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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012 1 Polifonia e dialogismo na série As brasileiras: entre paródias e estereótipos 1 Helen E. Nochi Suzuki 2 Issaaf Karhawi 3 Ligia Maria Prezia Lemos 4 Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Resumo A partir da série “As brasileiras” (TV Globo, 2012), os telespectadores-internautas criaram e espalharam pela internet paródias em áudio, vídeo e imagens baseadas em estereótipos que, por sua vez, alimentaram outras produções de sentido também ancoradas em estereótipos, constituindo um movimento polifônico e dialógico que integrou múltiplas plataformas, transferências e construções de sentido. Nesse artigo, nos debruçamos especificamente sobre as montagens imagéticas criadas a partir de fotos e dos títulos dos episódios da série, sempre relacionados à representação e à imagem da mulher brasileira. Palavras-chave: “As brasileiras”; TV Globo; polifonia; paródia; estereótipo A série “As brasileiras” Em 2012, a Globo exibiu “As brasileiras”, uma coprodução com a Lereby 5 dirigida por Daniel Filho. No total foram 22 episódios semanais exibidos entre 02 de fevereiro e 28 de junho. Os episódios narraram histórias de 22 mulheres brasileiras, de diferentes regiões do país que nada tinham em comum entre si, a não ser o adjetivo pátrio. Nas palavras do diretor, Daniel Filho, “abranger desta forma não era minha primeira intenção, pensava em antes fazer várias temporadas de cada Estado. Mas a ideia de reuni-las logo de uma vez pareceu tão tentadora e direta que decidimos fazer”. 6 “As brasileiras” foi um projeto mais amplo que seu antecessor As cariocas7 . Exibida em 2010 pela Globo, a série As cariocasconcentrava-se, por sua vez, apenas na cidade do Rio de Janeiro. Cada um dos dez episódios da trama contava a história de uma 1 Trabalho apresentado no GP Ficção Seriada, XII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Professora na Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação - FAPCOM. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela ECA-USP e do Obitel - Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected] 3 Mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, bolsista do CNPq. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela ECA-USP e do Obitel - Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected] 4 Mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, bolsista do CNPq. Especialista em Gestão da Comunicação - Políticas, Educação e Cultura pela ECA-USP. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela ECA-USP e do Obitel - Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected] 5 A Lereby é uma produtora nacional criada pelo diretor Daniel Filho em 1996. Desde então, tem parceria com a Globo e a Globo Filmes. 6 Fonte: “As mulheres apresentadas na série não têm nada em comum”. Site da série “As brasileiras”. Disponível em <http://tvg.globo.com/platb/asbrasileiras-programa/2012/01/27/daniel-filho-as-mulheres-apresentadas-na-serie-nao-tem- nada-em-comum/> Acesso em 25 de junho de 2012. 7 As cariocasfoi uma coprodução com a Lereby da obra homônima do jornalista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), escrita por Euclydes Marinho e dirigida por Daniel Filho.

Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ... · 10 A ideia da abertura de “As brasileiras”é a mesma de “As cariocas”a não ser pelo logo inicial que, na anterior, apresentava

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012

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Polifonia e dialogismo na série “As brasileiras”: entre paródias e estereótipos1

Helen E. Nochi Suzuki2

Issaaf Karhawi3

Ligia Maria Prezia Lemos4

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

Resumo

A partir da série “As brasileiras” (TV Globo, 2012), os telespectadores-internautas criaram

e espalharam pela internet paródias – em áudio, vídeo e imagens – baseadas em estereótipos

que, por sua vez, alimentaram outras produções de sentido também ancoradas em

estereótipos, constituindo um movimento polifônico e dialógico que integrou múltiplas

plataformas, transferências e construções de sentido. Nesse artigo, nos debruçamos

especificamente sobre as montagens imagéticas criadas a partir de fotos e dos títulos dos

episódios da série, sempre relacionados à representação e à imagem da mulher brasileira.

Palavras-chave: “As brasileiras”; TV Globo; polifonia; paródia; estereótipo

A série “As brasileiras”

Em 2012, a Globo exibiu “As brasileiras”, uma coprodução com a Lereby5 dirigida

por Daniel Filho. No total foram 22 episódios semanais exibidos entre 02 de fevereiro e 28

de junho. Os episódios narraram histórias de 22 mulheres brasileiras, de diferentes regiões

do país que nada tinham em comum entre si, a não ser o adjetivo pátrio. Nas palavras do

diretor, Daniel Filho, “abranger desta forma não era minha primeira intenção, pensava em

antes fazer várias temporadas de cada Estado. Mas a ideia de reuni-las logo de uma vez

pareceu tão tentadora e direta que decidimos fazer”.6

“As brasileiras” foi um projeto mais amplo que seu antecessor “As cariocas”7.

