Interculturalidades Da Multiculturalidade

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    1/20

    Isabel Capeloa Gil

    29

    AS INTERCULTURALIDADESDA MULTICULTURALIDADE

    Isabel Capeloa Gil II

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    2/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    30

    As culturas esto todas envolvidas umas com as outras;nenhuma pura e singular, todas so hbridas, heterogneas,

    extraordinariamente diferenciadas e nada monolticas.

    EDWARD SAIDCulture and Imperialism (1993)

    Entre o dilogo e o conflito: o momento intercultural

    Se o sculo XX se revelou o sculo das identidades, o sculo XXI ser neces-sariamente o sculo das interculturalidades. Grafo a palavra no plural, noapenas pela recusa essencialista de um modelo de exerccio intercultural est-

    vel, fixo e hegemnico, mas porque, tal como Stuart Hall referia a propsitoda construo identitria (Hall, 2006, 25), o intercultural se manifesta deforma processual, instvel, metamrfica, a construir-se e a renovar-se cons-tantemente. Contudo, se a afirmao do momento intercultural, que o AnoEuropeu do Dilogo Intercultural consagra, no apangio da complexi-dade do nosso presente, j que a hibridao se constitui como uma inevita-bilidade do processo cultural, na verdade, a contingncia da diversidade nomundo globalizado e as transformaes do tecido social e tnico portugus,nas ltimas trs dcadas, constituem uma realidade prpria, que apresenta

    novos desafios convivncia entre culturas.

    Desde sempre espao de transio e interaco entre povos e culturas,Portugal construiu na modernidade uma auto-imagem diasprica, primei-ro com o avano quinhentista para o mar e, depois, com a emigrao, no s-culo XX. J nos anos 70, com a descolonizao, mas particularmente nadcada de 90, a realidade modificou-se e o Pas transformou-se rapidamenteem espao de acolhimento para emigrantes africanos, asiticos e do Leste daEuropa, que constituam, em 2003, 5% da populao nacional (Pimentel,2007, 102ss.). A renovao do tecido tnico com os novos grupos de imigra-o transformou a paisagem cultural, social, religiosa e econmica. A novatessitura tnica e cultural propiciou o surgimento de manifestaes culturaishbridas, de fuso, com particular expresso na msica 1, nas artes 2 e nasletras, mas certo tambm que a esttica no se revelou meramente comolocal de reconciliao, afirmando a tenso e a resistncia presentes no pro-cesso de interaco. Se a desconfiana religiosa entre comunidades se fezsentir, no menos certo que esta foi acompanhada por novos sincretismos,

    e que, formas de excluso social, conflitos culturais, tnicos e polticos,

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    3/20

    Isabel Capeloa Gil

    31

    foram combatidos por renovadas formas de cidadania participativa e de luta,pelo que Nestor Garcia Canclini designa os direitos conectivos (Canclini,1994, 39), isto , o direito de acesso sociedade da informao e do conhe-cimento. Neste contexto, a interculturalidade apresenta-se como estratgiaplural, reflectindo-se nas prticas simblicas, na interaco intermeditica,nas formas de sociabilidade, no exerccio da cidadania, nos padres de con-sumo, no acesso s tecnologias, nas formas de cuidado e de aco tica.Trata-se, assim, de um processo multidireccional, heterogneo, de agencia-mento diferenciado e que assume a pluralidade como gesto de uma reno-vada hermenutica cultural e poltica. Falamos ento de interculturalidades,que na prtica ocorrem na comunicao e na interaco cultural, mas tam-

    bm nas relaes econmicas, no entendimento e no conflito religioso, naconvivncia intergeracional, na aco dosmedia, nas prticas de sade. Maisdo que uma moda terica ou ideolgica, as prticas e o pensamento inter-culturais so uma constatao necessria do presente e do futuro. AntnioPinto Ribeiro afirma, na introduo do projecto cultural Distncia eProximidade, com o qual a Fundao Calouste Gulbenkian celebra o Anodo Dilogo Intercultural, que: S h um futuro pacfico para a Humani-dade se a Interculturalidade for vivel. Com isto quer dizer-se que a Inter-culturalidade, mais do que uma estratgia de encontro ou de comunicao

    cultural, deve ter subjacente um projecto poltico de transformao socialtransnacional (Ribeiro, 2008, 4). As interculturalidades engendram-se,afinal, onde a identidade soobra, como forma estratgica de posiciona-mento no mundo, geram-se nas cesuras, nos interstcios, no momento emque a humanidade abdica do egosmo solipsista e abraa o diferente, assu-mindo, para alm da utopia, a possibilidade um futuro em conjunto.

    Embora o intercultural ultrapasse, no entendimento e na aco, o espectrosimblico-cultural, o conceito ancora-se nos modelos fundamentais que

    enquadram a relao entre culturas, pelo que se torna importante traar umbreve percurso genealgico do mesmo. Na verdade, a definio de cultura,ao contrrio do que defenderam as teses puristas at ao sculo XX3, pressu-pe a existncia do Outro e o dilogo com o diferente. A percepo antro-polgica de cultura, enquanto modo de vida, conduz, por um lado, relati-vizao das hierarquias entre culturas altas e baixas, e, por outro, coloca arelao e o contacto com o diferente ou primitivo como gesto definidor cen-tral do campo de estudos. no contacto, e nas variadas formas de que sereveste, que se ancora o intercultural.

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    4/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    32

    Embora o entendimento do contacto cultural pressuponha a mediao e atroca, esta no se faz de modo simplesmente unvoco e unidireccional, comouma espcie de modelo hipodrmico de inscrio directa de uma cultura naoutra. O processo intercultural , por isso, complexo, ambivalente, feito defluxos e refluxos, bem expresso no modelo que Stephen Greenblatt deno-mina dego-between 4, isto , o modo como o valor simblico do objecto negociado, atravs de um processo quadrifsico de produo no contexto deorigem, deslocao atravs da troca, integrao num contexto cultural alheioe regresso. O objecto, o acto simblico, adquire neste regresso uma nova pre-sena, um renovado valor que integra os momentos de desventramento ereintegrao, tornando-se assim uma re-presentao, uma dupla, renovada e

    diferenciada presena simblica, social e poltica5

    .

