convocar uma Junta Local em todas as provncias americanas e
aqueles que acreditavam que quem governava era a pennsula, e a Nova Espanha deveria
continuar a obedecer s decises da metrpole, representada naquele momento pela Junta de
Cdiz.
Conforme Maria Elisa Mder e Marco Pamplona,
A invaso napolenica da Pennsula Ibrica em 1808 provocou
22
mudanas definitivas no mundo colonial ibrico; em Portugal, ocasionou a
transferncia da famlia real para o Brasil; na Espanha, a abdicao do rei
Carlos IV em nome de seu filho, Fernando VII e a captura deste ltimo por
Napoleo, criaram uma situao de crise da monarquia que acabou
permitindo aos reinos da pennsula e da Amrica viverem, por algum tempo,
uma fase de intensa experimentao poltica. Entre 1808 e 1812, coube aos
povos na pennsula e na Amrica assumirem os poderes detidos pelo rei e
debaterem sobre o fundamento e o conceito de soberania, sobre
representao, a ideia de Nao, e a necessidade de dar uma Constituio
monarquia. Estes homens comearam a compartilhar sentimentos e a
engendrar um novo vocabulrio poltico, e, por meio de ideias e aes, re-
significaram valores e configuraram novas prticas polticas no interior de
suas sociedades. 11
Na Nova Espanha, para apoiar os criollos que defendiam a soberania local, o vice-rei
Jos Iturrigay facilitou a formao de uma junta com os principais representantes do vice-
reino. Contudo, os defensores do poder peninsular organizaram um golpe e assassinaram os
principais lderes da Junta da nova-hispana, Francisco Primo de Verdad e Frei Melchor de
Talamantes. Os gachupines, que consumaram este golpe de Estado, nomearam Pedro de
Garibay o novo vice-rei. Em meados de 1809, o arcebispo Francisco Xavier Lizana substituiu
Pedro de Garibay e passou a reconcentrar esforos para aumentar a cobrana de impostos e
enviar fundos a Cdiz.
Foi durante o vice-reinado de Lizana que ocorreu a primeira conspirao pela
independncia e em defesa da Nova Espanha, organizada em Valladolid pelos criollos.
Aprisionados facilmente pelas tropas vice-reais, os primeiros lideres rebeldes, Jos Maria
Obeso e Jos Mariano Michelena12
, no puderam participar do processo continuado por
Igncio Allende, um dos membros da organizao, em San Miguel el Grande em Guanajuato,
11
PAMPLONA, Marco A. e MDER, Maria Elisa (org) Revolues de independncias e
nacionalismos nas Amricas - Nova Espanha So Paulo: Paz e Terra, 2008 p. 7-8. 12
REYES, Ral Cardiel La primera conspiracin por la independencia de Mxico. Mxico: SEP,
1980.
23
no centro-sul da provncia.
Enquanto se formavam novas conspiraes pela soberania local na Amrica, em
Cdiz, a Junta Suprema Nacional prosseguia a guerra contra os franceses com apoio britnico.
Ao apoiar medidas violentas dos espanhis nas batalhas, a Junta perdia cada vez mais o
respaldo das foras autonomistas. Para ganhar mais adeptos, a resistncia espanhola passou a
reconhecer a igualdade entre os povos americanos perante a metrpole e nomeou uma
regncia que convocou Cortes. As eleies foram feitas para nomear os representantes das
Cortes de Cdiz e elegeram 17 nomes da Nova Espanha.
Durante a primeira sesso em Cdiz, a questo americana foi logo colocada em pauta.
Os americanos apresentaram uma petio que se baseava em trs pontos: igualdade nos
direitos concedidos aos europeus, integrao de sua representao como parte da monarquia e
a aprovao de um decreto de anistia tendo em vista o movimento insurgente que avanava
em todo o sul da Amrica. Os americanos apresentaram uma petio que se baseava em trs
pontos: igualdade nos direitos concedidos aos europeus, integrao de sua representao
como parte da monarquia e a aprovao de um decreto de anistia. A petio gerou um
decreto no qual se afirmava que "os domnios espanhis em ambos os hemisfrios formam
uma mesma e nica Nao, e por isso, os naturais oriundos desses domnios europeus ou
ultramarinos so iguais em direitos aos desta pennsula"13
.
Contudo, mesmo com as peties encaminhadas s Cortes, as conspiraes na Nova
Espanha ganhavam cada vez mais forma nesse cenrio turbulento. Muitos criollos no
reconheciam a autoridade de Cdiz ou dos franceses e, por isso, passaram a defender uma
soberania poltica popular. Nas redondezas de Quertaro, especificamente, o criollo Don
Miguel Dominguez e sua esposa reuniram em sua casa, sob o pretexto de discutir tertlias
literrias, homens ilustrados que articulavam um levante contra o vice-reinado. Oficiais como
13
BERBEL, Marcia R. Cortes de Cdiz: entre a unidade da Nao Espanhola e as independncias
americanas In: PAMPLONA, Marco A. e MDER, Maria Elisa (org) Revolues de independncias e
nacionalismos nas Amricas - Nova Espanha So Paulo: Paz e Terra, 2008 p. 26.
24
Ignacio Allende, Juan Adalma, Pe. Jos Mara Sanchez e mais uma dezena de indivduos
insatisfeitos, sobre os quais se encontrava tambm Miguel Hidalgo, o padre de Dolores e ex-
reitor do Colgio de San Nicols em Valladolid14
, planejavam iniciar a revoluo no final do
ms de dezembro de 1810.
Antes que pudessem concluir os planos de ao para a luta armada, a conspirao
liderada por Allende foi denunciada. Imediatamente, o intendente de Guanajuato, Jos
Antonio de Rino, ordenou que se fizessem as detenes. Juan Adalma e Ignacio Allende
conseguiram fugir com alguns soldados para Dolores e se reuniram com o Padre Hidalgo em
15 de setembro de 1810. Nesse encontro, decidiram adiantar os planos de insurreio e,
aproveitando que era domingo, Hidalgo, em lugar de missa, incitou seus fiis a empreender
uma luta contra o governo vigente. A resposta foi imediata: camponeses, trabalhadores
domsticos, mineiros entre outros, se apresentaram com instrumentos e armas de luta15
.
Hidalgo fazia uma interessante releitura da realidade social da Nova Espanha a partir
de algumas ideias ilustradas no incio do sculo XIX. Com o apoio financeiro de um grupo
poltico urbano formado por profissionais liberais, conduziu a populao indgena camponesa
rebelde contra o vice-rei. Seu discurso popular e heterogneo foi carregado de smbolos e
mensagens polivalentes que traziam tona a tradio mtica pr-colonial e traos do
catolicismo espanhol, aliados com anseios de liberdade, direitos civis e soberania popular.