Exibida em 2010 pela Globo, a série “As cariocas” concentrava-se, por sua vez, apenas na

cidade do Rio de Janeiro. Cada um dos dez episódios da trama contava a história de uma

1 Trabalho apresentado no GP Ficção Seriada, XII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento

componente do XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Professora na Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação

- FAPCOM. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela – ECA-USP e do Obitel - Observatório Ibero-Americano

da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected]

3 Mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, bolsista do CNPq. Pesquisadora do Centro de Estudos de

Telenovela – ECA-USP e do Obitel - Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected]

4 Mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, bolsista do CNPq. Especialista em Gestão da Comunicação -

Políticas, Educação e Cultura pela ECA-USP. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela – ECA-USP e do Obitel -

Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected]

5 A Lereby é uma produtora nacional criada pelo diretor Daniel Filho em 1996. Desde então, tem parceria com a Globo e

a Globo Filmes.

6 Fonte: “As mulheres apresentadas na série não têm nada em comum”. Site da série “As brasileiras”. Disponível em

<http://tvg.globo.com/platb/asbrasileiras-programa/2012/01/27/daniel-filho-as-mulheres-apresentadas-na-serie-nao-tem-

nada-em-comum/> Acesso em 25 de junho de 2012.

7 “As cariocas” foi uma coprodução com a Lereby da obra homônima do jornalista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta),

escrita por Euclydes Marinho e dirigida por Daniel Filho.

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mulher carioca, residente em um bairro da cidade. Foi graças à positiva repercussão da

narrativa e ao tom bem-humorado e leve da trama que o projeto audiovisual de “As

cariocas” serviu de inspiração para “As brasileiras”, tanto em questões de formato quanto

em questões estéticas.

Assim, diversos autores8 desenvolveram os episódios da série com curta duração,

narrativa independente, locução em off, apresentando um retrato bem-humorado dos

sotaques, ares e mulheres brasileiras. Foram criados cerca de uma centena de cenários para

dar conta das características regionais de cada uma das protagonistas e cada episódio contou

com o tempo de apenas uma semana de gravação.9

A independência episódica da série “As brasileiras” permitia à trama intitular cada

episódio com referência à mulher brasileira tratada no dia. A repetição composicional dos

títulos construiu, desde “As cariocas”, uma identidade discursiva para a série rapidamente

assimilada pelos telespectadores. Portanto, às quintas-feiras, o espectador estava

acompanhado pela Ana, o anjo de Alagoas (Cléo Pires); Ângela Cristina, a mamãe da Barra

(Glória Pires); Augusta, a inocente de Brasília (Claudia Jimenez); Gabriela, a reacionária do

Pantanal (Sandy); Gigi, a venenosa de Sampa (Giovanna Antonelli) apenas para citar

algumas das personagens, protagonistas de cada uma das tramas. Todas as personagens são

adjetivadas e inseridas em um local do Brasil.

Além da reiteração na composição do título dos episódios, as imagens de divulgação

de “As brasileiras” se limitavam a um estilo visual simples com foco nas mulheres

brasileiras. Na abertura10

, o logo de um violão apresenta o nome da série e em seguida, em

um cenário branco, as protagonistas desfilam em trajes de gala ao som dos versos “Bela,

bela, bela. Ela anda na rua como quem passa na passarela, o mundo é dela. [...] A bela é

linda é nossa ela é da cor do Brasil11

”. O cenário branco evidencia a “mulher/atriz”

brasileira que desfila, enfatizando seu papel de protagonista, de sujeito social pleno de si.

8 Autores da série: Adriana Falcão, Ana Maria Moretzsohn, Carol Castro, Clarice Falcão, Gregório Duvivier, Jô Abdu,

Marcelo Saback, Marcio Alemão Delgado, Marcius Melhem, Marcos Bernstein, Sylvio Gonçalves. Fonte: “As

brasileiras”. Disponível em: http://tvg.globo.com/platb/asbrasileiras-programa/creditos/. Acesso em 25 de junho de 2012. 9 Fonte: “A difícil tarefa de ilustrar histórias diversificadas”. Site da série “As brasileiras”. Disponível em:

http://tvg.globo.com/platb/asbrasileiras-programa/2012/01/27/a-dificil-tarefa-de-ilustrar-historias-diversificadas/. Acesso

em 25 de junho de 2012. 10 A ideia da abertura de “As brasileiras” é a mesma de “As cariocas” a não ser pelo logo inicial que, na anterior,

apresentava o Cristo Redentor e o último verso da canção, “A bela é carioca, mas é da cor do Brasil”. 11 Trecho da canção Bela fera, de Pedro Luís & A parede.

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Da abertura, toda a concepção visual da série é montada. Portanto, as imagens de

divulgação e mesmo as disponíveis no site oficial da trama12

são protagonizadas pelas

“mulheres/atrizes” brasileiras em sua beleza como vemos na figura 1.

Figura 1 – Exemplo de material fonte para as montagens.