    Este esquema simplificado resume o modelo bsico da circularidade do pro-cesso intercultural, mas peca, como qualquer abstraco, pelo aparente fe-chamento redondo, figurado na elipse. Se certo que o processo intercultu-

    ral dinmico, sofrendo constantes renegociaes, por outro lado, inegvel que no se trata de um processo isento de atrito, de tenses e con-flitos que, do simblico ao poltico, permeiam a complexidade do momentointercultural.

    Embora o discurso acadmico privilegie o dilogo, enquanto formante domomento intercultural, esquecer o conflito como a outra face necessriadeste processo no nem produtivo, teoricamente, nem til, do ponto devista sociopoltico. O ataque bombista de 7 de Julho de 2005, em Londres,

    Deslocao 1

    Produo Integrao

    NEGOCIAO

    Re-presentao

    Deslocao 2

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    5/20

    Isabel Capeloa Gil

    33

    os conflitos intertnicos do Vero de 2006, na periferia de Paris, ou o casoda Quinta da Fonte, em 2008, so exemplos radicais do frgil equilbrio demuitas comunidades marcadas pela diversidade. A prtica da interculturali-dade apresenta-se, assim, quer como gesto de risco, quer como aco arris-cada que age no espao mediano onde o social, o cultural, o poltico e o an-tropolgico colidem.

    Que o conflito faz parte essencial da formao da cultura, j Hesodo, nopoema Erga (vv. 14-26), o referia, ao distinguir entre o mau conflito, aqueleque provocava a disrupo da comunidade, e o bom conflito, isto , aqueleque podia ser produtivamente canalizado para a renovao e reaglutinao

    dos laos sociais, tal como acontecia no acto sacrificial6

    . A este conflitocomunicativo (Assmann, 1990, 11) ope-se o no comunicativo, ou seja, oque assenta na impossibilidade de intermediao entre as partes. A opopor uma ou outra concepo do conflito no radica, como o defenderamtanto os tericos liberais como os conservadores, na generalizao essencia-lista e universalista relativamente bondade (Rousseau) ou maldade/agres-sividade (Hobbes) natural da espcie humana. No se trata de acreditar nobom selvagem ou num homo lupus homini. Esta orientao, que regeu o pen-samento filosfico-poltico at Nietzsche e Freud, reduz o social e o poltico

    ao biolgico, transformando o conflito em produto secundrio da animalagressividade humana. Do mesmo modo, a aco da cultura surge como cor-rectivo moral e poltico, que corrige ou perverte, consoante o caso, a (im)per-feitaphysis.

    Todavia, no incio do sculo XX, o socilogo Georg Simmel desloca a dis-cusso acerca da conflitualidade do eixo da biologia para o eixo da cultura.No ensaio O Conflito da Cultura Moderna (1918), uma conferncia proferidano final da I Guerra Mundial, Simmel define o conflito como estrutura

    sociogentica integradora do prprio tecido cultural. A cultura deixa assimde figurar como repressora 7 ou mediadora dos impulsos letais e conflituaisdo animal humano, mas ela prpria fundadora de conflito, sendo no con-flito, entendido claramente enquanto estrutura comunicativa, que o pro-cesso cultural assenta. O trabalho de Simmel fundador para o entendimen-to de duas valncias fundamentais do processo cultural: a primeira a deque a cultura assenta na negociao da diferena; a segunda a de que ocontacto com o diferente no conduz necessariamente a uma resoluo pac-fica, e que afinal na coliso com o distinto que radica o princpio da iden-

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    6/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    34

    tidade. A esta luz, afirmaes como a de Norbert Elias, ao consagrar a cul-tura como a expresso mais elevada da identidade de um povo, podem serreestruturadas do seguinte modo: a cultura a expresso agonstica da iden-tidade de um povo.

    O conflito comunicativo, agonstico, como referiam os Gregos, assim fun-dador da cultura e da sua prtica, mas a aco da cultura est igualmenteassociada de modo ancilar ao conflito agressivo e destrutivo. No s os acon-tecimentos do trgico sculo XX comprovaram que cultura e barbarismo nose excluem mutuamente, mas, efectivamente, tal como constatou a Antropo-logia Cultural, caminhando a cultura para a produo de identidade, ela cria

    simultaneamente a excluso e a alteridade. O etnlogo Eibl-Eibesfeldt de-fende que as razes antropolgicas do conflito radicam no facto de que, naconstituio de laos primrios de comunitarismo, a agressividade naturaldos indivduos dirigida contra o estranho, e se manifesta sob a forma deexcluso do diferente. A coeso do grupo, a criao do grupo, na verdade,depende do sucesso destes processos conflituais de excluso do diferente(Eibl-Eibesfeldt, 1975, 145). A reaco de hostilidade contra o Outro consti-tui, assim, um trao marcante em momentos de perigo ou insegurana paraa coeso cultural de um grupo. Ren Girard chama-lhes momentos de crise

    comunitria que requerem uma aco sacrificial reparadora. Esta pode-semanifestar sob a forma de um conflito violento, mimtico e poluidor ou,ento, como acto de substituio simblica (Girard, 1992). Seja na formaviolenta do conflito intertnico, interreligioso ou de classe, ou esgrimido deforma simblica e esttica, os momentos de crise so efectivamente momen-tos de indiferenciao entre os limites do que identifica, o que est dentro,e do que diferencia, o que est de fora , que exigem o restabelecimento dasfronteiras como forma de reestruturao cultural da comunidade.