O pensador conservador, autor de Historia de Mjico desde los primeros movimientos
que prepararon su independencia hasta la poca presente, Lucas Alamn foi provavelmente o
14
Valladolid de Michocan era caracterizada em meados do sculo XVIII como uma cidade importante,
tanto em sua vida cultural como em seu aspecto urbano. Era situada s margens das grandes rotas comerciais que
partiam da capital do vice-reinado, carente em minerais para as regies abastecedoras como Zacatecas,
Guanajuato, Puebla e Guadalajara. Portanto, constitua um espao propcio para a formao de novas redes de
sociabilidade das quais Hidalgo fazia parte. In: VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria
a travs de sus escritos y de otros testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965 p. 11-12. 15
O historiador Jos Serrano em seu livro Jerarqua territorial y transicin poltica: Guanajuato 1790-
1836 analisou como a guerra e as instituies liberais transformaram a hierarquia territorial dessa regio, uma
vez que as cidades ganharam mais autonomia. Para Serrano, a regio foi a que mais sofreu com a guerra, uma
vez que o liberalismo estava mais presente ali em forma de prefeituras, deputados provinciais, milcias cvicas e
eleies. In: SERRANO, Jos Antonio Jerarqua territorial y transicin poltica: Guanajuato 1790-1836,
2001.
25
primeiro a relatar que, conforme a tradio oral16
, o grito de guerra que lanou Hidalgo na
parquia de Dolores foi Viva Fernando VII! Viva a religio! Viva a Virgem de Guadalupe!
Morram os guachupines!. A ambiguidade dessas afirmativas, que vinculavam ao movimento
smbolos do Antigo Regime ao dio contra os espanhis j revela algumas caractersticas do
discurso ilustrado na Nova Espanha.
Miguel Hidalgo (1753-1811) conhecido pela historiografia mexicana como o cura
ilustrado. Estudou com os jesutas desde os 12 anos de idade e, aps a expulso dos mesmos
em 1767, o padre se dedicou teologia, filosofia e s artes no Colegio de San Nicols. Foi
um estudante de destaque que aprendeu latim, francs, italiano, nahuatl, otomi e tarasco,
lnguas da populao indgena. Aos vinte e cinco anos foi nomeado sacerdote e com trinta e
nove se tornou reitor do mesmo colgio. Destacou-se no estudo das teorias liberais que
estavam em discusso na Europa ao final do sculo XVIII. Devido s presses da alta
hierarquia eclesistica, foi nomeado proco na cidade de Dolores no interior do estado de
Guanajuato. Nessa cidade, o padre cuidou da instruo dos indgenas camponeses e
mineradores. 17
Dentro da historiografia clssica sobre a independncia, um dos historiadores que mais
se preocupou com a anlise das ideias polticas do lder insurgente foi Juan Hernndez Luna.
Em El mundo intelectual de Hidalgo18
reconhece que os projetos renovadores do professor e
reitor nicolata se moviam nos limites da teologia. Para o historiador, o padre de Dolores
poderia ser um telogo muito original e moderno, porm de nenhuma maneira era um
16
Lucas Alamn (1792-1853) foi um renomado intelectual mexicano que reescreveu a histria mexicana
aps a Independncia. Era filho de uma famlia de mineiros prsperos em Guanajuato e, aos 18 anos de idade
viu as foras rebeldes de Hidalgo invadirem sua cidade. Foi tambm viajante, cientista, poltico burocrata e
homem de negcio. Considerado um historiador conservador, em 1851 publicou Historia de Mjico desde los
primeiros movimentos que prepararon su independncia hasta la poca presente em 5 volumes pela editora de J.
Mariano Lara. In: ARCHER, Christian Historia militar em la poca de la independncia de Nueva Espaa In:
VILA, Alfredo, GUEDEA, Virginea (coord) La independencia de Mxico: temas e interpretaciones recientes
Mxico: UNAM, Instituto de Investigaciones Histricas, 2010. 17
LUNA, Juan Hernndez, El mundo intelectual de Hidalgo, historia mexicana, 10, III:4, octubre-
diciembre de 1953, 157-177. 18
Idem.
26
rousseauniano como os liberais queriam ver.
Entender a Ilustrao como um movimento plural nos ajuda a compreender a dinmica
aparentemente ambgua na formao da luta poltica desses homens. Em setembro de 1810,
San Miguel el Grande foi ocupada e, no dia 21, a multido popular estava em Celaya e
nomeava Hidalgo seu generalsimo e Allende como tenente-general. No santurio de
Atotonilco, o padre deu ao exrcito sua primeira bandeira: uma imagem da Virgem de
Guadalupe. Considerado protetor e guardio do movimento insurgente, o estandarte
guadalupano acompanhou toda a peregrinao do exrcito popular contra o exrcito do vice
reino.
Enquanto a maior parte da populao indgena que apoiava Hidalgo era camponesa, o
vice-rei contava com a ajuda de oficiais indgenas da cidade. Antes mesmo do incio da
insurgncia em setembro, algumas comunidades indgenas j se manifestavam a respeito da
captura de Fernando VII. No dia 21 de julho, os governados de San Juan e de Santiago se
dirigiram ao vice-rei, por escrito, informando sua posio diante das calamidades pblicas:
Bien conocen los indios, seor excelentsimo, que son unos
miserables destituidos de proporciones para ofrecer un servicio
considerable, y que tal vez se cree son los nfimos en el valor y dems
vistudes militares; pero son los primeros que sacrificarn sus cortos bienes
propios y comunes, su reposo y tranquilidad, sus hijos y familias, y hasta la
ltima gota de su sangre, por no rendir vasallaje a quien slo merece el justo
enojo de nuestra nacin. 19
Segundo o relato, esses representantes se referiam a 14 mil ndios que poderiam ser
colocados a servio do rei cativo. O documento conta com a assinatura das autoridades
indgenas de San Juan, Eleuterio Severino Guzmn e de Francisco Antonio Galcio. Para
19
Ofertas hechas al excelentsimo seor virrey por las parcialidades de indios de esta capital", 21 de julio
de 1808, Suplemento a la Gazeta de Mxico del sbado 10 de septiembre de 1808, publicado el martes 13, t. XV,
n. 94, p. 665-666. In: GUEDEA, Virginia Los voluntarios de Fernando VII. Estudios de Historia Moderna y
Contempornea de Mxico, lvaro Matute (editor), Mxico, Universidad Nacional Autnoma de Mxico,
Instituto de Investigaciones Histricas, v. 10, 1986, p. 11-83.
27
cumprir sua promessa, mandaram que se confeccionassem listas dos habitantes dos pueblos
que compunham sua jurisdio.