A partir desse tipo de material, o telespectador-internauta passou a realizar

montagens e paródias – inspiradas nos títulos dos episódios da série “As brasileiras” e

motivadas por suas próprias realidades e vivências pessoais e profissionais. Construções

espontâneas e autorreferenciadas que, ao serem publicadas nas redes sociais explicitavam o

processo de diálogo do indivíduo com o coletivo, ou seja, os enunciados propostos

ofereciam a possibilidade de serem compreendidos como resultado de um discurso

compartilhado acerca de determinada questão. A produção de sentido dessas construções na

internet pode ser compreendida através dos conceitos de polifonia e dialogismo segundo

Bakhtin (2010a e 2010b), autor que nos oferece também uma abordagem sobre a paródia e

suas instâncias significativas na sociedade em “A cultura popular na Idade Média e no

Renascimento” (2008) pois essas intervenções utilizam a comicidade e os estereótipos do

repertório social. Analisaremos também a criação/participação colaborativa sob a ótica de

Jenkins (2009), além de trabalharmos a questão dos estereótipos e preconceitos explicitados

nos enunciados segundo Lippman (1980), Heller (2004) e outros.

Novas práticas: o telespectador-internauta

A palavra-chave que conduz nosso trabalho, mesmo que tacitamente, é

“participação”. Usar o termo é repensar o papel da audiência em seu local de inatividade

para o atual posto de colaboradora. Se outrora o telespectador de ficção televisiva era

qualificado como um receptor passivo, previsível, leal, isolado socialmente, silencioso e

invisível, hoje esse mesmo consumidor é visto como ativo, migratório, conectado

socialmente, barulhento e público (JENKINS, 2009, p. 47). Em nosso trabalho, portanto,

partimos do pressuposto de uma participação criativa da audiência no processo de fruição

12 Site de “As brasileiras”. Disponível em: http://especial.asbrasileiras.globo.com/home/. Acesso em 24 de junho de 2012.

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da ficção televisiva, visto que participar da ficção sempre foi característico do

telespectador, sobretudo, da telenovela. Ao afirmar que a telenovela “[...] é tão vista quanto

falada”, Lopes (2009, p. 29) – mesmo antes da internet – já a apresenta como formadora de

um espaço de conversação, negociação de sentidos, uma narrativa que, até na mais simples

das enunciações, estava presente no discurso do povo brasileiro. Seria espantoso, e mesmo

incoerente, se essa conversação – como reflexo da convergência digital – não caminhasse

da segurança do lar para o compartilhamento na internet.

Para De Certeau (2007, p. 94), “o telespectador não escreve coisa alguma na tela da

TV. Ele é afastado do produto, excluído da manifestação”. À primeira instância é essa a

conclusão a qual podemos chegar quando dissertamos sobre a participação das audiências

na produção de ficção televisiva. A passividade, “espelho de um ator multiforme e

narcísico” (2007, p. 94), faria do telespectador nada além de um ser disforme e

incapacitado. O que a internet nos mostra, no entanto, é a habilidade do usuário com novas

mídias e a familiaridade com o hipertexto. Quando Lévy (1996, p. 42), ao tratar do

hipertexto, concedia ao suporte digital a capacidade de gerar novos tipos de leituras

coletivas, além de aceitar o próprio ato de ler como um processo coletivo, compartilhado,

também aceitava que com a apropriação do usuário do hipertexto e das ferramentas da

internet, a leitura seria modificada. Indo além, o ato de ler aplica-se também ao ato de

assistir a programas de ficção. Portanto, que novas possibilidades de assistência são essas?

Ainda nas palavras de Lévy (1996, p. 41): “é somente na tela que o leitor encontra a

nova plasticidade do texto ou da imagem. Toda leitura em computador é uma edição, uma

montagem singular”. Enquanto o autor tratava do hipertexto e da possibilidade de mexer no

texto do outro, em um passo adiante, na cultura da convergência, os meios se confundem e

conversam entre si. O hipertexto não se restringe a um texto (virtual) estruturado em rede,

constituído de nós e ligações entres esse nós (LÉVY, 1996, p. 43), mas em uma maneira de

pensar do telespectador-internauta. Essa maneira de pensar hipertextual, em um ambiente

também hipertextual nos mostra que: “o hipertexto está dentro de nós, ou antes, está em

nossa capacidade interior de recombinar e atribuir sentido dentro de nossas mentes a todos

os comportamentos do hipertexto que estão distribuídos em muitas diferentes esferas de

expressão cultural” (CASTELLS, 2003, p. 166).

Antes da noção do hipertexto como constituinte de uma “prática”, uma série como

“As brasileiras” seria assistida, comentada entre os familiares, com os vizinhos, sempre

respeitando as barreiras geográficas e aquelas impostas pela familiaridade. Aqueles que se

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nomeassem fãs da série poderiam recortar e reunir imagens de revistas, ler entrevistas com

as atrizes ou assistir ao making of da série na TV. O transbordamento da série estaria

limitado àquilo que o produtor, a Globo, disponibilizou em outros meios tão tradicionais

quanto a televisão. Pensar como um hipertexto, ou melhor, de maneira transmidiática, em

polifonia, é apropriar-se do texto do outro, da ficção televisiva e transformá-la. A ficção

deixa de trilhar o caminho pré-estabelecido pelo roteiro, produção e orçamento e passa a

seguir os passos do telespectador-internauta na internet e refletir sua própria vida, real.