    A fotografia do Bairro do Aleixo, no Porto, da autoria de Leonel de Castro,publicada noJornal de Notcias de 16-7-2008, constitui um poderoso smboloagonstico da representao cultural (Fig. 1, no final do artigo). A coloraodantesca da imagem, iconogrfica de um bairro problemtico da cidade,enuncia o espao urbano como zona de coliso, partilhada por etnias mino-ritrias com interesses conflituais entre si e com os grupos sociais maiorit-rios sua volta. A urbe apresenta-se, afinal, como espao privilegiado de coli-so e negociao, onde a crise da identidade se exprime, quer devido insuficincia econmica, baixa escolarizao e marginalizao social, quer

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    7/20

    Isabel Capeloa Gil

    35

    porque os traos culturais, as tradies e valores da minoria, entram em con-flito no s com a cultura hegemnica circundante como com os outrosgrupos minoritrios com quem partilham o espao. Esta coliso propiciaigualmente o surgimento da marginalidade, tornada contracultura, que dcoeso a um espao sitiado e a indivduos desenraizados e incapazes de seafirmarem perante uma maioria que os hostiliza. Por outro lado, a traaurbana contribui para reforar a localizao sitiada deste bairro, encurraladoentre os bairros opulentos da cidade. A prpria arquitectura dos cinco blo-cos sociais, em torres, enclausura grupos, cuja tradio os associa dispora,ao nomadismo, ao espraiar na horizontalidade, acentuando assim a criseidentitria do grupo e reforando a necessidade de reconstituir os limites,

    num manifesto de autoguetizao que refora a separao do diferente, massimultaneamente contribui para uma nova, se bem que sempre frgil, reaglu-tinao dos laos comunitrios. Isto , a marginalidade apresenta-se como anica forma de radical identificao do grupo 8. O caso do Bairro do Aleixo,como o da Quinta da Fonte, em Loures, so exemplos radicais de como a re-lao entre culturas frgil e, se bem que estando sob constante ameaa, seapresenta tambm como ameaadora. A interculturalidade tambm est pre-sente no momento e no desenvolvimento desta crise, embora, naturalmente,no se reduza a ela.

    Ora, se o contacto com o diferente uma inevitabilidade do processo cultu-ral e se o conflito comunicativo e no comunicativo , tal como o dilogo,constitui um formante essencial deste momento, a interculturalidade erige--se como estratgia fundamental de mediao. Todavia, seria utpico conce-ber a interculturalidade como um processo inevitavelmente com sucesso,como uma espcie de soluo mgica que supera a violncia manifesta,sempre que a identidade cultural est em jogo. A interculturalidade e os seusmltiplos avatares jogam no campo da mediao do diferente, mas de forma

    alguma em campo neutro 9.

    Efectivamente, a esfera do entre, que o prefixo inter- consagra, no se cons-titui como um espao neutro, em que a aco cultural se manifesta de formaholstica, consagrando fuses, sincretismos, hibridaes felizes, alm eaqum do enclausuramento das identidades. A tica intermdia, que to fe-cunda se revelou na teoria da linguagem de Buber a Lvinas e Bakthine 10 ena sua constatao diferenciada da cultura como processo dialgico, e queto produtiva se verificou na teoria cultural e poltica, em particular associa-

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    8/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    36

    da aos estudos ps-coloniais 11, no se concebe como vazio a inscrever. A in-termediao no pode ser entendida como uma processualidade que anula odelimitado e o refigura como fuso, ou ento, que aplana o diferente. O es-pao intermdio da interculturalidade apresenta-se antes como momentopleno, situado e fecundo de sentido, um espao onde a identidade se enri-quece de outro, no para se expandir, como concebe Wierlacher, mas parase desventrar, renovando-se 12. Embora alguns autores tenham acentuado adistino da relao entre culturas, descrita como intercultural, relativa-mente diversidade no seio da prpria cultura, concebida como intracultu-ral 13, a distino acaba por ser pouco produtiva, j que, no mundo globali-zado, as relaes entre grupos no seio de uma determinada cultura no

    podem ser concebidas sem qualquer lao exterior14

    . O mundo em relao dasociedade em rede torna a intraculturalidade necessariamente intercultural.

    Na verdade, a interculturalidade exprime-se como disposio, que radicanum sentimento de lacuna do outro (Carneiro, 2006, 49), isto , como cul-tivo de uma humanidade essencial, que no se resume ao cultural, mas sealarga ao social e poltico. Homi Bhabha, discutindo como problema centraldo nosso tempo a complexidade da diversidade cultural e o seu impacte nadistribuio de riqueza, define a ambivalncia como a caracterstica mar-

    cante deste nexo global, marcado desde logo pela articulao entre a conec-tividade tecnolgica e a cultura. Na ambivalncia hbrida das naes alheiasda modernidade, necessrio o direito narrativa, que, por um lado, confi-gure modelos de pertena de comunidades minoritrias, mas que torne acultura em acto performativo, isto , modelo teraputico de um dilogointercultural assente na imaginao, sem nunca descurar o exame crtico, advida e a deliberao.

    Bhabha, professor de Literatura Inglesa, na Universidade de Harvard, pro-

    pe um modelo de resoluo que passa pela abertura da narrativa prpriaao alheio, ou melhor, que se funda na reescrita da narrativa prpria peloalheio (Bhabha, 2007, 25). Redefinindo o objecto dos estudos de cultura doeixo da identidade, que marcou a teoria dos anos 80 e 90, para o eixo dadiversidade, a interculturalidade inscreve-se, assim, como projecto plural,assente numa tica de desventramento, que busca na compreenso do Outroo encontro com o que lhe prprio, como na expresso iconogrfica do ar-tista mexicano Guillermo Gomez-Pea: Estou a desmexicanizar-me para me-xicompreender-me (Apud Canclini, 1993, 291). Dito de forma simples, o

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    9/20

    Isabel Capeloa Gil

    37

    conhecimento da alteridade apresenta-se como autoconhecimento. Assenteno cultural, mas agindo no campo social, poltico, econmico, religioso eepistemolgico, este conceito comunicativo interpela o mundo como redede interaces reais ou virtuais. Assumindo o conflito, torna-se produtivo,onde a multiculturalidade simples soobra, e apresenta uma nova convivia-lidade como projecto para um futuro em comum.