Outros grupos indgenas tambm se voluntariaram. Em Quertaro, o corregedor de
letras Miguel Domnguez informou que:
estamos todos los caciques de esta dicha nobilsima ciudad dispuestos a
plantar diez mil hombres de Honda y piedra y de ms armas que se puedan
adquirir en toda la jurisdiccin de esta ciudad; y ltimamente estamos
resueltos a derramar primero hasta la ltima gota de sangre que tenemos que
desamparar la defensa de la ley de Dios y de nuestro Catlico Monarca (Que
Dios Guarde). 20
Na cidade de Texcoco, ofereceram ao vice-rei "sus personas, sus cortos intereses, seis
mil indios y todos los vecinos de razn del propio Tezcuco y sus contornos, para que vuestra
excelencia, como primer jefe de la nacin, cuente con este corto, sincero obsequio, dispuestos
todos a defender la religin, el rey y la ptria. 21
Quando o movimento de Hidalgo se iniciou, em San Juan, no dia 28 de setembro, os
habitantes do pueblo indgena encaminham ao vice-rei Venegas um documento que diziam
que o mesmo fazia parte de uma "alucinao delinquente" e que chegava com pesar a
informao de "que cuenta en su nmero con algunos indios que les auxilian". Tanto as
autoridades como os demais integrantes da comunidade entendiam que "los nicos dueos de
este reino" eram Fernando VII e seus sucessores. Por isso, expressavam que quem queria se
separar da pennsula "cuando an existe all quien resista a la dominacin extranjera, no
puede ser fiel a Fernando VII sino que imposibilita en cuanto est de su parte su restitucin al
20
Representacin de la repblica de naturales de Quertaro al virrey Iturrigaray, Quertaro 27 de julio de
1808, Suplemento a la Gazeta de Mxico del mircoles 31 de agosto de 1808, publicado el viernes 2 de
septiembre, t. XV, n. 87. In: GUEDEA, Virginia Los voluntarios de Fernando VII. Estudios de Historia
Moderna y Contempornea de Mxico, lvaro Matute (editor), Mxico, Universidad Nacional Autnoma de
Mxico, Instituto de Investigaciones Histricas, v. 10, 1986, p. 11-83. 21
"Otras ofertas hechas por la ciudad de Texcoco y las repblicas de naturales de su jurisdiccin",
septiembre de 1808, Suplemento de la Gazeta de Mxico del mircoles 14 de septiembre de 1808, publicado el
viernes 16, t. XV, n. 96, p. 677. In: Idem.
28
trono"22
. Como o vice-rei no tinha um exrcito bem treinado e organizado aceitou
inicialmente a ajuda dessas autoridades indgenas para combater os insurgentes.
Doze dias depois de iniciada a marcha, os insurgentes estavam nas portas de
Guanajuato, uma das cidades mais ricas da Nova Espanha, e Hidalgo exigiu a redeno do
intendente Riao, mostrando um crescimento numericamente significativo de seu exrcito:
Sabe usted ya el movimiento que ha tenido lugar en el pueblo de
Dolores, la noche del 15 del presente: su principio, ejecutado con el nmero
insignificante de 15 hombres ha aumentado prodigiosamente en tan pocos
das. Me encuentro actualmente rodeado de ms de cuatro mil hombres que
me han proclamado su Capitn General.23
O intendente buscou asilo ao lado dos gachupines e resistiu tentativa de ocupao
dos insurgentes. Em resposta, a multido comandada pelo generalsimo invadiu e saqueou a
cidade por dois dias. Tal fato passou a gerar grande temor dos criollos, que permaneceram
fiis Coroa. 24
Aps determinar vrias penas para aqueles que no cumpriram o mandato, Hidalgo
lanou um novo decreto que suspendia alguns impostos:
Es tambin el nimo piedoso de S. E., quede totalmente abolida para
siempre la paga de tributos para todo gnero de castas, sean las que fueren,
para que ningn juez ni recaudador exijan esta pensin, ni los miserables
que antes la satisfacan la paguen, pues el nimo del Excmo. Sr. Capitn
General es beneficiar a la Nacin Americana en cuanto le sea posible. 25
22
Exposicin de la parcialidad de San Juan, 27 de septiembre de 1810, en Juan E. Hernndez y Dvalos,
Coleccin de documentos para la historia de la guerra de Independencia de Mxico de 1808 a 1821, 6 v., Mxico
(Biblioteca de "El Sistema Postal de la Repblica Mexicana"), Jos Mara Sandoval, 1878-1881, t. II, p. 115-116.
In: GUEDEA, Virginia Los voluntarios de Fernando VII. Estudios de Historia Moderna y Contempornea de
Mxico, lvaro Matute (editor), Mxico, Universidad Nacional Autnoma de Mxico, Instituto de
Investigaciones Histricas, v. 10, 1986, p. 11-83. 23
Carta de Hidalgo al intendente Riao (n1) 181 In: TORRE VILLAR, Ernesto Historia documental de
Mxico, Mxico, UNAM, 1974 p. 44. 24
El bando original de Ansroena en AGN, Operaciones de Guerra, t. 4, f. 77 In: VILLICAA, Ernesto
Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros testimonios de la poca Mxico:
UNAM, 1965 p. 34-35. 25
Idem.
29
Tal decreto contribuiu para a popularizao do movimento de Hidalgo. Muitos dos
indgenas que lutavam ao lado do vice-rei, pertencentes s comunidades de San Juan,
Quertaro e Texcoco, passaram para o exrcito insurgente. Rapidamente, por todo o territrio
da Nova Espanha surgiram novos levantes. Jos Mara Morelos26
, padre de Carcuaro e ex-
aluno de Hidalgo, apresentou-se e recebeu a tarefa de tomar Acapulco. Jos Antonio Torres
comeou a vencer tropas do intendente de Guadalajara. As propriedades de espanhis
americanos e peninsulares comearam a sofrer constantes saques nesta etapa do movimento.
O bispo de Valladolid, Abad y Queipo, que outrora havia se identificado com os
problemas sociais e com a causa de seu amigo e ex-aluno Hidalgo, no hesitou em
excomung-lo. Quando as tropas atingiram a cidade com aproximadamente 80 mil revoltosos,
o bispo anunciou sua deciso ao proco e facilmente rendeu os habitantes da cidade para
evitar um massacre.
Un ministro del Dios de la Paz, un sacerdote de Jesucristo, un pastor
de almas (no quisiera decirlo), el cura de Dolores don Miguel Hidalgo (que
haba merecido hasta aqu mi confianza y mi amistad), asociado de los
capitanes del regimiento de la Reina, don Ignacio Allende, don Juan
Adalma, y don Jos Mariano Abasolo, levant el estandarte de la rebelin, y
encendi la tea de la discordia y anarqua, y seduciendo una porcin de
labradores inocentes, les hizo tomar las armas; y, cayendo con ellos sobre el
pueblo de Dolores el 16 del corriente amanecer, sorprendi y arrest los
vecinos europeos, saque y rob sus bienes; y pasando despus a las siete de
la noche a la villa de San Miguel el Grande, ejecut lo mismo apoderndose
en una y otra parte de la autoridad y del gobierno. El viernes 21 ocup del
26
Jos Maria Morelos y Pavn nasceu em 1765 na cidade de Valladolid de Michocan vindo de famlia de
criollos e mestios. Na sua infncia, por problemas econmicos de sua famlia, trabalhou como carpinteiro. Com
as poucas economias de sua me, entrou no seminrio em 1790. Neste perodo conheceu o professor Miguel
Hidalgo que, embora no tenha sido seu mestre direto, foi considerado assim por Morelos que o considerava seu
mestre de cultura, de vida e de Revoluo. Em 1797, fomou-se no ministrio sacerdotal e se ordenou presbtero.
Tornou-se proco em Carcuaro, uma cidade muito pobre formada por ndios e mestios que viviam da
agricultura de subsistncia. Em 1810, juntou-se a insurgncia iniciada por Hidalgo, seu ex-professor, e recebeu a
misso de libertar o sul da Nova Espanha. Na declarao escrita em seu julgamento inquisitorial, Morelos
declarou que siempre cont com la justicia de la causa, em que habra entrado, aunque no hubiera sido
sacerdote. Foi preso e fuzilado em 1815. In: HERREJN, Carlos Morelos, Antologa documental Mxico:
Consejo Nacional de Fomento Educativo, 1985.