Se a oferta de ficção e de produtos relacionados a ela sempre dependeu dos

telespectadores, na cultura da convergência e da participação, não poderia ocorrer de outra

forma: “a circulação de conteúdos – por meio de diferentes sistemas de mídia (...) depende

fortemente da participação ativa dos consumidores” (JENKINS, 2009, p. 29). Jenkins aceita

o papel do produtor no processo de transmidiação da ficção televisiva – na criação de sites

oficiais, de blogs de personagens ou de vídeos exclusivos para a web – mas aposta,

também, na participação de um internauta capaz de criar mundos antes não previstos pelo

produtor. Por se constituírem como espaços regidos pelo compartilhamento de imagens,

textos e vídeos entre amigos, as redes sociais são locus favoráveis para a prática desse

“novo assistir”. Em pesquisa realizada na rede social Facebook, por Lopes e Mungioli

(2011), constatou-se, por exemplo, que os telespectadores-internautas assistem a telenovela

ao mesmo tempo em que comentam sobre ela na rede. No caso de “As brasileiras”, eles não

apenas comentavam nas redes sociais, ou criavam comunidades virtuais para a trama, como

também parodiavam a série, e sua própria realidade social, com o uso de montagens

imagéticas, nas redes sociais.

Polifonia em “As brasileiras”

Para Bakhtin, “o romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um

fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” (2010c, p. 73). Transpondo essa ideia

para a obra audiovisual, esta noção se caracteriza pela existência de outras obras em sua

organização interna. A construção de um enunciado é fundamentada na pluralidade de

vozes: não há vazio, mas relações sociais, encontro e trocas. Nos estudos bakhtinianos, a

noção de polifonia e dialogismo ficam evidentes: os processos enunciativos geram

discursos construídos com base em discursos anteriores: “cada enunciado é um elo na

corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2010a, p. 272).

Portanto, não há discurso sem outros discursos, o ciclo exige a ação de outro(s), a existência

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de interlocutores. Esse ciclo de ação mútua e continuada caracteriza a polifonia que se

refere a variadas vozes que intervêm no texto. Aqui, falas não são enunciados individuais,

mas falas sociais, falas ideológicas, culturais. Falas muitas vezes controversas, pontuadas

por esferas da comunicação marcadamente ideológicas.

Para Bakhtin (2010b), a comunicação verbal, apoiada no diálogo, estabelece a

palavra como um “território comum entre o locutor e o interlocutor” e é a expressão do

mundo interior de cada indivíduo, ou seja, sua consciência, que constrói o sentido. Então, o

dialogismo é inerente à linguagem. O autor entende “a ideologia do cotidiano como um

domínio da palavra interior [da consciência] e exterior [com o outro] desordenada e não

fixada num sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos

nossos estados de consciência” (p. 123). Nesse aspecto, a enunciação é produto de uma

interação social, que é manifestada individualmente, mas reflete as características e

influências, mesmo inconscientemente, do entorno social em que o sujeito está inserido.

Portanto, toda enunciação espera uma resposta, é um ato de diálogo com o outro, marcando

a compreensão ativa e responsiva. “Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo,

deve conter já o germe de uma resposta.” (BAKHTIN, 2010b, p.137).

Um texto literário ou uma obra de ficção televisiva não poderia, deste modo, falar

apenas de si. Em uma série como “As brasileiras” ouvem-se as vozes de um país, de uma

nação de enunciados. As vozes falam de uma mulher brasileira, não aquela concebida

individualmente pelo diretor ou roteirista da trama, mas aquela construída por discursos –

tecidos nas relações sociais – sobre as mulheres brasileiras. Nesse sentido, estereótipos,

preconceitos, ideologias, individualidades e identificações são, legitimamente, constituintes

da narrativa de “As brasileiras”.

Remix, paródia e intertextualidade

Há condições ou momentos em que a construção de mundos paralelos se torna

possível por meio de narrativas, ficções, escrituras, oralidades etc. É possível a

manifestação desse duplo sentido, da realidade e dos mundos paralelos, de várias maneiras:

seja na conversa oral, informalmente, seja nas construções de sentido do real através da

escrita ou simplesmente durante o bate-papo informal em que o raciocínio construído da

realidade encontra outro sentido. A manifestação popular acerca de determinado assunto

que surge espontaneamente pode ser, hoje em dia, amplamente divulgada através da

internet.

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Por meio da paródia (imitação cômica), é possível a expressão espontânea de

situações em que se extinguem, ao menos momentaneamente, as diferenças de hierarquia,

poder ou status de classes. Bakhtin (2008) demonstra essa possibilidade ao descrever a

ocasião do carnaval na Idade Média como manifestação de caráter não oficial.

Mas quando se estabelece o regime de classes e de Estado, torna-se impossível

outorgar direitos iguais a ambos os aspectos, de modo que as formas cômicas –

algumas mais cedo, outras mais tarde – adquirem um caráter não-oficial, seu sentido

modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para transformarem-se finalmente

nas formas fundamentais de expressão da sensação popular do mundo, da cultura

popular (BAKHTIN, 2008, p. 5).