    Esplendor e misria do multiculturalismo 15

    Quando surge como teoria legitimadora da aco cultural, nos anos 80, o

    multiculturalismo vem responder realidade pluricultural das metrpoleseuropeias, no final do sculo XX. Tal como refere Arjun Appadurai, as carac-tersticas dominantes da modernidade tardia so fundamentalmente os doisemes, Migrao e Mediao (Appadurai, 1993, 12). A deslocao populacio-nal das periferias para as grandes metrpoles europeias, propiciada pela des-colonizao e pela necessidade de mo-de-obra sentida por estas sociedadesno perodo posterior II Guerra Mundial, aumenta ao longo da segundametade do sculo XX, motivada por fenmenos econmicos e sociais, pelafome, pela perseguio poltica e pela guerra, que constituem as chamadas

    disporas do terror (Ibid.), mas tambm pela busca esperanosa do conheci-mento as disporas da esperana que cultivam e refazem a imaginaodo centro na sua relao com as periferias. A fixao destas comunidades,nas sociedades europeias, trouxe novos desafios, desde o planeamento urba-no organizao dos currculos escolares, da criao artstica cidadania, daconvivncia religiosa ao cultivo dos valores democrticos. O multicultura-lismo, fenmeno particularmente urbano, tal como construdo na teoriasocial de Charles Taylor a Bikhu Parekh e Will Kymlicka, e oriundo do con-texto cultural anglo-saxnico, onde o impacte desta movimentao mais

    cedo se faz sentir, surge como discurso de resistncia s tendncias de assimi-lao cultural que dominavam a prtica de interaco cultural at ento.

    Na verdade, o multiculturalismo surge como uma fora centrfuga, relativa-mente cultura do centro, afirmando a defesa incondicional dos direitosdas minorias, relativamente a prticas de homogeneizao forada, e sobre-pondo as formas de pertena a uma cultura de origem aos modelos deacolhimento num espao outro. Surgindo, originariamente, como forma deresistncia cultural que se alargou ao discurso poltico, podem-se identificar

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    10/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    38

    tendncias diferenciadas no percurso do multiculturalismo, que vo do re-conhecimento da pluralidade lingustica, religiosa e cultural de comunida-des que habitam geografias comuns, negociao com comunidades indge-nas, relativamente a questes de reconhecimento de direitos e de reparao,e a questes claramente tnicas, associadas ao que Gilroy denomina as ten-tativas de desfazer ordens raciais (Gilroy, 2007, 189). Isto , o multicultura-lismo, partindo da exigncia do reconhecimento de modelos culturais e lin-gusticos diversos, ancora no discurso da identidade a exigncia da cidadaniae soberania polticas.

    A exigncia do reconhecimento dos direitos identitrios de grupos subre-

    presentados teve um impacte importante nas polticas culturais e sociais,bem como nos modelos de cidadania, mas o discurso multicultural sofreuuma eroso progressiva. Este facto ocorreu, no porque os problemas queestiveram na sua origem tenham sido solucionados nas sociedades multicul-turais europeias, mas porque a sua aplicao prtica sublinhou mais a tnicacentrfuga do que a negociao, acabando por se enredar nas contradies edissonncias que queria superar e que podem ser sistematizadas em trs mo-mentos distintos: paridade e discriminao; identidade e universalidade;antagonismo e violncia.

    A primeira contradio surge da resposta das sociedades liberais exignciamulticultural, que se manifestou em polticas de discriminao positiva, naimplementao de modelos educativos culturalmente diferenciados espe-cialmente nos EUA e no Reino Unido que conduziram, na prtica, a umracismo diferencialista e a renovadas formas de menorizao, ou ento, noassumir de uma neutralidade artificial, que propiciou a guetizao de comu-nidades e modelos efectivamente relativistas de relacionamento. Se certo,como refere Charles Taylor, que o pensamento multicultural cultiva o plu-

    ralismo e renega qualquer aco que valorize determinadas culturas em detri-mento de outras (Taylor, 1992, 98), a verso de multiculturalismo, frequen-temente assumida ao nvel da governao, acabou por conduzir a formasrenovadas de discriminao social, sexual, religiosa e poltica. O descrditoda discriminao positiva nos EUA, criada com a inteno de restabelecerum desequilbrio manifesto entre ordens culturais, tnicas e de gnero, esubvertida pelos mecanismos do sistema que a criou, exemplar da aporiamulticultural, que acentuou a diversidade paralela e neutra e descurou a ne-cessria poltica da articulao e da convivialidade.

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    11/20

    Isabel Capeloa Gil

    39

    A segunda aporia a da ratoeira da identidade. Embora a defesa da identi-dade cultural no seja, partida, condio suficiente para a recusa do globalou dos direitos universais, ao longo dos anos 90, o discurso eufrico sobre aidentidade e a tnica colocada na defesa intransigente de todos os direitosdas minorias, sem concesses ao discurso liberal-cosmopolita dos direitosuniversais do indivduo 16, transformou o discurso da identidade em auto--segregao legitimada. Amin Maalouf refere que a identidade, assim enten-dida, se torna assassina, defendendo a reciprocidade comunitria em vez datribalizao 17. Os estudos culturais, que transportaram o discurso da identi-dade para a dimenso acadmica, tentaram combater o enclausuramento.Tal como referido acima, Stuart Hall concebeu a identidade como negocia-

    o, rejeitando o essencialismo da origem, que reproduz, no contexto multi-cultural, o modelo purista do romantismo europeu. Por sua vez, LawrenceGrossberg props a substituio da identidade, como conceito tribalizado,pelo de singularidade, que assume a pertena negociada no espao interm-dio de encontro com o Outro (Grossberg, 2000, 114). O problema da radi-calizao do discurso da identidade fez-se ainda sentir no mbito da teoriacrtica da raa 18, ou dos grupos de defesa dos direitos das mulheres, sensibi-lizados para o conflito entre a defesa dos direitos culturais do grupo e a rejei-o universal da violncia e de todas as formas de humilhao racial ou

    sexual 19. Para evitar a ratoeira da nova excluso, so unnimes na defesa deuma nova articulao que no rejeite a crtica, mas que a potencie comoforma de negociao entre comunidades.