30
mismo modo a Celaya; y segn noticias, parece que se ha extendido ya a
Salamanca e Irapuato. Lleva consigo los europeos arrestados, y, entre ellos,
al sacristn de Dolores, al cura de Chamacuero , y a varios religiosos
carmelitas, amenazando a los pueblos que los ha de degollar si le oponen
alguna resistencia. E insultando a la religin y a nuestro soberano, don
Fernando VII, pint en su estandarte la imagen de nuestra augusta patrona,
nuestra Seora de Guadalupe, y puso la inscripcin siguiente: Viva la
Religin. Viva nuestra madre santsima de Guadalupe. Viva Fernando VII.
Viva la Amrica y muera el mal gobierno.27
Alguns anos antes, entre 1804 e 1806, o bispo Abad y Queipo havia escrito uma
interessante obra sobre as dificuldades econmicas pela qual passava a colnia. O texto
Representacin a nombre de los labradores y comerciantes de Valladolid28
um protesto
contra os novos impostos cobrados a partir das reformas bourbnicas, especificamente
relativos ao pagamento tesouraria de uma taxa por cada emprstimo feito. A falta de terras
da Igreja na Nova Espanha fazia com que o clero recorresse a emprstimos feitos de
fazendeiros, mineiros, comerciantes e empresrios, que integravam a aristocracia vice-reinal.
O bispo defendia, ento, uma unio de interesses entre estes dois grupos num programa
reformista.
Conforme o historiador Rafael Rojas29
, o programa poltico de Abad y Queipo inclua,
alm da abolio dos tributos pessoais sobre a terra para o clero e a aristocracia, a insero
dos ndios, negros e mulatos a fim de consolidar o terceiro estado na Nova Espanha para
integrar o povo nas decises do reino. Segundo David Brading, o bispo foi o progenitor
intelectual do liberalismo mexicano.30
Contudo, seu repdio ao movimento de Hidalgo
27
Decreto de excomunin de los insurgentes dado por el obispo Abad y Queipo (1810) In: TORRE
VILLAR, Ernesto Historia documental de Mxico, Mxico, UNAM, 1974 p. 37. 28
ROJAS, Rafael La escritura de la independencia: el surgimiento de la opinin pblica en Mxico,
Mxico: Taurus, 2003 p. 31-32. 29
Idem. 30
BRADING, David Orbe indiano. De la monarquia catlica a la repblica criolla, Mxico, FCE, 1991
p. 611-613
31
estava, como apontado na carta de excomunho, principalmente, fundado sobre recusa feita
o seu ex-aluno s tradies polticas da Nova Espanha e ideia de subverso da ordem
proposta pelo padre de Dolores.
O contexto social e econmico dos anos de movimento armado foi marcado por secas,
colheitas perdidas e aumento nos preos dos gros. As regies mais afetadas pelo desemprego
e pela fome se localizavam justamente no centro do vice-reinado. Vale destacar que a maior
parte dos integrantes do movimento era pessoas do campo e das minas com planos e ideias
polticas prprias, muitas vezes difceis de serem especificadas. Se fossem capturados pelo
Exrcito Oficial, poderiam ser executados, aoitados, encarcerados ou condenados a trabalhos
forados. Contudo, mesmo com as dificuldades, uma legio de mestios e indgenas se
juntava causa da insurgncia por verem no movimento de Hidalgo uma possibilidade de
melhora poltica e social na Nova Espanha.
Com o fracasso da administrao de Pedro de Garibay, o vice-rei Venegas iniciou a
organizao da defesa. Don Flix Mara Calleja recebeu ordens de avanar para a Capital e
levava um estandarte com a imagem da Virgem de Remdios para supostamente proteger a
tropa oficial contra a multido de Hidalgo. Toda aquela multido heterognea onde os
uniformes se perdiam entre trajes de rancheiros, ndios, mestios e at alguns espanhis,
encontrou-se frente a mil soldados realistas no dia 30 de outubro em Monte de las Cruces.
Essa batalha foi a maior vitria dos insurgentes. Contudo, a cidade se recolheu. Muitos
insurgentes desertaram em poucos dias, alm disso o exrcito rebelde dissipado enfrentou
uma grande derrota em Aculco. Allende marchou rumo a Guanajuato para buscar mais apoio e
Hidalgo foi at Guadalajara.
A cidade recebeu com tanto entusiasmo o generalsimo que Hidalgo planejou estender
o movimento com a ajuda do padre Jos Mara Mercado para tomar Tepic e San Blas e Don
Jos Mara Gonzlez para rebelar as provncias internas do ocidente.
32
Os recursos econmicos da regio deram mais segurana ao movimento. O padre
insurgente comeou a planejar um novo governo e a editar o primeiro jornal, El Despertador
Americano. Em 29 de novembro decretou o fim da escravido e do tributo indgena. No dia 5
de dezembro declarou de uso exclusivo dos indgenas as terras da comunidade e tambm
autorizou a execuo de espanhis prisioneiros31
.
Enquanto as tropas de Calleja se reorganizavam para atacar Guadalajara, Allende se
apressou em reunir o exrcito rebelde para proteger o generalsimo. No dia 17 de janeiro de
1811, cinco mil soldados convocados nas cidades do vice-reino pelo exrcito realista
enfrentaram noventa mil rebeldes provocando a sua total disperso na batalha de Puente de
Caldern.
Os chefes iniciaram sua fuga para noreste e em Saltillo decidiu-se que Ignacio Lopez y
Rayn continuaria a luta iniciada por Hidalgo. Apriosionados, Ignacio Allende e Miguel
Hidalgo foram fuzilados em julho de 1811.
Em um interessante artigo sobre os lderes da independncia na Amrica Latina, Maria
Lgia Coelho Prado descreve os arrependimentos de Hidalgo em seu julgamento aps a
captura.
Hidalgo, movido por suas crenas, pegou em armas e liderou um
movimento revolucionrio. Viveu profundos dramas de conscincia ao fazer
conviver a doutrina catlica com as prticas violentas da luta armada. Foi
um homem perturbado por fortes sentimentos de remorso e arrependimento,
mas tambm uma figura de extrema coragem, desobedeceu a Igreja,
enfrentou a excomunho e sofreu acusaes de toda ordem, sem abandonar
os objetivos nos quais acreditava. 32
A postura do padre antes do fuzilamento reflete a ambiguidade tambm presente na
31
O Decreto contra la esclavitud, las gabelas y el papel sellado de Miguel Hidalgo est disponvel no
stio http://www.cervantesvirtual.com, acessado em 23/11/09. 32
PRADO, Maria Ligia Coelho Amrica Latina no Sculo XIX: Tramas, Telas e Textos So Paulo,
Edusp, 2004, p. 68.
http://es.wikisource.org/wiki/Decreto_contra_la_esclavitud,_las_gabelas_y_el_papel_sellado_(Miguel_Hidalgo)http://es.wikisource.org/wiki/Decreto_contra_la_esclavitud,_las_gabelas_y_el_papel_sellado_(Miguel_Hidalgo)http://www.cervantesvirtual.com/
33
produo de seu discurso poltico. Ao mesmo tempo em que lutava pela manuteno da
religio catlica e empreendia uma luta com o estandarte da Virgem de Guadalupe, propunha
transformaes significativas para a ordem social, poltica e econmica do Antigo Regime
como a abolio de castas, distribuio de terras e defesa dos direitos dos indgenas e
mestios.