A utilização de mecanismos de transferência de sentido ou de construção de outros

sentidos a partir de um original utilizando a comicidade é uma forma de vivenciar a

dualidade do mundo, “ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida”

em ocasiões determinadas que “oferecem uma visão do mundo, do homem e das relações

humanas totalmente diferente, deliberadamente não oficiais” (BAKHTIN, 2008, p. 4-5) e

que, portanto, permitem a manifestação do ensejo popular.

Bakhtin (2008) enfoca a ocasião do carnaval na Idade Média para explicitar essa

manifestação popular de uma cultura que não tem o compromisso com a arte, mas torna-se

a representação da realidade construída espontaneamente numa situação em que os

representados também fazem parte do riso, apresentando, assim, uma versão da realidade

que se estreita como “uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão

incluídos os que riem” (p. 11). Nesse sentido, essa manifestação não é a representação de

um indivíduo, mas pertence a um “corpo popular, coletivo e genérico”.

A paródia na experiência de representar uma situação através de um texto ou de uma

imagem, transformando o seu significado original, permite que a experiência pessoal de um

indivíduo, ou grupo, seja explicitada coletivamente. Mas, para que essa manifestação seja

compreendida é necessário que as intenções abarcadas nesse texto ou imagem sejam

entendidas pelo outro. Então a comicidade a que se refere a peça construída reflete e refrata

de certa forma o coletivo. Para Bakhtin (2008), o enunciado sempre é uma construção

social e a comicidade que traduz uma situação real, representa uma alternativa de expressar

uma acepção de mundo que somente seria possível através desse dispositivo que, apesar de

mostrar um ponto de vista unitário, reflete uma visão coletiva do mundo.

O riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais

pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a

história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e universal sobre o

mundo, que percebe de forma diferente embora não menos importante (talvez

mais) do que o sério; por isso a grande literatura (que coloca por outro lado

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problemas universais) deve admiti-lo da mesma forma que ao sério: somente o

riso; com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do

mundo (BAKHTIN, 2008, p. 57).

Em sua análise de paródias televisivas, Faria (2011) ressalta que a convergência

midiática e a convergência cultural se utilizam da tecnologia para modificar as relações

entre produtores de conteúdos e audiência, estabelecidos tradicionalmente. Assim, a

possibilidade da interferência do telespectador, utilizando as novas tecnologias, permite um

fenômeno em que é possível “uma fluidez, deslizamentos ou interstícios de conteúdos e

uma expansão incalculável de um produto lançado pela televisão brasileira” (2011, p. 203).

Para essa autora, a paródia construída a partir de uma matriz audiovisual, ao migrar para

outras formas de manifestação, com a expansão no seu processo de criação e a interferência

criativa do telespectador comum, propicia uma hipertextualidade.

As montagens imagéticas dos internautas são apropriações daquelas criadas para a

série “As brasileiras” que, conjugadas com as respectivas titulações, permitem a criação de

outros sentidos em intervenções que refletem situações do cotidiano e intercalam

significados retirados de outros contextos e que envolvem, em grande parte, estereótipos e

preconceitos.

Do estereótipo à autoestima

Todas as coisas são múltiplas, complexas, multifacetadas. As pessoas, as ideias, os

objetos dão-se a conhecer a partir do olhar do observador. E, por essa razão, “de qualquer

acontecimento público que exerça amplos efeitos, na melhor das hipóteses, só vemos uma

fase e um aspecto” (LIPPMANN, 1980, p. 149) e, portanto, incompleto. Assim,

testemunhos, relatos e descrições abarcam um tanto de criatividade, pessoalidade e

construção que depende dos olhos, hábitos e posição de quem vê. Essa definição parcial e

primeira tem a função de resumir e classificar o novo – entre o já conhecido. “Na maior

parte das vezes, não vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e depois

vemos.” (LIPPMANN, 1980, p. 151).

Para Bosi (1977), possuímos um círculo de ação limitado, reduzido e, dentro dele,

nos movemos sempre em caminhos familiares, repetidos, confiando e aceitando o

pensamento e informações vindas dos outros, aqueles que participam conosco da

construção de um discurso que reforça constantemente nossa “confiança social”.

Classificam-se e armazenam-se, conforme categorias preestabelecidas, fatos, coisas,

pessoas, opiniões. Essa é a utilidade do processo de estereotipia ao agilizar e organizar em

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compartimentos determinados um mundo que demandaria tempo e disposição para sua

análise primeira. Segundo Lippmann (1980), por economia, os estereótipos tomam

conceitos emprestados das artes, dos códigos morais, filosofias sociais, agitações políticas

para moldar nossa contemplação de acordo com a familiaridade e, apesar de existir conexão

entre visão e os fatos, é uma “estranha conexão” baseada em tipos e generalidades. Sem

intimidade, juntam-se os pontos da figura criando um desenho baseado em estereótipos e

essa figura passa a fazer parte de repertórios pessoais, sociais e coletivos.