    Embora o antagonismo, tal como o dilogo, constitua um formante centraldo relacionamento entre indivduos e culturas, a violncia globalizada, pro-vocada pelo 11 de Setembro, e as aces de coliso violenta em Londres,Paris e Madrid parecem anunciar, por um lado, como defende Ian Buruma(Buruma, 2007), que o multiculturalismo morreu, e, por outro, que a coliso

    entre culturas inevitvel. A premissa radica fundamentalmente numa apro-priao populista, apresentando uma razo de causalidade improvvel, entrea radicalizao do discurso multicultural e a violncia. Tratando-se de umaapropriao retrica, o certo que trouxe uma renovada energia ofensivamulticultural, propiciando a reviso de polticas, endurecendo medidas decoero, na verdade, agudizando as relaes entre as diferenas em confron-to. Se o encerramento retrico, torna-se ento necessrio encontrar umanova linguagem que transfira a tnica da diversidade paralela para a diversi-dade de interseco. Ressalve-se que no se trata de um mero mecanismo

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    12/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    40

    simblico, mas de efectivamente demonstrar a falibilidade do isolamento,ou de formas encapotadas de uma nova hegemonia, reforando a poltica dahospitalidade, da reciprocidade, do reconhecimento, da convivialidade, dainterculturalidade. Trata-se de pensar as culturas inseridas em tradies par-ticulares, de as entender na sua especificidade e de partir do conhecimentoda sua diferena, pelo respeito e no pela condescendncia, para um pro-jecto de habitabilidade comum, sem negar a crtica, a inevitabilidade do con-flito, mas igualmente a universalidade da dignidade humana. A este projectointercultural d Paul Gilroy o nome de convivialidade.

    Interculturalidades e novas convivialidades

    O modelo de negociao e interaco dinmica e ref lexiva, que a aco inter-cultural concebe, encontra na proposta de convivialidade de Gilroy uma pro-blematizao feliz, que aposta nas continuidades e nas tenses, que no sereifica no cultural, mas aqui busca as energias para uma efectiva convivnciaintercultural:

    Por convivialidade, entendo um padro social, no qual os grupos citadinos

    culturalmente diferentes vivem em proximidade, mas onde as suas parti-cularidades raciais, lingusticas e religiosas no provocam [...] descontinui-dades da experincia ou problemas insuperveis de comunicao. Um graude separao pode, nestas condies, ser combinado com um maior grau desobreposio. H caractersticas comuns a nvel institucional, demogrfico,geracional, educacional, legal e poltico, bem como variaes electivas queentrecruzam as outras dimenses da diferena e complicam o desejo de pos-suir ou gerir os hbitos culturais dos outros, como funo da nossa prpriarelao com a identidade. A convivialidade pretende reconhecer esta com-

    plexidade (Gilroy, 2007, 197).

    A afirmao de que a convivialidade parte do cultural, mas no se esgotanele, no significa, contudo, que esfera da cultura seja atribudo um papelsubsidirio menor, neste processo. Se, por um lado, toda a experincia, por-que mediada pela linguagem, tem um sentido e busca a comunicao de sen-tido, sendo portanto sempre uma expresso cultural, por outro, a riqueza ea pluralidade das interculturalidades radica precisamente no facto de extra-vasarem a esfera simblica restrita do cultural, alargando-se a outros modos

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    13/20

    Isabel Capeloa Gil

    41

    de relacionamento em sociedade, do econmico ao poltico e social. Domesmo modo, se empurrar a aco intercultural para a esfera do simblico,no resolve os conflitos e assimetrias, enfim, a convivncia entre diferentescomunidades, deve-se reconhecer ao simblico um papel de interveno queno radica apenas no cultivo ensimesmado da esttica.

    Efectivamente, tal como referimos no incio, uma genuna prtica intercul-tural radica na compreenso do Outro como modelo de autocompreenso.Significa, desde logo, reconhecer que o Outro existe e, assim, como referiaHannah Arendt, que o Outro tambm pode ter razo. Simultaneamente, ainterculturalidade performativa, isto , quer agir, seja pela mediao do

    simblico ou como interveno directa no poltico e no social. A deslocaohermenutica em direco ao diferente encontra, no raro, no esttico o seumdium privilegiado de expresso, transformando assim a criao artstica, anarrativa literria, a expresso simblica em estratgia de remediao, aquientendida em trs sentidos: transposio intermeditica, relao de resistn-cia e estratgia de resoluo.

    Aremediao apresenta-se como a transposio estrutural entre formas arts-ticas diferenciadas, com o objectivo de renegociar a ordem de sentido da

    obra a montante, resistindo simultaneamente, seja sob a forma de subver-so, citao ou pardia, ao seu modelo cultural, a partir de uma diferentesubjectividade artstica, ou seja, a partir do lugar do Outro. Se estas duas es-tratgias concebem uma renovada convivialidade intercultural, na terceiraacepo, a remediao, apresenta a arte e a esttica como terapia e resoluo,isto , como expresso inicial da possibilidade de contacto na zona de con-flito da cultura.