O triunfo sobre Hidalgo no significou a restaurao da ordem no territrio da Nova
Espanha, pois os movimentos de conspirao continuaram a existir em todo o pas. Rayn
cumpriu a misso que lhe foi delegada e em agosto de 1811 instalou a Junta Suprema
Gubernativa de Amrica em Zitcuaro. Morelos seria encarregado da administrao.
Jos Mara Morelos y Pavn (1765-1815) reuniu um novo exrcito insurgente aps a
morte do generalsimo em 1811. Embora menos numeroso, era mais disciplinado que o de
Hidalgo. Suas tropas mestias procediam das camadas mdias e baixas da sociedade e
conseguiram facilmente dominar Chilpancingo, Tixtla, Chilapa, Taxco, Izcar e Cualtla. Seus
grandes colaboradores foram o fazendeiro Hermenelgildo Galeana e o padre Mariano
Matamoros, que receberam o ttulo de sub-generais do exrcito. Entre seus fiis seguidores
estavam as famlias Bravo, Guadalupe Victoria, Mier y Tern e Guerrero. Por dois meses,
Morelos resistiu ao cerco do general Calleja em Cualtla, o que seria considerado heroico por
seus admiradores da poca e inclusive por grande parte da historiografia clssica. Sua
popularidade, a partir das conquistas militares, era propagada por toda a Nova Espanha, como
relatada em uma carta de um espio dirigida a Don Lus, bispo de Oaxaca.
sta, seor, es una guerra que jams se ha visto; una persecucin de
la Iglesia y del Trono que no tiene ejemplo. Valerse de Dos contra Dos y
del Rey contra el Rey, slo es invencin del hereje Hidalgo; pero, a pesar de
todo, las gentes estn engaadas, porque a los prisioneros obsequia con
dinero y ropa Morelos, y enva a uno u otro que le parece propio para
seducir a sus casas. Los indios oyen estas cosas y esperan que los
enriquezca aquel maldito, quien tambin dice que los viene a aliviar de
34
contribuciones parroquiales, as como los alivi del tributo. 33
Muitos letrados perseguidos se refugiaram junto ao seu exrcito, sendo assim,
contriburam para a organizao dos ideais polticos do novo governo. No dia 14 de setembro
de 1813, Morelos apresentou na abertura do Congresso de Chilpancingo seu texto
Sentimientos de la Nacin que sintetizava seu iderio poltico. Comeava afirmando que a
Amrica livre e independente da Espanha e de qualquer outra nao e que a soberania
emana imediatamente do povo e depositada em seus representantes. O Congresso publicou
no dia 6 de dezembro a declarao da independncia e Morelos foi nomeado para o poder
executivo, intitulado de siervo de la Nacin34
.
Durante as reunies do Congresso, Morelos orientou Rayn a retirar o nome de
Fernando VII do texto Elementos de la Constitucin.
En cuanto al punto quinto de nuestra Constitucin, por lo respectivo
a la soberana del Sr. D. Fernando VII, como es tan pblica y notoria la
suerte que le ha cabido a este grandsimo hombre, es necesario exluirlo para
dar al pblico la Constitucin. 35
Foi a primeira vez que um chefe insurgente negou a utilizao da imagem de Fernando
VII na campanha militar. Alm disso, Morelos se posicionou claramente a respeito das Cortes
de Cdiz, assunto no mencionado por Hidalgo at ento. Para ele,
las Cortes de Cdiz han asentado ms de una vez que los americanos eran
iguales a los europeos, y para halagarnos ms, nos han tratado de hermanos;
pero si ellos hubieran procedido con sinceridad y buena fe, era consiguiente
que al mismo tiempo que declararon su independencia, hubieran declarado
la nuestra y nos hubieran dejado libertad para establecer nuestro gobierno,
33
VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros
testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965. Doc. 8 p. 165. 34
HERREJN, Carlos Morelos, Antologa documental Mxico: Consejo Nacional de Fomento
Educativo, 1985, p. 160. 35
VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros
testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965. Doc. 41 p. 90
35
as como ellos establecieron el suyo. 36
No discurso de abertura do Congresso de Chilpancingo, desapareceu o termo jurdico
Nueva Espaa para dar origem ao Estado Mexicano. Redigido por Carlos Mara Bustamante
editor do Correo Americano del Sur em Oaxaca o texto declarava que a soberania
correspondia nao mexicana e declarava o fim total da obedincia ao trono espanhol. O
Congresso obteve faculdades legislativas e Morelos foi aclamado chefe do poder executivo.
Contudo, as delimitaes de funes polticas no ficaram muito claras.
O Siervo de la Nacin seguiu sua campanha de volta a Valladolid com o objetivo de
conquistar Michocan, Guadalajara e Guanajuato. Porm, Calleja37
, que havia assumido o
papel de Chefe Poltico da Nova Espanha (com a obedincia Constituio de 1812, o papel
do vice-rei havia sido extinto), comeou empreender cada vez mais golpes contra o
movimento insurgente. Recuperou Acapulco e limitou a atuao militar de Morelos. Em junho
de 1814, Calleja recebe reforos peninsulares e consegue retomar o poder absoluto no
territrio da Nova Espanha.
No dia 5 de novembro de 1815, Morelos foi capturado e feito prisioneiro pelo tribunal
da Inquisio no Mxico. Submetido a julgamento inquisitorial e eclesistico, o padre foi
fuzilado no dia 22 de dezembro em San Cristbal Ecatepec.
A campanha de Calleja contra a insurgncia resultou em sua disperso. Em setembro
36
VILLICAA, Ernesto Lemoine Morelos: su vida revolucionaria a travs de sus escritos y de otros
testimonios de la poca Mxico: UNAM, 1965. Doc. 53 p. 165. 37
Ernesto Lemoine Villacaa fez uma interessante caracterizao de Calleja em que compara suas aes
de Hernn Cortez: Entre 1810 y 1816, el enemigo ms poderoso y terrible de la revolucin fue Calleja. Junto a
l, los virreyes Venegas y Apodaca son figuras secundarias. Militar de carrera, ambicioso, de reacciones rpidas,
astuto, ayuno de sentimentalismo, seguro de s, convencido hasta el fanatismo de que la preservacin de la
Colonia era asunto de vida o muerte para l, pocas veces Espaa nos envi un funcionario con una personalidad
y un carcter tan reciamente definidos - y, a la vez, tan funestos - como Calleja. Llegado a Nueva Espaa en la
comitiva del segundo Conde de Revillagigedo, viva entre nosotros desde 1789. Al estallar la revolucin tena, en
consecuencia, vientin aos de experiencia regional. () Calleja haya sido la manu militari ms eficaz que
utiliz Venegas para reprimir el movimiento libertador. Aculco, Guanajuato, Caldern y Zitcuaro, ms que
triunfos importantes en su carrera, fueran verdaderas masacres de insurgentes, que atestiguaron lo que poda
esperarse de este hombre, tan hbil en el arte de la guerra como sdico y sanguinario para ensearse con los
vencidos. Reencarnacin de Hernn Cortes, y ardiente defensor de la herencia de ste, no fue remiso en preparar
braceros para quemar pies ni disponer ceibas para ahorcar a cuantos considerara involucrados en el pecado de
insurgencia. El terror, fsico y moral, fue su objetivo, conservar el virreinato, a cualquier precio! In: Idem.