Aqui se enquadra o termo “as brasileiras” do título da série. Quem são as

brasileiras? Juridicamente são as pessoas do sexo feminino, nascidas no Brasil, mesmo que

seus pais sejam estrangeiros; as nascidas no estrangeiro, com pelo menos um dos genitores

brasileiro; e, ainda, aquela que foi aceita e naturalizada brasileira. Brasileira, sabe-se, é uma

nacionalidade e não uma etnia. Intimamente ligada à República Federativa do Brasil,

porém, apresenta um número maior de significados do que os determinados por lei, entre os

quais, muitos carregam estereótipos e preconceitos. Traço característico da vida cotidiana, a

categoria de pensamento compreendida como preconceito, segundo Heller (2004) é baseada

na ultrageneralização e, assim, pode ser alcançado de duas maneiras:

[...] por um lado, assumimos estereótipos, analogias e esquemas já elaborados; por

outro, eles nos são “impingidos” pelo meio em que crescemos e pode-se passar

muito tempo até percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, se é

que chega a produzir-se uma tal atitude (HELLER, 2004, p. 44).

Assim, as brasileiras são muitas, diferentes entre si e, apesar disso, carregam juntas

– e há séculos – um estigma13

relacionado a um imaginário coletivo de “mulher brasileira”

que as faz nascidas para a sexualidade, o amor, a beleza e a submissão ao homem. Seu

estereótipo as relaciona a adjetivos como formosas, adoráveis, bonitas, ornamentais, mas

também ociosas, desfrutáveis, subalternas:

Desde os primeiro registros acerca dos hábitos e costumes em terras brasileiras, a

imagem da mulher tem sido repetida, fixada, enquanto sensual, sexualmente

disponível, uma imagem cristalizada e ritualizada pela repetição: índias que

andavam nuas e se entregavam aos descobridores; negras escravizadas pelos

senhores de engenho, mistura racial e o aparecimento da mulata, o rebolado do

carnaval (ROSSETO, 2011, p. 333).

Produto de dominação, como a maior parte dos preconceitos, essa concepção da

“brasileira” visa conservar a estrutura social que dela se beneficia. Estrutura social que

sempre replicou e amplificou o ambiente macro em que o país, o Brasil, esteve incluído.

13

Utilizamos aqui a palavra “estigma” no sentido proposto por Goffman (1982), mais especificamente

localizando-a junto à classificação de “estigmas tribais”, ou seja, aqueles que englobariam, resumidamente, as

identidades sociais que contrariam as qualidades esperadas dos padrões de normalidade de uma raça, nação ou

religião.

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Definido pelo primeiro mundo como país do terceiro mundo, o Brasil manteve-se ao longo

de sua história com representação subalterna aliada a uma autoimagem inferiorizada.

Estereótipo e preconceito são temas universais e, por essa razão, lembramos aqui do estudo

de caso realizado na aldeia de Winston Parva por Elias (2000) e que destaca os termos

“estabelecidos”, para grupos que ocupam posição hegemônica de prestígio e poder e

“outsiders”, para os heterogêneos e unidos por laços sociais mais fracos. Dessa forma:

A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder, com as tensões

que lhe são inerentes. Essa é também a precondição decisiva de qualquer

estigmatização eficaz de um grupo outsider por um grupo estabelecido. Um grupo

só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de

poder das quais o grupo estigmatizado é excluído (ELIAS, 2000, p. 23).

Para Elias (2000), ocorre que é obscura essa polifonia do movimento de ascensão e

declínio dos grupos que os leva de estabelecidos a outsiders e vice-versa. Para Heller

(2004), isso acontece porque o preconceito tem um caráter provisório, não é eterno nem

imutável e, justamente por esse caráter, pode alterar-se na atividade social e individual.

Ora, Orlandi (1990, p. 27) afirma que a Análise do Discurso se constitui

precisamente nesse intervalo, “na região das questões que dizem respeito à relação da

linguagem (objeto lingüístico) com a sua exterioridade (objeto histórico)”. O Brasil atual,

no movimento de ocupar um novo lugar, alterando o estereótipo anterior articulado na

inferioridade, vem passando por uma dinâmica que o “estabelece” em uma nova posição,

mais participante, atuante. Nesse ambiente e em um movimento integrado e reflexivo,

[...] as mulheres emergem como novos atores sociais na escolha de suas vidas e de

sua maneira de ser, os modelos femininos se diversificam. Mulheres reivindicam

não mais serem reduzidas a uma só dimensão, pois querem ser simultaneamente

mães, companheiras, trabalhadoras, cidadãs e protagonistas de seu lazer e prazer

(DEL PRIORI, 2010, p. 23).