    A performance Piet Negra, realizada em 2005, na Livraria Mabooki, no

    Bairro Alto, por dois jovens artistas da dispora africana em Portugal, Fran-cisco Vidal e Teodolinda Semedo (Teo), constitui uma manifestao exem-plar da plural grafia do gesto intercultural, constituindo uma expresso arts-tica que age performativamente sobre o social, a partir de uma interpelaoda tradio intelectual do ponto de vista diasprico. Francisco Vidal tem na-cionalidade portuguesa e nasceu em Lisboa, em 1978, filho de pai angolanoe me cabo-verdiana. Teo nasceu em Lisboa, em 1975, de pais cabo-verdia-nos. A experincia do descentramento e a negociao identitria so mar-cantes na sua actividade artstica, onde abordam temas como a experincia

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    14/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    42

    africana, a negritude, a identidade sexual. Francisco Vidal explora a artecomo zona de contacto a fazer-se, espao onde se entrecruzam diferentes rea-lidades histricas, tnicas, sociais, polticas e culturais. Trata-se, afinal, deentender a cultura como intercultura, espao traslatrio onde os sentidos sefazem e refazem de perspectivas mltiplas, onde as experincias convivem ese constroem, remediando-se.

    Em Piet Negra (Fig. 2), uma resoluo fotogrfica em negativo da caracte-rstica Piet da estaturia ocidental, a experincia da dispora negra, a negri-tude refaz a pureza marmrea da escultura original, hibridando-a e revelandoa experincia africana como central expresso esttica da tradio ociden-

    tal. Esta remediao esttica articula-se com uma hibridao ideolgica entrea Virgem Me sofredora e a figura tutelar da me na cultura africana, que do mote performance Piet I de Teo. Trata-se de uma miscigenao de resis-tncia, que desventra o discurso legitimador da cultura ocidental, a partir deposies artsticas perifricas, dando centralidade ao Outro tornado invis-vel, a me africana, a negritude. Trata-se, alm do mais, de uma remediaohertica, que dessacraliza a arte sacra, imanentizando-a pela associao ver-ncula dispora, dando simultaneamente figura essencialista da me dacultura africana uma dimenso csmica. Falada da perspectiva de uma sub-

    jectividade diasprica, no Portugal do sculo XXI, mas dirigindo-se a umpblico pluritnico, dialogando com a tradio religiosa e esttica europeiae hibridando-a com marcas da cultura africana e, finalmente, refazendo aordem rcica da arte, Piet Negra constitui um exemplo seminal de como osimblico expressa, remedeia e reconcilia a multiculturalidade urbana numexerccio de convivialidade intercultural.

    Em vez de uma concluso... um novo comeo

    Neste breve intrito, procurmos demonstrar como a realidade multicultu-ral das sociedades europeias e de Portugal exige a abordagem interculturalcomo estratgia de convivialidade. Argumentando que a cultura s se podepensar em dilogo, o ensaio faz um balano das principais posies sobre amulticulturalidade, as suas grandezas e misrias, apresentando o gesto inter-cultural como central para a autocompreenso das sociedades e para a con-vivncia pacfica, e com respeito entre comunidades, tnica, social, religiosae politicamente diferenciadas. Reconhecendo que a interculturalidade se

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    15/20

    Isabel Capeloa Gil

    43

    grafa no plural, o artigo considera que a sua aco no se pode resumir ao es-pectro do simblico, apresentando-se como actuao que, ancorando-se nacultura, atravessada pelo que Nestor Garcia Canclini designa de poderesoblquos (Canclini, 1994, 318), isto , formas diversas que transferem aaco cultural para a gora social e poltica, ou que ajudam estas outras esfe-ras a dar sentido aos necessrios conflitos de que a relao entre comuni-dades diferentes que partilham o mesmo espao se reveste. De forma siste-matizada, a aco intercultural assenta, assim, nas seguintes premissas: noinabalvel primado da dignidade humana; no reconhecimento das diferen-as culturais e no respeito dos direitos culturais, sociais, polticos e religio-sos das comunidades; no respeito pela ordem jurdica e na tolerncia como

    forma central de convivialidade.

    Atravs do contacto, da hibridao produtiva, do sincretismo ou da mesti-agem esttica, a multiculturalidade como modelo poltico evita o perigo dasegregao e da reificao identitria, podendo assim converter-se em inter-culturalidade.

    Figura 1

    Leonel de Castro, Bairro do Aleixo,Jornal de Notcias (16.7.2008)

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    16/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    44

    Notas

    1-2Veja-se o rap portugus, que surge no seio das comunidades africanas de segunda e ter-ceira gerao, com grupos como Buraka Som Sistema, Boss AC ou DaWeasel. Nas artes pls-ticas, o projecto Artfrica, patrocinado pela Fundao Calouste Gulbenkian, d a conhecer,a partir de 2001, trabalhos de artistas da dispora residentes em Portugal ou nos Pases

    Africanos de Expresso Portuguesa. Cito, a ttulo representativo, Francisco Vidal, AkazaMota, Abraham Levy Lima, ngela Ferreira, entre muitos outros. Vd. http://www.artafrica.info/html. Na literatura, por demais conhecido o contributo determinante das comunida-des diaspricas, residentes em Portugal, para uma renovada literatura de expresso portu-guesa, enriquecida com a originalidade resistente de Ondjaki ou a sensibilidade forte dapoesia de Ana Paula Tavares.3 Sobre esta matria, veja-se a definio cannica e datada de Norbert Elias, em O ProcessoCivilizacional, onde concebe a cultura como autoconscincia de uma nao (Elias, 1989,

    61). Veja-se Eagleton, 2000; Appiah, 2003; Beck, 2005.

    Figura 2

    Piet Negra, Teo e Francisco Vidal, 2005

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    17/20

    Isabel Capeloa Gil

    45

    4 Greenblatt definego-between como um modelo cultural de circulao inescapvel, quehabita o espao intermdio (in-between), um sistema de transferncia e mediao entre siste-mas representacionais (Greenblatt, 1991, 139ss).