36
de 1816, o chefe poltico substitudo por Juan Ruiz de Apodaca que iniciou uma poltica de
conciliao.
Aps seis anos de guerra civil, os povoados continuavam insatisfeitos com os
impostos exorbitantes e as destruies. Os territrios estavam fragmentados e Apodaca no
conseguia restabelecer a ordem colonial por completo.
Em 1820, de volta ao poder poltico na Espanha, Fernando VII jurou a Constituio de
1812 e convocou eleies para deputados nas Cortes. Na Nova Espanha, a grande maioria dos
criollos era favorvel independncia. Os eclesisticos e burocratas convocam o coronel
Agustn de Iturbide para fazer um pronunciamiento que favorecesse a ideia da independncia.
Iturbide, oriundo de Valladolid, havia militado ao lado de Calleja sendo um de seus
melhores oficiais. Dirigido aos americanos, seu discurso chegou a convocar Fernando VII, ou
algum dos infantes, a ocupar o trono da Nova Espanha e assegurar a religio catlica. O Plan
de Iguala de fevereiro de 1821 foi enviado s principais personalidades do pas e amplamente
aceito entre os militares.
1.2 Novos debates e perspectivas
Os estudos sobre as independncias na Amrica Latina tm ganhado um grande
nmero de publicaes recentes em razo das comemoraes do bicentenrio, que vem
marcando uma reestruturao poltica da memria histrica em nossa sociedade atual38
. Estes
atos de rememorao promovidos por atividades patrocinadas pelos governos, universidades e
38
Conforme Benedict Anderson em Comunidades Imaginadas, as narrativas histricas que aparecem para
formar as biografias das naes esto carregadas de memria e esquecimento. A conscincia de estarem
inseridas no tempo secular e serial, com todas as suas implicaes de continuidade e, todavia, de esquecer a
vivncia dessa continuidade fruto das rupturas do final do sculo XVIII gera a necessidade da narrativa de
uma identidade. ANDERSON, Benedict Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem e difuso do
nacionalismo. So Paulo, Cia das Letras, 2008, p. 279.
37
institutos de pesquisa promoveram o aumento de estudos que privilegiam a discusso sobre a
entrada ou no destes pases na modernidade, a partir do incio da suposta adoo de um
discurso liberal no debate poltico em 1808.
Essa nova produo se preocupa em circunscrever estes eventos luz da formao do
nacionalismo e, para tanto, tem delimitado sobre quais circunstncias as ideias presentes na
Europa se encontraram com as discusses que ocorriam na Amrica na virada do sculo
XVIII. Produziram aqui uma nova cultura poltica capaz de formar os Estados nacionais de
orientao liberal. No se trata, portanto, de descartar a participao poltica europeia nos
rumos da independncia da Amrica Latina, mas sim de evidenciar como os atores polticos
americanos e as discusses polticas locais que produziram os movimentos de insurgncia39
.
Contudo, antes de abordar estes novos temas, necessrio traar um breve panorama
sobre as discusses mais pertinentes acerca deste momento histrico. Dentre a historiografia
clssica sobre o tema da independncia na Nova Espanha, est Luis Villoro, autor de El
proceso ideologico de la revolucin de independencia, publicado pela primeira vez em 1951.
Em seu prlogo, na primeira edio, o Villoro declara que trabalha com o conceito de classe
que, em suas palavras, pode nos servir para assinalar a circunscrio do mundo social vivido
39
Uma das crticas mais contundentes feitas a essa nova historiografia o excessivo papel atribudo
anlise das Cortes de Cdiz. Sobre esse assunto, o historiador Roberto Brea ressaltou que a despeito da
maneira como o liberalismo de Cdiz foi capaz (ou no) de responder a certos grupos sociais e a certas questes
polticas que hoje nos parecem fundamentais desde a perspectiva liberal do sculo XXI, acredito que se o lugar
que a Constituio de Cdiz ocupa na histria da Espanha indiscutvel, no acontece o mesmo quando nos
transladamos ao outro lado do Atlntico. De cara, por uma razo muito simples: alguns territrios americanos j
haviam declarado a sua independncia (a capitania geral da Venezuela) ou j eram praticamente independentes (o
vice-reinado do Rio da Prata), quando foi promulgada a Constituio de Cdiz em setembro de 1812. O que no
quer dizer, certamente, que no tenham recebido no s o influxo do texto (como fica manifesto em muitos dos
documentos constitucionais redigidos em ambos os territrios nos anos seguintes), mas que estiveram a par dos
dois anos de debates que foram realizados na Assembleia reunida em Cdiz desde setembro de 1810. Uma
ateno que esteve precedida pelo que Guerra denominou de "o binio crucial" (1808-1809), durante o qual a
modernidade poltica peninsular exerceu uma enorme influncia sobre as ideias polticas americanas (na poca,
mais tradicionais) atravs da numerosa imprensa metropolitana que chegava por navios aos territrios
americanos. Territrios que estavam vidos por notcias e informaes de todo tipo, na medida em que sabiam
muito bem quo grave era a situao vivida pela pennsula. In: BREA, Roberto Uma reflexo sobre as
comemoraes dos bicentenrios, a questo do liberalismo (espanhol) e a peculiaridade do caso novo hispnico.
In: PAMPLONA, Marco A. e MDER, Maria Elisa (org) Revolues de independncias e nacionalismos nas
Amricas - Nova Espanha So Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 193-194.
38
por cada homem e constitui um ponto de referncia indispensvel para situar o objeto40
. Sua
anlise se concentra, portanto, na leitura da Independncia como um processo revolucionrio
que colocou em choque diversos movimentos antagnicos de diferentes estratos sociais.
A obra de Villoro percorreu a construo das classes sociais e seus respectivos
interesses ao longo da colonizao da Nova Espanha, at a crise provocada pela formao da
concepo de soberania nacional entre os criollos. O autor marcou a captura de Fernando VII
pelo exrcito napolenico para iniciar esse processo de ciso ideolgica. Seu objeto central de
estudo era a ideologia, entendida como um conjunto de crenas, ideias e propostas
condicionadas pela formao intelectual de diferentes classes sociais. Por isso, em sua anlise
sobre a sociedade vice-reinal, fez uma subdiviso social da classe europeia, da classe
eurocriolla (formada por espanhis americanos que obedeciam metrpole), uma classe
criolla ou classe mdia e as classes populares, considerada a classe mais problemtica pela
simplificao que as agrupa.