O estereótipo das mulheres brasileiras passa por transformações e, ao voltar nosso

olhar para o telespectador-internauta, vemos surgir o discurso que revela sua nova posição

de autoestima em inúmeras paródias nascidas com inspiração nesses títulos, porém

propondo novos reflexos e refrações. Os telespectadores-internautas subvertem o antigo

estereótipo e, em nossa amostra temos, em lugar de “As brasileiras”, com sua carga

estigmatizada, títulos representativos de uma infinidade de profissões e das mulheres nelas

engajadas, ou seja, as profissões, ocupações e atuações da atual mulher brasileira. Por essa

razão, entre essas montagens imagéticas, poucas são ligadas àqueles estereótipos.

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As mulheres brasileiras falam de si: estereótipos e profissões

A pesquisa na internet requer a lida com um novo tipo de texto. O texto perde o

limite físico que outrora encontrávamos no papel e passa a ser parte de uma rede complexa

de nós e conexões. Apesar de, na estreia de “As brasileiras”, a rede social Facebook ter sido

locus de intenso compartilhamento de paródias, após esse período as montagens são

dificilmente localizáveis. Portanto, para nosso estudo coletamos 32 paródias feitas pelos

internautas14

. A partir das montagens reunidas, selecionamos aquelas que fazem referência

às profissões das mulheres brasileiras, uma vez que as sátiras relativas ao estado, cidade ou

município das brasileiras exigiria um conhecimento de especificidades de cada um desses

locais para uma análise coerente. Assim, das 32 paródias, nossa amostra intencional reuniu

14 montagens dos telespectadores-internautas15

.

Figura 2 – Exemplo de montagem: As enfermeiras.

Assim como o cenário branco da abertura de “As brasileiras”, como em um papel

em branco os internautas, logo na estreia da série, passaram a usar as imagens de

divulgação para, a partir delas, construir suas próprias narrativas. É como se a lacuna em

14

Entre as paródias há aquelas que brincam com as profissões; as advogadas, as biólogas, as colegiais da

Paraíba, as cientistas sociais, as economistas, as enfermeiras, as jornalistas, as nutricionistas, as psicólogas, as

publicitárias, as universitárias do Rio de Janeiro, as assistentes sociais, as brasileiras do agronegócio, as

geógrafas, as matemáticas, as universitárias, as UFBPenses. Outras que satirizam as regiões do país; as

alencarinas, as baianas, as cuiabanas, as curitibanas, as florianopolitanas, as janduienses, as paraibanas (1 e 2),

as peixeiras, as viçosenses, as bayeuxenses, as pedra branquenses, as santarritenses. Por fim, paródias que

fazem alusão a outros países como em as americanas e las mexicanas. 15

No total, 17 montagens tratavam das profissões das mulheres brasileiras. Desse número foram excluídas três

(as universitárias do Rio de Janeiro, as UFBPenses e as colegiais da Paraíba) também pela especificidade

exigida na análise.

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branco deixada pela produção da abertura despertasse a postura “ativo-responsiva” dos

espectadores. Como se aquele espaço precisasse de resposta.

[...] Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente

responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão

é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte

se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas

um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se

atualiza na subsequente resposta em voz real alta (BAKHTIN, 2010a, p. 271).

A compreensão do enunciado da série, a construção dos títulos dos episódios e a

apresentação das protagonistas geram uma resposta do espectador que poderia ser, na

concepção bakhtiniana, um suspiro, uma palavra qualquer, uma construção frasal elaborada

e, em nosso caso, a construção de uma paródia.

Essa resposta à enunciação televisiva e mesmo a apropriação da narrativa é

facilitada pelo uso de ferramentas de edição de imagens como Paint ou Photoshop e pela

possibilidade de compartilhamento das redes sociais que faz com que conteúdos diversos

circulem pela internet: “as possibilidades abertas [...] pelas redes sociais [...] ampliam

sobremaneira as experiências criativas dos consumidores de narrativas midiáticas

proporcionando uma circulação de conteúdos jamais vista” (LOPES; MUNGIOLI, 2011, p.

252).

Para Jenkins (2009, p. 235), o uso dessas novas tecnologias – como as de edição de

imagens – são ferramentas que permitem ao usuário envolver o conteúdo dos “velhos meios

de comunicação” com a internet, vista sob a perspectiva de um “[...] veículo para ações

coletivas – solução de problemas, deliberação pública e criatividade alternativa”.

Aqui, entendemos criatividade na perspectiva de Lopes et al. (2009, p. 415), ou seja,

como um processo interativo no qual o usuário emite conteúdo “[...] criando algo novo a

partir daquilo que lhe foi dado. Estimulado pelo produtor de conteúdo a emitir uma

resposta, o internauta produz, transpondo a condição de receptor e alcançando a de

emissor”. No caso das paródias de “As brasileiras” não nos referimos a um processo

estimulado de maneira deliberada pelo produtor, mas a um processo genuinamente popular,

dos telespectadores-internautas.

Recorrendo novamente a Lopes (2009), arriscaríamos dizer que no caso de “As

brasileiras” a série “é mais falada do que vista”. A facilidade de compartilhamento no

Facebook permitiu que os internautas, mesmo aqueles sem contato direto com a série,

pudessem dividir na rede social uma paródia que fala de si.