    5 Esta concepo, que radica no s em modelos de interaco ritual, tal como foi definidopor van Gennep na sua obra seminal sobre ritos de passagem (van Gennep, 1978), mastambm em modelos de interaco semitica, marcadamente construtivista, na medida emque assume que o sentido da interaco cultural no imana de modo essencialista do objectoou do acto simblico, no controlado pelo actor social, mas negociado e renegociado deacordo com o contexto e o sistema representacional em presena. Vd. Hall, 1997, 25.6 Sobre este assunto, veja-se em particular os estudos de Ren Girard sobre a teoria sacrificial(Girard, 1992; 2000), bem como Victor Turner (1969).7Veja-se em particular Sigmund Freud, O Mal-Estar Civilizacional (1930).8

    A Cmara Municipal do Porto aprovou, em sesso legislativa de 16 de Agosto de 2008, aimploso do Bairro do Aleixo e a transferncia dos moradores para bairros sociais a cons-truir na cidade ou, ento, para habitao j disponvel na zona antiga da cidade. A decisofoi contestada pelos moradores que interpuseram uma providncia cautelar.9Jan e Aleida Assmann referem a necessidade de entender no apenas que o conflito anci-lar para a cultura, mas que existe uma cultura do conflito que deve ser compreendida parapossibilitar uma convivncia pacfica (Assmann, 1990, 31ss.). A interculturalidade de sucessotrabalha de forma comprometida sobre a concepo do conflito da cultura (Simmel) e dacultura do conflito, procurando a resoluo sob uma forma que no nega o conflito, masque o canaliza produtivamente.

    10A concepo de dialogismo, nestes trs autores, contudo bastante diferenciada, mode-lando entre o dialogismo integracionista do Tu no Eu de Martin Buber (O PrincpioDialgico), a interaco sistmica e em tenso de Mikhail Bakthine (A Imaginao Dialgica)e a alteridade nunca integrada de Levinas (Entre Ns).11Veja-se, em particular, a produtividade metafrica do conceito de fronteira (Gloria An-zalda), de terceiro-espao ou espao intermdio (Homi Bhabha, Gayatri Spivak), ou de no--lugar (Marc Aug). Estes espaos de transio metamorfoseiam-se de espaos concebidos no

    vazio para espaos estratgicos e plenos de sentido. Urge recordar a afirmao de AntnioSousa Ribeiro: Quanto mais o mundo globalizado concebido como um sistema interac-tivo, tanto mais vital se torna pensar a forma dessa interaco e tanto maior resulta, em con-

    formidade, a importncia estratgica do conceito de fronteira sendo certo que [...] a globa-lizao no elimina as fronteiras, mas simplesmente as desloca, de acordo com as complexasredefinies da relao entre o local e o global que lhe so inerentes (Ribeiro, 2001, 469).12Apesar de reclamar a negao da neutralidade, da sntese, da deslocalizao neutra do mo-mento intercultural, Wierlacher no deixa de cair na ratoeira buberiana, afirmando a forade expanso identitria inerente interculturalidade. Isto , concebe o intercultural comoexpanso do Eu e integrao do Outro, dando-lhe afinal a capacidade simblica de subsistirno espao intermdio, apenas enquanto extenso de um Eu hegemnico (Wierlacher, 2003,262). Sobre este tema, veja-se Appiah, 2003; Bhabha, 2007.13Veja-se Boneu, 2003: 191; Pajares, 1999.

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    18/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    46

    14 Esta a alegoria falhada da comunidade segregada do filme The Village, de M. NightShyamalan (2004).15 O termo multiculturalismo constitui um anglicismo, j que o termo cunhado etimol-

    gica e culturalmente para se referir a um fenmeno urbano especfico das sociedades anglo-saxnicas do final do sculo XX. O termo portugus multiculturalidade abarca fenmenosgerais de interaco entre culturas. Todavia, o prefixomulti- coloca a tnica no eixo da diver-sidade e da paridade entre o diverso, descurando a necessria interaco entre estas diferen-as, que efectivamente se inscrevem na pluralidade interactiva das interculturalidades.16Veja-se, por exemplo, a criao do movimento para um parlamento muulmano na Gr--Bretanha, constitudo em 1992 por Kalim Siddiqui, que defendia um sistema poltico mino-ritrio para os muulmanos da Gr-Bretanha, com a introduo da Sharia islmica e a cria-o de um estado muulmano no-territorial (http://www.islamicthought.org/mp-intro.html).Em termos tericos, Will Kymlicka sustenta a prioridade dos direitos de origem sobre as

    formas de pertena na comunidade de acolhimento (Kymlicka, 1995), mas Bikhu Parekh(2000), embora defenda a lealdade da comunidade origem, concebe a necessidade de man-ter laos sociais com a comunidade de acolhimento, como forma de resistir tentao cen-trfuga do multiculturalismo.17 [...] a palavra chave reciprocidade: se aceito o meu pas de adopo, se o considerocomo meu, se estimo que faz parte de mim e que eu fao parte dele, e se actuo em confor-midade, ento tenho direito a criticar todos os seus aspectos; do mesmo modo, se esse pasme respeita, se reconhece o que lhe dou, se, a partir de agora, me considera, com as minhassingularidades, parte de si, ento tem direito a rejeitar alguns aspectos da minha cultura quepodero ser incompatveis com o seu modo de vida ou com o esprito das suas instituies

    (Maalouf, 1999, 50).18Veja-se Cornel West, 1997; Gilroy, 2007.19Veja-se o estudo de Susan Moller Okin, Is Multuculturalism Bad for Women? (1999), acercadas assimetrias do discurso multicultural e as respostas de tericos como Parekh, Kymlicka eBhabha, defendendo um liberalismo multicultural que reconhea a contingncia do dis-curso liberal e a validade universal da defesa da dignidade humana.

    Bibliografia

    APPADURAI, Arjun, Modernity at Large. Cultural Dimensions of Globalization,Minneapolis, Univ. Minnesotta Press, 1996.

    APPIAH, Kwame Anthony, The Ethics of Identity, Princeton, Princeton U. Press,2003.