A insurgncia iniciada por Hidalgo em Dolores foi descrita por Villoro como um
momento vivncia do instante41
. O padre foi interpretado como um representante do
movimento de uma vasta comunidade humana. Hidalgo coloca a liberdade como fundamento
e, nesse precioso instante, buscou se encontrar com a fonte originria de toda a ordem social:
o povo.42
Tornou-se o smbolo de luta contra a opresso a que estavam sujeitas as classes
proletrias, a misria e a falta de organizao que as impediam de projetar por si mesmas uma
possibilidade revolucionria. Entretanto, a traduo dessa liderana instantnea para as classes
populares foi um movimento de desordem em que predominou a violncia.
Alm de analisar as classes que compuseram o movimento de independncia, Villoro
descreveu as ideias polticas de representatividade que permearam a revoluo,
40
VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independncia Mxico: Cien de Mxico
(1 ed. 1951), 2002. p. 70. 41
VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independncia Mxico: Cien de Mxico
(1 ed. 1951), 2002, p. 76. 42
Idem. p. 77.
39
principalmente no tocante formao do Congresso de Chilpancingo.
A transposio do poder do caudilho popular, em contato direto com
o povo, seguido e aceitado unanimemente por este, a uma assembleia
deliberante, revela a inteno (talvez inconsciente) da classe mdia em ditar
a direo da revoluo ao seu aliado campons: a ideia representativa o
instrumento dessa implantao. O choque do Congresso com os caudilhos
populares resultava inevitvel; nele se manifesta a juno entre duas classes
e movimentos.43
Por outro lado, segundo o autor, quando Iturbide chegou ao poder em 1820, a nova
Assembleia declarou que o Congresso encarnava a soberania somente como nacional, sem
haver nenhuma referncia quela originria do povo de que falava o movimento de Hidalgo.
Luis Villoro marcou a historiografia da independncia mexicana, j que pensou nesse
movimento como um conflito social. Por esse motivo, a religio foi vista como um tema
secundrio em sua obra. O autor preferiu tratar das condies econmicas que motivaram os
envolvidos no conflito. No mencionou o misticismo manifesto pelos indgenas liderados por
Hidalgo e nem as implicaes sociais que tal fato acarretou para os populares que aps a
derrota de seus lderes foram fortemente reprimidos pelo vice-reinado com prises e
excomunhes.
Outro historiador que buscou interpretar os grupos sociais que compuseram o
movimento de Hidalgo, mas numa corrente histrico-antropolgica, foi Eric Van Young. Em
The Other Rebellion: popular violence, ideology, and mexican struggle for Independence,
1810-1821, publicado em 200144
, o autor analisou como os dirigentes criollos e os seguidores
indgenas se uniram nesse momento. Partindo do princpio que os dois grupos possuam ideias
to diferentes sobre a poltica e a realidade social, Van Youg foi alm das explicaes
43
VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independncia Mxico: Cien de Mxico
(1 ed. 1951), 2002 p. 121. 44
Eric Van Young The Other Rebellion: popular violence, ideology, and mexican struggle for
Independence, 1810-1821, Stanford, California, Stanford Press, 2001.
40
econmicas para a rebelio.
Parece-me que a resposta popular do meio rural s condies da
mudana econmica, a privao material e a crise a curto prazo de finais da
Colnia foi to variada ao longo do pas, que deveriam se considerar
tambm outras origens , alm das econmicas, da ao poltica coletiva e as
formas ainda mais annimas de protesto que tiveram lugar em suas margens
(...) Este livro se dedica a argumentar que o corao de grande parte da
insurgncia popular se encontra na defesa da comunidade indgena rural
como projeto moral, poltico, e inclusive teleolgico; e no o agravamento
econmico como tal45
.
Diferentemente de Villoro, Van Youg reconheceu que, para lidar com a documentao
disponvel sobre a independncia, foi necessrio compreender os termos do imaginrio
permeados por smbolos religiosos dos envolvidos. Logo, o historiador traou o perfil da
autenticidade das emoes religiosas da populao do campo baseado no que considera
verdadeiro. Assim, esses sentimentos seriam facilmente manipulados pelos criollos como
pressupe,
que houve elementos que um observador histrico agora denominaria
ideologia secular na expresso poltica popular, ainda que os prprios atores
histricos no fizeram distino entre o tipo de pensamento secular e o
religioso. (...) Por isso, no deveria nos surpreender que as manifestaes
mais ferventes da ideologia popular insurgente foram de carter religioso,
como o poderoso smbolo da Virgem de Guadalupe. De todo o repertrio de
manifestaes, o sentimento milenarista/messinico o mais interessante e
em algumas formas mais difcil de captar. Aqui o problema ideolgico
seria se poderamos explicar melhor a forma e genealogia dessas crenas,
vinculando-as com estruturas materiais como seguramente faramos com
uma ideologia secular de mudana econmica e poltica ou talvez
tomando as como entendimentos culturais desenvolvidos em um reino
simblico relativamente autnomo, ou inclusive abordando as mediante
45
VAN YOUNG, Eric La otra rebelin: la lucha por la independencia de Mxico, 1810-1821 traduccin
de Rossana Reyes Vega Mxico, FCE, 2006 p. 74.
41
alguma combinao de ambos enfoques46
.
Como possvel observar a partir desse fragmento, a obra de Van Youg se vale do
conceito de messianismo para legitimar suas concluses. Fernando VII representaria, segundo
essa interpretao, a verdadeira liderana do movimento, uma vez que os relatos indgenas
utilizados pelo autor apontam que o rei andava mascarado ao lado de Hidalgo para salvar a
populao da opresso do inimigo francs.
Em The Othe Other Rebellion, Eric Van Young oferece uma interessante anlise do
que ele denomina "ideologias populares" durante a guerra iniciada em 1810. O ponto de
partida que os diversos grupos subalternos que deram apoio insurgncia de Miguel
Hidalgo tinham aspiraes muito diferentes da direo criolla. Enquanto essa estava formada
por ilustrados (catlicos, mas ilustrados), a maioria da populao rural tinha como objetivo a
conservao de sua comunidade, com seus prprios valores cristos e tradicionais. Por isso, o
messianismo, a xenofobia, o medo e a religio teriam tido um papel mais importante que as
ideias de liberdade e independncia na unio de milhares de pessoas na guerra. O
monarquismo messinico foi, para Van Youg, o motivo que levou os indgenas a aderirem ao
movimento.
Outro ponto importante a ser ressaltado a figura da Virgem de Guadalupe que
aparecia como elemento mais forte da mediao do discurso feito pelos padres do que a
presena do rei Fernando VII, tambm com um carter messinico, que pressupe
manipulao dos indgenas e no elementos importantes que compem um discurso poltico.
Explorarei melhor essa questo no terceiro captulo.
Ao contrrio de Van Youg, Jacques Lafaye, em Quetzalcoatl Y Guadalupe: la
formacion de la conciencia nacional en Mexico, analisou a presena da religio47
como sendo
46
VAN YOUNG, Eric The Other Rebellion: popular violence, ideology, and mexican struggle for
Independence, 1810-1821, Stanford, California, Stanford Press, 2001. p. 78 47
LAFAYE, Jacques Quetzalcltl y Guadalupe: la formacin de la consciencia nacional en Mxico.