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Como na corrente complexa de enunciados da qual fala Bakhtin (2010a), os

telespectadores-internautas passaram a ter contato com enunciados-resposta de outros

internautas e, como integrantes da incessante produção se sentidos, também construíam

seus próprios enunciados-resposta fosse formulando novas paródias, fosse compartilhando

outras.

Nesse sentido, o cômico se refere mais aos estereótipos relativos às profissões das

brasileiras – que encontram nas imagens da série, um “papel em branco” para a construção

de paródias – do que necessariamente aos estereótipos apresentados na trama da série

televisiva. É como se a ficção fosse um pretexto, ou mesmo o pontapé, para a enxurrada de

material produzido pelos internautas.

Suas montagens são nomeadas com títulos que remetem a um universo único e

específico, como por exemplo, as nutricionistas, as publicitárias, as cientistas sociais, as

advogadas (Fig. 3). Essas denominações solicitam uma compreensão já compartilhada

desse universo tratado. Em cada um deles, as “mulheres/atrizes” são definidas por

enunciados baseados em estereótipos profissionais, portanto, compartilhados pelo grupo

social em questão. No caso de “As advogadas”, as atrizes da série passam a representar o

papel de a rica tributária, a zen ambientalista, a curiosa administrativa, a apaixonada

civilista etc.

Figura 3 – Exemplo de montagem: As Advogadas.

Essas montagens são construções estruturadas que mesclam a natureza de

determinado tema com as diferentes e sutis percepções acerca da realidade dos universos

propostos por estereótipos profissionais. Por exemplo, no universo das enfermeiras (Fig. 2)

temos: a estressada da UTI, a poderosa da saúde coletiva, a atenciosa da geriátrica, a alegre

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da pediatria. Há nessas construções a evidente polissemia do signo, especialmente o visual,

que não carrega apenas o símbolo da série “As brasileiras”, mas signos ideológicos que

versam sobre grupos profissionais, e, consequentemente, diferentes brasileiras.

Interdiscursivamente, novos enunciados são construídos resultantes da produção de

sentidos apoiada em estereótipos. Esse remix, à luz de Bakhtin (2010b), representa a

polifonia, o conjunto de vozes vindas de outras obras, presentes na organização interna de

um discurso. Também se depreende o conceito de dialogismo (BAKHTIN, 2010b) visto

que as titulações das mulheres/atrizes remetem a uma compreensão particular de

significados que, conjugados com a imagem, produzem um efeito de comicidade.

Por sua vez, o telespectador-internauta, ao construir uma paródia com base naquilo

que vive em sua profissão, também lança mão de estereótipos que conduzem à comicidade.

O compartilhamento no Facebook é índice da função cômica das montagens: não há

descontentamento, mas divisão. As montagens multiplicam-se na rede e outras novas

somam-se às já construídas. Não é exatamente a série “As brasileiras” que rege ou nutre

essa ação, mas a construção de enunciados. Os internautas identificam-se com os

estereótipos e compartilham, ou seja, constroem discursivamente o ethos

(MAINGUENEAU, 2010). Ao publicar em sua página do Facebook uma montagem de sua

profissão, o internauta fala de si, se apresenta discursivamente para o outro. Essa construção

está atrelada a estereótipos, talvez como uma maneira de validação mais enfática de seu

ethos, uma vez que, os estereótipos são facilmente reconhecidos.

Portanto, em nosso estudo, pensar estereótipos não é pensar negativamente, senão o

contrário: ponderamos sobre um telespectador-internauta que, utilizando-se da paródia e do

humor em suas montagens cômicas, se repensa e se recoloca assertiva e positivamente

como mulher brasileira.

Considerações Finais

Por meio do exercício de análise feito neste trabalho percebemos através da

interação dos telespectadores-internautas com o conteúdo televisivo da série “As

brasileiras” – estabelecida nas montagens criadas para a Internet – alguns pontos nodais do

mundo digitalizado em que vivemos, e o trabalho da significação desse conteúdo. A

espontaneidade com que os usuários interferem num conteúdo original denotando uma nova

cadeia de produção, que não é fornecida pelo produtor, mas que pode ser alterada,

modificada, parodiada ou estereotipada pelos internautas, demonstra o grande poder de

difusão da internet e a inversão dessa cadeia construtiva de sentidos.

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Na polifonia dos discursos construídos podemos perceber a desconstrução do

estereótipo da mulher brasileira, e dentro de cada sistema de titulação dessas imagens,

notamos a utilização do dialogismo como recurso de comicidade. Cada uma dessas

intervenções, nomeadas e regidas sob um sistema próprio, reflete os variados entendimentos

acerca da situação descrita pelas titulações do conjunto das “mulheres/atrizes”. Nomes que

por si só possuem outro significado, mas que, em conjunto com a imagem, compactuam

com outras unidades de sentidos, discutindo características conhecidas, estereotipadas, de

situações descritas. Interferência espontânea que, online, permite perceber a polifonia de

temas e leituras a partir de uma mesma matriz.

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