    ASSMANN, Aleida e Jan, Kultur und Konflikt. Aspekter einer Theorie des unkom-munikativen Handelns, inASSMANN, JanHARTH, Dietrich (eds.), Kultur undKonflikt, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1990, pp. 11-47.

    BAKTHIN, Mikhail, The Dialogic Imagination, Austin, University of Texas Press,

    2004.

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    19/20

    Isabel Capeloa Gil

    47

    BECK, Ulrich, Der kosmopolitische Blick oder: Krieg ist Frieden, Frankfurt am Main,Suhrkamp, 2004.

    BHABHA, Homi, tica e Esttica do Globalismo: Uma Perspectiva Ps-Colonial, in

    A Urgncia da Teoria, Lisboa, Tinta da China, 2007, pp. 5-27.BONEU, Mercedes Santiago, Promover la diversidad, in RIBEIRO, Maria Manuela

    Tavares (ed.), Europa em Mutao. Cidadania. Identidades. Diversidade Cultural,Coimbra, Quarteto, 2003, pp. 175-199.

    BUBER, Martin, Das dialogische Prinzip, Gtersloh, Gtersloher Verlagshaus, 1986.BURUMA, Ian, The Strange Death of Multiculturalism, in Project-Syndicate, 2007,

    http://www.project-syndicate.org/commentary/buruma2 (consultado em 12.5.2008).

    CANCLINI, Nestor Garcia, Culturas Hibridas. Estratgias para Entrar y Salir de la Mo-dernidad, Cidade do Mxico, Planeta, 1993.

    __________,A Globalizao Cultural, So Paulo, Editora USP, 2005.CARNEIRO, Roberto, Hibridao e Aventura Humana, in Revista de Comunicao

    e Cultura, n. 1, 2006, pp. 37-56.DIAS, Ins Costa, Francisco Vidal, inArtfrica, http://www.artafrica.info/html

    /expovirtual/expovirtual_i. php?ide=2 (consultado em 20.7.2008).EAGLETON, Terry, The Idea of Culture, Oxford, Blackwell, 2000.EIBL-EIBESFELDT, I., Krieg und Frieden aus der Sicht der Verhaltensforschung, Muni-

    que, Fink, 1975.ELIAS, Norbert, O Processo Civilizacional, 1. vol., Lisboa, D. Quixote, 1989.

    GILROY, Paul,After Empire. Melancholia or Convivial Culture?, Londres, Routledge,2004.__________, Cultura e Multicultura na Era da Rendio, in O Estado do Mundo,

    Lisboa, Temas e Debates, 2007, pp. 173-204.GIRARD, Ren, La violence et le sacr, Paris, Gallimard, 1992.__________, Le bouc missaire, Paris, Gallimard, 2000.GREENBLATT, Stephen, Marvelous Possessions. The Wonder of the New World, Chi-

    cago, Chicago U. Press, 1991.GROSSBERG, Lawrence, Identity and Cultural Studies: Is That All There Is?, in

    HARTLEY, JohnPEARSON, Roberta (eds.),American Cultural Studies: A Reader,

    Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 114-121.HALL, Stuart (ed.), Representation. Cultural Representations and Signifying Practices,

    Londres, Sage, 1997.__________, Identidade Cultural e Dispora, in Revista de Comunicao e

    Cultura, n. 1, 2006, pp. 21-37.KYMLICKA, Will, Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights,

    Oxford, Clarendon Press, 1995.MAALOUF, Amin, Identidades Asesinas, Barcelona, Alianza Editorial, 1999.OKIN, Susan Moller, et al., Is Multiculturalism Bad for Women?, Princeton, Princeton

    University Press, 1999.

  • 7/30/2019 Interculturalidades Da Multiculturalidade

    20/20

    IIAS INTERCULTURALIDADES DA MULTICULTURALIDADE

    OLIVEIRA E COSTA, Joo PauloLACERDA, Teresa,A Interculturalidade na ExpansoPortuguesa Scs. XV- XVIII , Lisboa, ACIME, 2007.

    PAJARES, M., La inmigracin en Espaa, Barcelona, Icaria, 1999.

    PAREKH, Bikhu, Rethinking Multiculturalism: Cultural Diversity and Political Theory,Basingstoke, Macmillan, 2000.

    PIMENTEL, Dulce, Terra de Migraes, inAtlas de Portugal, Lisboa, Instituto Geo-grfico Portugus, 2005, pp. 98-103.

    RIBEIRO, Antnio Pinto, Programa Distncia e Proximidade, Lisboa, Fundao Ca-louste Gulbenkian, 2008.

    RIBEIRO, Antnio Sousa, A Retrica dos Limites. Notas Sobre o Conceito de Fron-teira, in SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), Globalizao. Fatalidade ouUtopia?, Porto, Afrontamento, 2001, pp. 463-488.

    RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (ed.), Europa em Mutao. Cidadania. Identidades.Diversidade Cultural, Coimbra, Quarteto, 2003.SIMMEL, Georg, Der Konflikt der Modernen Kultur. Gesamtausgabe Bd. 17, (ed.

    Michael Behr, Volkhard Krech, Gert Schmidt), Frankfurt am Main, Suhrkamp,2000.

    TAYLOR, Charles, Multiculturalisme. Diffrence et Dmocratie, Paris, Flammarion,1992.

    TURNER, Victor, The Ritual Process. Structure and Anti-Structure, Nova Iorque,Aldine de Gruyter, 1969.

    VAN GENNEP, Arnold, Os ritos de passagem, Petrpolis (R. J.), Vozes, 1978.WEST, Cornel, The New Cultural Politics of Difference, in DURING, Simon (ed.),

    The Cultural Studies Reader, Londres, Routledge, 2000, pp. 256-267.WIERLACHER, Alois, Interkulturalitt, inWIERLACHER, AloisBOGNER, Andrea (eds.),

    Handbuch interkulturelle Germanistik, Estugarda, Metzler, 2003, pp. 257-263.