42
uma continuidade no processo de formao da conscincia poltica nacional mexicana. Pois, a
identidade mexicana, para o autor, foi construda a partir da juno do iderio mtico indgena
representado por Quetzacotl e da f crist consagrada com a apario da Virgem de
Guadalupe. Enquanto os indgenas conservaram sua antiga religio no nvel ritualstico e
adotaram, ao mesmo tempo, novos smbolos cristos, o cristianismo tambm se viu
contaminado, sobretudo em sua moral. A f religiosa e a f nacional deveriam ser
correspondentes e complementares, mas para que houvesse uma aproximao efetiva do
mundo mtico indgena com o cristo, era necessrio que o catolicismo se mexicanizasse.
Para o autor, um novo esprito milenarista foi absorvido pela Igreja Catlica e, assim, criou-se
uma viso messinica da Conquista e da Independncia.
De acordo com o historiador, esse perodo de formao identitria teria ocorrido
anteriormente, em 1767 com a expulso dos jesutas da Nova Espanha, considerados os
guardies da f do povo mexicano. Para ele, o evento criou um vazio espiritual e intelectual
que se espalhou por toda a colnia. Por esse motivo, o movimento de independncia se
constituiu a partir da legitimao da soberania popular concedida aos indgenas pelos procos
ilustrados e o lugar central dado ao patrimnio religioso no centro poltico das decises da
nova nao. Tal anlise evidencia uma hiptese otimista de Lafaye, que no reconheceu a
excluso social promovida pelos governos do sculo XIX no tocante s terras indgenas.
Nos discursos polticos de Morelos, podemos analisar que o padre buscou relacionar
os eventos da guerra de independncia com referncias bblicas e com o passado indgena.
Para Lafaye, essa foi uma tentativa de elevar os fatos a um acontecimento comandado pelas
mos de Deus, o que configurou uma guerra santa semelhante ao Apocalipse.
Outro autor que tratou do movimento de independncia por esse mesmo prisma foi
Enrique Florescano48
. Em sua anlise sobre o perodo da independncia, o historiador relatou
Abismo de conceptos. Identidad, nacin, mexicano. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1992. 48
FLORESCANO, Enrique Memoria Mexicana Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2002.
43
as diferenas entre as aspiraes de uma elite criolla e as das massas indgenas. O primeiro
grupo, almejando alcanar um Estado Nacional; o segundo, retornando a um estado pr-
colombiano e ambos motivados por uma guerra santa.
De acordo com o autor, a construo do Estado Nacional pelos criollos passava pela
afirmao de uma identidade religiosa expressa pelo smbolo da Guadalupe. J os indgenas e
as massas populares estavam embebidos num furor religioso que os convencera de que eram
eles os defensores da religio ameaada pelos gachupines. Alm disso, os dois lados
classificaram seus inimigos como hereges ou partidrios do Satans e a maior punio de
Hidalgo foi a excomunho. Para Florescano, os participantes da insurgncia
defendiam a religio catlica e a Santssima Virgem de Guadalupe,
desejavam a instaurao de um novo reino, mas no sentido religioso, e
queriam continuar sendo indgenas, homens integrados nas tradies
igualitrias e solidrias de suas comunidades49
Acreditamos que o movimento de independncia no pode ser classificado apenas
como uma guerra santa, pois a luta pela liberdade poltica e a participao popular na
construo de um Estado moderno passou tambm por discusses como o fim da escravido e
da cobrana de tributos por castas50
. necessrio frisar que a presena da religiosidade na luta
poltica foi fundamental para seus avanos, inclusive esteve presente no primeiro captulo da
Constituio de Apatzingn51
. Mas, a noo de soberania popular presente nos captulos
subsequentes nos revela que havia princpios liberais na sua composio que derivavam de
uma ilustrao especifica da Nova Espanha.
A identidade nacional no processo de independncia no estava, no entanto, acabada.
A utilizao do apelo popular, por meio dos elementos religiosos, nem sempre implicava a
49
FLORESCANO, Enrique Memoria Mexicana Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2002.p. 513. 50
Decreto contra la esclavitud, las gabelas y el papel sellado (Miguel Hidalgo) est disponvel no stio
http://www.cervantesvirtual.com, acessado em 23/11/09 51
Artculo 1.- La religin catlica apostlica romana es la nica que se debe profesar en el Estado. A
Constitucion de Apatzingn est disponvel no stio http://www.cervantesvirtual.com, acessado em 23/11/09
http://es.wikisource.org/wiki/Decreto_contra_la_esclavitud,_las_gabelas_y_el_papel_sellado_(Miguel_Hidalgo)http://www.cervantesvirtual.com/http://www.cervantesvirtual.com/
44
construo de uma nao. Apenas aps a morte de Hidalgo, em 1811, que Morelos comeou
a delinear um projeto que contemplasse a populao e, ainda assim, os documentos revelam
que o termo mais correto para definir ideologicamente o movimento soberania.
O historiador Alfredo vila fez uma discusso interessante a respeito deste conceito na
obra En nombre de la nacin: la formacin del Gobierno representativo em Mxico (1808-
1824)52
. Dialogando com a historiografia tradicional, vila pretendeu estudar os grupos
sociais formados em corporaes, a fim de compreender os conflitos sociais na Nova
Espanha, que contriburam para a formulao de um novo sentido de soberania. Enquanto as
obras clssicas na historiografia da independncia53
apontam apenas para uma viso centrada
na dicotomia entre insurgentes versus realistas, ou criollos versus peninsulares, vila vai mais
alm, pois parte da anlise de uma procisso catlica, reconhecendo a variedade de grupos
sociais em conflito na Nova Espanha que estavam vinculados a um lugar comum: a Igreja.
Dessas procisses participavam uma grande quantidade de corporaes que, segundo a
cultura poltica do Antigo Regime, eram representantes de toda a sociedade nova-hispana. No
entanto, j era possvel observar em princpios de 1808, algumas rivalidades. Muitos artesos
j no se identificavam com os grmios. O nmero de fazendeiros sem vinculao poltica
estava aumentando e, assim como nas cidades, o montante de ociosos era crescente. Portanto,
o crescimento demogrfico e a nova realidade econmica tornavam inteis as divises sociais
tradicionais. Alm das doutrinas e as polticas da Ilustrao, que contribuam para destruir a
antiga ordem.
Na interpretao de vila, a data determinante para a formao do movimento de
52
VILA, Alfredo En nombre de la nacin: la formacin del Gobierno representativo em Mxico
(1808-1824) Mxico, Taurus-Centro de Investigacin y Docencia Econmicas, 2002. 53
Ver VILLORO, Luis El proceso ideolgico de la Revolucin de Independencia Mxico: Cien de
Mxico, 1951; HAMNET, Brian Roots of insurgency: Mexican Regions, 1750-1824, Cambridge, Cambridge
University Press, 1986; BENSON, Nettie Lee (editor), Mxico and the Spanish Cortes, 1810-1822. Eight
essays, Austin, University of Texas Press, 1966; TUTINO, John From insurrection to revolution in Mexico:
social bases of agrarian violence, 1750-1940, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1986; ANNA,
Timothy, The fall of the royal government in Mexico City, Lincoln University of Nebraska Press, 1978;
HAMMIL, Hugh The Hidalgo revolt. Prelude to